Práticas Religiosas, Errância e Vida Cotidiana no Brasil (Finais do Século XIX e Inícios do XX) – WISSENBACH (PH)

WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Práticas Religiosas, Errância e Vida Cotidiana no Brasil (Finais do Século XIX e Inícios do XX). São Paulo: Intermeios; USP-Programa Pós-Graduação História Social, 2018, 256 p. Resenha de: PERES, Elena Pajaro. Religiosidade em trânsito. Práticas cotidianas do sagrado coração no Brasil da Primeira República. Projeto História, São Paulo, v.67, pp. 439-446, Jan.-Abr., 2020.

Em 1929 o imigrante italiano José Zarelli, depois de muito trabalhar em São Paulo como vendedor, comprou uma pequena propriedade rural nos arredores da cidade. Foi nesse pedaço de terra que resolveu recuperar uma antiga habilidade que trouxera da Europa: esculpir imagens de madeira inspiradas em figuras do mundo camponês. Com o tempo foi acrescentando a essas imagens atributos de matriz africana sobre os quais tomou conhecimento no Brasil. Essa modificação de sua arte levou Zarelli a ganhar fama como escultor feiticeiro. Suas criações, após os devidos rituais de consagração, passaram a ser consideradas objetos sagrados, ou, como seria mais apropriado denominá-las, ínqueces,

e começaram a integrar altares religiosos, tornando-se, o próprio artesão, um rezador.

Essa significativa história, narrada por Oswaldo Xidieh em artigo de 1944, foi retomada pela historiadora Cristina Wissenbach em seu livro Práticas Religiosas, Errância e Vida Cotidiana no Brasil (Finais do Século XIX e Inícios do XX), publicado em 2018 pela editora Intermeios, para nos introduzir de maneira exemplar no universo das interconexões entre o catolicismo de base popular, imbricado de práticas camponesas muitas vezes consideradas heréticas na Europa, as religiões de matrizes africanas e os saberes milenares dos povos indígenas. A partir daí, capítulo a capítulo, o leitor vai conhecendo como se deu historicamente esse entrecruzamento cultural recriador de formas de expressividade artística e religiosa.

Essa configuração cultural multifacetada vem sendo nas últimas décadas recuperada por estudos acadêmicos – como os da própria professora Wissenbach, do historiador Robert Slenes e do antropólogo estadunidense James Lorand Matory, entre outros – que têm demonstrado como elementos provenientes de diferentes tradições entrechocaram-se no Brasil, levando ao surgimento de novas e intrincadas práticas culturais.

O livro de Wissenbach traz à luz os quatro capítulos revisados da tese de doutoramento Ritos de Magia e Sobrevivência. Sociabilidades e práticas mágico-religiosas no Brasil (1890/1940), apresentada ao Departamento de História da Universidade de São Paulo em 1997. No processo de revisão dos capítulos, a pesquisadora incorporou sua experiência como professora de História da África na Universidade de São Paulo, ampliando diálogos e abrindo suas reflexões para novos horizontes, como ela mesma afirmou em um dos eventos de lançamento ocorrido no Centro Cultural São Paulo. Seguindo os mais recentes debates na área, Wissenbach atualizou bibliografia e conceitos, enfatizando pontos antes apenas mencionados em sua tese. Dessa forma utilizou o conceito de pós-emancipação no lugar de pós-abolição, práticas religiosas no lugar de magia, vida cotidiana em vez de sobrevivência. Acrescentou ainda o conceito de errância, que antes não estava explicitado no título ou definido teoricamente.

As memórias, as crônicas, os relatos de viagem e de expedições foram algumas das fontes utilizadas na pesquisa. Contudo, foi na documentação criminal e nas notícias impressas nos jornais que a historiadora descobriu o elo para se aproximar das vivências concretas das populações que se encontravam em trânsito e que, num período conturbado da passagem do século, nos primeiros anos da República brasileira, experimentavam novas formas de estar no mundo. Ao revelar a luta do poder instituído para tentar disciplinar essas populações e suas manifestações culturais e religiosas, a documentação policial também revela, mesmo que parcialmente, as táticas utilizadas pelos mais pobres para se desvencilhar desse poder. A autora explica como esses registros, pelo seu próprio caráter fragmentário, permitem a compreensão de práticas que também se davam fragmentariamente, permeadas pelo improviso e pelo aproveitamento das brechas. Práticas que assumiam formas fugidías para garantir a permanência e liberdade de expressão em um meio dominado cada vez mais pelo pensamento racial e evolucionista.

Assim, dialogando com as fontes, tendo como fio teórico condutor de seu método o perspectivismo e a hermenêutica, que alerta para a historicidade do próprio conhecimento histórico, Wissenbach mergulha e faz o leitor mergulhar no mundo das religiosidades populares, um mundo que não se atrela ao poder oficial e desafia constantemente as religiões institucionalizadas.

No primeiro capítulo – Ritos e crenças de homens livres no pós-emancipação – a autora revela, a partir de uma extensa pesquisa bibliográfica e de fontes, como a população economicamente pobre criou padrões de organização de moradia, trabalho e convivência, colocando em circulação ideias, práticas e mercadorias nos momentos das festas religiosas, dos encontros e das feiras. Quando movimentamos as páginas, seguindo os rastros deixados no texto, podemos acompanhar a versatilidade desses grupos na busca de um melhor terreno para plantio e caça, no trabalho de construção e reconstrução da moradia, na decisão de abandonar os poucos bens materiais que não seriam úteis ou que não poderiam ser carregados durante a mudança de um território a outro. Práticas essas sempre vistas com reprovação pelos detentores das terras e do poder, que pretendiam aprisionar essas populações pelo trabalho, quando necessário, ou, quando eram vistas como dispensáveis, eliminá-las ou isolá-las em alguma área em que permanecessem segregadas.

O estudo mostra como esses grupos sociais criaram vínculos com a natureza, realizando todas as tarefas em seu tempo certo. Era na mata que encontravam parte importante de sua alimentação, ervas medicinais e seu mundo espiritual. Tudo o que era considerado sinal de atraso pelo pensamento modernizador que adveio com a República adquire uma outra roupagem quando se busca, como fez Wissenbach, uma aproximação compreensiva dos valores e meios de vida dessas populações. Eram grupos que viviam dispersos, mas evitavam o isolamento por meio de uma hierarquia social bem configurada em um mundo paralelo ao poder oficial e por ele incompreendido. Nesse grupo se destacam os africanos e afro-brasileiros a quem a autora dedicou grande parte do estudo publicado nesse livro.

Importantes discussões são apresentadas nesse primeiro capítulo, incorporando novas abordagens sobre as manifestações culturais especialmente dos povos provenientes da África centro-ocidental, que, segundo reforçam pesquisas atuais, foram os grupos majoritários trazidos ao Brasil no século XIX pelos traficantes de escravizados.

No segundo capítulo – Dissonâncias sociais da cidade moderna – vislumbra-se como as expressões de cultura e religiosidade presentes no interior do país começam a se reconfigurar a partir do movimento dessas populações em direção às áreas urbanas, promovendo a ressocialização das camadas populares em novos espaços. Discursos políticos, médicos e higienistas, que acompanharam e legitimaram a chamada modernidade, passaram a considerar as práticas religiosas desses grupos como sinais de incultura, atraso e ignorância. A história de Canudos e seu crescimento demográfico explosivo em torno das pregações do beato é recuperada pela autora como uma referência importante para se compreender processos semelhantes que ocorriam nas cidades brasileiras. Essas práticas começaram a ser cada vez mais notadas, anotadas e perseguidas. Nesse cenário aparecem novamente com destaque os contingentes de africanos e afro-brasileiros que, nas cidades conturbadas por um processo de urbanização abrupta, dividiram o espaço com imigrantes pobres de diferentes nacionalidades. Sabe-se que essa convivência foi muitas vezes tensa e conflituosa, mas, como esse e outros estudos demonstram, também foi marcada pelo compartilhamento de tradições.

No capítulo 3 – Religiosidade e magia nas primeiras décadas do século XX – a autora leva o leitor pelos meandros da escrita de cronistas e romancistas, que descreveram as práticas religiosas, especialmente aquelas que se davam nas casas de homens negros e mulheres negras. Essas descrições em sua maioria traziam toques de exotismo, demonstrando a tentativa de distanciamento dos autores em relação àquela população encantada por feitiços, magia e tudo aquilo que pertencia ao mundo do secreto e do oculto. As camadas remediadas e as mais ricas temiam aqueles “cultos misteriosos”, reservados aos iniciados, e preferiam se aproximar do espiritualismo de base francesa ou americana, mais atrelado à ciência e às supostas comprovações.

Nesse terceiro capítulo acompanha-se ainda a história de como o espiritismo se disseminou rapidamente também entre as camadas mais pobres da população, combinado com as crenças de ascendência europeia e às religiões afro-brasileiras.

O ritmo da narrativa se intensifica até atingir o capítulo 4 – Espaços sociais das crenças religiosas na urbanização de São Paulo – onde se vê como o discurso que representa o medo pela perda de controle sobre esses grupos espiritualizados foi muito forte em São Paulo entre 1890 e 1900, período em que a população da cidade cresceu em 268%. Esse medo acompanhou de perto a disseminação de práticas religiosas diversas por todo espaço urbano.

Particularmente nesse capítulo final pode ser feita uma ponte entre esse estudo e as mais recentes concepções dos estudos africanos, que demonstram como a incorporação de novas crenças e sua recriação era uma prática comum na África central. Pesquisas de historiadores africanistas como Linda Heywood e John Thornton apontam enfaticamente na direção de que novos elementos sempre foram apreendidos e transformados quando considerados benéficos ou úteis à cosmologia dos povos africanos. A convivência no Brasil com curandeiros, pitonisas e adivinhos provenientes das mais variadas nacionalidades, como demonstra Wissenbach, ampliou ainda mais essa prática. Essa “mistura”, da qual nos fala a autora, permeava o extrato social e cultural onde essas populações viviam, nas pequenas casas de cômodos, nos quintais coletivos, no compartilhamento de atividades informais. Aos poucos as práticas chamadas de curandeirismo irmanaram-se aos novos campos da ciência, como a homeopatia.

Na conclusão Wissenbach mostra como as práticas religiosas populares eram mais perseguidas e, ao mesmo tempo, mais temidas, quando eram empreitadas por homens negros, os chamados mestres cumbas ou feiticeiros. Foi contra eles que a repressão policial agiu de forma mais intensa até seu ponto máximo nos anos de 1930. Mesmo temidos, eram eles que lançavam uma fagulha de esperança para aqueles que não tinham a quem recorrer ou que não acreditavam em qualquer ajuda que pudesse vir do poder estabelecido. Da mesma forma, segmentos negros da população eram perseguidos quando fundavam agremiações religiosas, como igrejas reformadas, grêmios de ocultismo e centros espíritas.

