A Justiça do Trabalho e sua história – GOMES; SILVA (RBH)

GOMES, Ângela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira da (Org.). A Justiça do Trabalho e sua história. Campinas: Ed. Unicamp, 2013. 528p. Resenha de: LIMONCIC, Flávio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.68, jul./dez. 2014.

Nos últimos 70 anos, as vidas de milhões de mulheres e homens Brasil afora se cruzaram nas varas da Justiça do Trabalho. Nos próximos anos, outras tantas o farão. A Justiça do Trabalho é uma instituição central não apenas do aparato estatal que regula as relações de trabalho no Brasil, mas do próprio mundo do trabalho brasileiro. Por isso, causa estranheza o fato de que ela tenha sido tão pouco visitada pela historiografia e pela sociologia do trabalho no Brasil. A Justiça do Trabalho e sua história, volume organizado por Ângela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da Silva, constitui importante contribuição para a superação de tal lacuna. E o faz segundo a melhor tradição historiográfica, com base em exaustiva pesquisa de fontes produzidas por esse ramo do Poder Judiciário ao longo de décadas e em diferentes cidades e regiões do Brasil, envolvendo tanto trabalhadores individuais quanto categorias profissionais.

O livro é estruturado em cinco partes, além de uma apresentação na qual os organizadores realizam um apanhado histórico da trajetória do tribunal. A começar pelos organizadores, os autores têm longa trajetória acadêmica ou profissional e larga produção na área de estudos do trabalho.

A primeira parte, com textos de Clarice Gontarski Speranza e Rinaldo José Varussa, trata da conciliação entre patrões e empregados em torno das condições de vida e trabalho. Speranza desenvolve suas reflexões a partir das relações entre mineiros de carvão e seus patrões no Rio Grande do Sul, entre 1946 e 1954, ao passo que Varussa o faz a partir dos trabalhadores de frigoríficos do Oeste do Paraná nas décadas de 1990 e 2000. A segunda parte discute a Justiça do Trabalho na arbitragem dos conflitos entre patrões e empregados. O texto de Antonio Luigi Negro e Edinaldo Antonio Oliveira Souza desenvolve uma reflexão sobre a Justiça do Trabalho na Bahia entre 1943 e 1948, ao passo que Benito Bisso Schmidt realiza sua análise a partir da ação de uma trabalhadora da indústria de sapatos em Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, entre 1958 e 1961. Fernando Teixeira da Silva e Larissa Rosa Corrêa discutem a questão do poder normativo da Justiça do Trabalho na terceira parte, o primeiro em São Paulo às vésperas do golpe de 1964, a segunda tendo como tema a política salarial nos primeiros anos da ditadura civil-militar (1964-1968). A atuação da Justiça do Trabalho no mundo rural brasileiro é o tema da quarta parte. Antonio Torres Montenegro reflete sobre a ação de tal Justiça na ditadura civil-militar, ao passo que Frank Luce trata do estatuto do trabalhador rural na região do cacau. Por fim, na quinta e última parte se discute a Justiça do Trabalho diante das formas de contratação do trabalho oriundas de processos de flexibilização e precarização das relações de trabalho. Vinícius de Rezende concentra suas reflexões na indústria do calçado de Franca entre 1940 e 1980, Magda Barros Biavaschi reflete sobre a terceirização a partir de processos judiciais, e Ângela de Castro Gomes discute a Justiça do Trabalho diante do trabalho análogo à escravidão.

Muito embora historiadores que atuam em diversas universidades brasileiras componham a maioria dos trabalhos referidos – como, aliás, seria de se esperar em um livro que traz a História em seu nome –, Frank Luce é advogado trabalhista e professor de estudos do trabalho na York University, Toronto, e Magda Barros Biavaschi é desembargadora aposentada do Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul. A reflexões de ambos evidenciam a importância não só do diálogo com outras disciplinas – no caso da Justiça do Trabalho, o diálogo com a área de direito parece de evidente importância –, como, também, da incorporação de ângulos novos ao tema, como os estudos sobre o mundo rural.

Na Apresentação, os organizadores introduzem, ainda, uma questão fundamental, dessa vez relativa às fontes.

Ainda que a compreensão do que constitui fonte histórica tenha mudado desde que a disciplina histórica se constituiu como campo do saber, fontes continuam sendo imprescindíveis para o trabalho do historiador, e este volume anda de par em par com a literatura histórica e sociológica que, nas últimas décadas, tem utilizado fontes judiciais. No entanto, advertem os organizadores do volume, a documentação produzida pela Justiça do Trabalho tem sido sistematicamente eliminada graças à Lei 7627, de 10 de novembro de 1987 (coincidentemente, o 50º aniversário do Estado Novo). Somente no ano de 2005, quase 540 mil processos foram eliminados no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, localizado em São Paulo.

