Impasses da democracia no Brasil – AVRITZER (NE-C)

AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. Resenha de: SZWAKO, José; SANTOS, Fabiano. Dos impasses aos desafios de reconstrução da democracia no Brasil. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, v. 35, n.3, Nov., 2016.

O contexto sociopolítico brasileiro pós-2013 colocou dilemas práticos e teóricos incontornáveis para nossas ciências sociais. Como chegamos até aqui? Quais atores, instituições e processos levaram ao impeachment da presidente Dilma Rousseff? Dispomos ainda de categorias e dimensões de análise adequadas à complexidade desse evento? A sucessão presidencial foi legítima? Foi, ao menos, legal? Olhando para trás, o encanto de parte dos analistas com os protestos de junho de 2013 virou perplexidade, quando não o triste pesadelo, de muitos: haveria, porém, continuidade entre 2013 e 2016? E, mirando-se adiante: quais são os reflexos do Regresso (para lembrar o opúsculo de Wanderley Guilherme dos Santos)1 encarnado no golpe parlamentar de agosto de 2016 em nossa prática política?

Como se vê,não são poucas as questões a serem urgentemente por nós encaradas e respondidas. É no rol desses dilemas que se inscreve Impasses da democracia no Brasil, de Leonardo Avritzer. Escrito no final de 2015, o livro traz a marca das tensões sociais e partidárias, expressas de modo mais evidente no ranço antipetista e antigovernista dos protestos massivos de março, abril e agosto daquele ano; “o governo da presidenta Dilma Rousseff passa por uma forte crise da qual não é possível saber se sobreviverá” (p.109) – como de fato não sobreviveu. Na pequena resenha que se segue,tentaremos tirar proveito do conhecimento prévio do evento.

O ar de análise de conjuntura do livro não faz dele menor porquanto conjuga em estilo acessível política e teoria política. Isto é, visa dar respostas teoricamente adequadas a questões da ordem do dia vis-à-vis alguns dos diagnósticos disponíveis sobre a qualidade da democracia brasileira, especialmente os elaborados por Paulo Arantes e Marcos Nobre,que tendem a enfatizar supostos déficits democráticos.

Impasses é crítico de feição frankfurtiana. Sua postura não se rende às páginas das sempre evocadas insuficiências, sejam elas institucionais ou culturais, brasileiras. Se nosso sistema político tem falhas, e Avritzer tem hipóteses robustas para mostrá-las, cabe ao analista completar sua crítica,quer dizer,fazer o diagnóstico das limitações do sistema vigente impreterivelmente seguido das fissuras e alternativas também por ele trazidas à baila. Destrinchado ao longo do livro, o diagnóstico se distribui em cinco elementos, quais sejam:

i) os limites do presidencialismo de coalizão, isto é, a deslegitimação da forma de fazer alianças, característica da democracia brasileira desde 1994; ii) os limites da participação popular na política, que tem crescido desde 1990 e é bem-vista pela população, mas não logra modificar sua relação com a representação; iii) os paradoxos do combate à corrupção, que avança e revela elementos dramáticos da privatização do setor público no país, os quais terminaram por deslegitimar ainda mais o sistema político; iv) as consequências da perda de status das camadas médias que passaram a estar mais próximas das camadas populares a partir do reordenamento social provocado pela queda de desigualdade; v) por fim, o novo papel do Poder Judiciário na política[p. 9].

Avritzer articula em pente-fino essas dimensões de seu diagnóstico somando,no terceiro capítulo,as causas e efeitos do ciclo de protestos de 2013.Sob risco de simplificar seu argumento,poderíamos dizer que a imbricação de uma dinâmica institucional de alianças (fundamentalmente ambivalente dado que virtuosa e custosa) com a percepção de corrupção (generalizada porém enviesada em desfavor do Partido dos Trabalhadores) opera no sentido de deslegitimar, aos olhos de uma classe média reconfigurada devido às políticas distributivas pós-2003, o sistema político como um todo, mas, mais danosamente, o próprio PT.Ao par presidencialismo de coalizão e corrupção,é somada uma análise da limitação das formas institucionais de participação, que,embora tenham deixado sua marca em parte das políticas sociais, não chegaram a permear áreas estratégicas do Estado brasileiro,levando a uma dupla “ruptura” (p. 66) no campo das mobilizações do país – à esquerda e,como se nota desde 2013,também à direita.Complexo, esse diagnóstico é complementado por uma saída de tom republicano: ampliar, aprofundar e tornar mais eficaz a participação popular – um pacote institucional que, como hipótese e potência, melhoraria tanto um suposto déficit de representação quanto o combate à corrupção. “Assim, a primeira agenda importante de um processo de reorganização do sistema político poderia ser uma extensão da participação social para a área de infraestrutura com o objetivo de democratizar essas obras e torná-las mais transparentes” (p. 121).

Três tópicos nos parecem centrais na argumentação contida no livro, a saber, o presidencialismo de coalizão, a herança de 2013 e os paradoxos resultantes da política de combate à corrupção dos três últimos mandatos democraticamente eleitos.

Sobre o presidencialismo de coalizão, parece-nos que Avritzer adota e reproduz uma definição mais ampla do conceito, definição que acaba por imputar a esse modelo institucional um grande conjunto de vícios do qual a política brasileira seria vítima. Falamos de definição mais ampla porque,em verdade,o termo presidencialismo de coalizão, numa visão mais restrita e, a nosso ver, mais precisa, tal como utilizado na literatura institucionalista stricto sensu, denota tão somente a conjugação da separação de poderes,característica do sistema presidencial, com o multipartidarismo, comumente derivado da adoção do sistema proporcional para o preenchimento das cadeiras no Legislativo.

Aqueles que criticam nosso modelo institucional, chamado de presidencialismo de coalizão, estabelecem uma espécie indevida de relação de causalidade entre a dinâmica de tal modelo e uma prática política que não só corrói os princípios, digamos, programáticos dos partidos que lideram a coalizão governamental como, no limite, compromete a legitimidade do sistema institucional em seu conjunto (ver p. 38 e seguintes). Ora, segundo nosso ponto de vista, e nisso seguindo análises mais recentes sobre o presidencialismo de coalizão,2 nada autorizaria, de uma perspectiva conceitual ou empírica, colocar na conta do modelo fenômenos políticos complexos e reconhecidamente ruins, tais como corrupção, descrença popular e profusão de escândalos aproveitados, e não raro produzidos, pela mídia.

Aqui é fundamental discernir dois elementos que são frequentemente sobrepostos na análise política:atores e instituições.Embora empiricamente e em todos os casos seja difícil identificar onde um ou outro esteja preponderando no desdobramento da conjuntura política, não se pode inferir a legitimidade ou eficiência das instituições a partir do uso que delas fazem os principais atores em cena. Em nossa avaliação, o exemplo brasileiro recente mostra exatamente isto: desde fins de 2014, a cada passo da conjuntura, e à medida que as crises econômica e social se aprofundavam, as cúpulas do PMDB e do PSDB se articulavam e se utilizavam das regras do jogo tendo em vista construir as condições ótimas para a consecução do golpe parlamentar que redundou no impeachment. Nada inerente ao desenho institucional brasileiro permitiria prever um comportamento desestabilizador assim assumido, desde o resultado das eleições daquele ano, por uma oposição até aquele momento leal à democracia e por lideranças de um partido até aquele momento parceiro na coalizão.

Rótulo alternativo para o que vem ocorrendo na política brasileira é amalgamado na ideia de uma suposta crise de representação. É inegável a existência de insatisfação de parte significativa das elites judiciárias, midiáticas, empresariais e de setores importantes das classes médias com os marcos centrais da democracia tal como consagrados na Constituição de 1988. Todavia, concomitantes à expressão de tais sentimentos, a ampliação e a pluralização da capacidade de representação externa ao Congresso,mas no interior do Estado brasileiro,têm sido ressaltadas em diversos trabalhos atinentes às interações Estado-sociedade.3 Se a inclusão de temas e atores da sociedade civil nos processos decisórios é alvo de crítica, como bem mostra Avritzer no livro, isso não infirma o diagnóstico – pouco conhecido, diga-se de passagem – de que as políticas públicas têm sido, desde a redemocratização,cada vez mais interpeladas e modificadas por organizações e movimentos sociais. Em suma, a agenda de pesquisa mais atual sobre os efeitos da institucionalização da participação denota não a limitação, mas antes a indagação sobre a efetividade das instituições participativas no Brasil.4

Enfim, e não obstante a riqueza da análise de Avritzer, entendemos que nada há de conclusivo, seja em torno do diagnóstico da corrosão institucional inerente ao presidencialismo de coalizão e por ele supostamente produzida, diagnóstico de resto conveniente a versões legitimadoras do golpe parlamentar, seja ainda no que tange à existência de uma crise de representação afetando o quadro político institucional brasileiro.