Nos processos criminais, analisados pela historiadora, um ponto chamou sua atenção de forma impactante, a presentificação das narrativas a partir do final do século XIX. Desapareceram os detalhes da vida pregressa, da África ancestral, que podiam ser encontrados nos depoimentos de escravizados e libertos. A cidade em processo de modernização parecia reservar espaço apenas para o novo. Essa importante reflexão da autora nos leva a indagar se a memória de fato fora perdida ou começara a ser acobertada como tática de proteção num momento de perigo, em que as perseguições a tudo que remetesse à África haviam se intensificado.

E aqui podemos voltar ao início do livro, quando, citando Xidieh, Wissenbach ressalta que há um momento certo para a narração, que não é o momento da noite ou do dia, mas é o momento social em que elas se justificam e funcionam. É preciso concordar que essa pesquisa, que demorou um longo tempo para ser publicada, chegou num momento preciso de narração, num tempo necessário, permitindo a lembrança e o estudo crítico de práticas que fogem das imposições oficiais e se afirmam em sua diversidade, em profunda conexão com o contexto histórico das camadas populares, seus conflitos e compartilhamentos. Nesse sentido o livro atende a um público amplo, formado não apenas por historiadores, estudiosos das religiões, da história urbana e do cotidiano, mas também por todos os interessados nos assuntos relativos à diversidade, ao direito de expressão, às dissonâncias culturais, ao compartilhamento e tensão entre tradições. O trabalho de Cristina Wissenbach é profícuo em ampliar caminhos de pesquisa e discussão.

Elena Pajaro Peres – Doutora e mestre em História pela FFLCH-USP. Pós-doutora pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Visiting Scholar no African American Studies Program da Boston University (2013-2014). É pesquisadora no grupo Trilhas e circuitos do riso no espaço público brasileiro (1880-1960)-DH-USP/CNPq.

História, teoria e variações – NEVES (EH)

NEVES, Guilherme Pereira das. História, teoria e variações. Rio de Janeiro: Contracapa, 2011. 328 p. Resenha de: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Sobre hermenêutica e perspectivas historiográficas. Estudos Históricos, v.25 n.50 Rio de Janeiro July/Dec. 2012.

Ao olhar a capa de História, teoria e variações, pensei: é bem a cara do autor do livro. Alguns dias depois, lendo um dos textos da coletânea, minha “abdução peirceana” mostrou-se correta. Minha hipotética afirmação foi confirmada com a leitura do capítulo intitulado “História e método”. Nele, o autor, Guilherme Pereira das Neves, explica sua predileção pela pintura Gilles, de Jean-Antoine Watteau – a imagem da capa do livro -, contrapondo-a ao desenho de Paul Klee, Angelus Novus, que Walter Benjamin escolheu para ilustrar sua conhecida tese de número nove “sobre o conceito da História”. Após referir-se ao “respeito que a trajetória e a obra de Benjamin merecem” – com o que concordamos -, Guilherme Pereira das Neves confessa a sua “dificuldade para enxergar” o que Benjamin vê no desenho de Klee para, em seguida, afirmar que, “num certo sentido, a perspectiva que [Benjamin] expõe sobre a história encontra-se na contramão daquela a favor da qual gostaria de aqui argumentar” (p. 104).

Ainda que viéssemos acompanhando a perspectiva “sobre a história” adotada pelo autor de História, teoria e variações, ele declara estar em busca da compreensão de “nossa consciência histórica” (grifos no original), por intermédio da qual nós nos esforçamos para “encontrar um significado para as vidas que levamos no mundo desencantado que é o nosso” (p. 123). Guilherme Pereira das Neves deixa, assim, explícito seu interesse pela proposta hermenêutica de Hans-Georg Gadamer, com a qual concilia a história das linguagens políticas e a história dos conceitos.

Contudo, é conveniente olharmos para a estrutura do livro, dividido em duas partes e com 12 capítulos que nos permitem acompanhar sua trajetória intelectual e nos convidam ao exercício de uma necessária reflexão sobre a prática da história e o papel do historiador. A primeira parte do livro tem um viés mais teórico e recebeu o nome de “O caminho da reflexão”. A divisão, contudo, não é rigorosa, e a segunda parte – “O caminho da aplicação” – traz um conjunto de textos que “procuram girar não só em torno de um certo tipo de história que o autor tem aprendido a praticar, como das dificuldades que encontrou para fazê-lo” (p. 12); quer dizer, a todo o momento, a prática e a reflexão sobre a prática se entrelaçam: o livro é um exercício de teoria e de historiografia.

A trajetória intelectual do autor – expressa na sequência dos capítulos, que seguem uma relativa ordem cronológica – permite perceber como ele fez suas escolhas historiográficas. Nesse percurso, ele mostra – e nós podemos acompanhar – os momentos de crise e de perplexidade que viveu com a disciplina, suas insatisfações e, principalmente, os esforços do pesquisador comprometido em “dominar a teoria e a metodologia da história”, que ensina em sua atividade de professor do Departamento de História da UFF desde 1977 (p. 13).

Como mencionado, História, teoria e variações é um convite para refletirmos sobre a prática historiográfica; ao mesmo tempo, apresenta bons textos sobre o Antigo Regime português, sobre a Ilustração luso-brasileira, sobre a constituição do Império e a formação da nação brasileira. São textos que abordam a “cultura e a política no mundo luso-brasileiro”, a trajetória de “letrados”, o funcionamento de instituições políticas e também discussões sobre “processos educacionais” inseridos entre a segunda metade do século XVIII e as décadas iniciais do século XIX. Todos esses temas são discutidos, como indicamos, a partir de algumas abordagens recentes que, infelizmente, são pouco (e/ou mal) exercitadas entre nós: a história das linguagens políticas e a história dos conceitos. Ressalte-se não ser este o caso aqui, pelo contrário.

Também é preciso dizer que os textos desta coletânea, que cobrem um período que vai da década de 1980 aos dias de hoje, não são todos inéditos. Apenas dois deles ainda não haviam sido dados a público. A providência de agrupar essa produção antes dispersa permite dirigir uma visada sobre parcela importante de um trabalho historiográfico que merece ser melhor conhecido e debatido. Além de uma bem cuidada revisão dos textos, o autor buscou dar ao conjunto a necessária unidade, que está evidenciada, por exemplo, na complementaridade entre o primeiro e o quinto trabalhos: “História: a polissemia de uma palavra”, dos anos iniciais da década de 1980, traz uma discussão sobre o confronto entre uma “história-narrativa” pré-Annales e a “história-problema”; “Aquém da história: os Annales aos 80 anos”, de produção recente, desenvolve o contexto historiográfico surgido com a “história-problema”, avançando sua análise até as novas gerações, quando se buscou introduzir “novamente o estudo da singularidade dos eventos e das personagens, em oposição à presença exclusiva das vastas forças anônimas e impessoais” (p. 100).

Ultrapassada a primeira parte do livro, tem-se contato, de modo mais sistemático, com a prática historiográfica do autor. Especificamente no que diz respeito à aplicação de sua perspectiva sobre a história, exposta em maior detalhe no capítulo sexto – “História e método” -, deve-se destacar que, se entendermos que os argumentos teóricos apresentados poderiam mostrar-se áridos, os textos da segunda parte do livro demonstram, com rara felicidade, as possibilidades de uma abordagem que concilia a hermenêutica de Gadamer com as linguagens políticas e a história dos conceitos.

Para avaliarmos em que medida a hermenêutica constituiu-se nessa atitude metodológica tão valorizada por Guilherme Pereira Neves, precisamos considerar que ela, ao mesmo tempo em que nos concede acesso ao outro, oferece a possibilidade de construirmos nossa própria consciência histórica, ou seja, dá-nos a capacidade de perceber a historicidade dos outros e de nós mesmos. Nesse aspecto, todos os seis últimos textos, fruto dessa atitude, merecem leitura atenta, como a “reflexão” que os precede. Podemos, contudo, destacar os capítulos 11 e 12. Em “O Rio de Janeiro de 1794 no Tribunal das Luzes de Reinhart Koselleck”, o autor deixa mais explícito o recurso “à concepção de linguagens políticas, […] como também ao que se conhece como história dos conceitos” (p. 256). A hermenêutica de Gadamer também está presente nesse estudo que discute a “irradiação das Luzes” e busca uma “compreensão dos universos mentais em que estavam inseridos naturais do Brasil e de Portugal” (idem). Em “Independência e liberdade sem liberalismo: Brasil, c.1777-1870” (texto inédito, escrito em parceria com Lúcia Bastos Pereira das Neves), encontramos outro bem acabado exercício de aplicação da Begriffsgeschichte de R. Koselleck, ou melhor, da construção e do uso de uma dada terminologia nos debates em torno da formação ideológica do Império brasileiro. Aliás, não obstante os intensos debates sobre os sentidos de liberdade e de independência, conclui-se que “a experiência dos brasileiros continuava ainda a carecer, quase ao final do século XIX, daqueles processos de politizaçãoideologizaçãodemocratização e temporalização que viabilizaram para outras regiões o ingresso no mundo moderno” (p. 311, grifos no original).

Voltemos a Gilles, a imagem que está na capa do livro e que serve para ilustrar a perspectiva histórica com que Guilherme Pereira das Neves se identifica. Para ele, “o uso do passado já não serve para projetar um futuro para todos”; ao contrário, importa a possibilidade de construirmos a “consciência histórica” de um mundo (revelado pela pintura) que, produto de nossas vidas, é representado por “meio dos eventos e desencontros à nossa volta”. Assim, com o exercício consciente da “reflexão histórica”, poderemos compreender que, “mesmo no mundo fragmentado que é o nosso, é mais comum a compreensão do que a incompreensão” (p. 122-123).

