Historiografia, Comparação e Interdisciplinaridade / Tempos históricos / 2013

O dossiê Historiografia, comparação e interdisciplinaridade foi proposto como um desafio a pensar para além dos cômodos escaninhos onde nos situamos. Todos sabemos das implicações epistemológicas de uma formação acadêmica que opera no registro das disciplinas, dos objetos autocentrados e com pouco ou nenhum diálogo consistente com a produção historiográfica, esteja ela inserida em nosso próprio campo disciplinar, ou, de maneira mais evidente ainda, com as “disciplinas alheias”.

Embora possamos reconhecer a necessidade da produção de um conhecimento científico que esteja aberto ao diálogo com outras perspectivas (disciplinares, teóricas, metodológicas e historiográficas), o esforço por conhecer ‘o outro’, ainda que apenas isto, não tem resultado em um avanço significativo na produção do conhecimento histórico.

Cada uma das dimensões mencionadas aqui propõe um complexo e sofisticado escrutínio das condições de possibilidade de efetivá-las. Não é tarefa para iniciantes levar a cabo, com qualidade, este debate. Entretanto, é necessário estar disposto a enfrentá-lo, porquanto só assim conseguiremos ultrapassar os estreitos limites que constrangem a historiografia.

A comunidade dos historiadores brasileiros encontrou ocasião privilegiada para discutir, em alguma medida, os termos propostos neste dossiê durante a realização do XXIV Simpósio Nacional de História da ANPUH, sediado na Unisinos, no Rio Grande do Sul, no ano de 2007. “História e Multidisciplinaridade: territórios e deslocamentos”, naquela oportunidade, foi o tema do encontro.

Entre as tantas contribuições importantes feitas naquele Congresso, destaco a conferência da professora Sílvia Regina Ferraz Petersen, da UFRGS, na qual, com a lucidez que caracteriza suas reflexões epistemológicas, chama a atenção para os cuidados metodológicos que devem acompanhar qualquer tentativa de estabelecer um trânsito mais fluido entre as disciplinas. Diz ela, neste sentido:

Cada disciplina em geral utiliza um sistema teórico-conceitual próprio, relacionado a uma ou mais lógicas que lhes são particulares. A transferência de conceitos de uma disciplina para outra ou a mescla desses conceitos sem perceber suas distintas matrizes e os debates a eles relacionados são obstáculos a qualquer integração e podem produzir composições híbridas sem qualquer valor analítico (PETERSEN, 2008: 43)

De certa forma, temos aqui, nesta apreciação, um dos motivos pelos quais a História não tem levado a efeito, com proficiência, os trânsitos que a historiografia, a comparação e a interdisciplinaridade propõem como algo intrínseco a seus próprios termos. É preciso querer aprender com os outros a fim de instruir e manter o próprio de cada área do conhecimento. Ou, no limite, para, eventualmente, rompê-lo em benefício de um terceiro elemento. Na avaliação de Petersen, com a qual concordamos, temos demonstrado pouca habilidade de realizar uma ou outra tarefa, e, por esta razão, ficamos apenas no campo das intenções retóricas e inconseqüentes.

Entendemos que, de uma maneira geral, um dos limites fundamentais do conhecimento histórico se revela pela falta de clareza metodológica a instruir a investigação dos historiadores. Quando o método é precário, o caminho se torna errático, e os resultados dependem, em boa medida, do imponderável. Enquanto não suplantarmos esta deficiência, que se revela, em medidas distintas, tanto na produção de pesquisadores iniciantes, quanto na produção dos historiadores estabelecidos, não conseguiremos ir muito adiante no caminho da consolidação de um campo de saber que almeja ganhar visibilidade por aquilo que lhe é particular, mas que precisa, paralelamente, abrir-se ao distinto que também pode constituir a legitimidade de nosso ofício.

Um esforço no sentido de enfrentar o debate circunscrito pelo tema do dossiê é o que visualizamos nos seis artigos que o compõe. São textos escritos por pesquisadores e professores, majoritariamente formados no campo da disciplina histórica, que expressam e expõe à leitura dos interessados, uma diversidade de interpretações. O dossiê coloca lado a lado historiadores oriundos e / ou vinculados a universidades brasileiras e estrangeiras, de diferentes gerações. Isto lhe confere uma riqueza peculiar, pois ao mesmo tempo que oferece pontos de vista de autores de formação e atuação consolidada no campo, agrega a contribuição de pesquisadores em início de carreira, que individualmente ou em conjunto com pesquisadores mais experientes, expõe resultados de suas pesquisas