Outro tópico central no ensaio de Avritzer consiste no impacto do ciclo de protestos de 2013 sobre o processo político brasileiro. Quanto a esse tópico, parece-nos fundamental notar, primeiramente, que os significados e raízes da convulsão social experimentada em junho de 2013 ainda estão para ser descobertos e explicados. Nesse quesito, fatores sociais e institucionais, entre os quais destacaríamos a atuação dos agentes repressivos do aparelho de Estado, se misturam, dificultando um diagnóstico claro e consistente do perfil dos manifestantes e, portanto, da manifestação em jogo. A contribuição de Avritzer, aqui, caminha no sentido de mostrar como operou uma espécie de quebra do monopólio exercido pelas forças civis e políticas de esquerda sobre a mobilização de rua em nosso país. O desafio, em nossa visão, é explicitar claramente em que medida aquela profusão de bandeiras e vozes realmente se articula com os vetores recentes e regressivos assumidos pela política institucional. Nesse sentido, Impasses se torna de saída leitura incontornável para quem quiser entender, por exemplo, se e como se entrelaçam 2013, a acirrada disputa presidencial de 2014 e o triste episódio do golpe parlamentar.

Por último, e no que entendemos ser um dos pontos altos de Impasses, a questão do combate à corrupção e dos poderes a ele ligados. A citação é longa, mas necessária e algo premonitória:

A forma como no primeiro semestre de 2015 o Poder Judiciário colocou o Executivo na defensiva com práticas políticas questionáveis, como o vazamento seletivo de informações da Operação Lava-Jato e um abuso de prisões preventivas e de delações que têm como objetivo desestabilizar o campo político,mostra o perigo de uma solução para os impasses que não transite pelos poderes constituídos pelo voto popular [p. 116].

Tal intervenção, politizada e espúria, de agentes e instituições de controle, sejam ou não do Judiciário, frente a órgãos do Executivo e do Legislativo nos remete diretamente ao alerta imprescindível dado por Max Weber5 a seus contemporâneos da República de Weimar: ao funcionário público não cabe a disputa política nem a respectiva convicção. As alçadas do funcionário e do político profissional são distintas, assim como são distintas as responsabilidades estatuídas a cada posto. Que a política de seu país se tornasse refém da burocracia era um dos maiores temores de Weber – essa lição não pode ser hoje olvidada por aqueles que, como nós e Avritzer, entendem o potencial nefasto contido numa instância de poder que,em nome do combate à corrupção, atua de modo ilegal.

Ironicamente, se podemos falar de crise institucional de nosso modelo político, esta não emerge do presidencialismo de coalizão. A leitura de Impasses é mais uma confirmação,a nosso ver,de que graves distorções atingem o desenho mesmo de nossas instituições de controle, tal como inscrito na Constituição de 1988. Nesse particular, as recentes intervenções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE),por exemplo, nas regras eleitorais e partidárias, bem como os ataques seletiva e partidariamente orientados do Ministério Público contra lideranças políticas ressoam uma das mais famosas preocupações madisonianas: quem controla os controladores? A ingerência administrativa sobre a disputa política exige não só sua crítica teórica. Exige, antes, a ação política daquele que é, ao fim e a cabo, o principal afetado pela instabilidade do jogo democrático judicialmente instilada e também o único soberano desse mesmo jogo: a vontade popular. Nesse sentido, e aprofundando uma pista dada por Avritzer, dois caminhos necessários e convergentes para a pacificação do Judiciário e das instâncias de controle no Executivo são o aprofundamento de mecanismos de controle tanto institucionalizados como externos às instituições.

A despeito das eventuais discordâncias interpretativas, Impasses se coloca como obra seminal nos projetos de reconstrução da democracia brasileira. A tarefa não será fácil, como não foi fácil a redemocratização consagrada na Carta de 1988. O primeiro desafio, certamente, passa pela responsabilização dos atores que desestabilizaram e usurparam a dinâmica democrática até aqui conquistada. No plano da disputa político-institucional, máscaras de atores que defendem um liberalismo douto requentado, quando não somente neoliberal, deverão ser reconhecidas enquanto tais.Já no plano da cultura política, o fenômeno é ainda mais complexo: o crescente fascismo das classes médias, alimentado não somente pela crise econômica mas também pelo Judiciário e por mídias hegemônicas, é realidade que julgamos imprescindível conhecer e combater. Em verdade, não é outra a questão maior que atravessa, além e aquém de Impasses, toda a obra de Leonardo Avritzer: a cultura política brasileira e sua contribuição para nossa história democrática – ou ainda democrática.

Referências

AVRITZER, Leonardo; Souza, Clóvis (Org.). Conferências nacionais: atores, dinâmicas participativas e efetividade. Brasília: Ipea, 2013. [ Links ]

FREITAS, Andréa. O presidencialismo da coalizão. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2016. [ Links ]

GURZA LAVALLE, Adrian; Szwako, José. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, v. 21, n. 1, pp. 157-187, 2015. [ Links ]

PIRES, Roberto (Org.). Efetividade das instituições participativas no Brasil: estratégias de avaliação. Brasília: Ipea , 2011. [ Links ]

POGREBINSCHI, Thamy; Santos, Fabiano. “Participação como representação: o impacto das conferências nacionais de políticas públicas no Congresso Nacional”. Dados, v. 54, n. 3, pp. 259-305, 2011. [ Links ]

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Regresso: máscaras institucionais do liberalismo oligárquico. Rio de Janeiro: Opera Nostra, 1994. [ Links ]

WEBER, Max. Parlamento e governo na Alemanha reordenada: crítica política do funcionalismo e da natureza dos partidos. Petrópolis: Vozes, 1993. [ Links ]

Notas

1 Santos, 1994.

2 Freitas, 2016.

3 Ver, entre outros, Pogrebinschi e Santos, 2011.; Avritzer e Souza, 2013Gurza Lavalle e Szwako, 2015.

4 Ver Pires, 2011.

5 Weber, 1993.

José Szwako – Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Fabiano Santos- Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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Metafísicas Canibais-CASTRO-(NE-C)

CASTRO, Eduardo Viveiros de. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosacnaifty, 2015. Resenha de: PIMENTA, Pedro Paulo. A permanência da metafísica, pelas lentes de um antropólogo. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, v. 35, n.1, Mar, 2016

Desde sua publicação em meados de 2015, o livro de Eduardo Viveiros de Castro vem sendo comemorado por parte significativa da comunidade antropológica brasileira, e por boas razões. Trata-se de mais uma contribuição desse etnólogo à reflexão sobre o estatuto, o papel e a dimensão da antropologia como ciência social que não hesita em assumir também uma dimensão filosófica-vocação essa que muitos, inclusive este resenhista, consideram inerente a ela. É natural, portanto,que também os filósofos se posicionem diante do livro,de preferência sem aderir de antemão ao projeto em que ele se insere ou tampouco rechaçá-lo (só porque esse projeto se imiscui,sem pedir muita licença, nos domínios da filosofia).Desde o título,acertado e provocativo,este Metafísicas canibais tem tudo para alienar uma parcela do mundo acadêmico e cultural pouco afeita a irreverências com a filosofia (há uma razão para isso: volta e meia, ela é constrangida a se explicar, e mesmo a justificar a própria existência – por que filosofia? Por que filósofo? Pergunta que volta e meia se põe, como observava Rubens Rodrigues Torres Filho nos idos de 1974). O leque de referências filosóficas abertamente mobilizadas por Viveiros de Castro, que relê a antropologia estrutural de Lévi-Strauss pelo crivo de Deleuze e Guattari, constitui outro fator, se não alienante, certamente divisor, dada a paixão com que o pensamento destes últimos, atualmente divulgado à exaustão no Brasil, é aceito/rejeitado por leitores que por ele se interessam (num fenômeno similar ao que ocorre com Foucault).Mas, se é verdade que não se pode julgar o livro pelo título, e muito menos pela bibliografia, então não resta dúvida de que a chegada da obra em língua portuguesa (o texto de base surgiu na França em 2009) deve ser comemorada como uma boa-nova, pois não há dúvida de que Viveiros de Castro merece ser lido por todos aqueles que tomam a peito a filosofia e que, nessa condição, certamente receberão a obra criticamente – atitude que, se não me engano, ela mesma reclama de seu leitor.