Antonio Cesar de Almeida Santos – Antonio Cesar de Almeida Santos é professor do Departamento de História da UFPR ([email protected])

O mundo negro: hermenêutica da reafricanização em Salvador – PINHO (VH)

PINHO, Osmundo. O mundo negro: hermenêutica da reafricanização em Salvador. Curitiba: Progressiva, 2010, 491 p. SANTOS, Erisvaldo Pereira dos. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 48, Jul./ Dez. 2012

No final da década de 1970, a emergência do movimento social negro urbano, denunciando as práticas racistas, as desigualdades raciais e desmistificando a democracia racial brasileira, produziu um novo interesse de interpretação e mudança da problemática social e racial no Brasil. No contexto internacional, esse interesse hermenêutico sofreu influências não somente das lutas contra o racismo e em prol dos direitos civis empreendidas por negros dos Estados Unidos, que tiveram início na década de 1960; mas também das lutas em favor das independências de países africanos, contra o racismo e pela valorização da cultura negra, nas quais se encontravam intelectuais carismáticos do porte de Leopold Senghor, Cheikh Anta Diop, Amilcar Cabral, Kwane N’Krumah, Frantz Fanon, Aimé Cesaire e Jean Paul Sartre. No contexto nacional, o resultado da produção científica da Escola de Sociologia da USP, assinada por intelectuais como Roger Bastide, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni, revelava, além dos aspectos perversos do racismo e da integração do negro na sociedade de classes, as sobrevivências africanas no Brasil, através de pesquisas sobre o candomblé da Bahia, desenvolvidas por Roger Bastide. No cadinho desses acontecimentos políticos, culturais e epistêmicos, no seio da juventude negra que ingressou nas universidades despontaram intelectuais interessados em apresentar novas interpretações sobre a história e o pensamento social negro brasileiro, a partir de configurações culturais e reações políticas, evidenciadas como reterritorialização do espaço urbano, através da agência de segmentos da população negra. É nesse contexto que se inscreve a obra O mundo negro: hermenêutica da reafricanização em Salvador de Osmundo Pinho, cujo conteúdo é resultado de sua tese de doutorado em Ciências Sociais, realizado na UNICAMP.

A fim de evidenciar características da reafricanização e o desenvolvimento de novas identidades e organização negra em Salvador, o autor inicia sua reflexão identificando vínculos entre raça e classe na história da fundação do Bloco Ilê Aiyê, no meado da década de 1970, informando que tanto os fundadores do Ilê Aiyê quanto do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR, mais tarde denominado MNU), eram trabalhadores da Petrobrás e do Polo Petroquímico de Camaçari. Na inserção dos negros no trabalho industrial, o autor identifica transformações que foram mudando a paisagem social, econômica e cultural de Salvador. Conforme o autor, as deficiências estruturais das lutas antirracistas na Bahia, talvez possam ser atribuídas à inserção precária dos negros no mercado de trabalho (p.80).

Como expressão de luta antirracista, o Bloco Ilê Aiyê (expressão em língua iorubá, que em uma tradução livre pode significar mundo negro), constitui-se como “uma insurreição contra a tradição baiana, congelada entre o espaço vazio da inserção precária no trabalho e a folclorização de práticas culturais de resistência como o samba e o candomblé” (p.83). Dessa forma, o Ilê Aiyê é o dado empírico que representa o paradigma da reafricanização na Bahia, através da agência política de negros trabalhadores da indústria petroquímica, os quais além de seduzidos pela “onda de soul” no Brasil da década de 1970, também foram inspirados pelas lutas globais de emancipação racial (p.14). Assim, “O mundo negro” que o Ilê Aiyê levou para as ruas no Carnaval de 1974, de Salvador, em pleno contexto da Ditadura Militar, era mais uma maneira de dar visibilidade à população negra da capital baiana. Expressando-se a partir de uma linguagem estética, marcada por ritmos, sons, cores e coreografias, performances que recriavam o espaço do terreiro de candomblé Ilê Axé Jitolu, onde nasceu o bloco, na grande avenida da cidade, os componentes do Ilê Aiyê demonstravam que a tentativa de fazer desaparecer as heranças africanas e o povo negro no Brasil havia malogrado. A palavra de ordem do bloco era evocada no canto que dizia: “Que bloco é esse, eu quero saber. É o Mundo Negro, que viemos mostrar pra você.” Com refrão musical, os negros e as negras organizados/as na Ladeira do Curuzu, no bairro da Liberdade, instauravam um Carnaval negro na cidade de Salvador.

O autor procurou “edificar uma leitura sobre o surgimento de novas identidades afrodescendentes em Salvador, seus contextos e cenários, suas articulações e conexões, seus níveis de constituição e reprodução […] como modo de fazer uma revisão compreensiva dos estudos afrodescendentes […]” (p.14-15), cujo “objetivo foi a construção da reafricanização como um objeto para a reflexão crítica […] tomando a narrativa de Risério [sobre “Carnaval Ijexá”] como ponto de partida para sua des-representação através dos textos e discursos”. A revisão dos estudos sobre afrodescendentes é constituída por aportes que se encontram presentes em uma vasta bibliografia que trata sobre o negro do Brasil, envolvendo autores como: Nina Rodrigues, Manuel Querino, Artur Ramos, Gilberto Freyre, Edson Carneiro, Ruth Landes, Roger Bastide, Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, Thales de Azevedo, Oracy Nogueira, até reflexões mais contemporâneas como as de Júlio Braga, Vivaldo da Costa Lima, Jocélio Teles, Lívio Sansone e João José dos Reis. Além desses pensadores e pesquisadores, o autor utiliza-se de outras fontes como as entrevistas feitas aos membros fundadores do Ilê Aiyê.

Do ponto de vista metodológico, o tratamento dos dados se inscreve na perspectiva de uma hermenêutica crítica, pois como afirma o autor “ao invés de enfatizar o aspecto essencializante das identidades negras, preferi, de outro modo, apontar suas características críticas e por em relevo, o peso cristalizado das representações, discursos (…) ambiente para as relações raciais no Brasil” (p.22). A abordagem teórica utilizada para conduzir a interpretação pretendida, envolve autores como Marx, Heidegger, Rorty, Foucault, Baudrillard, Derrida, Deleuze, Michel de Certeau, Bourdieu, Homi Bhabha e Paul Gilroy. A partir da confluência dessas fontes bibliográficas sobre o negro brasileiro e os aportes teóricos desses pensadores, os quais estão vinculados a diferentes campos epistêmicos, O mundo negro passa a ser uma obra que se destina não apenas ao público interessado sobre a temática da sociologia do negro no Brasil, mas também aos pesquisadores que se debruçam a história do pensamento social negro no século XX.

Compreendendo a obra de Nina Rodrigues como um aporte do pensamento racialista do Brasil, o autor inscreve como seus herdeiros tanto Arthur Ramos quanto Gilberto Freyre, identificados como representantes da transição entre os paradigmas racialistas para os culturalistas (p.172). Em Arthur Ramos encontra-se a perspectiva da aculturação e integração do negro na sociedade brasileira, através de modelos de transformação como o sincretismo. Em Gilberto Freyre, “o negro é parte integrante da alma nacional, uma vez que está miscigenado e que todos nós temos algo de negro se não no sangue, na alma.” (p.175-6). Na concepção do autor, os estudos afro-brasileiros, ao constituir o “negro” como “objeto de ciência,” impediram sua constituição como sujeito político da representação. (p.302). Ainda segundo o autor, foi Roger Bastide, em sua obra Religiões africanas no Brasil o responsável por desenvolver um conjunto de argumentos anti-culturalista que além de deslocar a reflexão sobre o “problema do negro”, passou a “considerar a tradição africana no Brasil como inserida em estruturas sociais historicamente enraizadas, como que habitando-as.” (p.283-4). Outro pensador que criticou os Estudos Afro-Brasileiros foi Guerreiro Ramos, ao afirmar que tais estudos “transformavam o negro em ‘peça de museu’ ao estudarem os aspectos tradicionais da cultura negra, vistos por ele como elemento de atraso e de ignorância” (p.424).

Como uma obra realiza uma reflexão hermenêutica sobre a história do pensamento social negro e sobre a agência política e cultural de segmentos negros organizados, tendo o bloco Ilê Aiyê como um paradigma da reafricanização e contestação da realidade social, política e cultural da população negra de Salvador, os resultados apresentados são bastante alvissareiros, no que se refere à reterritorialização e também à valorização da cultura negra em Salvador. No entanto, o texto apresenta alguns problemas que não são apenas aqueles apontados pelo autor quando na conclusão caracteriza seus argumentos como “precariamente alinhavados” (p.433). O primeiro problema diz respeito ao conjunto de informações imprecisas que o autor oferece sobre o candomblé de Salvador, demonstrando que tem um conhecimento limitado do candomblé, sobretudo quando se refere ao bori (p. 133-4, 146) e também quando apresenta tabelas imprecisas sobre correspondências e hierarquias (p. 139, 140, 142).

Concluo destacando ainda mais dois problemas. Um refere-se à maneira pouco sistemática como o autor transita em campos epistêmicos tão diferenciados, sem estabelecer mediações discursivas, como no caso das apropriações que faz de abordagens filosóficas tão distintas, envolvendo os estudos culturais e autores de diferentes tradições epistemológicas como Foucault, Heidegger, Marx, Rorty. O outro problema se refere à conclusão, onde praticamente desaparece não somente o objeto principal do estudo – “O mundo negro do Ilê Aiyé” -, mas também o foco da hermenêutica da reafricanização, inicialmente direcionado para o vinculo entre raça e classe, os discursos do modelo do candomblé jeje-nagô e para a tradição dos estudos afro-brasileiros. Esse último problema aparece justamente em razão do autor pretender refletir sobre o Teatro Experimental Negro – TEN, sem que esse tenha sido um dos objetivos do estudo.

Erisvaldo Pereira dos Santos – Departamento de Educação (ICHS) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Mariana – MG, [email protected].

Hermeneutics, Politics and History of Religions | Christian Wedemeyer e Wendy Doniger

Assim como na área da Sociologia, da Arquitetura, da Economia e da Crítica Literária, pode-se dizer que existe uma “Escola de Chicago”, no estudo da história das religiões. Seus fundadores foram exilados europeus que trabalharam e permaneceram nos Estados Unidos até o final de suas vidas.

O primeiro deles, o alemão Joachim Wach, é pouco conhecido no Brasil, tendo sido publicada aqui apenas sua obra de Sociologia da Religião. São Paulo: Paulinas, 1990. O segundo, o romeno Mircea Eliade, foi um escritor profícuo, com suas obras editadas por várias editoras do país. Ambos possuem histórias bem distintas, peso acadêmico diferente, o que se reflete, inclusive, na organização do livro em apreço, são duas partes dedicadas a Eliade e uma para Wach. A importância do legado deixado por esses pesquisadores é enfatizado pelos dezesseis autores reunidos, mas a principal contribuição é a avaliação crítica feita através de diversos ângulos e perspectivas. Leia Mais

Oposicionalidade: o elemento hermenêutico e a filosofia – FIGAL (FU)

FIGAL, G. Oposicionalidade: o elemento hermenêutico e a filosofia. Petrópolis: Vozes, 2007. Resenha de: FERREIRA, Iarle. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.2, p.200-202, mai./ago., 2010.

