Do Pacto e Seus Rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos | Fátima Regina Fernandes

O princípio da territorialidade começa a ser delineado na Baixa Idade Média, ainda que a experiência jurídica medieval, segundo Paolo Grossi (2014), possa ser caracterizada pela existência de um pluralismo no âmbito do direito. “Pluralidade de tradições e de fontes de produção no interior de um mesmo ordenamento jurídico” (GROSSI, 2014, p. 65). Ciente desta complexidade de tradições e de interpretações jurídicas coexistentes, é que Fátima Fernandes se propõe a discutir a condição de degredados e de traidores em um contexto específico, ou seja, durante as guerras entre Portugal e Castela, iniciadas em 1369. Após o assassinato do legítimo rei de Castela, Pedro I (23 de Março de 1369), por seu irmão bastardo, Enrique de Trastâmara (Henrique II), o rei português D. Fernando apoiado por várias cidades da Galiza e por partidários de Pedro, o Cruel, reivindica a coroa castelhana alegando ter-lhe direito por ser bisneto de Sancho IV. Essas guerras representavam, portanto, quadros da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), pois Pedro de Castela era partidário dos ingleses e seu meio-irmão Enrique, inicialmente dos franceses (NASCIMENTO, 2011). Leia Mais

Do pacto e seus rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos | Fátima Regina Fernandes

A obra Do pacto e seus rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos é fruto do longo trajeto investigativo de Fátima Regina Fernandes, professora de História Medieval da Universidade Federal do Paraná e pesquisadora membro do NEMED – Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Enquanto medievalista, lança seu olhar sobre a Idade Média portuguesa, seus atores sociais e relações políticas no âmbito do Ocidente Medieval, com maior relevância para temas que giram em torno da dinâmica entre os poderes régio e nobiliárquico no espaço da Península Ibérica.

Antes de propriamente adentrar na resenha daquela obra, é preciso um esclarecimento. Toda publicação demarca um ponto no trajeto de pesquisa do historiador, seja ele graduando, pós-graduando ou historiador de carreira consolidada. Contudo, Do pacto e seus rompimentos se constitui por excelência como posição de chegada do percurso investigativo de Fátima Regina Fernandes, pois se trata da tese apresentada pela autora para obtenção do grau de professor titular do magistério superior, portanto, voltado à comprovação dos méritos da pesquisadora em ocupar tal posição, demonstrados por via da pesquisa que compõe as páginas do livro em questão. Assim sendo, foi a partir desta peculiaridade intrínseca a pesquisa que originou essa obra de onde partiu a análise contida nas linhas abaixo.

O livro objeto dessa resenha apresenta uma divisão em dois capítulos de desenvolvimento da problemática, aos quais se soma uma terceira sessão composta pelos anexos, que não devem ser menosprezados ou tratados como mero apêndice, tanto por oferecerem esquemas visuais – árvores genealógicas e mapas – facilitadores da compreensão do dinâmico contexto abordado por Fátima Regina Fernandes, quanto por conter a transcrição dos tratados2 utilizados pela autora para construir a argumentação central de sua tese, além de proporcionar o acesso a documentos por vezes difíceis de serem obtidos ao historiador brasileiro.

O primeiro capítulo é dedicado à abordagem contextual da segunda metade do século XIV, período marcado por fluidas relações políticas, rapidamente remodeladas pelo estabelecimento de pactos e tratados entre os monarcas ibéricos, franceses e ingleses; jogo de interesses que não poupou os nobres, dentre eles aqueles que acompanharam Fernando de Castro – os chamados emperegilados – ao reino de Portugal após a morte de Pedro I de Castela, também conhecido como o Cruel, pelas mães de Henrique de Trastâmara, seu meio irmão – pois bastardo –, tomando para si o trono castelhano.