A primeira coisa que observo é que Metafísicas canibais é um livro original não somente pelas teses que expõe, ou, melhor dizendo, que costura,como também pelo modo como as enuncia.O estilo de Viveiros de Castro é vivamente coloquial,sem nunca se tornar prosaico.O tom de sua voz,pessoal desde as primeiras páginas,não raro inusitadamente confessional, põe o leitor em contato direto com a inteligência do autor, marcada pelo raciocínio rápido, a virada engenhosa, o arremate inesperado, a ironia por vezes sarcástica, nunca desmesurada. Tudo isso, percebe-se logo, é estritamente necessário para a encenação de um balé arriscado, em que a antropologia estrutural e a filosofia contemporânea são os protagonistas. Seria impreciso referir-se à relação entre elas,tal como concebida por Viveiros de Castro,como um diálogo ou interlocução – situação demasiadamente relacionada ao logos que o autor quer descentrar.Trata-se antes de choque,fricção,desencontro, conflito e outras situações próximas do desacerto e da incompreensão, estratégia que as hábeis mãos do encenador julgam a mais conveniente para alargar as perspectivas da filosofia ao mesmo tempo que reforça a posição da antropologia como ciência com ambições filosóficas. Um clima de tensão, que resulta dessa abordagem, perpassa as páginas do livro e garante – o que não é pouco, em se tratando de uma obra com elevadas pretensões teóricas e extensas digressões conceituais-queo interesse do leitor se mantenha o mesmo,do início ao fim.

Uma das evidências de que estamos diante de um discípulo autêntico e original de Lévi-Strauss é a adoção por Viveiros de Castro de um viés bem determinado,que pauta os diferentes estudos que compõem este Metafísicas canibais, e que poderíamos descrever como um pendor, que se mostra, nas mais densas análises teóricas, para conclusões com consequências vultosas. Efeito notável, que infunde o texto com a promessa de que, atravessadas as páginas mais áridas de teoria propriamente dita, chegar-se-á por fim a um resultado de monta, que diz respeito a muito mais do que a teoria mesma que levou a ele. No caso de Lévi-Strauss,a dissolução da filosofia na etnologia,movimento coerente,que as Mitológicas finalmente executam,com as indicações e esquemas legados ao estruturalismo por Rousseau; no caso de Viveiros de Castro,a absorção mútua de certa filosofia (a de Deleuze e Guattari, mas também a de um Latour) e da única antropologia que no fundo lhe importa,justamente essa que Lévi-Strauss inventou,ao levar a sério as injunções lançadas por Rousseau à razão ocidental.Aqui e ali,trata-se em alguma medida da reforma (ou mesmo da sorte) de um saber ancestral,que,como se sabe,se encontra em plena crise desde o início do século XIX:a própria filosofia.A exemplo de Lévi-Strauss,Viveiros de Castro saboreia a ironia de que justamente um herdeiro dessa mesma filosofia – o antropólogo, logo ele, filho da Ilustração – venha a propor algo como uma reformulação da metafísica, essa “ciência” há muito combalida e desacreditada, porém resistente. É uma ideia irônica, mas que nenhum deles considera despropositada. Com efeito, a filosofia se encontra, tanto para Viveiros de Castro quanto para Lévi-Strauss,no banco dos réus – ou,melhor seria dizer,no leito de morte, tendo caducado em virtude de suas próprias deficiências e limitações (basicamente de perspectiva) e da arrogância que por séculos a fio a levou a ignorá-las. Daí a aliança com Deleuze e Guattari, que se inscrevem num horizonte de reflexão pós-metafísica. É o pano de fundo a partir do qual desponta o conceito central de toda a obra de Viveiros de Castro,ou pelo menos deste livro e do que o precedeu, A inconstância da alma selvagem: o perspectivismo. Um modo de simplificar ao extremo e mesmo banalizar Metafísicas canibais seria dizer que é uma obra de fundamentação filosófico-antropológica do perspectivismo, com vistas a assentar essa nova teoria no centro das reflexões teóricas e métodos de estudo, em campo e no gabinete, adotados pelos estudiosos simpáticos à antropologia estrutural. E mais. Uma vez adotado esse programa, sugere-se, a nova antropologia não somente prescindirá dos serviços dos antigos funcionários do logos como poderá reclamar para si as prerrogativas que um dia couberam a estes, desde Platão. Em suma, teríamos uma ciência que faz algo de fato singular: propõe uma visão de mundo,completa e abrangente.E o faz num movimento dos mais interessantes: a morte da filosofia como evento que traz o renascimento da metafísica, no seio da antropologia.

Sabiamente,o autor se recusa a rebaixar sua empreitada a um inquérito, como se a “história da filosofia” pudesse ser acessada, de repente, sem mais, a partir de um ponto de vista exterior que reduzisse a quase nada as aventuras da razão (e não só dela: entre suas acompanhantes, não esqueçamos aqui a imaginação, tão louvada pelos filósofos que entreviram o advento do saber etnológico).A insuficiência da filosofia,tal como diagnosticada pelo pós-estruturalismo(se me permitem o termo), não será identificada por nenhuma leitura rápida,com nenhum recurso aos antigos manuais que nos brindavam com a triunfante marcha da razão rumo a sua efetivação completa.Ao contrário,e pode-se dizer que quanto a isso Viveiros de Castro se coloca mesmo numa posição privilegiada,em relação àquela de Lévi-Strauss. Enquanto este,em meio a rompantes contra os filósofos,não conseguiu jamais apagar a impressão de que no fundo era um deles (e dos mais raros:um discípulo de Rousseau, talvez o único depois de Kant), nosso autor se dirige à filosofia como quem busca por uma aliada,ciente de que o título desse saber,e daquele que o pratica (filósofo), é um nome geral que recobre muitas ideias particulares, cada uma delas com suas nuances e sutilezas, algumas mais próximas de seus propósitos, outras que, de tão alheias a eles, podem simplesmente ser ignoradas. É uma estratégia inteligente, que contribui muito para o vigor dos argumentos expostos. (E representa um passo importante em relação a A inconstância da alma selvagem, onde o peremptório acerto de contas com alguns clássicos da filosofia era feito com um misto de má vontade e simplificação – Hume um herdeiro da reforma luterana,Kant,obscuro,porém conveniente etc.)

Para compreender Metafísicas canibais e saboreá-lo não é preciso,porém,concordar com esse diagnóstico,apenas embarcar com o autor em sua aventura intelectual, sem necessariamente se comprometer com ela (em sã consciência,ninguém lê Descartes ou Hegel em busca da verdade,mas,via de regra,porque são autores interessantes).É então que surge a questão de saber que sentimentos o livro estaria apto a despertar num leitor oriundo da filosofia que se interessa pela exposição como testemunho de uma vigorosa empreitada intelectual. Tudo depende, é claro, da formação de cada um, de suas leituras, dos filósofos que se está acostumado a frequentar,por assim dizer.Os leitores acostumados à filosofia surgida na França em fins dos anos 1950 não terão dificuldade em extrair muito proveito das páginas de Viveiros de Castro,pois é efetivamente com essa tradição que ele dialoga, inclusive no terreno da antropologia – se pensarmos que em 1966 Foucault encerra As palavras e as coisas saudando a etnologia de Lévi-Strauss como uma das formas legítimas do saber filosófico de nosso tempo (pois o tempo de então é também,em larga medida,o nosso).Mas é claro que nem todos os filósofos são herdeiros de Foucault. E questões inusitadas podem surgir,a partir de uma posição mais distante em relação a tudo isso.