A filosofia não existe como um sistema de ideias fechado, ou como um campo teórico voltado à resolução de algum problema na vida das pessoas. Ela existe como construção do pensamento através do diálogo. Se todo diálogo implica tomada de posição dos dialogantes, então, nele há uma “oposicionalidade” constitutiva do elemento hermenêutico, que faculta o filosofar. Uma filosofia assim entendida é fenomenológica.

Essa é a compreensão a partir da qual o alemão Günter Figal nos apresenta o livro Oposicionalidade – o elemento hermenêutico da filosofia. Nele, o autor, ao mesmo tempo em que trava um diálogo com a tradição, nos convida a participar da discussão, bem ao estilo da tradição hermenêutico-fenomenológica. Entre os variados pensadores cuja presença se faz notar destacam-se Parmênides, Descartes, Schleiermacher, Dilthey, Husserl, Merleau-Ponty, Heidegger e Hans-Georg Gadamer. Especialmente esses dois últimos, o que se justifica pela proximidade entre o pensamento de Figal e o desses filósofos – como o próprio subtítulo do livro, sugestivamente, indica. Entretanto, essa proximidade nem sempre é de identidade, mas de confronto.

A proposta do autor é apresentar a Oposicionalidade (Gegenständliche) como “princípio” hermenêutico e o mundo como espaço onde ela acontece. Deste modo, com o fito de perseguir o seu objetivo, o autor delineia paulatinamente sua argumentação, tendo como fio condutor a “interpretação”, conforme concebida pela tradição e por ele próprio. Isto é feito em uma estrutura na qual a argumentação se complexifica à medida que se avança na leitura, de modo que um capítulo vai conduzindo ao outro.

No primeiro capítulo, deparamo-nos com uma discussão do autor com Heidegger e Gadamer, cujo cerne é a concepção de hermenêutica. Nela, Figal se contrapõe a ambos. Acusa Heidegger de ontologizar a hermenêutica e Gadamer de ligá-la à coisa. Em ambos, afirma o autor, o que permanece em aberto é a relação entre a filosofia prática e a filosofia teórica.

O que está em questão para a filosofia é aquilo que lhe é próprio, ou seja, a busca pela compreensão do que está presente no contexto originário da filosofia, de modo a conquistá-lo (Figal, 2007, p.44). Somente assim é possível dizer a cada vez, em relação àquilo que eclode, que, nesse caso, trata-se de filosofia. Precisamos perguntar: a filosofia possui uma essência hermenêutica? Se a resposta for sim, um pensamento hermenêutico poderá se mostrar como uma possibilidade da filosofia tradicional, em oposição a uma visão retrospectiva ou destrutiva de tal filosofia.

Günter Figal apresenta diversos modelos de filosofia, apontando, a partir das conexões entre eles, o que têm de originário. Por exemplo, o que Descartes compreende como retirada para o interior de forma metódica, Heidegger entende como totalidade afetiva fundamental (Figal, 2007, p.58). Esses momentos originários da filosofia são dependentes um do outro sem que um se reduza ao outro. As duas atitudes reflexivas estão em “oposicionalidade”, ou seja, elas são duas posições opostas em diálogo uma com a outra. Nessa circunstância, para que haja interação, é necessário mediação. Em Platão, essa mediação tem o nome de Eros, através da qual há uma totalidade ligada entre si: o espaço entre homens e deuses. Eros leva aos deuses o que dizem os homens, e aos homens o que dizem os deuses.

A originalidade da filosofia é, em sua essência, mediatizada (Figal, 2007, p.65) pela linguagem, cujo movimento fornece o encontro e, ao mesmo tempo, o distanciamento ou a abertura que a deixa ser filosofia. Assim, a filosofia revela-se como uma coisa tão diferenciada quanto una (Figal, 2007, p.55). Nesse ponto, é possível responder a pergunta acima, dizendo: sim, a filosofia se faz em sua originalidade hermenêutica.

Certamente a afirmação de que a filosofia, em sua originalidade, é hermenêutica leva o autor a contornar o elemento hermenêutico. Paulatinamente, à medida que esse elemento vai aparecendo, a compreensão de uma filosofia hermenêutica vem à tona. Desta perspectiva, no primeiro momento vemos que a essência do hermenêutico é o “mediado”, sendo a forma de mediação mais conhecida a interpretação (Figal, 2007, p.66).

Interpretar é apresentar e clarificar, os dois procedimentos se copertencem. Ao apresentar, já de antemão, fala-se, isto é, comunica-se e estabelecese diálogo. Por exemplo, no diálogo com o texto, o pensamento é posto em ligação, de modo a permitir que prestemos atenção em suas possibilidades de compreensão. Por outro lado, o texto precisa ganhar validade, o que acontece se ele for desvendado, ou seja, é preciso trazê-lo à linguagem (Figal, 2007, p.84), pois, sem a interpretação, a obra não se faz presente. Nesse ponto, o que entra em questão é a compreensão.

A compreensão é um círculo que envolve os que se contrapõem, ela ocorre no encontro. Logo, o que vem ao encontro é o que se contrapõe. O que dessa forma se apresenta pede apresentação. Entretanto, o traço principal desta apresentação não é um “saber de” ou um “saber sobre”, pois o que se contrapõe tem o caráter de coisa que permanece sempre defronte.

No que diz respeito aos textos filosóficos, o que importa é partir sempre do elemento que é próprio às coisas contrapostas, ou seja, da mediação, a fim de apreendê-lo por meio de uma apresentação, isto é, daquilo que é originário em cada encontro e que possibilita o filosofar. Nesse ponto, o que acontece é a abertura do espaço hermenêutico. Por isso, o autor afirma que a “forma linguística da filosofia é uma abertura peculiar” (Figal, 2007, p.64).

O espaço hermenêutico é esse que se mostra como abertura para aquilo que está-aí-defronte. Por conseguinte, tal espaço é o mundo ao qual pertence a apresentação. O que está em questão, deste modo, é uma fenomenologia do espaço hermenêutico (p. 149). Por essa razão, o autor articula a compreensão desse espaço considerando três dimensões da sua constituição: liberdade, linguagem e tempo.

A liberdade é a condição de possibilidades de concretização da filosofia, no sentido da efetivação da apresentação do que se contrapõe. Trata-se de uma apresentação somente possível por meio da linguagem, a qual não funciona como uma chave interpretativa, mas, sim, como acessibilidade ao próprio mundo, tendo este a sua legibilidade confirmada nas coisas contrapostas. Assim, um texto filosófico, no modo como ele se dá à linguagem, coloca a linguagem à prova uma vez mais, de modo a repetir tal provação a cada vez que se der encontro. Assim, somos levados a considerar o tempo como constitutivo do mundo.

Oposicionalidade – o elemento hermenêutico da filosofia é um livro denso, rico e inovador. Nele encontramos uma concepção de hermenêutica própria, que, por si só, nos garante o prazer da leitura. Ademais, tal concepção, além de tornar mais compreensíveis pontos de vista clássicos sobre o tema discutido, estimula as discussões sobre o sentido da própria filosofia. Nesse contexto, tal filosofia, que se pratica no diálogo aberto e sempre em construção, jamais poderá preconizar sua própria morte como diz o autor quando afirma que “de uma maneira muito melhor do que muitos conceitos modernos, os conceitos clássicos ainda nos suportam com solidez, quando sabemos empregá-los de maneira livre e em relação às coisas mesmas” (Figal, 2007, p.14).

No livro aqui resenhado, a fertilidade advinda do confrontar-se com a tradição é tanto mais abundante quanto mais contornos o autor confere aos seus parceiros de diálogo, o que é feito através de uma apresentação livre, cuja liberdade confere à linguagem um bailar sutil e denso, que particulariza sua posição de “apresentador” dos conceitos, concepções e categorias que lhe interessam, e, por conseguinte, demarcando sua própria perspectiva filosófica no debate.

Além do mais, se em toda atividade hermenêutica nós mesmos estamos em jogo, conforme um clássico preceito dessa filosofia, segundo o qual há um círculo (hermenêutico) que envolve o todo dessa atividade, então é possível afirmar que Oposicionalidade: o elemento hermenêutico e a filosofia é um livro que se oferece como possibilidade de recuperação ou reatualização de pressupostos. Pois, na aproximação com a temática e com os argumentos que o autor oferece, somos convidados a cotejar nossos próprios pressupostos. Neste ponto somos nós mesmos em nossa liberdade e temporalidade que estamos em jogo, na medida em que essa aproximação deriva de um passado e nos lança em um futuro. Afinal, compreendemos a partir de pressupostos, razão pela qual o diálogo com a tradição é fundamental, não como submissão, mas como ligação, significação ou mesmo ressignificação desses pressupostos. Estamos em jogo, também, na medida em que a atividade hermenêutica ocorre como possibilidade, como poder-ser, urdido pela compreensão e pelo que dela decorre (Figal, 2007, p.114).

Portanto, fazendo jus à proposta do livro, de que a filosofia é um campo dialógico destinado a construção do pensamento, o texto de Güntel Figal tem o mérito de nos proporcionar, ele mesmo, uma dessas oportunidades de encontro que somente um texto maduro pode fazer, ou seja, ofertar-se ao diálogo e não apenas aos especialistas da área, a qualquer um que tenha interesse em filosofia, pois temos aqui uma articulação de linguagem que não transporta uma férrea estrutura argumentativa, mas deixa-se ser na relação com o leitor, sem, contudo perder a identidade.

Iarle Ferreira – UNISINOS. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

A atualidade do acontecer: o projeto dialógico de mediação na hermenêutica de Hans-Georg Gadamer – ARAÚJO (HH)

ARAÚJO, André de Melo. A atualidade do acontecer: o projeto dialógico de mediação na hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. São Paulo: Humanitas, 2008, 240pp. Resenha de: CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Hans-Georg Gadamer e a tradição. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.299-305, março 2010.

O livro A atualidade do acontecer, de André de Melo Araújo, originado de uma dissertação de mestrado defendida na USP, é, sem dúvida, uma contribuição relevante para as reflexões teóricas sobre história e historiografia no Brasil.

