O mundo negro: hermenêutica da reafricanização em Salvador – PINHO (VH)

PINHO, Osmundo. O mundo negro: hermenêutica da reafricanização em Salvador. Curitiba: Progressiva, 2010, 491 p. SANTOS, Erisvaldo Pereira dos. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 48, Jul./ Dez. 2012

No final da década de 1970, a emergência do movimento social negro urbano, denunciando as práticas racistas, as desigualdades raciais e desmistificando a democracia racial brasileira, produziu um novo interesse de interpretação e mudança da problemática social e racial no Brasil. No contexto internacional, esse interesse hermenêutico sofreu influências não somente das lutas contra o racismo e em prol dos direitos civis empreendidas por negros dos Estados Unidos, que tiveram início na década de 1960; mas também das lutas em favor das independências de países africanos, contra o racismo e pela valorização da cultura negra, nas quais se encontravam intelectuais carismáticos do porte de Leopold Senghor, Cheikh Anta Diop, Amilcar Cabral, Kwane N’Krumah, Frantz Fanon, Aimé Cesaire e Jean Paul Sartre. No contexto nacional, o resultado da produção científica da Escola de Sociologia da USP, assinada por intelectuais como Roger Bastide, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni, revelava, além dos aspectos perversos do racismo e da integração do negro na sociedade de classes, as sobrevivências africanas no Brasil, através de pesquisas sobre o candomblé da Bahia, desenvolvidas por Roger Bastide. No cadinho desses acontecimentos políticos, culturais e epistêmicos, no seio da juventude negra que ingressou nas universidades despontaram intelectuais interessados em apresentar novas interpretações sobre a história e o pensamento social negro brasileiro, a partir de configurações culturais e reações políticas, evidenciadas como reterritorialização do espaço urbano, através da agência de segmentos da população negra. É nesse contexto que se inscreve a obra O mundo negro: hermenêutica da reafricanização em Salvador de Osmundo Pinho, cujo conteúdo é resultado de sua tese de doutorado em Ciências Sociais, realizado na UNICAMP.

A fim de evidenciar características da reafricanização e o desenvolvimento de novas identidades e organização negra em Salvador, o autor inicia sua reflexão identificando vínculos entre raça e classe na história da fundação do Bloco Ilê Aiyê, no meado da década de 1970, informando que tanto os fundadores do Ilê Aiyê quanto do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR, mais tarde denominado MNU), eram trabalhadores da Petrobrás e do Polo Petroquímico de Camaçari. Na inserção dos negros no trabalho industrial, o autor identifica transformações que foram mudando a paisagem social, econômica e cultural de Salvador. Conforme o autor, as deficiências estruturais das lutas antirracistas na Bahia, talvez possam ser atribuídas à inserção precária dos negros no mercado de trabalho (p.80).

Como expressão de luta antirracista, o Bloco Ilê Aiyê (expressão em língua iorubá, que em uma tradução livre pode significar mundo negro), constitui-se como “uma insurreição contra a tradição baiana, congelada entre o espaço vazio da inserção precária no trabalho e a folclorização de práticas culturais de resistência como o samba e o candomblé” (p.83). Dessa forma, o Ilê Aiyê é o dado empírico que representa o paradigma da reafricanização na Bahia, através da agência política de negros trabalhadores da indústria petroquímica, os quais além de seduzidos pela “onda de soul” no Brasil da década de 1970, também foram inspirados pelas lutas globais de emancipação racial (p.14). Assim, “O mundo negro” que o Ilê Aiyê levou para as ruas no Carnaval de 1974, de Salvador, em pleno contexto da Ditadura Militar, era mais uma maneira de dar visibilidade à população negra da capital baiana. Expressando-se a partir de uma linguagem estética, marcada por ritmos, sons, cores e coreografias, performances que recriavam o espaço do terreiro de candomblé Ilê Axé Jitolu, onde nasceu o bloco, na grande avenida da cidade, os componentes do Ilê Aiyê demonstravam que a tentativa de fazer desaparecer as heranças africanas e o povo negro no Brasil havia malogrado. A palavra de ordem do bloco era evocada no canto que dizia: “Que bloco é esse, eu quero saber. É o Mundo Negro, que viemos mostrar pra você.” Com refrão musical, os negros e as negras organizados/as na Ladeira do Curuzu, no bairro da Liberdade, instauravam um Carnaval negro na cidade de Salvador.