Por exemplo, um leitor de Kant (como este resenhista) poderia observar, já no próprio título do livro, a filiação do projeto de Viveiros de Castro a uma tradição especificamente moderna, que consiste na elevação, a objeto de reflexão filosófica, de um tema raramente estudado antes do século XVIII,e em todo caso tido como de importância marginal: acuriosa permanência da metafísica, a despeito de todos os ataques e contestações sofridos por essa pretensa ciência – ou por esse saber,se quisermos simplificar as coisas.É um tema fascinante:outrora “rainha de todas as ciências”,ela se vê contestada,declara a Crítica da razão pura, por todas as partes. Mas mesmo os céticos, que a rechaçam com mais contundência, concedem a ela algum valor, que seja relativo à configuração específica da razão humana, e logo lhe concedem uma perenidade. É claro que o título cunhado por Viveiros de Castro tem um forte sabor irônico, mas nem por isso é menos sério. Em suas lições no Collège de France,Lévi-Strauss advertia:o canibalismo,estritamente falando,não existe como instituição social. O que seriam então essas “metafísicas canibais”? Precisamente isto, eu arrisco dizer: sistemas de leitura e interpretação, que surgem não da cogitação do indivíduo a respeito do mundo, mas do lugar mesmo que ele ocupa em relação a outros indivíduos, na trama das relações que perfazem isso que por conveniência se chama de mundo, natureza, totalidade, cosmos, gaia etc. Muito se discutiu, na época moderna, acerca dos limites da razão e da possibilidade ou impossibilidade da metafísica como ciência;mas,como alerta Kant, haverá metafísica enquanto houver relação e enquanto essas relações forem concomitantes a ações – ou seja, haverá metafísica enquanto houver seres (não necessariamente humanos) que atuam em consequência de necessidades sentidas, sejam elas transcendentais (Kant), sejam empíricas (Condillac, Rousseau). A esse respeito, cabe lembrar a lição de Lebrun,intérprete de Kant:pode-se esperar pelo fim da metafísica comociência,mas seria uma grande tolice aguardar por sua dissolução como instinto próprio,resultante do fato de que o homem é uma espécie de animal que cogita e pensa abstratamente;logo,sempre haverá uma metafísica, como presença surda e incontornável na constituição de todo e qualquer pensamento ou saber positivo – seja ele abstrato ou civilizado, seja concreto ou selvagem (Lévi-Strauss), seja ainda, como sugere Viveiros de Castro (na trilha de um Iluminismo expandido),animal,vegetal,pós-humano etc.Não custa muito,assim, à antropologia estrutural reiterar algo que o século xviii apenas esboçara: a equivalência entre esses múltiplos sistemas, quanto ao valor da interpretação que eles sugerem (e cada um deles sugere sua própria interpretação como única, verdadeira e necessária, ainda que restrita a um só evento ou fenômeno: logo, como relativa a quem interpreta). Que se afirme a existência de classes reais na natureza;que estas sejam reduzidas a uma síntese da imaginação,que sejam elevadas a princípios transcendentais, dissolvidas e anuladas pela perspectiva de um indivíduo qualquer – em todo caso,articula-se uma visada sobre indivíduos e relações, e é prudente deixar em suspenso qual delas deve ter prioridade ou se seriam mesmo excludentes.

Com isso, Metafísicas canibais reforça o convite, que já fora feito indiretamente pelo autor em A inconstância da alma selvagem e diretamente em conferências (que eu saiba,não publicadas por escrito) para que os filósofos sejam lidos do mesmo modo como quem se encontra diante da enunciação de uma concepção de mundo essencialmente alheia ao senso comum (teórico ou não) de cada um – experiência com que o etnógrafo/etnólogo se depara o tempo inteiro, se estiver aberto ao que a experiência, direta ou indireta, tem a lhe oferecer. Assim como seria uma perda de tempo deslocar-se até o Alto Xingu ou a Itanhaém apenas para reforçar o que os manuais de outrora e de hoje dizem sobre “povos primitivos”, de que valeria abrir as páginas de um Espinosa ou de um Aristóteles, se é apenas para confirmar o que cada um tem na cabeça e toma como verdades intocáveis a respeito do que é relevante ou não para o atual debate filosófico? É preciso conceder a um filósofo que parece falar e pensar como nós, e que parecemos compreender, a possibilidade de que aquilo que ele diz seja uma articulação estranha, de verdades cujasimplicações nos escapam, que, para ser compreendidas, exigiriam realmente algo como um descentramento de nossa razão, uma abertura tal que levasse a considerar cada sistema filosófico como a expressão de uma singularidade completa quanto ao modo de pensar.É preciso,em suma, que a ideia de uma razão ocidental seja posta em suspenso, para que a filosofia associada a essa alcunha venha a ressurgir em todo o seu esplendor e riqueza. Aceita essa premissa, na verdade bastante sensata, e silenciosamente em operação na melhor historiografia filosófica (como a de um Deleuze ou de um Lebrun, como nas leituras de um Foucault), fica difícil falar, sem mais, em logos e em razão ocidental. Por mais que os filósofos da tradição compartilhem de certos pressupostos,seriam estes suficientes,como se costuma pensar,para sustentar a unidade dessa entidade rarefeita,a razão ocidental,diante do peso e da força das singularidades de cada um? Pensamento selvagem ou pensamentos selvagens? Daí a pertinência do título escolhido por Viveiros de Castro, que fala em metafísicas, não em metafísica: se é verdade que esta morreu,com a revolução kantiana ou com a Revolução Francesa,pouco importa aqui,sua posteridade é igualmente irrecusável.Encontram-se metafísicas por toda parte – das ciências da natureza às da linguagem, da medicina à economia,da história à política e,é claro,em toda filosofia que se preze (mesmo nas pós-metafísicas, que pretendem atravessar a antiga ciência).Com as ciências humanas não é diferente,e uma lição silenciosa de Metafísicas canibais é esta: basta que se ignore ou, pior, se faça pouco da presença de uma metafísica num saber positivo qualquer para que este adquira, inadvertidamente, as feições de uma metafísica única, centralizada, pronta para suprimir a pluralidade de saberes, possíveis e existentes, às voltas com as condições de possibilidade de sua efetivação como saberes.

A sugestão que se depreende da leitura de Viveiros de Castro para a compreensão da reflexão filosófica em relação com a historicidade da própria filosofia é tão mais pertinente quando se pensa que o próprio Deleuze, cuja obra perpassa as páginas desse livro, foi antes de tudo um exímio leitor de Hume (1953), Nietzsche (1962), Kant (1963), Espinosa (1968) e Leibniz (1986). Essa série de livros pode inclusive ser vista como uma espécie de mitologia filosófica do autor, teia de referências sobre a qual repousa sua própria reflexão – ela mesma,mais um capítulo das mitológicas filosóficas que vislumbrei aqui, a partir de Metafísicas canibais. Em vista disso, uma frustração que o leitor de cabeça filosófica poderá eventualmente experimentar ao percorrer as páginas de Metafísicas canibais é a relutância mostrada pelo autor sempre que tem diante de si a possibilidade de explorar as sendas percorridas por Deleuze em sua historiografia (indissociável de sua filosofia). É o caso, por exemplo, de uma sugestão feita por Viveiros de Castro, porém não explorada, de que o perspectivismo teria afinidades com a monadologia de Leibniz. Parece indubitável que, se uma abertura como essa fosse aproveitada, o livro seria bastante diferente, embora não necessariamente melhor. Em todo caso, fica a tentação de pensar o que seria esse outro livro, que um leitor entusiasmado de Leibniz (ou de Borges) poderia inclusive supor como realmente existente – correlato metafísico, determinação complementar da mônada que é o Metafísicas canibais que temos diante de nós. (Seria esse livro aquele a que o autor se refere nas páginas iniciais – o anti-Narciso?) A etnologia de Viveiros de Castro,ousada e sugestiva, deixa assim no leitor a impressão de ser um pensamento que se estrutura à maneira do organismo leibniziano – totalidade encerrada em si mesma, máquina vital cujas partes remetem a determinações infinitas de uma substância una (cujo equivalente, no plano da exegese crítica, seria a tradição antropológico-filosófica, em constante evolução, que serve de pano de fundo ao autor).