No artigo que abre este dossiê, “Transgredir fronteras: reflexiones sobre lo nacional, disciplinar y paradigmático a partir del análisis histórico del neoliberalismo”, Hernán Ramírez discute o potencial e os desafios postos por abordagens que propõe-se a superar o enquadramento “nacional, disciplinar e paradigmático” na análise historiográfica, tomando como exemplo os estudos sobre o chamado “neoliberalismo” em países da América Latina. Para o autor, um objeto como este requer, necessariamente, um estudo que contemple estas três dimensões, porém a sua complexidade, a amplitude de questionamentos que se colocam para o tema, fazem com que proponha seu estudo a partir do transnacional, transdisciplinar e transparadigmático, instâncias que se revelam mais fecundas para a compreensão de um objeto que transcende todas as fronteiras.

Em “Historia de las ciencias, historia a secas: dos disciplinas”, segundo artigo do dossiê, Álvaro Léon Casas Orrego apresenta elementos para o debate sobre a constituição das disciplinas chamadas do saber, das ideias ou das ciências – tomadas como sinônimos – e sua distinção da velha história tradicional de sentido historizante. Reivindicando para as primeiras o importante papel de perguntar sobre as transformações em distintos campos do saber e seus entrelaçamentos, o autor repassa as contribuições da Escola dos Annales, da Escola de Frankfurt e de Michel Foucault para o debate, apresentando também as contribuições de autores colombianos.

“As Revoluções Comuneras de Castela (1520-1522) e do Paraguai (1721-1735): uma análise sobre suas apropriações e abordagens historiográficas”, de Eliane Cristina Deckmann Fleck e Luis Alexandre Cerveira, é o terceiro artigo a compor o dossiê. Partindo de abordagens que a historiografia espanhola e latinoamericana produziu sobre os levantes revolucionários nominados de revoluções comuneras, os autores reconstituem historicamente os eventos ocorridos em Castela (1520-1522) e no Paraguai (1721-1735). Fazem assim um exercício de comparação, discutindo apropriações e ressignificações historiográficas construídas sobre os levantes, em diferentes momentos da história dos dois países, indicando como a historiografia contribuiu para a mitificação, manipulação e instrumentalização política dos mesmos.

André Fabiano Voigt em seu artigo, “Gaston Bachelard e Jacques Rancière: uma visão comparativa dos problemas entre história, arte e imagem”, o quarto do dossiê, realiza uma comparação entre as ideias de Gaston Bachelard e de Jacques Rancière acerca das complexas relações entre história, arte e imagem. O autor parte da análise do pensamento de Bachelard, apontando questões suscitadas por este – como, por exemplo, a da temporalidade da imagem literário-poética – e buscando compreendê-las para além da obra daquele filósofo. Para tanto, Voigt debruça-se sobre a obra de Rancière, apontando para o conceito de “regime estético da arte”, extraído desta, como um elemento inovador no debate sobre as relações entre história, arte e imagem.

No quinto artigo deste dossiê, intitulado “Evocação Pernambucana: O Rubro Veio, de Evaldo Cabral de Mello”, George Silva do Nascimento, constrói inicialmente um breve relato da trajetória pessoal e profissional e sua implicação na produção historiográfica do importante e reconhecido intelectual referido no título. Sua intenção é, a partir de então, compreender através de uma das obras de Cabral de Mello, o livro Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana, os principais pressupostos teóricos utilizados pelo autor para problematizar o tema fundamental de sua obra: a desconstrução da identidade pernambucana.

Bruna Silva e Beatriz Anselmo Olinto, escrevem o sexto artigo deste dossiê, “Revista História: questões e debates: uma escrita de lugares (1980-1989)”. Neste, as autoras problematizam os artigos publicados pela revista na temporalidade indicada, período em que esteve vinculada a Associação Paranaense de História – APAH. A questão central gira em torno das percepções de “região” esboçadas nos artigos do periódico, num momento histórico no qual, segundo as autoras, havia a percepção da necessidade de publicar pesquisas e suscitar discussões entre os historiadores. O artigo apresenta e discute também as ações da APAH no sentido de estabelecer o seu reconhecimento, portanto, um local de onde se fala.

Referência

PETERSEN, Sílvia R. F. História e multidisciplinaridade: territórios e deslocamentos. In: HEINZ, Flávio; HARRES, Marluza (Org.). A história e seus territórios. São Leopoldo: Oikos, 2008, p. 25-48.

Cláudio Pereira Elmir – Doutor em História; Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

Yonissa Marmitt Wadi – Doutora em História; Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Pesquisadora do CNPq.


ELMIR, Cláudio Pereira; WADI, Yonissa Marmitt. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.17, n.1, 2013. Acessar publicação original [DR]

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