Impasses da democracia no Brasil – AVRITZER (NE-C)

AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. Resenha de: SZWAKO, José; SANTOS, Fabiano. Dos impasses aos desafios de reconstrução da democracia no Brasil. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, v. 35, n.3, Nov., 2016.

O contexto sociopolítico brasileiro pós-2013 colocou dilemas práticos e teóricos incontornáveis para nossas ciências sociais. Como chegamos até aqui? Quais atores, instituições e processos levaram ao impeachment da presidente Dilma Rousseff? Dispomos ainda de categorias e dimensões de análise adequadas à complexidade desse evento? A sucessão presidencial foi legítima? Foi, ao menos, legal? Olhando para trás, o encanto de parte dos analistas com os protestos de junho de 2013 virou perplexidade, quando não o triste pesadelo, de muitos: haveria, porém, continuidade entre 2013 e 2016? E, mirando-se adiante: quais são os reflexos do Regresso (para lembrar o opúsculo de Wanderley Guilherme dos Santos)1 encarnado no golpe parlamentar de agosto de 2016 em nossa prática política?

Como se vê,não são poucas as questões a serem urgentemente por nós encaradas e respondidas. É no rol desses dilemas que se inscreve Impasses da democracia no Brasil, de Leonardo Avritzer. Escrito no final de 2015, o livro traz a marca das tensões sociais e partidárias, expressas de modo mais evidente no ranço antipetista e antigovernista dos protestos massivos de março, abril e agosto daquele ano; “o governo da presidenta Dilma Rousseff passa por uma forte crise da qual não é possível saber se sobreviverá” (p.109) – como de fato não sobreviveu. Na pequena resenha que se segue,tentaremos tirar proveito do conhecimento prévio do evento.

O ar de análise de conjuntura do livro não faz dele menor porquanto conjuga em estilo acessível política e teoria política. Isto é, visa dar respostas teoricamente adequadas a questões da ordem do dia vis-à-vis alguns dos diagnósticos disponíveis sobre a qualidade da democracia brasileira, especialmente os elaborados por Paulo Arantes e Marcos Nobre,que tendem a enfatizar supostos déficits democráticos.

Impasses é crítico de feição frankfurtiana. Sua postura não se rende às páginas das sempre evocadas insuficiências, sejam elas institucionais ou culturais, brasileiras. Se nosso sistema político tem falhas, e Avritzer tem hipóteses robustas para mostrá-las, cabe ao analista completar sua crítica,quer dizer,fazer o diagnóstico das limitações do sistema vigente impreterivelmente seguido das fissuras e alternativas também por ele trazidas à baila. Destrinchado ao longo do livro, o diagnóstico se distribui em cinco elementos, quais sejam:

i) os limites do presidencialismo de coalizão, isto é, a deslegitimação da forma de fazer alianças, característica da democracia brasileira desde 1994; ii) os limites da participação popular na política, que tem crescido desde 1990 e é bem-vista pela população, mas não logra modificar sua relação com a representação; iii) os paradoxos do combate à corrupção, que avança e revela elementos dramáticos da privatização do setor público no país, os quais terminaram por deslegitimar ainda mais o sistema político; iv) as consequências da perda de status das camadas médias que passaram a estar mais próximas das camadas populares a partir do reordenamento social provocado pela queda de desigualdade; v) por fim, o novo papel do Poder Judiciário na política[p. 9].

Avritzer articula em pente-fino essas dimensões de seu diagnóstico somando,no terceiro capítulo,as causas e efeitos do ciclo de protestos de 2013.Sob risco de simplificar seu argumento,poderíamos dizer que a imbricação de uma dinâmica institucional de alianças (fundamentalmente ambivalente dado que virtuosa e custosa) com a percepção de corrupção (generalizada porém enviesada em desfavor do Partido dos Trabalhadores) opera no sentido de deslegitimar, aos olhos de uma classe média reconfigurada devido às políticas distributivas pós-2003, o sistema político como um todo, mas, mais danosamente, o próprio PT.Ao par presidencialismo de coalizão e corrupção,é somada uma análise da limitação das formas institucionais de participação, que,embora tenham deixado sua marca em parte das políticas sociais, não chegaram a permear áreas estratégicas do Estado brasileiro,levando a uma dupla “ruptura” (p. 66) no campo das mobilizações do país – à esquerda e,como se nota desde 2013,também à direita.Complexo, esse diagnóstico é complementado por uma saída de tom republicano: ampliar, aprofundar e tornar mais eficaz a participação popular – um pacote institucional que, como hipótese e potência, melhoraria tanto um suposto déficit de representação quanto o combate à corrupção. “Assim, a primeira agenda importante de um processo de reorganização do sistema político poderia ser uma extensão da participação social para a área de infraestrutura com o objetivo de democratizar essas obras e torná-las mais transparentes” (p. 121).

Três tópicos nos parecem centrais na argumentação contida no livro, a saber, o presidencialismo de coalizão, a herança de 2013 e os paradoxos resultantes da política de combate à corrupção dos três últimos mandatos democraticamente eleitos.