O autor procurou “edificar uma leitura sobre o surgimento de novas identidades afrodescendentes em Salvador, seus contextos e cenários, suas articulações e conexões, seus níveis de constituição e reprodução […] como modo de fazer uma revisão compreensiva dos estudos afrodescendentes […]” (p.14-15), cujo “objetivo foi a construção da reafricanização como um objeto para a reflexão crítica […] tomando a narrativa de Risério [sobre “Carnaval Ijexá”] como ponto de partida para sua des-representação através dos textos e discursos”. A revisão dos estudos sobre afrodescendentes é constituída por aportes que se encontram presentes em uma vasta bibliografia que trata sobre o negro do Brasil, envolvendo autores como: Nina Rodrigues, Manuel Querino, Artur Ramos, Gilberto Freyre, Edson Carneiro, Ruth Landes, Roger Bastide, Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, Thales de Azevedo, Oracy Nogueira, até reflexões mais contemporâneas como as de Júlio Braga, Vivaldo da Costa Lima, Jocélio Teles, Lívio Sansone e João José dos Reis. Além desses pensadores e pesquisadores, o autor utiliza-se de outras fontes como as entrevistas feitas aos membros fundadores do Ilê Aiyê.

Do ponto de vista metodológico, o tratamento dos dados se inscreve na perspectiva de uma hermenêutica crítica, pois como afirma o autor “ao invés de enfatizar o aspecto essencializante das identidades negras, preferi, de outro modo, apontar suas características críticas e por em relevo, o peso cristalizado das representações, discursos (…) ambiente para as relações raciais no Brasil” (p.22). A abordagem teórica utilizada para conduzir a interpretação pretendida, envolve autores como Marx, Heidegger, Rorty, Foucault, Baudrillard, Derrida, Deleuze, Michel de Certeau, Bourdieu, Homi Bhabha e Paul Gilroy. A partir da confluência dessas fontes bibliográficas sobre o negro brasileiro e os aportes teóricos desses pensadores, os quais estão vinculados a diferentes campos epistêmicos, O mundo negro passa a ser uma obra que se destina não apenas ao público interessado sobre a temática da sociologia do negro no Brasil, mas também aos pesquisadores que se debruçam a história do pensamento social negro no século XX.

Compreendendo a obra de Nina Rodrigues como um aporte do pensamento racialista do Brasil, o autor inscreve como seus herdeiros tanto Arthur Ramos quanto Gilberto Freyre, identificados como representantes da transição entre os paradigmas racialistas para os culturalistas (p.172). Em Arthur Ramos encontra-se a perspectiva da aculturação e integração do negro na sociedade brasileira, através de modelos de transformação como o sincretismo. Em Gilberto Freyre, “o negro é parte integrante da alma nacional, uma vez que está miscigenado e que todos nós temos algo de negro se não no sangue, na alma.” (p.175-6). Na concepção do autor, os estudos afro-brasileiros, ao constituir o “negro” como “objeto de ciência,” impediram sua constituição como sujeito político da representação. (p.302). Ainda segundo o autor, foi Roger Bastide, em sua obra Religiões africanas no Brasil o responsável por desenvolver um conjunto de argumentos anti-culturalista que além de deslocar a reflexão sobre o “problema do negro”, passou a “considerar a tradição africana no Brasil como inserida em estruturas sociais historicamente enraizadas, como que habitando-as.” (p.283-4). Outro pensador que criticou os Estudos Afro-Brasileiros foi Guerreiro Ramos, ao afirmar que tais estudos “transformavam o negro em ‘peça de museu’ ao estudarem os aspectos tradicionais da cultura negra, vistos por ele como elemento de atraso e de ignorância” (p.424).

Como uma obra realiza uma reflexão hermenêutica sobre a história do pensamento social negro e sobre a agência política e cultural de segmentos negros organizados, tendo o bloco Ilê Aiyê como um paradigma da reafricanização e contestação da realidade social, política e cultural da população negra de Salvador, os resultados apresentados são bastante alvissareiros, no que se refere à reterritorialização e também à valorização da cultura negra em Salvador. No entanto, o texto apresenta alguns problemas que não são apenas aqueles apontados pelo autor quando na conclusão caracteriza seus argumentos como “precariamente alinhavados” (p.433). O primeiro problema diz respeito ao conjunto de informações imprecisas que o autor oferece sobre o candomblé de Salvador, demonstrando que tem um conhecimento limitado do candomblé, sobretudo quando se refere ao bori (p. 133-4, 146) e também quando apresenta tabelas imprecisas sobre correspondências e hierarquias (p. 139, 140, 142).