Recebidos em Portugal, os Castros Galegos passaram à condição de vassalos do rei Fernando I, apoiando-o em suas ambições de domínio sobre o reino de Castela. Contudo, os planos dos nobres castelhanos foram malogrados pela aproximação entre o rei português e o aragonês – por meio de acordo que previa a divisão do território castelhano entre ambos –, mas principalmente pelo avanço da Guerra dos Cem Anos, que fez da Península Ibérica um palco de disputas políticas entre Inglaterra e França.

O objetivo de Fátima Regina Fernandes não é fazer uma revisão bibliográfica acerca dos pormenores que marcaram o irromper da Guerra dos Cem Anos e o desenvolvimento desse conflito a partir de uma narrativa centrada nas ações entre França e Inglaterra. Busca, antes, demonstrar como essa contenda se alastrou para além das disputas entre reino insular e o de além-Pirineus fazendo da Península Ibérica um ambiente sobre o qual se estenderam os interesses dos reis franceses e ingleses. Dessa maneira, a medievalista brasileira rompe com a centralidade de abordagens historiográficas focadas tão somente nos embates sustentados por França e Inglaterra ao longo da Guerra dos Cem anos e logra oferecer uma perspectiva de análise que enquadra esse fenômeno histórico enquanto pano de fundo capaz de envolver atores sociais inseridos no âmbito peninsular e os tencionar a tomadas de posição no campo político ibérico.

O ambiente de relações sócio-políticas da segunda metade do século XIV não é novidade nos trabalhos de Fátima Regina Fernandes, intimidade contextual que possibilita à autora o estabelecimento de vinculações de interesses entre o poder régio e o nobiliárquico, exercício facilitado por sua larga experiência no emprego do método prosopográfico – cujo uso se faz patente em sua tese de doutoramento (FERNANDES, 2003) e em tantos outros artigos, com destaque para as abordagens da trajetória de Nuno Alvares Pereira (FERNANDES, 2006; 2009) –, e que se revela, em Do pacto e seus rompimentos, no mapeamento das alterações experimentadas pelas relações políticas entre os Castros Galegos e os reis de Portugal e Castela, mas também entre esses últimos e os monarcas de Aragão, França e Inglaterra.

No que toca o tratamento dispensado por Fátima Regina Fernandes aos Castros Galegos, deve-se considerar que a autora os analisa enquanto grupo, nomeando tão somente a figura de Fernando Peres de Castro, enquanto os demais aparecem sob a sombra deste e escondidos sob o anonimato de seus nomes. A ausência do tratamento acerca da linhagem de Castro deve ser entendida sob a perspectiva de oferecer uma tese vertical, objetivando acima de tudo o debate em torno do estatuto social, político e jurídico experimento pelos emperegilados ao longo das vicissitudes que marcaram os finais da década de sessenta do século XIV e o início do decênio seguinte, compreendendo-os a partir da cultura política nobiliárquica castelhana, sustentada por uma nobreza cindida em dois perfis: a velha e a nova, conforme tipologia defendida por MOXÓ (2000) – importante referencial adotado por Fernandes. A supressão do processo de formação linhagística dos de Castro nessa tese deve sem entendido, para além do imperativo da almejada objetivo, pelo fato de que o tema já foi foco de pesquisas anteriormente publicadas pela medievalista (FERNANDES, 2000; 2008).

A abordagem do labirinto de relações sócio-políticas que marca o primeiro capítulo de Do pacto e seus rompimentos, característica que faz com que a leitura dessa primeira sessão da obra seja uma prática por vezes truncada e exigente de uma profunda acuidade por parte do leitor – a fim de que não se perda entre os nomes e as rápidas mudanças na direção dos pactos políticos –, oferece as referências contextuais necessárias para a devida compreensão do debate concernente ao segundo capítulo da obra, ao longo do qual a autora desenvolve o cerne de sua argumentação: o debate em torno da condição de traidores e, posteriormente, de degredados, imputada sobre o grupo de nobres castelhanos abrigados em Portugal.