Como toda mônada,essa se encerra em si mesma no mesmo movimento em que se abre para outras,e o leitor de filosofia tirará proveito do modo como Viveiros de Castro se posiciona em relação à tradição estruturalista e seus desdobramentos;e quem sabe se,estimulado por esse embate, não mergulhará (ou se perderá?) nos escritos de Clastres, Descola, Ingold, Sahlins, Strathern, Wagner e tantos outros que aí comparecem – incluindo, evidentemente, o saber dos “povos da selva”.É um enfrentamento estimulante,conduzido por um pensador que se põe à altura de uma corrente de pensamento para a qual sua própria obra vem contribuindo, pelo menos desde Araweté: os deuses canibais (1986).Sem mencionar que é impossível não retornar,ainda uma vez,ao Lévi-Strauss de Opensamentoselvagem e das Mitológicas – ponto de partida e de retorno de Viveiros de Castro, em sua etnografia bem como em sua própria “metafísica” (aqui já com as devidas aspas).Essa (re)descoberta de fontes poderá inclusive reforçar esta indagação, a que a leitura do livro progressivamente dá corpo:e quanto aos limites dessa metafísica tão singular, que, na pena de Viveiros de Castro, pretende contestar a metafísica clássica? Não estariam eles na articulação discursiva,na formulação dos conceitos,na leitura e interpretação das fontes, orais, escritas, simbólicas – enfim, numa certa presença, talvez incontornável,daquela racionalidade que tanto incomoda e que se pretende superar? Se essa indagação tiver sentido, o livro de Viveiros de Castro se mostrará também,entre muitas outras coisas,como uma confirmação da atualidade de Kant e de Nietzsche. E, nessa exata medida, poderá ser inscrito numa mitologia que, felizmente para todos nós, não parece dar sinais de esgotamento.

Pedro Paulo Pimenta– Professor do Departamento de Filosofia da USP.

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O impeachment de Fernando Collor: Sociologia de uma crise – SALLUM-(NE-C)

SALLUM JUNIOR, Brasilio. O impeachment de Fernando Collor: Sociologia de uma crise. São Paulo: Editora 34, 2015. Resenha de:  AVRITZER, Leonardo. Entre o conflito de interesses e a nova institucionalidade política. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.103, Nov,  2015

O livro O impeachment de Fernando Collor é uma obra importante e necessária e que certamente acrescentará ao debate acadêmico nas ciências sociais no país. Desde o impeachment de Collor é pequena a literatura produzida sobre o assunto, e a referência mais importante ainda é um livro publicado por Keith Rosenn e Richard Downes nos Estados Unidos no final dos anos 1990. Poucos trabalhos de fôlego foram realizados no país sobre o tema. O livro de Brasilio Sallum Jr. vem preencher essa lacuna. Ao mesmo tempo, não poderia ser mais oportuno. Existem, neste momento, diversas propostas de impeachment do mandato da presidente Dilma Rousseff tramitando no Congresso Nacional, e o debate sobre o impeachment está sendo travado no Congresso e fora dele sem um conhecimento adequado sobre o assunto. Mais uma vez o livro em tela pode ajudar a preencher essa lacuna.

O livro O impeachment de Fernando Collor tem dois pontos bastante fortes. O primeiro deles é uma tentativa de propor um modelo analítico para o impeachment de Collor que se assenta na literatura de sociologia política. Aliás, o próprio autor destaca no subtítulo a ideia de uma análise a partir da sociologia. O motivo para essa intenção parece bastante claro e está ligado ao fato de o impeachment de Collor, assim como outros momentos decisivos da história do país, envolverem uma ampla coalizão de interesses e ideias. Assim, parece bastante importante analisar quais interesses são esses. O segundo ponto forte é uma análise de atores e coalizões que é um trabalho de natureza fortemente historiográfica com o qual o autor nos permite ver a diferente movimentação dos atores políticos ao longo dos quase três anos de governo Collor. Em conjunto, a sociologia política do autor permite uma complexa análise das movimentações políticas do atores e partidos.

Brasilio Sallum Jr. começa o seu livro mostrando a forte reorientação que o estrangulamento fiscal do Estado brasileiro ocorrido com a crise da dívida externa provocou. Para ele, são as reações à crise da dívida que levaram a um forte reposicionamento no interior da elite empresarial, no sistema de empresas estatais e no interior do sistema político. Esse reposicionamento favoreceu o fim do autoritarismo e permitiu a redemocratização do país. Com a volta da democracia e a Constituinte tivemos um momento de forte rearticulação do desenho institucional brasileiro, que Sallum Jr. sintetiza em alguns pontos: o maior poder concedido a estados e municípios; o aperfeiçoamento dos dispositivos da democracia representativa com a introdução de diversos institutos que propiciaram a participação direta e um conjunto de dispositivos cujo objetivo era diminuir a desigualdade social no país. Mas, junto com essas características, Sallum destaca também o fato de a Constituição ter emprestado uma moldura rígida ligada ao nacional-desenvolvimentismo já afetado pela crise da dívida externa. Por fim, no que diz respeito à arquitetura institucional, o ponto central de Sallum é que a derrota do parlamentarismo teve profundos efeitos. Segundo ele, o balanço geral da Constituição é que ela não foi capaz de superar a crise de hegemonia que perpassava o Estado (p. 38).

Vale a pena analisar o marco proposto por Sallum não só porque ele explica bastante bem as polêmicas que não foram resolvidas pela Assembleia Nacional Constituinte como também porque ele oferece pistas importantes para pesarmos os conflitos em torno do mandato da presidente Dilma que envolvem conflitos semelhantes tanto sobre a configuração do Estado quanto sobre a organização das políticas sociais. Brasilio Sallum Jr. argumenta que houve uma forte inflexão liberal no final dos anos 1980, reforçando agentes econômicos que já haviam se reposicionado a favor do liberalismo no começo da década. Assim, surge com força um projeto de integração competitiva entre esses setores, e é esse projeto que vai polarizar a sociedade brasileira em 1989. Assim, o marco proposto por Sallum é um marco que entende a diferenciação de interesses econômicos causando dilemas societários que por sua vez geram enfrentamentos políticos. Esse é, ao mesmo tempo, o ponto mais forte do livro, mas como mostrarei mais à frente é o seu ponto mais vulnerável também.

A campanha que levou Collor ao poder é descrita com uma grande riqueza de detalhes pelo autor. Ele mostra a importância do complexo midiático, em especial da Rede Globo, cuja influência era muito superior à atual, com a audiência se situando entre 65% e 80%. A construção da imagem de Collor é bem trabalhada, aparecendo frequentemente com os punhos cerrados e os braços erguidos em desafio (p.73), dando a impressão de um super-homem capaz de enfrentar os desafios do país. O autor mostra também a importância do discurso liberal, modernizante e de redução do Estado. Sua vitória eleitoral estabeleceu, desse modo, uma hegemonia do projeto liberal de redução do Estado. No entanto, essa hegemonia não fez com que o debate sobre o próprio Estado e o modelo liberal refluísse. Pelo contrário, Sallum também mostra em detalhes como a clivagem social fez com que o conflito político persistisse durante o governo Collor.

A análise do governo Collor por Sallum opera na tensão entre os interesses econômicos que o apoiaram e as propostas políticas do presidente. Nesse sentido, é como se a articulação entre interesses econômicos e apoio político tivesse trincado já no primeiro momento. Assim, a primeira análise do autor sobre a montagem do ministério já aponta para a vontade do presidente de não colocar um representante de peso da nova agenda liberal no Ministério da Economia. O presidente deixava claro o seu afastamento relativo dos interesses que o elegeram e a sua vontade de ser ele mesmo o gestor da economia. A matriz explicativa para essa tensão que perpassou a formação de todo o ministério é a mesma e se assenta na sociologia política proposta por Sallum, que defende uma forte conexão entre interesses e articulação política. Ainda assim, o argumento do autor é que o campo político amplo da rearticulação liberal, em um primeiro momento, esteve disposto a apoiar o presidente e o seu plano de estabilização econômica. O núcleo do Plano Collor, como é sabido, foi a apropriação e o congelamento de 80% dos ativos financeiros e da moeda em circulação (p. 90). Ao fazê-lo, Collor se posicionou contra a riqueza financeira, como comentaram diversos órgãos de imprensa da época. Assim, em sua primeira ação econômica de peso, Collor propôs um plano entre um certo intervencionismo de esquerda e o reformismo liberal (p.94). Da esquerda, o Plano Collor retirou a ideia de intervir nos direitos associados à moeda indexada, ao passo que do reformismo liberal ele retirou a ideia de intervir profundamente nas estruturas do Estado desenvolvimentista. Junto com o congelamento dos ativos financeiros, ele propôs uma reforma administrativa que mexeu profundamente com a liderança sindical ao anunciar que poria à disposição entre 20% e 25% dos servidores públicos. Desse modo, o que Sallum mostra é que Collor se colocou à margem dos principais interesses representados por ele e se chocou fortemente com os principais interesses representados pelo grupo oposicionista, em especial pelo PT e pela CUT. Nesse sentido, Collor construiu uma imagem voluntarista e autocrática que levaria até o seu impeachment. Sallum mostra como as principais forças dentro do Congresso se posicionaram pela aprovação do Plano Collor: “Os partidos que haviam se comprometido previamente a apoiar o Plano – PRN, PFL, PDS, PTB, PL e PDC – acabaram votando em peso a seu favor […]. O PSDB o PT ou por melhorá-lo e o PMDB – o maior partido, com 159 deputados e 28 senadores – acabou contribuindo decisivamente para a sua aprovação […]”. Assim, a análise de Sallum é que Collor inicia o seu mandato com uma certa disjunção entre interesses e representação política. Ao contrariar os interesses alinhados com uma agenda liberal e tentar atuar por cima deles, ele rompeu com a sua base e passou a depender de uma base no Congresso que lhe dava apoio condicional. Já no final de 1990, Collor é derrotado na votação de diversas medidas provisórias. Assim, Sallum passa a centrar sua análise na arena legislativa e no novo Congresso eleito em 1990.