A Lei 7627 é apenas uma das ameaças às fontes judiciais brasileiras. Outras provêm de projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional e de Resoluções do Conselho Nacional de Justiça, às quais vem somar-se a rápida e constante inovação tecnológica que torna obsoletos e, portanto, potencialmente inacessíveis, diversos suportes imateriais, como arquivos eletrônicos. Nesse sentido, o presente livro constitui, também, um alerta para o tipo de reflexão que pode ser perdido caso as fontes judiciais brasileiras em geral, e as da Justiça do Trabalho em particular, sejam efetivamente descartadas.

Suscitar questões, mais do que chegar a conclusões, parece ser a medida de um bom trabalho. E este o faz, ao sugerir ao menos duas, que são tratadas de passagem na “Apresentação”. Da longa manus do Estado de inspiração fascista a elemento do que Ângela de Castro Gomes chama, em outro trabalho, de pacto trabalhista, seria de grande interesse que a Justiça do Trabalho fosse pensada de forma mais sistemática na arquitetura institucional do corporativismo brasileiro. Seria de igual interesse, também, que o papel do Estado na mediação do conflito entre patrões e empregados fosse estudado num enfoque internacional comparativo. De fato, no contexto dos anos 1930 e 1940, vários países criaram agências estatais para a regulação de diferentes mercados, inclusive o de trabalho.

Ao sugerir tais questões, assim como ao reunir reflexões de tal qualidade, A Justiça do trabalho e sua história constitui contribuição fundamental não só para a compreensão da atuação da Justiça do Trabalho, como também para um melhor entendimento de como esta se enraizou nos corações e mentes de gerações de trabalhadores brasileiros.

Flávio Limoncic – Departamento de História, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). E-mail: [email protected].

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Justiça do Trabalho – BULLA. A Justiça do Trabalho e sua história – GOMES; SILVA (EH)

BULLA, Beatriz; NUNES, Fabiana Barreto; GHIRELLO, Mariana; MAIA, William. Justiça do Trabalho: 70 Anos de Direitos. São Paulo: Alameda, 2011. 262 pp. GOMES, Ângela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira da. A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2013. 528 pp. Resenha de : SANTOS JÚNIOR, José Pacheco dos. Justiça do Trabalho: história, domínios e sujeitos. Estudos Históricos, v.27 n.54 Rio de Janeiro July/Dec. 2014.

Exibindo sete décadas de existência, o Judiciário Trabalhista brasileiro entra no século XXI com o vigor de uma instituição que, pela importância e impacto que exerceu e exerce na regulamentação das relações trabalhistas no país, não escapa aos olhares atentos da comunidade intra e extra-acadêmica. PJustiça do trabalhoossibilitadas pelas renovações conceituais e metodológicas vislumbradas pela historiografia nas últimas quatro décadas, e matizadas pela potencialidade que emana da documentação (escrita e oral) da Justiça do Trabalho, duas obras coletivas vêm, num intervalo de dois anos, explorar a história dessa instituição instalada por Vargas à época do Estado Novo e inicialmente vinculada ao Poder Executivo: Justiça do Trabalho: 70 anos de direitos, e A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil, objetos de discussão da presente resenha.

O primeiro livro, gestado sob os auspícios celebrantes dos exatos 70 anos da instalação da Justiça do Trabalho no país, é produção de quatro jornalistas especializados na área jurídica. Em Justiça do Trabalho: 70 anos de direitos, salta aos olhos a bela proposta de articular uma obra que transite pelas sete décadas de atuação do Judiciário Trabalhista e pelas experiências de alguns de seus agentes, como juízes e advogados. Estruturado em três partes e detentor de uma última seção denominada “caderno de imagens”, o conjunto de reportagens se apresenta ao público leitor como uma obra que persegue o objetivo de “rememorar fatos e acontecimentos históricos que conferiram à Justiça do Trabalho o título de ‘Justiça Social do Brasil’” (p.13). Para isso, a primeira parte, assinada por Mariana Ghirello (com reportagens de Daniella Dolme), expõe as principais marcas do cenário político-econômico brasileiro, desde a criação do Judiciário Trabalhista, na década de 1940, até os anos 2000. Na sequência, o cotidiano da Justiça do Trabalho é colocado em debate por William Maia (com reportagens de Thassio Borges). Nesta parte, ganham terreno tópicos como demandas, julgamento e execução dos processos, a informatização na Justiça do Trabalho, além das várias faces do cotidiano da advocacia trabalhista.

O ponto alto da obra se evidencia na reunião de entrevistas organizadas por Beatriz Bulla em parceria com o site Última Instância. Enfatizando as diversas trajetórias e concepções que alguns operadores do direito atribuem à Justiça do Trabalho, nesta terceira seção encontra-se uma importante entrevista com Arnaldo Süssekind, ministro do Tribunal Superior do Trabalho no período da ditadura militar, falecido um ano após a publicação da obra. Por outro lado, apesar dos belos insights expressados, o que deixa a desejar na publicação é a total ausência de referências bibliográficas e notas explicativas, além da rasa exploração do “caderno de imagens”: seção que exibe inúmeras fotografias que, em sua maioria, estão desprovidas de fontes e autores, apenas munidas de breves legendas. Sopesando a ousada proposta aventada, com toda a licença que uma obra jornalística exige, o livro em questão se configura apenas como uma introdução básica, de caráter informativo, aos estudos sobre a história da Justiça do Trabalho.