Para atingir seu objetivo, Fernandes recupera os pactos e rompimentos políticos abordados no primeiro capítulo da obra para analisá-los a partir dos tratados firmados no desenvolvimento das relações entre França, Inglaterra, Aragão, Castela e Portugal, sendo o Tratado de Santarém, estabelecido entre os monarcas desses dois últimos reinos em 1373, crucial para o entendimento da condição sócio-política e jurídica dos Castros Galegos em território português.

Assim, a medievalista recorre ao exercício de crítica documental, heurística e diplomática para analisar o Tratado de Santarém, por meio do qual se estabeleceu a vassalidade de Fernando I de Portugal a Henrique II de Castela, o Trastâmara, lançando Fernando de Castro e os nobres que o acompanhavam no reino português na condição de traidores. Gozando desse estatuto, foram expulsos pelo rei português, rumando para Aragão e depois para a Inglaterra, onde passaram a viver como degredados sob a proteção do rei inglês.

Dessa maneira, “[…] a condição de traidor seria vista à luz da relação vassálica e identificada com o infiel, o que rompe unilateral e ilegitimamente o laço com o seu senhor” (FERNANDES, 2016, p. 85), rompimento este que deve ser entendido sob a perspectiva da natureza, compreendida enquanto “[…] relação artificial estabelecida voluntariamente entre os homens a fim de manter o bem comum, o consenso universal, a concordia ordinem” (FERNANDES, 2016, p. 97). Sob o imperativo de elucidar esses dois estatutos sociais – traidor e natureza –, Fátima Regina Fernandes recorre a um debate jurídico – traço também característico da autora e já demonstrado desde sua dissertação de mestrado acerca da legislação de Afonso III de Portugal (FERNANDES, 2001) –, problemática transpassada pelo do avanço das concepções do Direito emanadas a partir de Bolonha e do fortalecimento da ideia das fronteiras, fenômenos históricos que exerceram influência determinante no ideário político da Baixa Idade Média.

Ao enveredar pela discussão em torno da natureza e da noção de pertencimento à terra – questões atreladas à definição dos limites fronteiriços dos reinos medievais –, Fernandes toca no debate historiográfico concernente ao tema que pode ser sintetizado pelo título da obra de Joseph Strayer, As origens medievais do Estado Moderno, viés interpretativo que, tomando o Estado como ponto de chegada, relegou a Idade Média o lugar de berço, momento de gestação das instituições que posteriormente chegariam a sua maturidade no período histórico posterior ao da Idade Média.

Rompendo com as explicações teleológicas, característica da escrita de STRAYER (1969), Do pacto e seus rompimentos tem o mérito de inserir a análise acerca das instituições medievais no contexto próprio de sua dinâmica, fazendo perceber que o sentimento de pertencimento ao reino nutrido por aquelas pessoas surgiu a partir da base municipal, assim como instituições cujo funcionamento se pautava em uma relação mais impessoal entre o poder régio e o local; diferentemente da vinculação entre reis e nobres, haja vista que estes, preocupados com a manutenção de seu poder nobiliárquico, negligenciavam os limites fronteiriços, transitando mais livremente entre os reinos ao sabor das possibilidades oferecidas pelos pactos políticos – problemática que a autora já havia apontado ao estudar a trajetória de Gil Fernandes, um homem de fronteira (FERNANDES, 2013).

Os méritos da obra de Fátima Regina Fernandes podem ser estendidos para além da perspectiva de análise das problemáticas medievais supracitadas. Duas guerras mundiais. Conflitos armados no Leste Europeu e Oriente Médio – ainda hoje em chamas. Governos ditatoriais na América Latina. Todos esses embates político-militares impeliram, e seguem obrigando, extensa quantidade de pessoas ao abandono sua terra natal em pronta fuga aos horrores gerados pela violência daqueles embates. A proximidade temporal que envolve o observador contemporâneo a esses fatos pode levá-lo a concluir de maneira apressada que o exílio foi fenômeno nascido no século XX e vivo ainda na segunda década do XXI, entendimento equivocado que também se deve a escassez que a problemática experimenta no espaço dos debates historiográficas dos medievalistas.