Os anos 1991 e 1992 foram os anos decisivos para Collor. Brasilio Sallum Jr. começa a descrição desse período com a posse do novo Congresso em 1º de fevereiro de 1991. O dia foi o mesmo em que foi anunciado o Plano Collor II, que mais uma vez congelou os preços e anunciou um tarifaço nos preços da energia elétrica, telefonia e gasolina (p. 121). O segundo Congresso a ser enfrentado por Collor não era muito diferente do primeiro em termos de composição partidária, era um Congresso majoritariamente conservador. Mas era um Congresso mais independente, não apenas porque os seus membros tinham mais quatro anos de mandato, mas principalmente porque ali já se colocava uma agenda de maior autonomia do parlamento em relação ao Poder Executivo. O presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro, já falava naquela altura na regulamentação da edição de medidas provisórias. Collor consegue aprovar o Plano Collor II, ainda que com algumas modificações. No entanto, o mais importante naquele momento foi que as modificações não foram mais aprovadas por reedição de medidas provisórias, e sim através de uma negociação com os partidos de centro. Ainda assim, a base política de Collor já aparece arranhada em meados de 1991 devido a diversos conflitos, em especial com o Congresso, com os trabalhadores e com o sindicalismo. Collor, percebendo o esgarçamento da sua base parlamentar, tentou alguns movimentos, entre os quais a substituição da sua ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, por um liberal mais ortodoxo, Marcílio Marques Moreira. Assim, é possível entender a embocadura da análise de Sallum. Para o autor, os arranjos políticos têm que expressar interesses econômicos e quando não o fazem produzem crises. A crise do governo Collor foi provocada por uma disjunção entre representação de interesses e arranjo político. O voluntarismo do presidente tende a afastar dele primeiro a sua base empresarial e em segundo lugar a sua base política. Percebendo tal disjunção, ele muda a condução da economia, em que ainda estava presente uma certa heterodoxia na equipe, mas de alguma forma a recomposição da iniciativa política do presidente não foi possível, já que não houve melhora nem na economia nem na capacidade de negociar com o Congresso Nacional. Começa já em meados de 1991 a pipocar no Congresso um conjunto de iniciativas, todas elas destinadas a reduzir as prerrogativas do presidente. Ao mesmo tempo, começa a se formar uma frente parlamentar que passa a coordenaras ações de PMDB, PT e PSDB. Essa frente, por seu lado, reduziu as possibilidades de um amplo processo de liberalização econômica. Mais uma vez, vemos em operação a ideia de Sallum de sociologia política. Na medida em que o presidente não foi capaz de agregar os interesses econômicos que ele defendia em uma base política sólida, rearticularam-se partidos de centro e esquerda, que então bloquearam a liberalização, mesmo após a mudança do ministério. É essa frente, acrescida da mobilização popular, que será a responsável pelo impeachment.

Oanode1992começoucomumadisputaemtornodoreajustedos aposentados. A partir de uma decisão do Judiciário do Rio de Janeiro sobre esse reajuste, Collor entrou em uma disputa com o Judiciário e o Legislativo que acentuou a crise do seu governo. O presidente do Supremo Tribunal Federal, que tentava naquele momento fazer uso das novas prerrogativas concedidas pela Constituição de 1988 ao Judiciário, se declarou incompetente para sustar um aumento concedido pela justiça aos aposentados do Rio. Collor mais uma vez recorreu ao expediente comum: foi à televisão dizer que não havia recursos para tal e propôs um aumento das contribuições. Imediatamente a Câmara dos Deputados se pronunciou contra tal aumento, criando um impasse em torno do assunto com a assinatura, pelo presidente, de um decreto que retirava poderes do Congresso. Esse impasse azedou de vez a relação do presidente com o Congresso e acentuou a queda da sua popularidade. A popularidade de Collor, que iniciou o seu mandato com mais de 70% de aprovação, vai caindo ao longo dos dois anos e alcança marca próxima a 20% no meio de 1992. Assim, todos os componentes da crise estão no lugar em meados de 1992 e são explicados por Sallum da seguinte forma:“[…] entrou em crise o modo como o presidente da República interpretava o regime democrático por suas palavras e atos de governo, modo distinto em relação ao esperado e propugnado pela maioria das forças políticas presentes no Congresso […]” (p. 184).

Temos assim o início da crise, que se exponencia com as entrevistas do irmão Pedro Collor, que colocam o tema da corrupção no centro da crise política já vivida pelo governo, e que aponta a denúncia na direção do próprio presidente. Collor responde ao irmão no dia 25 de maio, acusando-o de insensato e prometendo processá-lo. Mas a crise prospera no Congresso com a formação, no dia 27 de maio, de uma Frente Parlamentar de Oposição entre PMDB, PT e PSDB, cujo objetivo explícito era a atuação conjunta na CPIM (p. 211). Nesse mesmo contexto, doze organizações se reúnem no dia 29 de maio na sede da OAB e convocam uma mobilização da sociedade civil. Sabemos todo o desenrolar desses eventos. A partir de um desafio tosco à sociedade brasileira, em que um presidente sem apoio pede a manifestação da sociedade a seu favor, o Brasil inteiro se mobiliza, com o apoio da imprensa, a partir de meados de agosto de 1992. Sallum nos dá uma ideia desse ciclo mobilizatório: de quatro a seis eventos por semana ao longo das cinco semanas anteriores a 16 de agosto, passamos a 56 eventos por semana com uma média de participantes de 15 mil pessoas (p. 306). É esse o caldo da mobilização que irá levar, no dia 29 de setembro, ao afastamento de Collor da presidência, seguida da sua renúncia em dezembro.

Um balanço da análise de Sallum encontra alguns pontos fortes decorrentes, como o autor reivindica, da sua sociologia política, mas alguns pontos débeis decorrentes exatamente da sua incapacidade de ir além dela. Os pontos fortes já foram mencionados e estão relacionados à maneira como o autor utiliza a sociologia para tecer uma relação entre o realinhamento dos interesses econômicos nos anos 1980 e uma análise específica de como esses interesses se rearticularam no Congresso. A tese fundamental sobre Collor surge a partir desse marco analítico, e o seu ponto central é que o voluntarismo e o desrespeito a sua base econômica e política criaram os problemas que o presidente enfrentou em 1991 e 1992. Mas os limites da análise de Sallum se encontram justamente aí, porque no primeiro semestre de 1992 Collor muda o seu ministro da Economia e realiza uma reforma ministerial justamente com o objetivo de alinhar o seu governo aos interesses das forças que o elegeram. É esse justamente o momento em que se acentua a mobilização contra Collor. Sallum não tem uma explicação para o fenômeno. O que ele afirma em relação às manifestações é o seguinte:

Durante o governo Collor houve uma crise política importante embora não muito profunda iniciada em 1992 e encerrada com a reforma ministerial de abril. O que diferencia a crise política que se desenvolvia desde o fim de junho […] é que especialmente a partir do domingo negro, ela alterou significativamente a dinâmica do processo político porque a intensificação da mobilização de atores societários não participantes usuais da política nacional rompeu os limites do campo político institucional (p. 308).