Seu principal valor se encontra no esforço do autor em compreender a obra de Hans-Georg Gadamer (1900-2002), sobretudo Verdade e Método, de 1960, para a hermenêutica histórica. Dentre os historiadores brasileiros, ou bem estou bastante desatualizado na bibliografia especializada, ou creio que nenhum se ocupou em escrever um livro inteiramente dedicado a Gadamer.

Isto, por si só, já recomenda a leitura de A atualidade do acontecer,[1] publicado pela editora Humanitas, com apoio da FAPESP.

Mas não é só uma questão de haver-se preenchido uma lacuna. O fato de se publicar, no Brasil, um livro sobre Gadamer escrito por um historiador é uma oportunidade para que se debata intensamente a relação entre a teoria da história e a filosofia, algo tão difícil quanto raro. E, suspeito, a razão desta ausência de debate se deve à forma como nós, brasileiros, e, no caso específico, historiadores brasileiros, herdamos as peculiaridades do contexto intelectual alemão. Mais especificamente, como os historiadores brasileiros, em geral (há sempre as exceções de praxe), reagem ao nome de Martin Heidegger. Somese a isto ao fato de se evitar, mesmo na Alemanha, cautelosamente o confronto entre a teoria da história com o projeto de uma ontologia fundamental de procedência fenomenológica. Jörn Rüsen, por exemplo, um dos grandes nomes da teoria da história na atualidade, talvez ainda nos deva tal embate. [2]Gadamer paga, portanto, um preço alto por ser vinculado a Heidegger. Corrigindo: os historiadores brasileiros é que exigem tal preço, mas que se explica pelo fato de um dos filósofos mais importantes do século XX ser lembrando pela comunidade historiográfica nacional, sobretudo, em duas ocasiões: como um dos precursores filosóficos do linguistic turn e como alguém que não escondeu suas simpatias pelo nacional-socialismo.

Portanto, repito: que um jovem historiador tenha trazido Gadamer para o debate, em forma de livro, é, em si, uma oportunidade a ser aproveitada.

Uma chance para enriquecer o debate na área de teoria da história.

Para além disto, como aborda o autor o tema? Hermeneuticamente, respondo. E o que isto significa? Nas palavras do autor: “(…) este trabalho não consegue escapar de uma apresentação circular. Aqui não se trata de uma exposição sistemática dotada de um começo e de um fim claros, já que o desenvolvimento interpretativo pressupõe a totalidade dos esforços mediadores

Há mais de dez anos estudando teoria e filosofia da história e historiografia alemã, eu mesmo também não posso oferecer uma boa razão por ainda não ter pensando na possibilidade de um confronto entre Heidegger e a teoria da história.

do pensamento” (ARAÚJO 2009, p.19). Um texto hermenêutico é (ou pode ser), portanto, circular. Sua forma de apresentação não é um molde exterior ao conteúdo, mesmo porque, se formos coerentes com o princípio hermenêutico, não há sentido que seja definitivo. Não se trata de relativismo, mas sim de constantemente fazer o esforço de construir o sentido, recuando, deixando-se sempre e novamente ser atingido pelo passado, e jamais tomá-lo como pronto, dado e dito: o processo interpretativo se faz na escrita, não sendo, pois, uma operação exclusivamente mental passada ao papel.

E é a partir deste critério que precisamos compreender também o esforço de André de Melo Araújo, a saber: entre outras possibilidades dadas no pensamento gadameriano, trata-se de entender a historicidade do método, perceber a marca de sua finitude de modo a evitar o que nele se apresenta de meramente instrumental, como algo dado fora de um mundo. É possível, portanto, estabelecer o diálogo entre teoria da história e hermenêutica filosófica tendo, como termo comum, o método. Por inúmeras vezes, o autor mostra o quanto Gadamer critica a redução de uma concepção de história à epistemologia, isto é, a uma noção dicotômica entre sujeito e objeto. Logo no princípio do livro, lê-se: “O fenômeno da história, portanto, não é puro objeto adaptável aos padrões métricos da ciência nem à sua aferição linear e contínua do tempo, mas é refratário à denominação exteriorizante de objeto, de instância alheia à temporalidade que o constitui” (ARAÚJO 2009, p.33).

Aliás, permita-me o leitor a digressão, talvez poucos exercícios hoje fossem mais ricos, na área de teoria da história, do que comparar, por exemplo, a concepção de unidade do método histórico, exposta por Jörn Rüsen em Reconstrução do Passado, com Verdade e Método, de Gadamer. Portanto, uma reflexão de fôlego, como a feita por André Araújo, vem em boa hora. Mais ainda, e sigo com a digressão, pensar linguagem e história a partir de Gadamer implica discutir o problema em bases outras, para além das contribuições de Hayden White e divulgadores. O livro indica que a questão é mais profunda: basta lembrar que Gadamer jamais dispensa a dialética de Hegel, autor tratado pelos “pós-modernos” como se fosse um vírus letal a ser isolado – o que implica dizer que nunca é lido. Dialética, linguagem e história estão juntas em um Gadamer leitor de Hegel, e, felizmente, também no livro de André Araújo.

E, de fato, este é um dos assuntos centrais do livro. Nas palavras do autor: “O caminho de leitura aqui apresentado é balizado pela proposta teórica de validação de um projeto de verdade próprio às reflexões das ciências humanas, cuja possibilidade de compreensão é tecida pela mediação da linguagem” (ARAÚJO 2009, p.17). Verdade e linguagem, portanto, não se excluem.

Todo o argumento do autor se desenvolve em três partes. Cada uma delas abre veredas para muitas discussões. Dentre estas, destaco algumas, pois considero impossível tratar de tudo que suscita discussão e interesse. Espero que o corte não seja arbitrário e caprichoso.

A primeira parte, denominada “A Deformação especular do foco da subjetividade”, talvez tenha o seu eixo na indicação de como o humanismo científico encobriu como pôde “o amargo sabor da finitude” (ARAÚJO 2009, p.26). Na contramão da marcha vitoriosa da ciência, haveria, então, a hermenêutica compreensiva, na qual a finitude se mostra em um horizonte que a torna evidente. E esta finitude, afirma-nos o autor, se mostra em inúmeras experiências: do não entendimento, do reconhecimento de que o outro pode ter razão e de que já estamos inseridos em uma estrutura do tempo e em uma pré-compreensão do mundo. Em uma tradição.

Ainda nesta primeira parte, é digno de elogios, embora eu seja suspeito em fazê-lo dado o meu interesse pelo tema, que o autor dedique tantas páginas ao conceito de Bildung, a partir do qual o embate com o humanismo clássico é feito.3 Segundo André Araújo, o conceito hegeliano de Bildung se faz presente na obra de Gadamer na medida em que “(…) nos remete tanto para a finitude da operação do juízo, para os limites da capacidade de julgar, quanto para a capacidade de cumprir as obrigações para com o outro. Justamente aqui reside, acreditamos, o ponto máximo do interesse gadameriano, cuja hermenêutica se volta para a possibilidade de que o outro tenha razão” (ARAÚJO 2009, p.

43). Some-se a isto o fato do homem culto, para Hegel, ser aquele que conhece do ponto de vista universal – aliás, além de passagens da Propedêutica filosófica, o autor poderia também usar passagens semelhantes da Razão na História, algo que permitiria, inclusive, um debate interessante entre os conceitos de tradição, em Gadamer, e de Espírito, em Hegel. Fica apenas aqui dada a sugestão.

Lamento, apenas, que o autor, no momento em que marca a diferença entre a acepção clássica e a compreensão gadameriana de Bildung, faça-o com demasiada rapidez. Afinal, qual seria a conotação clássica? A de Goethe, Wilhelm von Humboldt, Schiller, e, claro, de Hegel? Se Hegel é um dos representantes eminentes da visão clássica da Bildung, o que Gadamer aproveitaria e o que ele descartaria do projeto hegeliano de formação? Como leitor, fiquei na dúvida se o autor assume a visão de Gadamer exposta em Verdade e Método (cf. GADAMER 1990, p.15-24), ou se a amplia, utilizando outros textos da mesma tradição. Se já dei uma sugestão, agora faço uma pequena provocação: como compreender a obra de Gadamer a partir da idéia de tradição. O ponto é: e se os humanistas estiverem com a razão? Neste sentido, me parece que o autor adota uma postura excessivamente empática com seu autor, como se ele não pudesse não ter razão – algo que, hermeneuticamente, é controverso, na medida em que, segundo o próprio Gadamer em passagem citada por André Araújo, “a interpretação se torna necessária onde o sentido de um texto não se deixa compreender imediatamente” 3 Apenas discordo do autor quando ele afirma, já nas páginas conclusivas, que “a política é exatamente o componente fundamental que se encontra enfraquecido na formulação humanística da Bildung”.

Imagino que o autor tenha se atido à idéia difundida, entre outros, por Fritz Ringer, mas creio que a obra de Wilhelm von Humboldt, importante não somente para a lingüística e para a teoria da história, mas para a teoria política (é considerado uma das referências fundamentais do liberalismo clássico) poderia render pensamentos mais robustos sobre a concepção política de Bildung. De maneira menos direta, o próprio Hegel, de modo algum um liberal clássico, também, em sua Filosofia do Direito, não deixou de usar o termo Bildung.

(apud ARAÚJO 2009, p.168). Ora, não estou a dizer que André Araújo considera o texto de Gadamer “claro como água de riacho”, como diria Rubem Braga, mas que, mesmo adotando a estratégia – essa sim hermenêutica – de escrever de maneira mais elíptica, em que o sentido nunca está dado de antemão, pareceme que não há espaço para impasses e, portanto, incompreensões em Gadamer.

É bem verdade, por outro lado, que André Araújo afirma que Gadamer aproveita de Hegel a idéia de Bildung como superação do imediato, mas sem a dissolução da finitude que ocorreria em Hegel (cf. ARAÚJO 2009, p.53).