Embora a circulação de nobres entre os reinos ibéricos possa ser largamente constatada ao longo da medievalidade ibérica, os medievalistas tendem a se ater ao contexto social e a equação de forças políticas que atuaram para a mobilidade nobiliárquica, muitas vezes dedicando pouca atenção aos conceitos que definem a extraterritorialidade desses atores sociais. A tese de Fátima Regina Fernandes alcança esse espaço de discussão pouco explorado, sem deixar de lado o rigor no trato contextual próprio desse período histórico, contribuindo não apenas para a compreensão da Idade Média, assim como o de nossa contemporaneidade, lembrando-nos que não apenas os indivíduos do século XX e XXI estavam sujeitos à necessidade do exílio, mas também os viventes do medievo.

Expostas essas ponderações, tem-se uma visão geral que torna possível a compreensão geral dessa obra. Enquanto tese de professora titular, a publicação cumpre a função de demonstrar o ponto de chegada das pesquisas desenvolvidas por Fátima Regina Fernandes ao longo de sua carreira de professora e pesquisadora no campo da História Medieval, motivo pelo qual estão presentes nessa obra, problemáticas pertinentes ao percurso dessa medievalista brasileira e que aparecem sintetizadas nas no desenvolvimento de suas interpretações em Do pacto e seus rompimentos.

Este não é, contudo, um trabalho de síntese do fim de um caminho de pesquisa. Ora, ainda há muito a ser feito! É antes um ponto de chegada, de onde partem outras problemáticas a serem elucidadas, como fica demonstrado por Fátima Regina Fernandes ao avançar com o debate acerca da condição de traidor e degredado no âmbito da Baixa Idade Média, cumprindo assim com o objetivo central dessa tese. A pesquisa que gerou a publicação de Do pacto e seus rompimentos ainda confirma o mérito que levou a medievalista a obtenção do grau de titular, elogiosamente reconhecido pelos membros que formaram a banca examinadora e registrado em prefácios preenchem as primeiras páginas de Do pacto e seus rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos.

Notas

1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná sob a orientação da Profa. Dra. Fátima Regina Fernandes. Membro do NEMED – Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

2 Os documentos contidos no sessão de anexos são: Tratado luso-aragonês (1370), Tratado de Alcoutim (1371), Tratado de Tuy (1372), Tratado de Tagilde (1372) e o Tratado de Santarém (1373).

Referências

FERNANDES, Fátima Regina. A construção da sociedade política de Avis à luz da trajetória de Nuno Álvares Pereira. A guerra e a sociedade na Idade Média: Actas das VI Jornadas Luso-Espanholas de Estudos Medievais, s.l., p. 421-446, 2009.

FERNANDES, Fátima Regina. A fronteira luso-castelhana medieval, os homens que nela vivem e o seu papel na construção de uma identidade portuguesa. In: FERNANDES, Fátima Regina (Coord.) Identidades e fronteiras no medievo ibérico. Curitiba: Juruá, 2013. p. 13- 47.

FERNANDES, Fátima Regina. Comentários à legislação medieval portuguesa de Afonso III. Curitiba: Juruá, 2000.

FERNANDES, Fátima Regina. Estratégias de legitimação linhagística em Portugal nos séculos XIV e XV. Revista da Faculdade de Letras-História, Porto, v. 7 (série III), p. 263- 284, 2006.

FERNANDES, Fátima Regina. Os Castro galegos em Portugal: um perfil de nobreza itinerante. Actas de las Primeras Jornadas de Historia de España, Buenos Aires, v. II, p. 135-154, 2000.

FERNANDES, Fátima Regina. Os exílios da linhagem dos Pacheco e sua relação com a natureza de suas vinculações aos Castro (segunda metade do século XIV). Cuadernos de Historia de España, Buenos Aires, v. LXXXII, p. 31-54, 2008.