Entendo que essa frase expressa os limites da capacidade analítica do autor. O problema que parece lhe escapar é que a democratização brasileira e a Constituição de 1988 ampliaram os limites do campo político institucional, que tem que ser entendido com a presença desses atores e as conexões adequadas entre mobilização, organização da sociedade e dinâmica política institucional. A sociologia de Sallum opera muito bem na interseção entre interesses econômicos e institucionalidade política. Ali ele demonstra os movimentos importantes que as forças sociais realizam no interior das instituições políticas. No entanto, outras categorias mais próprias, como a do institucionalismo político ou da ideia de inovação institucional, faltam no livro, e sua lacuna constitui um problema na sua capacidade explicativa. Sallum aborda de forma muito superficial a nova institucionalidade criada pela Constituição de 1988, que criou inovações que foram muito importantes no governo Collor. Assim, quando o Congresso ou movimentos sociais procuram o Poder Judiciário por meio de ADINs para tentar barrar o decreto sobre as aposentadorias, esse foi um fenômeno absolutamente novo, assim como o foi o ato do presidente do Supremo, de não se posicionar junto com o Executivo na questão das aposentadorias do Rio de Janeiro. Sallum menciona todos esses fatos, mas não lhes atribui a novidade e a importância que tiveram na época e seguem tendo. A análise de Sallum para no voluntarismo e na reação do sistema político ao presidente, utilizando a inovação institucional e a capacidade de mobilização social da oposição como uma variável externa a sua análise. Tenho a impressão de que não é possível entender plenamente o impeachment de Collor sem mostrar uma dimensão que no livro aparece secundarizada: o fio que vai da mobilização da sociedade na direção do papel das novas instituições no campo jurídico (Ministério Público, ADINs e o novo papel da OAB) e alcança o sistema político. O autor mostra muito bem a capacidade de Collor de estabilizar a sua situação no interior do campo político. Mas sua capacidade explicativa parece sucumbir na incapacidade de julgar novos atores e instituições que desde 1988 vêm tendo um papel diferente na política brasileira. Foram elas que influenciaram decisivamente no impeachment de Collor, são elas que têm hoje um papel fundamental em um possível processo de impeachment da atual presidente que está colocado no processo político em curso no Brasil neste ano de 2015. Para entender essas novas instituições não é possível utilizar apenas o marco da sociologia política, como pretende Sallum. É necessário utilizar um marco que atribua às instituições um papel maior que o do abrigo a grupos sociais e políticos com interesses diversos e mostrar como novas instituições produzem novos padrões de relação entre Estado e sociedade. O livro O impeachment de Fernando Collor é uma excelente descrição e análise do evento sob o ponto de vista da articulação política de interesses sociais, mas deixa a desejar sob o ponto de vista de uma análise do impacto das novas instituições nessa mesma institucionalidade. Somente assim seria possível explicar o que falta explicar no livro: por que a ancoragem/blindagem de Collor nos interesses políticos e social-liberais não salvou o seu mandato? Por que os grupos de oposição ao modelo liberal conseguiram se mobilizar muito mais fortemente que os grupos que poderiam sustentá-lo? Por fim, em 1992 como hoje, seria importante explicar o novo marco jurídico das instituições de controle e seu impacto sobre a democracia no Brasil. Em todos os casos, uma sociologia dos interesses nos deixa a meio caminho no processo de explicação desses fenômenos.

Leonardo Avritzer –Professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG.

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The Pseudoscience wars Emmanuel Velikonsy and The Modern Fringe – GORDIAN (NE-C)

GORDIAN, Michael D. The Pseudoscience wars Emmanuel Velikonsy and The Modern Fringe. Chicago: Editora da Universidade de Chicago,2012. Resenha de: Toledo junior, Joaquim.  Mundos em colisão: catastrofismo e as fronteiras da ciência. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.102, Jul, 2015.

“Após pesquisar o assunto por mais de um quarto de século”, escreveu Randolph Weldon em Doomsday 2012, “o autor [Weldon refere-se a si mesmo na terceira pessoa], que ocupa uma alta posição no reino celeste, oferece este livro como ajuda para os não iniciados tomarem conhecimento e se prepararem para o massacre de que seremos vítimas em breve.” Uma sessão de hipnose teria revelado a Weldon que, em uma de suas vidas passadas, encarnou como um artesão egípcio que sobreviveu aos desastres que atingiram a região à época de Moisés e da primeira diáspora do povo judeu, por volta de 1500 a. C.

Weldon ligou os cataclismos que alegadamente testemunhou aos relatos de Barbara Hand Clow sobre um cometa cuja trajetória coincide com a da Terra a cada 3500 anos, e que teria causado sua morte (também em uma vida passada,em que foi uma sacerdotisa grega),e à data aproximada do nascimento do planeta Vênus conforme calculada por um certo dr. Immanuel Velikovsky (coincidentemente ou não,há cerca de 3500 anos, após desprender-se de Júpiter e transformar-se em um cometa que quase aniquilou a vida na Terra – justamente durante o Êxodo,o que explicaria fenômenos pouco comuns como a abertura do mar Vermelho e a chuva de maná que alimentou o povo judeu durante a travessia do deserto -, antes de se assentar pacificamente em sua órbita no sistema solar entre a Terra e Mercúrio), fez as contas e chegou à terrível conclusão, que seu livro tem a missão de divulgar: o evento voltaria a ocorrer em breve,mais precisamente em dezembro de 2012, e destruiria a Terra por impacto direto ou pelo desastre nuclear que resultaria da desestabilização provocada pela proximidade do cometa.

O livro de Weldon seria mais um (embora certamente dos mais imaginativos) da enxurrada recente de publicações que advertem, explicam e oferecem orientações práticas e conforto espiritual para o fim do mundo, que,segundo garantem seus autores,está próximo,muito próximo,não fosse a referência às teorias há algum tempo esquecidas do médico,psicanalista e dublê de astrônomo, historiador, geólogo e filólogo russo Immanuel Velikovsky (1895-1979), o pai do catastrofismo moderno. Velikovsky foi,na opinião de Weldon, um mártir que enfrentou corajosamente o mainstream científico, que jamais lhe deu, ou a suas teorias, muita atenção,a não ser negativa.Embora Mundos em colisão,seu best-seller de 1950 que detalha sua teoria do nascimento de Vênus e sugere a necessidade de revisão completa de quase todos os pressupostos fundamentais de boa parte da ciência moderna (da astrofísica à história antiga, passando pela geomorfologia e pela teoria da evolução), o tivesse transformado em celebridade, para bem e para mal, e o colocado no centro de uma polêmica a respeito das fronteiras entre ciência,má ciência,não ciência e pseudociência, Velikovsky foi condenado a viver à margem do universo ao qual tentou a vida inteira se integrar: a comunidade científica norte-americana do pós-guerra. “Os chefões de laboratórios e seus lacaios”, escreveu Weldon,“pisotearam sua obra,esquartejaram e queimaram-na em praça pública – e teriam feito o mesmo a seu autor se não houvesse uma lei que os proibisse, tão vingativos e incapazes que são, aqueles esnobes,de admitir que estejam errados.”

O NASCIMENTO DE VÊNUS

Se estivesse vivo, no entanto, Velikovsky talvez tivesse torcido o nariz para essa defesa entusiasmada de sua obra. Do mesmo jeito que procurou a vida inteira a aprovação dos grandes cientistas contemporâneos seus, fugia com horror à simpatia não requisitada de criacionistas, parapsicólogos, reichianos e pregadores do apocalipse que se solidarizavam com sua condição de pária da comunidade científica “oficial”.Para Velikovsky, sua teoria era estritamente racional e científica; estes últimos,por sua vez,eram,em sua opinião,fundamentalistas e charlatães que flertavam com o obscurantismo e a irracionalidade.

Dada a enormidade da tarefa a que Velikovsky se dedicou em Mundos em colisão, é praticamente impossível resumir seu conteúdo. “Não deixei ali”, escreveu o próprio Velikovsky anos depois da publicação de seu magnum opus, “uma frase sequer que julgasse supérflua.” Ao longo de mais de quatrocentas páginas,o livro procura,pela análise de textos sagrados (o Velho Testamento em especial) e de mitos dos lugares e épocas mais variados e distantes, justificar a tese central da qual Velikovsky passaria a vida toda tentando convencer a comunidade científica: “Por força de grande número de argumentos cheguei à conclusão – da qual não tenho mais dúvida alguma – de que foi o planeta Vênus,à época ainda um cometa, que causou as catástrofes dos dias do Êxodo”.