Sob a coordenação de Ângela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da Silva, historiadores que de longa data vêm se dedicando à História Social do Trabalho e em particular à Justiça do Trabalho, a segunda coletânea opera uma cuidadosa análise, materializada em 11 textos que evidenciam os múltiplos traços da relação dos trabalhadores brasileiros com essa Justiça especial e com o mundo jurídico. Debruçado em histórias individuais e coletivas dos trabalhadores de diversos rincões do país, A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil reúne contribuições de pesquisadores de norte a sul do Brasil e de um canadense, todos querendo decifrar sujeitos, reclamações, cotidiano e as diversas estratégias de luta e negociação fomentadas na arena da Justiça do Trabalho.

Ao depositar suas expectativas e reclamações na Justiça do Trabalho, os trabalhadores legaram à posteridade registros que sinalizam uma cultura jurídica (e de classe) que extrapola as fronteiras do “legal institucionalizado” e contempla um delicado campo que compreende costumes e tradições na interpretação das leis, na definição de regras jurídicas, como também na afirmação de mecanismos legais para a resolução de conflitos. Visando interpretar essa seara, as contribuições desta obra distribuem-se em cinco eixos temáticos articulados através de seus propósitos em comum. Primeiramente, Clarice Speranza e Rinaldo José Varussa esmiúçam condições de trabalho e políticas de conciliação de classe no Sul do país em dois momentos distintos da história brasileira. Em um segundo momento, Antonio Luigi Negro e Edinaldo Souza, assim como Benito B. Schmidt, abordam as facetas do poder disciplinar, na Bahia (no caso dos dois primeiros autores) e no Rio Grande do Sul, recorte espacial de Schmidt. Em um denso e cuidadoso trabalho analítico, Fernando Teixeira da Silva explora a natureza do poder normativo nos domínios do TRT de São Paulo no “longo ano de 1963, que termina com o golpe civil-militar de 1964” (p.203), ao passo em que Larissa Rosa Corrêa examina a questão da Justiça do Trabalho e da política salarial entre 1964 e 1968.

Para além dos estudos que focam no eixo Rio/São Paulo e na força de trabalho industrial, ainda predominantes na historiografia brasileira sobre o labor, os capítulos de Antonio Montenegro e do canadense Frank Luce elegem como objeto de investigação as tramas dos trabalhadores rurais e magistrados do Nordeste brasileiro com o Judiciário Trabalhista, tratando de Pernambuco e da zona cacaueira da Bahia. Descortinando temas e privilegiando metodologias ainda pouco usuais nas análises acerca da Justiça do Trabalho, a quinta e última parte da coletânea convida o leitor a refletir sobre temas que compreendem, entre tantos outros discutidos, a regulamentação das relações de trabalho em Franca (SP), a terceirização e o trabalho análogo ao de escravo no Brasil contemporâneo, pontos e categorias dissecados respectivamente por Vinícius de Rezende, Magda Barros Biavashi e Ângela de Castro Gomes.

Indispensável para a compreensão das lutas dos trabalhadores brasileiros na busca por direitos, e, num plano mais amplo, da própria edificação da cidadania no Brasil, A Justiça do Trabalho e sua história revela-se uma contribuição fulcral, ainda que seja uma pequena amostra dos estudos que hoje se dedicam à relação dos trabalhadores com esse ramo do Judiciário – estudos estes que, possibilitados pelo recente contato com os acervos dos tribunais trabalhistas, apresentam a dinâmica das tensões e experiências que até então estavam reservadas ao domínio da esfera privada do mundo do trabalho.

Se alguns dos grandes nomes do mundo jurídicoganham ênfase e voz na obra de Bulla et alii, na segunda coletânea, coordenada por Gomes e Silva, os trabalhadores (com suas disputas, acordos e conquistas) se veem historicizados num canal privilegiado. Todavia, numa época em que o Judiciário se encobre nas brumas do esquecimento, ao manter a política de descarte dos autos findos a partir de cinco anos de arquivamento,1 coletâneas como estas, aqui ligeiramente discutidas em face da limitada dimensão de uma resenha, têm todo o direito de se arvorar em obras-manifesto, mesmo que sem se enunciar enquanto tais.

1. BRASIL. Lei nº 7.627, de 10 de novembro de 1987. Dispõe sobre a eliminação de autos findos nos órgãos da Justiça do Trabalho, e dá outras providências.

José Pacheco dos Santos Júnior – Mestrando em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Laboratório de História Social do Trabalho (LHIST/UESB) ([email protected]).