Sobre o presidencialismo de coalizão, parece-nos que Avritzer adota e reproduz uma definição mais ampla do conceito, definição que acaba por imputar a esse modelo institucional um grande conjunto de vícios do qual a política brasileira seria vítima. Falamos de definição mais ampla porque,em verdade,o termo presidencialismo de coalizão, numa visão mais restrita e, a nosso ver, mais precisa, tal como utilizado na literatura institucionalista stricto sensu, denota tão somente a conjugação da separação de poderes,característica do sistema presidencial, com o multipartidarismo, comumente derivado da adoção do sistema proporcional para o preenchimento das cadeiras no Legislativo.

Aqueles que criticam nosso modelo institucional, chamado de presidencialismo de coalizão, estabelecem uma espécie indevida de relação de causalidade entre a dinâmica de tal modelo e uma prática política que não só corrói os princípios, digamos, programáticos dos partidos que lideram a coalizão governamental como, no limite, compromete a legitimidade do sistema institucional em seu conjunto (ver p. 38 e seguintes). Ora, segundo nosso ponto de vista, e nisso seguindo análises mais recentes sobre o presidencialismo de coalizão,2 nada autorizaria, de uma perspectiva conceitual ou empírica, colocar na conta do modelo fenômenos políticos complexos e reconhecidamente ruins, tais como corrupção, descrença popular e profusão de escândalos aproveitados, e não raro produzidos, pela mídia.

Aqui é fundamental discernir dois elementos que são frequentemente sobrepostos na análise política:atores e instituições.Embora empiricamente e em todos os casos seja difícil identificar onde um ou outro esteja preponderando no desdobramento da conjuntura política, não se pode inferir a legitimidade ou eficiência das instituições a partir do uso que delas fazem os principais atores em cena. Em nossa avaliação, o exemplo brasileiro recente mostra exatamente isto: desde fins de 2014, a cada passo da conjuntura, e à medida que as crises econômica e social se aprofundavam, as cúpulas do PMDB e do PSDB se articulavam e se utilizavam das regras do jogo tendo em vista construir as condições ótimas para a consecução do golpe parlamentar que redundou no impeachment. Nada inerente ao desenho institucional brasileiro permitiria prever um comportamento desestabilizador assim assumido, desde o resultado das eleições daquele ano, por uma oposição até aquele momento leal à democracia e por lideranças de um partido até aquele momento parceiro na coalizão.

Rótulo alternativo para o que vem ocorrendo na política brasileira é amalgamado na ideia de uma suposta crise de representação. É inegável a existência de insatisfação de parte significativa das elites judiciárias, midiáticas, empresariais e de setores importantes das classes médias com os marcos centrais da democracia tal como consagrados na Constituição de 1988. Todavia, concomitantes à expressão de tais sentimentos, a ampliação e a pluralização da capacidade de representação externa ao Congresso,mas no interior do Estado brasileiro,têm sido ressaltadas em diversos trabalhos atinentes às interações Estado-sociedade.3 Se a inclusão de temas e atores da sociedade civil nos processos decisórios é alvo de crítica, como bem mostra Avritzer no livro, isso não infirma o diagnóstico – pouco conhecido, diga-se de passagem – de que as políticas públicas têm sido, desde a redemocratização,cada vez mais interpeladas e modificadas por organizações e movimentos sociais. Em suma, a agenda de pesquisa mais atual sobre os efeitos da institucionalização da participação denota não a limitação, mas antes a indagação sobre a efetividade das instituições participativas no Brasil.4

Enfim, e não obstante a riqueza da análise de Avritzer, entendemos que nada há de conclusivo, seja em torno do diagnóstico da corrosão institucional inerente ao presidencialismo de coalizão e por ele supostamente produzida, diagnóstico de resto conveniente a versões legitimadoras do golpe parlamentar, seja ainda no que tange à existência de uma crise de representação afetando o quadro político institucional brasileiro.

Outro tópico central no ensaio de Avritzer consiste no impacto do ciclo de protestos de 2013 sobre o processo político brasileiro. Quanto a esse tópico, parece-nos fundamental notar, primeiramente, que os significados e raízes da convulsão social experimentada em junho de 2013 ainda estão para ser descobertos e explicados. Nesse quesito, fatores sociais e institucionais, entre os quais destacaríamos a atuação dos agentes repressivos do aparelho de Estado, se misturam, dificultando um diagnóstico claro e consistente do perfil dos manifestantes e, portanto, da manifestação em jogo. A contribuição de Avritzer, aqui, caminha no sentido de mostrar como operou uma espécie de quebra do monopólio exercido pelas forças civis e políticas de esquerda sobre a mobilização de rua em nosso país. O desafio, em nossa visão, é explicitar claramente em que medida aquela profusão de bandeiras e vozes realmente se articula com os vetores recentes e regressivos assumidos pela política institucional. Nesse sentido, Impasses se torna de saída leitura incontornável para quem quiser entender, por exemplo, se e como se entrelaçam 2013, a acirrada disputa presidencial de 2014 e o triste episódio do golpe parlamentar.