FERNANDES, Fátima Regina. Sociedade portuguesa e poder na Baixa Idade Média Portuguesa. Dos Azevedo aos Vilhena: as famílias da nobreza medieval portuguesa. Curitiba: Editora UFPR, 2003.

MOXÓ, Salvador. De la nobleza vieja a la nobleza nueva. In: MOXÓ, Salvador. Feudalismo, senorío y nobleza en la Castilla medieval. Madrid: Real Academia de la Historia, 2000. p. 311-345.

STRAYER, J.R. As Origens Medievais do Estado Moderno. Lisboa: Gradiva, 1969.

Carlos Eduardo Zlatic – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná sob a orientação da Profa. Dra. Fátima Regina Fernandes. Membro do NEMED – Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]


FERNANDES, Fátima Regina. Do pacto e seus rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos. Curitiba: Editora Prismas, 2016. Resenha de: ZLATIC, Carlos Eduardo. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.6, n.1, p. 279 – 284, 2016. Acessar publicação original [DR]

 

Agincourt: o Rei, a Campanha, a Batalha | Juliet Barker

O livro Agincourt: O Rei, a Campanha, a Batalha da autora inglesa Juliet Barker foi publicado pela primeira vez na Inglaterra em 2005, pela editora Little Brown; foi traduzido para o português e publicado no Brasil em 2009 pela editora Record. Em uma vasta análise bibliográfica e de fontes, a autora descreve todo o processo, desde o início da Guerra dos Cem Anos até a batalha de Agincourt.

Juliet Barker nasceu em 1956 na cidade inglesa de Yorkshire, onde vive até hoje. É historiadora especialista em Idade Média e em literatura bibliográfica. Obteve seu doutorado em História Medieval em St Anne’s College, Oxford e, em 1999, obteve um doutorado honorário de Letras pela Universidade de Bradford. Foi curadora e bibliotecária no Bronte Parsonage Museum [2] e também é membro da Real Sociedade de Literatura inglesa.

A batalha de Agincourt (1415) é um ponto da História muito estudado e que faz parte sem dúvida do imaginário histórico inglês. Incluída no calendário da Guerra dos Cem Anos, assim como Crécy (1346) e Poitiers (1356), os ingleses triunfariam sobre os franceses embora estivessem com um exército consideravelmente menor. Agincourt também foi imortalizada na literatura mundial por ninguém menos que William Shakespeare em seu livro Henrique V. É sem dúvida um tema de relevância altíssima para ser abordado.

O livro foi estruturado em três partes que têm seus respectivos focos, mas todos organizados em seqüência cronológica. Na primeira parte “A Estrada para Agincourt”, há uma breve descrição do contexto inglês e francês dos séculos XIV e início do XV, bem como dos preparativos para a campanha. A segunda parte “A Campanha de Agincourt” trata da campanha que os ingleses empreenderam na França, desde Harfleur até a batalha de Agincourt em si. A última parte “As Consequências da Batalha” versa sobre o que ocorreu posteriormente a esse confronto e o impacto que a batalha teve nos anos seguintes.

Barker destaca o rei Henrique V da Inglaterra. Ela tenta, através de documentos e bibliografia a respeito do monarca, traçar um perfil de como ele teria sido e como foi sua liderança para a campanha na Normandia. Resgatando todo seu histórico, a autora mostra um rei influenciado pelas experiências militares vividas; os contatos pessoais – estes que declara imprescindíveis para o sucesso da campanha de Agincourt, tanto com grandes políticos como com os próprios guerreiros que lutavam por seu exército; enfim, como Henrique V se tornou um ícone, uma inspiração para a hoste inglesa que lutaria pela seqüência da legitimação do poder real inglês sobre a França.

