Invento/ luego resisto: El Período Especial en Cuba como experiencia y metáfora (1990-2015) | Elzbieta Sklodwska

Poucos países passaram, em tão pouco tempo, por mudanças tão intensas e profundas como Cuba, na segunda metade do século passado. Em menos de cinco décadas, o país vivenciou uma transformação que inseriu a ilha num processo de transição socialista, alinhado ao modelo soviético, atingindo todas as esferas da vida social e as relações políticas, econômicas, sociais e culturais.

Quando tal processo parecia se estabilizar, a derrocada do campo socialista e o desaparecimento da URSS, na última década do século XX, conduziram à ilha caribenha a mais profunda crise econômica e social de sua história, com efeitos que ainda persistem, apesar da recuperação de certos indicadores e foi denominado, oficialmente, de “Período Especial em Tempos de Paz”.

Sobre tal período, apesar de uma relativa quantidade de publicações literárias e acadêmicas ainda persistem inúmeros debates, questões e lacunas que merecem ser aprofundadas, por todos aqueles que se debruçam sobre a ilha caribenha. Neste sentido, podem ser analisados a validade (ou não) de tal denominação, o período exato de sua duração ou sua continuidade e, principalmente, a necessidade de construção de um quadro abrangente desta etapa, que incorpore as diversas dimensões e impactos na vida social (política, cultural, social, religiosa, populacional, …) e que se constitui na possibilidade de compreensão, adequada, da sociedade cubana contemporânea.

Disto decorre duas constatações fundamentais sobre o “Período Especial em Tempos de Paz”. Primeiro, toda a política e a sociedade cubana foi marcada pela ‘lógica da sobrevivência’, evidenciada nas mudanças econômicas e na reinserção internacional do país e foi marcado por profundas transformações. Desde então, o país vive numa transição que procura se adequar à nova realidade mundial e reorganizar o tecido social local. Além disto, a segunda constatação se refere ao fato de que, apesar das dificuldades intensas no momento inicial, uma narrativa multidimensional, da academia à literatura e as artes, vem emergindo e, apesar de sua diversidade, possibilita a compreensão de como os cubanos lidaram com tal situação, com drama, criatividade e, inclusive, senso de humor, apresentando inúmeras possibilidades de leitura, de reflexão e pesquisa sobre tal etapa.

Neste sentido, esta obra torna-se uma leitura fundamental, pois a partir dos estudos culturais, procura construir um quadro abrangente, envolvendo a noção ampla de cultura, que busca compreender a dinâmica e os impactos de tal período no dia-a-dia dos cubanos e seu reflexo no campo cultural, bem como a atuação dos principais autores e coletivos culturais que atuaram na ilha nas últimas três décadas.

A obra reflete o trabalho e a perspicácia da autora, Elzbieta Sklodowska, que se formou como latino-americanista nos EUA, com uma tese sobre o testemunho hispano-americano, e na Polônia, com uma tese sobre a paródia na narrativa hispano-americana, e, desde então, vem se dedicando aos estudos culturais e literários, com ênfase na literatura latino-americana e, principalmente, a narrativa caribenha dos séculos XIX e XX e a literatura e cultura cubana nos últimos dois séculos3.

A obra, fundamentada na abordagem dos estudos culturais, incorpora conceitos e abordagens de diferentes disciplinas das ciências humanas, desenvolvendo uma aproximação sócio-crítica do discurso social, oficial (e outros), e procura explorar as diversas perspectivas e formas que a literatura, as artes e o cinema cubano refletiram sobre tal período e os impactos na vida social das mudanças enfrentadas pelo fim do bloco soviético e a profunda crise que a ilha se viu submergida. Para tanto, o trabalho está organizado, além dos elementos introdutórios, em seis capítulos.

O primeiro capítulo, intitulado “Pretérito imperfecto: las metáforas del Período Especial”, oferece uma visão panorâmica sobre os aspectos mais representativos do período, discutindo a história política, social e econômica dos anos de 1990 e repassando os debates sobre sua denominação e duração. A partir de poemas, de Reina M. Rodríguez e Carlos A.

Alfonso Barroso, e a produção artística, de René de la Nuez e Eduardo A. Guirola, dentre outros, apresenta como a década foi marcada pelo catastrofismo, niilismo e desamparo, pela migração interna e como a estratégia de sobrevivência se tornou fundamental no dia-a-dia dos cubanos (‘la lucha’).

O segundo capítulo, denominado de “Sin pan, pero con palabras: escribir (en) el Período Especial”, discute, a partir da noção de ‘neofala’ de Michael Glowinski, a recriação paródica do discurso oficial, apontando uma resistência crítica de certos círculos intelectuais, como observados no compêndio, paródico, “No hay que llorar”, que apresenta uma reflexão sobre o impacto afetivo da crise.

O terceiro capítulo, com o título “Temas y anatemas: la revolución y la administración del hambre”, discute, evidentemente, o tema da fome nos anos de 1990. Neste sentido, analisa a origem e a evolução da ‘libreta’, a presença de tal temática na literatura, em obras como “Paisaje de Otoño” de Leonardo Padura (um dos principais escritores cubanos na atualidade), desenvolve uma análise linguística de livros e folhetos editados pelo editorial Verde Olivo (“Con nuestros propios esfuerzos” e “El libro de la família” e do programa televisivo de Nitza Villapol (‘Cocina al minuto’), demonstrando como eles contribuíram para a redefinição, cultural, do que seria comestível ou não.