Ainda na primeira parte, o autor discute outro ponto fundamental: a crítica gadameriana ao historicismo, ou melhor dizendo, ao tratamento metódico do acontecer histórico, que partiria, necessariamente, de uma separação entre sujeito e objeto. Aqui me parece que o autor poderia ter ido mais longe, e consultado, diretamente, os textos dos autores apresentados por Gadamer em “Geschichtliche Vorbereitung”, item I da segunda parte de Verdade e Método. É bem conhecida a intenção de Gadamer em mostrar que o esforço dos historiadores e teóricos da história do XIX foi em vão: ao tentarem construir outro modelo de ciência, exclusivo para as ciências humanas, Ranke, Droysen, Dilthey e outros ficaram presos também na rede que nega a finitude do conhecimento. Gadamer, sinceramente, me parece apressado neste assunto – ao menos no que diz respeito a Droysen, ele me parece errar o alvo (cf. GADAMER 1990, p.274-275). Basta ler um trecho da Historik, logo em seu início: Pois cada ponto no presente, cada coisa e cada pessoa, é um resultado histórico, contém em si uma infinidade de relações, que estão introjetadas e internalizadas. (…) O homem ilumina seu presente com um mundo de lembranças, que não são arbitrárias, caprichosas, mas que são o desdobramento (…) daquilo que ele tem em torno de si e em si como resultado dos tempos passados; ele tem esse momento, em uma primeira instância, imediatamente, sem reflexão, sem consciência; ele o tem, como se não o tivesse, e somente quando ele o observa e o traz à consciência, ele reconhece, o que ele tem de si neles, nomeadamente, a compreensão de si mesmo (DROYSEN 1977, p.10).

Claro que não pretendo dizer que Droysen é um precursor de Heidegger.

Isto seria absurdo, mesmo porque Droysen ainda aposta, como bom homem do século XIX, na consciência, no método e na reflexão controlada. Mas, de modo algum, consciência e reflexão operam uma separação entre sujeito e objeto como condição da ciência. Em heideggerianês: para Droysen, de alguma maneira o homem já se vê aberto para a estrutura na qual sempre já foi lançado.

Ele se vê como parte de uma tradição. A diferença, claro, é que, a partir daí, será possível ainda, para Droysen, propor uma metodologia.

Não vem tanto ao caso, nesta resenha, criticar Gadamer ou fazer a apologia de Droysen, mas de perguntar por que motivo Gadamer partiu de uma concepção de ciência algo redutora, como se todas as concepções de ciência do século XIX fossem uma vaga mistura de positivismo com iluminismo.

O autor mesmo afirma, em uma nota ao pé da página, na última parte do livro, que não lhe cabia verificar se a interpretação de Gadamer sobre o historicismo estava correta ou não, interessando-lhe apenas os desdobramentos da crítica de Gadamer à ciência (cf. ARAÚJO 2009, p.169). Não se trata de cobrar algo que o próprio autor não pretendeu trabalhar, mas de se indagar se não se ganharia de fato se tal confronto tivesse sido feito. Neste aspecto, André de Melo Araújo me parece, mais uma vez, ter aderido excessivamente às teses de Gadamer: Eis o abalo que o pensamento gadameriano promove no cerne da razão, que se deve descolar do mais puro plano da idealidade transcendente, em que a apreensão totalizada, acabada e absoluta da realidade seria possível, para reconhecer o horizonte temporal de sua própria conformação histórica.

A idéia gadameriana de razão se configura como histórica, e o jogo em meio ao qual ela se encontra é marcado pelo vigor presente da história (ARAÚJO 2009, p.61).

Pergunto: seria a configuração histórica da razão efetivamente um abalo causado pelo pensamento de Gadamer? Em Johann Gottfried Herder isto já não aparece, quando ele mesmo, ao escrever sua breve e irônica filosofia da história em 1774, afirma que, ao tentar escrever generalidades, reconhece sua própria finitude? Cito um breve trecho: Ninguém no mundo reconhece mais do que eu as fraquezas da caracterização geral. Pinta-se o quadro de todo um povo, de toda uma época, de toda uma região. Quem foi assim que pintamos? Que imperfeito o instrumento da representação (…) Quem terá notado o que há de indizível na tarefa de dizer qual a propriedade específica de um homem e de assim dizer distintivamente aquilo que o distingue? (cf. HERDER 1995, p.34).

É verdade também que a solução teológica do protestante Herder não será imitada por Gadamer, mas, de alguma maneira, na história do romantismo hermenêutico, o reconhecimento do próprio limite, e, portanto, da alteridade, é algo que já se faz – talvez não com o refinamento de um Gadamer, e, muito menos, com o impacto de um Heidegger, mas, também, considero ainda que uma leitura de Gadamer há de ser feita tendo, ao lado, as obras por ele criticadas.

Por que não nos propormos a uma experiência própria de leitura dos textos da tradição, para que possamos nos apropriar delas, herdá-las? Afinal, se se afirma que o pensamento de Gadamer realizou um abalo, imagino que este abalo tenha sido dado no escopo de uma tradição. Daí lamentar a opção do autor em não averiguar a procedência das críticas de Gadamer.

Na segunda parte do livro, “O núcleo dialético do dialogismo lingüístico”, André Araújo se dedica a retomar a discussão sobre linguagem e verdade, anunciada, inclusive, como um dos eixos em torno do qual seu argumento gira.

Alçando o debate à devida complexidade, o autor afirma: É importante enfatizar que Gadamer não abandona radicalmente a idéia de razão [Vernunft], mas sim o revestimento instrumentalizado do conceito pela ciência, ou mesmo sua forma absolutizada pela filosofia hegeliana. A razão, desfeitos estes dois percalços, sustenta parte do esforço dialógico no encontro do outro e na determinação compreensiva da consciência de si (ARAÚJO 2009, p.101).

É este o momento em que André Araújo desenvolve alguns aspectos bastante ricos: falar em uma razão que não seja instrumental nem absoluta é falar de uma experiência em que a alteridade se torne incontornável e fundamental, algo que ocorre sempre que o mundo não se deixa converter em objeto (cf. ARAÚJO 2009, p.109).

Aqui vale a pergunta, suscitada pela leitura do livro: por que não ler a tradição criticada por Gadamer à luz da pergunta: por que o mundo se deixou objetivar? Por que se esqueceu do caráter constitutivo da linguagem? Uma coisa é dizer que iluminismo e romantismo acabaram, um e outro, objetivando a experiência, e, com isso, esqueceram-se de sua finitude essencial. Outra é mostrar como isso se deu. E como esta experiência também, não está, ela mesma, acabada, posto que, se o fizéssemos, também a estaríamos vendo como dado, como objeto. Ela também ainda vigora. Mas como? Feita a pergunta, cabe ver, portanto, o lugar central da arte no pensamento de Gadamer e como este lugar consegue pensar a razão de uma maneira diversa.

É fundamental lembrar, agora, da maneira como Gadamer lê a tradição grega. Cito Verdade e Método, a propósito da definição de theoria: nós nos comportamos teoricamente quando “(…) ante uma questão, podemos nos esquecer de nossos próprios objetivos” (GADAMER 2007, p.182). E o filósofo segue: “(…) em princípio a theoria não deve ser pensada como um comportamento da subjetividade, como uma autodeterminação do sujeito, mas a partir daquilo que o sujeito está olhando. A theoria é verdadeira participação, não é atividade; é um sofrer (pathos), isto é, um ser atraído e dominado pela visão (…)” (idem).

A experiência teórica é, portanto, a experiência do espectador, mais especificamente a experiência extática em que “se está fora de si”. Mas, para Gadamer, remetendo-se ao Fedro, de Platão, “o estar-fora-de-si é a possibilidade positiva de estar inteiramente em alguma coisa” (GADAMER 2007, p.183).

Pergunto-me se não poderíamos dizer que, em Gadamer, toda experiência estética é histórica. Creio que o livro de André Araújo nos permite pensar a partir desta vereda, porquanto ela inverte o que habitualmente se diz sobre história e arte, isto é, de que a experiência histórica é estética – como faz, por exemplo, um Frank Ankersmit (cf. ANKERSMIT 2004, 2005). Mais uma vez, esperava apenas que o autor se detivesse um pouco mais no conceito de simultaneidade como modo de ser da tradição, e, neste sentido, como o acontecer preserva a experiência da contingência, e, neste sentido, pode, aí sim, retirar das garras do historicismo (na definição de Gadamer) o objeto entendido como singularidade ocasional, recuperando-o em sua fundamentação ontológica. O modo de ser da tradição, portanto, revela a estrutura da temporalidade em que o mundo não deixa mais ser controlado como se fosse um objeto.

Trata-se da experiência da simultaneidade, analisada por Gadamer longamente no item “Temporalidade da estética”. A simultaneidade seria, portanto, o acontecer em sua atualização, o momento em que o ocasional e o decorativo desvelam sua fundamentação ontológica. O teatro é um bom exemplo dado por Gadamer: É por isso que o palco teatral é uma instituição política de natureza única, porque somente na execução faz transparecer aquilo tudo que há no jogo, a que está aludindo, os ecos que desperta. Ninguém sabe de antemão qual será o resultado e o que irá se perder no vazio. Cada execução é um acontecimento, mas não um acontecimento que se oponha ou posicione ao lado da obra poética como algo autônomo; o que acontece no acontecimento da encenação é a própria obra (GADAMER 2007, p. 209).

Na terceira parte de seu estudo – “Do vigor extratextual da existência” – André Araújo apresenta, entre outras, uma questão das mais ricas, a saber, o embate sobre a concepção gadameriana da atividade da história. A partir de Jean Grondin, o autor elabora o significado do caráter decisivo da transcendência dentro de uma hermenêutica da finitude: “A transcendência é justamente o padrão da ultrapassagem da toda ‘experiência feita na vida’, no mesmo registro em que já percebíamos que a arte pode ser a correspondência humanamente finita do que se concebe por eterno” (ARAÚJO 2009, p.171-172).

A costura da obra se apresenta aqui muito bem cosida: as discussões sobre a arte reaparecem aqui como lastro indispensável para se pensar a transcendência. Mas como se configura esta transcendência? Neste sentido, imagino, a recuperação do diálogo entre Gadamer e Reinhart Koselleck é bastante interessante. Afinal, há na historiografia alguma brecha para o vislumbre da transcendência? O que está em jogo é, de alguma maneira, a experiência fundamental da hermenêutica: se em Koselleck a ação histórica pode também aparecer como negação da alteridade (o poder-massacrar, o poder-matar, poder-aniquilar, Totschlagenkönnens), a obra de Gadamer enfatizará que o vigor da existência será sempre, nas palavras de André de Melo Araújo, o da “não-identidade de si para com o mundo” (ARAÚJO 2009, p.197). E isto é decisivo: (…) olhar unilateralmente para o sujeito – ora como produtor da matéria artística, ora como seu receptor –, ou direcionar a atenção apenas para a materialidade da obra é fazer surgir os pólos da falsa dicotomia objetivadora da ciência, que carrega como conseqüência a impossibilidade do reconhecimento da conformação artística como uma relação social, como uma prática social (ARAÚJO 2009, p.207).