Por último, e no que entendemos ser um dos pontos altos de Impasses, a questão do combate à corrupção e dos poderes a ele ligados. A citação é longa, mas necessária e algo premonitória:

A forma como no primeiro semestre de 2015 o Poder Judiciário colocou o Executivo na defensiva com práticas políticas questionáveis, como o vazamento seletivo de informações da Operação Lava-Jato e um abuso de prisões preventivas e de delações que têm como objetivo desestabilizar o campo político,mostra o perigo de uma solução para os impasses que não transite pelos poderes constituídos pelo voto popular [p. 116].

Tal intervenção, politizada e espúria, de agentes e instituições de controle, sejam ou não do Judiciário, frente a órgãos do Executivo e do Legislativo nos remete diretamente ao alerta imprescindível dado por Max Weber5 a seus contemporâneos da República de Weimar: ao funcionário público não cabe a disputa política nem a respectiva convicção. As alçadas do funcionário e do político profissional são distintas, assim como são distintas as responsabilidades estatuídas a cada posto. Que a política de seu país se tornasse refém da burocracia era um dos maiores temores de Weber – essa lição não pode ser hoje olvidada por aqueles que, como nós e Avritzer, entendem o potencial nefasto contido numa instância de poder que,em nome do combate à corrupção, atua de modo ilegal.

Ironicamente, se podemos falar de crise institucional de nosso modelo político, esta não emerge do presidencialismo de coalizão. A leitura de Impasses é mais uma confirmação,a nosso ver,de que graves distorções atingem o desenho mesmo de nossas instituições de controle, tal como inscrito na Constituição de 1988. Nesse particular, as recentes intervenções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE),por exemplo, nas regras eleitorais e partidárias, bem como os ataques seletiva e partidariamente orientados do Ministério Público contra lideranças políticas ressoam uma das mais famosas preocupações madisonianas: quem controla os controladores? A ingerência administrativa sobre a disputa política exige não só sua crítica teórica. Exige, antes, a ação política daquele que é, ao fim e a cabo, o principal afetado pela instabilidade do jogo democrático judicialmente instilada e também o único soberano desse mesmo jogo: a vontade popular. Nesse sentido, e aprofundando uma pista dada por Avritzer, dois caminhos necessários e convergentes para a pacificação do Judiciário e das instâncias de controle no Executivo são o aprofundamento de mecanismos de controle tanto institucionalizados como externos às instituições.

A despeito das eventuais discordâncias interpretativas, Impasses se coloca como obra seminal nos projetos de reconstrução da democracia brasileira. A tarefa não será fácil, como não foi fácil a redemocratização consagrada na Carta de 1988. O primeiro desafio, certamente, passa pela responsabilização dos atores que desestabilizaram e usurparam a dinâmica democrática até aqui conquistada. No plano da disputa político-institucional, máscaras de atores que defendem um liberalismo douto requentado, quando não somente neoliberal, deverão ser reconhecidas enquanto tais.Já no plano da cultura política, o fenômeno é ainda mais complexo: o crescente fascismo das classes médias, alimentado não somente pela crise econômica mas também pelo Judiciário e por mídias hegemônicas, é realidade que julgamos imprescindível conhecer e combater. Em verdade, não é outra a questão maior que atravessa, além e aquém de Impasses, toda a obra de Leonardo Avritzer: a cultura política brasileira e sua contribuição para nossa história democrática – ou ainda democrática.

Referências

AVRITZER, Leonardo; Souza, Clóvis (Org.). Conferências nacionais: atores, dinâmicas participativas e efetividade. Brasília: Ipea, 2013. [ Links ]

FREITAS, Andréa. O presidencialismo da coalizão. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2016. [ Links ]

GURZA LAVALLE, Adrian; Szwako, José. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, v. 21, n. 1, pp. 157-187, 2015. [ Links ]

PIRES, Roberto (Org.). Efetividade das instituições participativas no Brasil: estratégias de avaliação. Brasília: Ipea , 2011. [ Links ]

POGREBINSCHI, Thamy; Santos, Fabiano. “Participação como representação: o impacto das conferências nacionais de políticas públicas no Congresso Nacional”. Dados, v. 54, n. 3, pp. 259-305, 2011. [ Links ]

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Regresso: máscaras institucionais do liberalismo oligárquico. Rio de Janeiro: Opera Nostra, 1994. [ Links ]

WEBER, Max. Parlamento e governo na Alemanha reordenada: crítica política do funcionalismo e da natureza dos partidos. Petrópolis: Vozes, 1993. [ Links ]

Notas

1 Santos, 1994.

2 Freitas, 2016.

3 Ver, entre outros, Pogrebinschi e Santos, 2011.; Avritzer e Souza, 2013Gurza Lavalle e Szwako, 2015.

4 Ver Pires, 2011.

5 Weber, 1993.

José Szwako – Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Fabiano Santos- Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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