Tem-se também o perfil religioso de Henrique. Como relatado nas fontes, o rei buscava dentro da Bíblia orientações para sua campanha, como no momento em que diz aos sitiados em Harfleur que Deus autorizaria, segundo o livro de Deuteronômio da Bíblia, que saqueassem a cidade se esta não fosse entregue.

A autora faz ainda uma extensa análise para todos os empreendimentos, levantamento de recursos, organização de guerreiros, mercenários, ferreiros, armeiros, cavalos, enfim, tudo o que era necessário para se realizar uma campanha na França. Também se detém no relato do sítio de Harfleur – ponto inicial de um viés prático da campanha. Após isso, só interessa a marcha dos ingleses e tudo o que girava em torno destes até culminar na grande batalha de Agincourt.

Barker analisa o porquê de os ingleses, em um número tão inferior, terem vencido a batalha de forma “simples”: eram um exército muito mais coesos, unidos em torno do rei Henrique V e se sentiam encurralados. Já os franceses estavam subdivididos de forma desorganizada em senhores feudais e nobres egoístas que não tinham como idéia principal unirem-se para vencer. Eram numerosos e julgavam a vitória certa – e a matança fácil. Essa desorganização foi o que os levou à derrota.

Mesmo realçando o papel de Henrique V na batalha, a autora não elabora uma narrativa estritamente política. Ainda sim, é a partir dessa figura que Barker tece uma teia de relações sociais e econômicas, conseguindo quase que contar de forma romântica a história. Embora as fontes tratem majoritariamente da sociedade nobre da época, Barker se permite estudar como agiam todos os membros que compuseram a hoste inglesa e toda a movimentação por trás dela.

É possível identificar ainda as diferenças entre os guerreiros ingleses e franceses, sobretudo focando no aspecto do corpo militar inglês formado em sua grande maioria por arqueiros. Há uma boa análise, embora pudesse ter sido mais explorada, da identidade que caracterizava o exército inglês por sua tática de batalha fundamentada no arco e flecha.

Isso não é um fator que desmereça a obra. Barker fez um trabalho exaustivo de leitura de fontes e análises bibliográficas baseada em diversos autores especialistas no assunto, como Anne Curry [3] e Robert Hardy [4] . É um livro que não relata apenas a batalha de Agincourt em si, pode servir de base para diversas pesquisas dentro do período, e, sobretudo, sobre a Guerra dos Cem Anos.

No Brasil, ainda que o mercado editorial seja tão inconstante a respeito das escolhas por boas traduções, mais sobre uma “História que não nos pertence”, potencialmente haveria um público alvo para o tema. Com a difusão de jogos, filmes e romances que tratam de temas históricos e grandes batalhas cresce cada vez mais o interesse a respeito. Assim, a tradução e publicação em menos de quatro anos desde seu original em inglês é um avanço grandíssimo e que pode servir de exemplo para que mais e mais tenhamos contato com diferentes culturas e Histórias, além de dar suporte a quaisquer estudos que estejam relacionados a esses conhecimentos.

Notas

2. Uma das mais antigas sociedades literárias de língua inglesa do mundo.

3. Historiadora britânica, especialista na temática envolvendo a Guerra dos Cem Anos, especialmente a batalha de Agincourt.

4. Ator inglês, também é especialista em estudos sobre o arco-longo inglês e Comandante da Ordem do Império Britânico (Ordem de Cavalaria inglesa fundada em 1917).

Guilherme Floriani Saccomori1 – Graduando e bolsista do PET-História desde 2009, com pesquisa individual orientada pela Prof. Dra. Marcella Lopes Guimarães intitulada “Arqueiros Ingleses na Guerra dos Cem Anos: a Transição Militar na Baixa Idade Média”.


BARKER, Juliet. Agincourt: o Rei, a Campanha, a Batalha. Rio de Janeiro: Record, 2009. Resenha de: SACCOMORI, Guilherme Floriani. Cadernos de Clio. Curitiba, v.2, p.305-309, 2011. Acessar publicação original [DR]