O quarto capítulo, denominado de “Sin guarniciones: (re) invenciones gastronómicas y la (re) creación artística”, reflete sobre os testemunhos de tal período, discutindo a luta diária por sobrevivência de vários setores, as tensões entre a carência e as promessas e a ‘criatividade’ gastronômica da ilha. Neste sentido, analisa, dentre outros, o trabalho de Antonio José Ponte (Las comidas profundas”), de Alberto Pedro Torriente (“Manteca”) e a performance “Ping Pong” da dupla Luis Garciga Romay e Miguel Moya.

O quinto capítulo, intitulado “Entre lo sublime y lo abyecto: el Período Especial a través del lente de género”, analisa, a partir da temática de gênero, a inserção da mulher em tal período e como seu papel tradicional, de dona de casa, foi um dos mais afetados e politizados. Além disto, discute a emergência das ‘jineteras’ e os debates derivados de tal prática, analisando o alcance e os limites da perspectiva de que tal prática se constitui numa forma de empoderamento feminino, que nem sempre se fundamenta na realidade, ao discutir os maus tratos que este papel traz a mulher. Neste sentido, analisa, dentre outros, o filme ‘La película de Ana’ (de Daniel Díaz Torres), o trabalho híbrido de Reina Maria Rodríguez (“Variedades de Galiano”) e o relato de Damaris Calderón (‘Angelillo’).

Finalmente, o último capítulo, denominado de “Reinventar la rueda: el archivo material del Período Especial”, discute como o interesse pela cultura material tem emergido no caso cubano e como isto afeta a auto-produção e a reinvenção de objetos de uso cotidiano, diante do cenário de escassez material. Neste sentido, revela a emergência de uma ‘desobediência tecnológica’, de apropriação e ressignificação do uso de certos objetos, discutindo as obras de Laidi F. de Juan, do editorial artesanal Vigía, de Daniel V. Rodríguez (“De Buzos, leones y tanqueros”) e, principalmente, a obra dos integrantes do coletivo “Los Carpinteros”, que desenvolveram trabalhos de repercussão mundial.

Desta forma, a obra se constitui numa leitura instigante para a compreensão do período especial e se destaca pela perspicácia, abrangência e diversidade dos temas desenvolvidos e pela contraposição entre o discurso oficial e a experiência vivida (a ‘realidade’) envolvendo inúmeros atores do campo artístico. Neste sentido, a produção cultural que analisa inclui diversas manifestações como a literatura (poesia, contos, romances, teatro e narrativas), os meios audiovisuais (cinema e artes plásticas), a comida, performances artísticas e a cultura material.

Além disto, o trabalho possibilita a compreensão de que, até mesmo os tempos de crise e penúria material, podem servir de ‘inspiração’ e estímulo para o trabalho artístico e a inserção social e apresenta a extraordinária criatividade dos cubanos, persistente até os nossos dias e nos mais variados campos, para a (re) invenção e a resistência, como sugere o título.

Desta forma, se os problemas enfrentados, nos anos de 1990, determinaram o imaginário estético cubano, tal determinação não limitou a imaginação e a criatividade da população, e dos artistas, do país.

Outro elemento fundamental que pode ser inferido desta leitura, é que o ‘Período especial em tempos de Paz’ também pode ser compreendido como uma experiência e metáfora de toda a América Latina. Neste sentido, vale destacar que, embora a região tenha vivenciado, nos anos de 1980, a chamada “década perdida” (devido ao endividamento e a crise econômica e social), continua persistindo uma enorme dívida com amplos setores da população latinoamericana que são marcados pela carência, exclusão e marginalidade e, ainda, a região (assim como a maior das Antilhas) ainda não conseguiu se reinserir no mundo globalizado, de forma autônoma e ativa, possibilitando o desenvolvimento com equidade. Enfim, tal experiência e metáfora parece ser um componente da realidade latino-americana, adaptando-se as especificidades nacionais.

Apesar disto, a obra apresenta algumas limitações, que não desqualificam sua importância, mas se constituem em elementos que poderiam ser aprofundados. Em primeiro lugar, pode-se destacar que não realiza tal abordagem em direção a outras manifestações culturais que poderiam ser, igualmente, instigantes como a música, a linguagem corporal e os murais ou grafites, dentre outras. Além disto, poderia incorporar os processos que se passam em outros campos, como no religioso, e como em tal período ocorre um ‘reencantamento’ da ilha e ressurgimento de inúmeras práticas religiosas e seus efeitos culturais e materiais.

Também poderia ser explorado, tanto em termos de nostalgia como de continuidade nos processos culturais e na cultura material, a complexa e mal resolvida relação com a URSS.

Por fim, a abordagem, por vezes, idealiza a realidade cubana e analisa a atuação governamental como sendo somente ilusória ou negativa desconectada desta, o que acaba por desconsiderar os esforços, no sentido de superação de tal estado, e, principalmente, não considera a complexidade e a ambivalência de tal período, para além da dicotomia entre o discurso oficial e artístico.

De toda forma, trata-se de uma obra importante que, além de sua importância fundamental no campo dos estudos culturais e na excelente compilação sobre tal período, demonstra a necessidade de continuidade de pesquisas e reflexões sobre o “Período Especial em Tempos de Paz” em Cuba, tanto no que se refere a outros campos e produções artísticas (música, escultura, linguagem corporal, murais,…) como em outras dimensões da vida (social, política e econômica) que continuam desafiando as ciências sociais, incluindo a história, latino-americanas. Boa leitura!!

Marcos Antonio da Silva – Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil.


SKLODWSKA, Elzbieta. Invento, luego resisto: El Período Especial en Cuba como experiencia y metáfora (1990-2015). Santiago de Chile: Editorial Cuarto Propio, 2006. 499p. Resenha de: SILVA, Marcos Antonio da. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.19, n.35, p.165-169, jul./dez., 2017. Acessar publicação original. [IF]