As palavras do autor são bastante instigantes, na medida em que o problema do projeto da ciência moderna estaria em tentar reduzir toda experiência possível ao fim dos conflitos, algo a ser feito mediante a correta aplicação do princípio de identidade – do sujeito com o objeto, ou do objeto com o sujeito. A hermenêutica só mantém seu vigor quando houver uma discrepância, portanto, um resto que indique sempre a inesgotabilidade da história, e, portanto, a finitude de todo aquele que nela se vê inserido.

Apenas algumas breves notas para reflexão: como poderíamos descrever esta situação como “social”? Deveríamos retornar a Simmel para realizar tal descrição? E, mais uma sugestão, por que não comparar a situação hermenêutica da experiência fundamental da não-identidade (que chamo de discrepância) com a desenvolvida em Adorno? Não me parece impossível, pois se Heidegger e Marx separam Gadamer e Adorno, Hegel os une.

De toda forma, divagações de lado, é muito interessante o livro de André de Melo Araújo. Pensar a hermenêutica não somente como método, mas como estrutura na qual estamos sempre já lançados é algo digno de mérito; mais ainda, pensar linguagem e história em nível para além das (por vezes) requentadas querelas entre modernos e pós-modernos é um alento.

Referências

ANKERSMIT, Frank. Representación histórica. In: ______. Historia y Tropología: Ascenso y caída de le metáfora. México, D.F.: FCE, 2004.

______. Sublime historical experience. Palo Alto: Stanford University Press, 2005.

ARAÚJO, André de Melo. A Atualidade do acontecer: O projeto diálogico de mediação histórica na hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. São Paulo: Humanitas, 2008.

DROYSEN, Johann Gustav. Historik. Stuttgart; Bad-Canstatt: Fromann- Holzboog, 1977.

GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Tübingen: Mohr, 1990.

______. Verdade e Método. Petrópolis; Bragança Paulista: Vozes, Editora da Universidade de São Francisco, 2007.

HERDER, Johann Gottfried. Também uma filosofia da história para a formação da humanidade. Lisboa: Antígona, 1995.

 

[1] Sem querer cometer injustiças, vale lembrar as publicações, sob forma de artigos, da Profa. Norma Côrtes (UFRJ) sobre o filósofo alemão. CÔRTES, Norma. Descaminhos do método: Notas sobre história e tradição em Hans-Georg Gadamer. In: Varia História, v.22, n.36, 2006; ______. Desafios hermenêuticos: as noções de tempo e tradição em Hans-Georg Gadamer. In: BUSTAMANTE, Regina e LESSA, Fábio (orgs.) Dialogando com Clio. Rio de Janeiro: Mauad, 2009.

[2] Cf. BAMBACH, Charles R. Heidegger, Dilthey and the Crisis of Historicism. Ithaca; London: Cornell University Press, 1995, p.18.

Pedro Spinola Pereira Caldas – Professor Adjunto Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) [email protected] Av. Pasteur, 296 – Urca Rio de Janeiro – RJ 22290-240 Brasil,

Berlim: um diário de idéias – DURÃO (AF)

DURÃO, F. Rio-Durham (NC). Berlim: um diário de idéias. Campinas: Publicações IEL/ UNICAMP (Coleção Work in progress), 2009. Resenha de: JÚNIOR, Douglas Garcia Alves. Experiências do pensamento diante da face das coisas. Artefilosofia, Ouro Preto, n.7, out., 2009.

Fábio Durão apresenta um empreendimento incomum em nossos dias: um “diário de idéias”, composto de 85 fragmentos. Projeto ousado já na forma, que remete a Nietzsche e Adorno, filósofos que fizeram da forma de exposição em aforismos um elemento central de suas obras. Ousado, além disso, na amplitude e dificuldade dos temas tratados, que vão da dialética aos Estudos Culturais, da diferença entre as formas brasileira e norte-americana de sociabilidade ao capitalismo, da hermenêutica literária ao silêncio na música, da questão do lugar histórico das idéias à utopia do conhecimento. Reconhece-se, tanto na forma, como nos temas, o diálogo com Adorno, o que o torna ainda mais ousado: pretende- ria o autor reescrever as Minima Moralia em chave contemporânea e brasileira? No que se segue, reúno algumas indicações a respeito do teor das experiências de pensamento que Durão propõe. Trata-se de um breve comentário de quatro núcleos temáticos do livro de Durão, os quais, a meu ver, representam melhor o teor do seu trabalho como um todo. São eles: a reificação na prática acadêmica contemporânea; as dificuldades na lida hermenêutica com a alteridade da arte; as relações humanas como esfera de resistência à dominação capitalista; a utopia de uma teoria alegre. A reificação da academia Durão fala do contexto americano, alemão e brasileiro, mas é neste primeiro que ele mais se detém, tomando a sério o anúncio de Max Weber: “permitam-me que os conduza aos Estados Unidos da América, pois que lá se pode observar certo número de realidades em sua feição original e mais contundente” 1. O núcleo das suas anotações a respeito, retiradas de sua experiência pessoal naquele país, refere-se, em primeiro lugar, ao produtivismo e à competitividade, de feições abertamente capitalistas, que se observam em tudo o que é relaciona- do à universidade. Por outro lado, e intimamente relacionado a este primeiro aspecto, ele nota a contradição entre uma busca obstinada pela heterogeneidade, multiplicidade e pelo novo, por parte da crítica literária, da “Teoria” e dos Estudos Culturais, e o encerramento desses discursos em uma concepção anistórica e abstrata do “outro”, que termina por perdê-lo.

As várias faces do primeiro aspecto, Durão as encontra na prática americana das citações 2, na designação de “star” aplicada aos professores que detém um “grande nome” capaz de atrair muitas matrículas 3, n a especialização de cada departamento de universidade em um determinado tipo de “mercadorias culturais” 4, na polivalência de intelectuais que acompanham as demandas cambiantes de um trabalho flexibilizado 5, na transformação da prática intelectual em uma “máquina hermenêutica”, a recobrir de sentido (e perder) o movimento contraditório da realidade social capitalista 6. Quanto ao segundo aspecto apontado, a compulsão abstrata pelo “outro”, Durão a entende a partir de sua posição histórica e social, e da divisão social do trabalho. Cito: Muito se fala nos Estados Unidos do outro. Em inúmeras publicações, congressos, cursos etc encontra-se esse desejo pela diferença, por aquilo que não se repete, que anuncia o novo. A busca pelo diferente pode assumir as mais diversas formas: o entusiasmo pelos novos media, o deslumbre pelas possibilidades de sexualidades alternativas, a fixação pelo indefinível do corpo, a promessa de riqueza na mistura de culturas de imigrantes num mundo globalizado, a disseminação infinita do sentido no infinito da linguagem… Todas essas versões de alteridade têm seu contrário na realidade repetitiva da rotina do trabalho, na homogeneização dos hábitos por todo o globo, na Mcdonaldização do mundo. 7 Essa denúncia seria unilateral se não viesse acompanhada de um reconhecimento do que há de crítico nessa busca do “outro”. A “nebulosa da Teoria” porta consigo um teor de verdade: a indicação de que a aspiração ao novo não pode ser realizada nos quadros de um todo social que reprime a irrupção do heterogêneo sob a máscara da hiper-produção de sentido e do consumo de bens culturais. Escreve Durão: “entregar-se completamente à teoria da diferença, de fato, leva à auto-satisfação da classe média, mas ignorá-la por completo, reprimi-la, só faz com que ela volte, como uma vingança, para assombrar o discurso revolucionário dono da verdade” 8.

Durão sugere que a recuperação do momento de verdade da hermenêutica americana do “outro” passa por uma operação reflexiva, pelo dever de pensar as formas de produção de sentido sob o capitalismo contemporâneo, ao mesmo tempo em que se põe a pensar os problemas de uma leitura respeitosa e, ao mesmo tempo, desafiante, viva, das obras de arte. Torna-se impositivo resistir ao fluxo homogeneizador dos discursos da diferença, e abrir um “tempo lógico” para a teoria em sentido forte, isto é, para a contemplação da conexão inteligível imanente que se apreende das próprias coisas. Talvez a problemática da hermenêutica da obra de arte sob o capitalismo seja o locus privilegiado para pensar estas questões.

A (difícil) alteridade da arte

A incômoda experiência de fazer parte da massa de turistas diante da Mona Lisa, no Louvre, é senha para Durão pensar a questão da posição do receptor diante da obra de arte, do que esta tem de único e irredutível. Trata-se, naquele caso, de uma experiência em que está ausente o silêncio, em que não há tempo para que se desdobre um outro tipo de experiência, negativa (face ao excesso de sentido proposto): a de abrir-se à obra para que ela “perguntasse algo àquele que [a] via” 9. A renúncia à intenção subjetiva, assim, torna-se mediação incontornável para o contato com a alteridade. A leitura do mundo, das coisas, exige uma disciplina do sujeito. Não sua dissolução completa, em prol de um “objetivismo” ingênuo, mas participação no movimento constitutivo da obra. Ela exige, na verdade um trabalho do sujeito, no sentido de reconstituir as mediações históricas impressas na estrutura e no tecido da obra, e, além disso, de uma atenção ao que escapa a esse movimento, à sua não-identidade material irredutível. Durão torna clara a sua posição a esse respeito, ao comentar a prática acadêmica do close reading: Para a lírica, busca-se ambigüidades e padrões imagísticos recorrentes, assim como recursos sonoros organicamente li- gados ao sentido; para a prosa, investiga-se a profundeza e a verossimilhança psicológica dos personagens, a estruturação e o desenvolvimento do enredo. Subjacente a essa forma de ensino da literatura reside uma bela idéia de imediatidade e comunicabilidade da experiência humana (daí a identificação com personagens desempenhar um papel tão importante) seu aspecto negativo, no entanto, apresenta-se no apagamento da diferença, da estranheza que artefatos do passado geram quando parecem se fechar para nossas perguntas a eles 10. Como romper a reificação dos instrumentos hermenêuticos, dos métodos de análise estética? Como restituir ao objeto o que é do objeto, a sua alteridade mais secreta? Durão amplia o foco dessas questões a partir da consideração do oposto da obra de arte, do “lixo” da indústria cultural. Este, surpreendentemente, adquire um estatuto revelador para o crítico cultural interessado na não-identidade da arte. Por dois motivos. Em primeiro lugar, segundo Durão, é possível mostrar que o “puro ruim não existe”, que mesmo o mais reificado produto da indústria cultual contém, latente, um momento de utopia, anuncia uma promessa de satis- fação e liberdade 11 (ainda que não as sustente de modo radical). Além disso, mais fundamentalmente, trata-se de ter consciência de que, se o “lixo” da indústria cultural impõe uma cunha hermenêutica a seus receptores, impedindo-os de desenvolver uma leitura diferenciada do mundo, em franca contraposição, trata-se, para a crítica, de apontar estes entraves, para restituir o potencial obstruído de leitura do mundo 12. Enfim, é possível pensar a prática crítica e a leitura forte da obra de arte como um tipo de amizade, de uma relação em que atividade e passividade se complementam, para articular um campo de forças em que as tensões possam se exprimir, ao mesmo tempo em que a dominação e a violência, desse modo, possam ser substituídas pela coexistência vivificadora e autônoma. Talvez seja por isso que Durão enxergue nas relações interpessoais um potencial utópico não-desprezível.