Concluo destacando ainda mais dois problemas. Um refere-se à maneira pouco sistemática como o autor transita em campos epistêmicos tão diferenciados, sem estabelecer mediações discursivas, como no caso das apropriações que faz de abordagens filosóficas tão distintas, envolvendo os estudos culturais e autores de diferentes tradições epistemológicas como Foucault, Heidegger, Marx, Rorty. O outro problema se refere à conclusão, onde praticamente desaparece não somente o objeto principal do estudo – “O mundo negro do Ilê Aiyé” -, mas também o foco da hermenêutica da reafricanização, inicialmente direcionado para o vinculo entre raça e classe, os discursos do modelo do candomblé jeje-nagô e para a tradição dos estudos afro-brasileiros. Esse último problema aparece justamente em razão do autor pretender refletir sobre o Teatro Experimental Negro – TEN, sem que esse tenha sido um dos objetivos do estudo.

Erisvaldo Pereira dos Santos – Departamento de Educação (ICHS) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Mariana – MG, [email protected].

Under the Gaze: Learning to be Black in White Society – KELLY (CSS)

KELLY, Jennifer. Under the Gaze: Learning to be Black in White Society. Fernwood Publishing, 1998. 144p. Resenha de: BROWN, Yvonne. Canadian Social Studies, v.36, n.2, 2002.

Jennifer Kelly has produced another fine ethnography of African-Canadian high school students. She defines herself to be simultaneously an insider and an outsider. She shares a Black identity born out of a common history of enslavement and colonization but recognizes that the location of her birth and family background makes her an outsider. Another relevant aspect of her identity is that she is a teacher and mother. Employing a male interviewer enabled her to obtain richly textured data about the Black male identity constructs. There were twenty-six females and twenty-three males as well as thirteen teachers in her sample.

The purpose of the study was to investigate how a sample of Black students constructed their identities within a White-dominated society. The location is the City of Edmonton, Alberta. Kelly investigated six topics as follows: how Black students view and perceive themselves; how they relate to their peers; the significance they attach to being Black in a White-dominated environment; how they receive and perceive predominantly Western popular cultural forms; and how they relate to teachers and schools.

Her methodology employed multiple methods for obtaining data. There was
historical data from both primary and secondary sources. These data established the background for the conceptual framework, which she used to frame and interpret the other data collected. Out of this framework she defined the main terms Black, White, racialization and identity. Focus groups with boys only, girls only, and boys and girls together, were carried out. Individual interviews were done with the students and teachers. She drew on her research journal as well.

Discussion and data interpretation revolve around the trope of the racialized gaze, as explicated by Frantz Fanon (1967), in his very influential book Black Skins White Masks. It is from this work that the title of the book comes. The gaze is defined in many ways: 1) dominant as in the white gaze; 2) oppositional as in the black child returning the gaze; 3) perceptual as in signifying ascribed identities. One quotation will illustrate the complex meanings attached to the gaze:

The importance of the gaze is that it allows a dominant group to control the social spaces and social interaction of all groups. Blacks are made visible and invisible at the same time under the gaze. For example, when Black youth are seen it is often with a specific gaze that sees the troublemaker the school skipper or the criminal. Thus they are seen and constrained by a gaze that is intended to control physical and social movements. The purpose of the gaze is that it should subdue those who receive it and make them wish to be invisible (p.19).

In six short chapters, I believe that Kelly has fulfilled the five goals of her research. There are a few weaknesses. The reader would benefit from seeing the research protocols as well as an index. The prose is choppy; this is no doubt a function of including so many quotations. This said I would like to tell the reader about a few of the admirable qualities. The historical overview accompanied by the photographs of Black settlers in Alberta was a reminder that though they were deemed unsuitable they came and they made their contribution. Social Studies teachers could benefit from reading this short ethnography. The chapter on gender relations explains racialized patriarchy well. The pedagogical insights from this study could help teachers understand the construction of racialized identities.

Yvonne Brown – The University of British Columbia.

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