A fragilidade e a resistência das relações humanas

Um dos mais interessantes fragmentos de Durão é o de número 41, sobre o universo social da praia de Copacabana. Enquanto a opção mais fácil para o intelectual crítico brasileiro seria a de apontar para o engodo da intimidade entre os socialmente desiguais, na esteira da crítica (justificada, diga-se) de Sérgio Buarque de Holanda à “cordialidade” brasileira, ele toma um outro rumo. Sem negar a injustiça impressa na realidade, ele chama a atenção para o teor de verdade da sociabilidade afetiva e próxima do carioca. O “esforço de se ligar a um outro” e o “ser amigável como ponte” portam algo de verdadeiro, na medida em que manifestam, de algum modo, um confronto com a realidade social que faz dos indivíduos “mônadas sociais irreconciliáveis”. O criminoso, que também circula por lá, lembra Durão, é aquele que nega essa proximidade, que expõe sua insuficiência 13.

Esse limite da proximidade carioca é posto em questão, nova- mente, por outra via, a do comentário da relação amorosa. Se o vocábulo “relação” chama para si a atenção para o aspecto desregulamenta- do e espontâneo do amor, é preciso apontar, lembra Durão, para aquilo que a “relação” exclui: a abertura para o mundo além das subjetividades envolvidas 14. O conteúdo utópico das relações interpessoais tem seu funda- mento na simples conversa, relação em que os interlocutores não se engajam primariamente em um objetivo instrumental, a qual Durão confere dignidade, ao comentar o texto de Jakobson, “Lingüística e Poética”. Ele ressalta o elemento de contato da linguagem, a “função fática”, e afirma que a conversa “define um tipo de troca onde o tópico ou o tema é flutuante, onde aquilo que me liga ao meu interlocutor é, simples e unicamente, o prazer de tê-lo à minha frente” 15. A dignidade do individual, do ôntico, em sua finitude e alteridade, é estabelecida, assim, na faculdade da linguagem, capaz de estabelecer e manter pontes com o outro, concreto e único. Não se deve esquecer, além disso, o elemento de prazer envolvido no exercício dessa faculdade. Esse elemento de prazer tem a ver com a experiência do reconhecimento da semelhança do “outro” – indivíduo, obra de arte, animal, coisa – com o sujeito. Essa dimensão mimética da experiência, desse modo, se faz notar como elemento fundamental tanto da ética quanto da estética. Durão, nesse sentido, em ressonância com Lévinas, chama a atenção para o elemento utópico da experiência da face, do rosto. Cito: Nossa capacidade de identificar caras, um ímpeto não-intencional e não-consciente, é talvez a prova maior da possibilidade concreta da utopia. O rosto faz humano (…) Desde Auschwitz, seu inimigo maior é o número. A felicidade reside no contrário, no aprendizado da leitura da face. O que é o amor senão a multiplicação dos rostos do ser amado? Quem ama está sempre vendo novas faces no outro, faces que no fundo quebram as amarras do indivíduo: de quem contempla, que se perde no rosto amado, e de quem é contemplado, cada vez com uma outra cara 16. Essa “possibilidade concreta da utopia” é o que cabe desdobrar como conceito a uma teoria atenta tanto ao particular individual e material quanto ao universal, à dinâmica social que lhe dá a lei e o insere numa ordem. A experiência do pensamento como alegria utópica

A referência a uma “teoria da alegria” 17, que me autorizo a interpretar como uma teoria alegre, faz eco aos dois autores que mencionei no início, Nietzsche e Adorno. Se, para o primeiro, a noção de uma “gaia ciência” 18 recebia o sentido de uma crítica da construção de mundos inteligíveis e da separação filosófica tradicional entre corpo e espírito (que desvalorizava o primeiro para melhor assegurar a dominação do último), em Adorno, a teoria, sobretudo a teoria moral, é tida como uma “triste ciência” 19, na medida em que “não há vida correta na falsa” 20, e que tanto pensamento quanto ação se vêm enredados na perpetuação da dominação social da natureza externa e interna. No entanto, para o autor da dialética negativa, resta ao pensamento a tarefa de determinar as condições de efetivação de uma “humanidade como utopia” 21.

Em Adorno, a “vida correta”, a arte autêntica e o pensamento forte se medem pela sua negatividade com relação ao estado de coisas existente, de super-exploração do trabalho e degradação da natureza, no capitalismo tardio. Durão recolhe a lição de Adorno, e sua escolha pelo fragmento é sinal disso: a “teoria da alegria” que persegue deve surgir do contato com os objetos, com a configuração de cultura e da sociabilidade no atual estádio histórico. O fragmento permite certa “lógica de sedimentação”, pois “os fragmentos devem dar boas vindas à insistência daquilo que, apesar de si próprios, se faz repetir” 22. O fragmento, recusando a lógica do sistema dedutivo, de premissa e conclusão, dá lugar à experiência do confronto do pensamento com o pensado, permitindo desenhar a figura de uma “utopia do saber”, afim à noção adorniana de “constelação”, que Durão descreve da seguinte maneira: Um bom conceito se deixa isolar apenas relutantemente, sob a pena de se oferecer como vítima. Aquilo que quer ter de único, de singular, aconteceria da sedimentação de seus contextos de ocorrência, que necessariamente deixam restos, parte de seu sentido para a qual permanecemos na maioria das vezes cegos 23.

Esse elemento fugidio do conceito, Durão o aborda por meio do que se poderia chamar de primazia da idéia em relação ao sujeito, à qual alude diversas vezes, ao dizer que “as idéias nos pensam” 24, que “as idéias nos possuem 25 ”, que, ao “caçador de idéias” intelectual, vale lembrar que “uma idéia não gostaria de ser caçada; ao invés, disso, preferia ser paparicada, cortejada, até mesmo às vezes esquecida para ser depois revisitada” 26. Mais adiante, ele aponta para a fragilidade do pensamento, ao se dar conta de que “é necessário acolhermos os pensamentos, pegá-los no colo e sermos doces com eles, ao invés de tentarmos ser mais fortes que eles” 27. Todas essas formulações sugerem a noção de uma necessidade de uma contínua auto-reflexão do pensamento a respeito de seus próprios pressupostos – mais uma afinidade com Nietzsche e Adorno, que denunciaram o caráter arbitrário e violento do sistema, mais afeito ao aumento da dominação sobre as coisas do que a uma relação verdadeira com sua não-identidade. Esse acolhimento da diferença do pensado em relação ao pensamento, Durão várias vezes o relaciona à idéia da necessidade de um corte no fluxo discursivo geral, num momento de silêncio da teoria. Uma fórmula resume essa concepção: “em silêncio, dar tempo para as coisas falarem” 28. Não se trata, porém, da busca do místico, que motivou um Wittgenstein, por exemplo. Trata-se de um difícil trabalho do sujeito, de encontrar e valorizar na experiência os “brancos” do discurso e da sobrecarga de sentido. Momentos tais como os sonhos diurnos, as conversas e os devaneios 29 – cujo potencial utópico foi valorizado por Ernst Bloch. Nesses blocos de experiência em que “para além de qualquer intenção individual ou consciência subjetiva” se expressa o anseio pelo inteiramente outro, o sujeito deve tentar encontrar a pulsão que ancore o pensamento, para além de todo sentido socialmente instaurado de felicidade, justiça e liberdade. Espero ter podido indicar, ao cabo, que há uma unidade que atravessa todos esses núcleos temáticos, e que tem a ver com algo extremamente difícil que o autor logra realizar, a meu ver: a articulação de uma tipologia contemporânea das dificuldades de se aceder a uma relação dialética (vale dizer, reflexiva e, ao mesmo tempo, interna, colada aos fenômenos) com o universo hiper-regulamentado da vida contemporânea, nos seus aspectos culturais, cognitivos e sociais. Ao fazer isso, penso que ele contribui para desfazer o equívoco, por um lado, de ver na teoria crítica da sociedade um mero exercício de pessimismo cultural, e, por outro, o engano daquelas “coleiras mentais” que, mais afeitas à administração da produção acadêmica do que à coisa mesma, ao exercício do pensamento, insistem em diferenciar entre autores e temas “sérios” daqueles pretensamente “não-filosóficos”. A estes, e a todos nós, o livro de Fábio Durão faz pensar e dá alento.

Notas

1 WEBER, Max. A ciência como vocação. In: Ciência e política: duas vocações. Trad. de Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1973, p. 43.

2 DURÃO, Fábio. Rio-Durham (NC)-Berlim: um diário de idéias. Campinas: Publicações IEL/UNICAMP (Coleção Work in progress), 2009, p. 16.

3 Idem, p. 32.

4 Idem, p; 34.

5 Idem, p. 46s.

6 Idem, p. 58s.

7 Durão, op. cit., p. 58.

8 Idem, p. 70.

9 Durão, op. cit., p. 27.

10 Idem, p. 45.

11 Durão, op. cit, p. 65.

12 Idem, p. 56.

13 Idem, p. 39s.

14 Durão, op. cit., p. 31s.

15 Idem, p. 69.

16 Idem, p. 34.

17 Durão, op. cit, p. 76.

18 NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Cf. especialmente o aforismo 1, p. 52s, sobre a valorização do ôntico, e o aforismo 324, p. 215, que fala da vida como experiência de alegria e conhecimento.

19 ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: reflexões a partir da vida danificada. Trad. de Luiz Bicca e revisão de Guido de Almeida. São Paulo: Ática, 1992, p. 7.

20 Idem, p. 33.

21 Idem, p.67.

22 Durão, op. cit., p. 33.

23 Idem, p. 42.

24 Idem, p. 44, 74.

25 Idem, p. 76.

26 Idem, p. 47.

27 Idem, p. 54.

28 Idem, p. 65

29 Idem, p. 62

Douglas Garcia Alves Júnior-Professor do Departamento de Filosofia da UFOP.

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