Por volta de 1500 a.C.,um pedaço do planeta Júpiter teria se desprendido,sua trajetória perigosamente apontada em direção à Terra. A interação gravitacional e eletromagnética dos dois corpos teria causado gigantescas rupturas na crosta terrestre, o deslocamento do eixo de rotação da Terra e uma longa e intensa chuva de meteoros sobre nosso planeta. Após alguns anos, o cometa se integraria ao sistema solar,dando origem ao que hoje é o planeta Vênus.O trauma decorrente dessa catástrofe natural (e aqui a formação psicanalítica de Velikovsky desempenha papel crucial) levou a humanidade a manter o registro desses acontecimentos de forma velada,travestido de mitologia – um caso típico de amnésia coletiva pós-traumática. Mas tratar-se-ia de uma verdade histórica,revelada pela leitura atenta e literal de documentos até então considerados alegóricos, e que deveria levar à reformulação de boa parte das teorias convencionais da mecânica celeste,física,química,geologia,paleontologia e biologia.“As leis da ciência devem adequar-se aos fatos históricos”,insistia Velikovsky, “e não os fatos às leis.”

E a história (escondida nas entrelinhas da mitologia mundial) revelava que o sistema solar e a Terra chegaram ao seu estado presente não pela ação de forças contínuas e desde sempre em operação, como sugeria a ciência moderna, mas pela intervenção recorrente de catástrofes naturais como o nascimento de Vênus.

GRITO DE GUERRA

O livro catapultou Velikovsky para o centro de um debate muito diferente daquele que esperava. Para a comunidade científica, suas teorias eram evidentemente furadas, um pastiche de erudição típica de intelectuais do “velho mundo” e pseudociência. (Albert Einstein, de quem Velikovsky se aproximou na cidade norte-americana de Princeton, para onde emigrou em 1939, e cujo apoio procurou em vão obter, teria dito a respeito de Mundos em colisão, em sua maneira caracteristicamente polida:“Não é um livro ruim,só é completamente maluco”.) O alvo principal da reação ampla e enraivecida de cientistas eminentes, relata o historiador Michael D. Gordin em Pseudoscience Wars: Immanuel Velikovsky and the birth of the modern fringe, foi não o livro e suas teorias,mas a Macmillan,uma das casas editoriais mais respeitadas no meio científico, que o colocou no mercado.

“Os cientistas protestaram contra o envolvimento da editora com esse livro”, escreve Gordin, “e se ressentiram de sua campanha publicitária vigorosa (e bemsucedida),com a qual involuntariamente contribuíram com suas manifestações indignadas.” O debate se transformou em uma discussão pública acalorada a respeito das responsabilidades profissionais da editora e da autoridade de cientistas como juízes do que é ou não é “ciência”;um debate a respeito do papel da ciência na esfera pública das sociedades modernas e das fronteiras entre ciência e “pseudociência”.

“Pseudociência” é um daqueles termos que, mais do que sentido, têm uma função clara: delimitar o campo do que é considerado trabalho científico legítimo, com os privilégios decorrentes (posições em universidades,acesso a financiamento,direito de influenciar políticas públicas).É um grito de guerra usado pela comunidade científica com a intenção de criar e defender uma determinada imagem pública da ciência, contrastando-a favoravelmente a outras atividades intelectuais. Definir as fronteiras entre ciência e “o resto” não é simplesmente um problema analítico para a diversão de filósofos; é uma das tarefas cruciais a que cientistas se dedicam incessantemente. Acusar alguém do pecado da “pseudociência” é classificar e estigmatizar,excluindo do jogo social da “ciência” e suas instituições, outsiders e inimigos.

DIPLOMACIA

O astrônomo Harold Shapley (à época um dos cientistas mais destacados do meio científico norte-americano, ao lado de Oppenheimer e Einstein) liderou a reação contra a publicação, por uma editora científica respeitada, de um livro que pretendia revolucionar as teorias sobre o sistema solar a partir da interpretação de mitos antigos. Sua atitude foi um golpe para Velikovsky: este esperava de Shapley cooperação científica, e não hostilidade. A “nova história” do sistema solar delineada em Mundos em colisão apontava, como toda boa ciência (na opinião de Velikovsky), para hipóteses falseáveis; bastaria a boa vontade de astrônomos e uma ou outra observação com os novos e potentes instrumentos desenvolvidos nas últimas décadas para de uma vez por todas confirmar, ou não, a consistência de suas teorias e encerrar a polêmica.

VelikovskyteriainicialmenteprocuradoShapley,emummovimento diplomático de aproximação ao meio científico oficial.“Eu gostaria muito de que você lesse o meu manuscrito”, disse-lhe Velikovsky. “E, se a leitura indicar que minha tese é suficientemente sólida para merecer testes em laboratório, seria possível realizar uma ou duas análises espectroscópicas não muito complicadas?” Velikovsky tentava,candidamente, obter acesso aos recursos materiais disponíveis para outros cientistas,mas vedados a ele (que não tinha vínculo institucional com nenhuma instituição científica),e que poderiam salvá-lo da combinação decepcionante de sucesso popular e ostracismo entre os especialistas, de quem no fundo desejava reconhecimento.

O conflito, no entanto, escalou rapidamente. Alegando falta de tempo, Shapley respondeu que daria uma olhada no manuscrito caso Velikovsky conseguisse alguém de sua confiança para recomendá-lo. Pouco depois Velikovsky voltou a escrever, mas Shapley, por meio de sua secretária, deu o assunto por encerrado. “Na minha longa experiência no campo da ciência”, disse Shapley em correspondência, “essa é a fraude mais bem-sucedida entre todas as perpetradas contra publicações americanas de ponta.” E, em outro contexto, pressagiou, de maneira bastante precisa: “Daqui a um ano saberemos se a reputação da editora Macmillan será ou não prejudicada pela publicação de Mundos em colisão”.

O veredicto de Shapley não poderia ser mais claro. “Se o dr. Velikovsky está certo”, escreveu a um dos emissários de Velikovsky que procurava conquistar sua simpatia, “todos nós estamos loucos.” As ameaças de boicote à Macmillan (principalmente aos livros didáticos utilizados nas universidades norte-americanas) surtiram efeito, e,poucos meses depois de sua publicação,a editora vendeu os direitos da obra – que passou algum tempo nas listas de mais vendidos atrás apenas da Bíblia – à editora popular Doubleday.

UM NOVO LYSENKO?

Nos anos 1950 a comunidade científica norte-americana viu seu prestígio, visibilidade e acesso a recursos se expandir em escala sem precedentes. No entanto, ela sentiu-se ameaçada pela publicação de um livro de um autor que praticamente todos os especialistas consideravam maluco. Qual era a fonte da inquietação que despertou os esforços para relegar Velikovsky e sua obra à bacia das almas da pseudociência?

A legitimação inadvertida, por uma editora científica (um dos filtros do campo científico cuja função é fazer controle do que passa ou não como “ciência”), das teorias de Velikovsky despertou inquietações bastante compreensíveis na comunidade científica norte-americana. O medo era a reedição, daquele lado da Cortina de Ferro, do “caso Lysenko”.

Os cientistas da época tinham uma memória bastante clara do russo Trofim Denisovich Lysenko, técnico agrícola que conquistou as simpatias de Stálin e transformou-se em uma das principais autoridades científicas da URSS, impondo a ortodoxia da ciência legitimamente “soviética” e perseguindo os supostos defensores da ciência “burguesa”, em especial os geneticistas.

Proteger as fronteiras da ciência era impedir sua colonização pela política. Involuntariamente, Velikovsky pareceu a figuras como Shapley e outros a cabeça de ponte que poderia realizar o primeiro de uma série de ataques à autonomia da ciência em solo americano.

CATASTROFISMO VS. UNIFORMITARISMO

Velikovsky, no entanto, ficou furioso com o tratamento que lhe foi dispensado. Para ele, o que realmente incomodava os cientistas (além de eles também serem vítimas inconscientes da amnésia coletiva que apagou da memória da humanidade as experiências cósmicas traumáticas que seu livro revelara) era sua defesa de uma visão catastrofista do mundo natural. Se as revelações de Mundos em colisão estivessem corretas, ela seria um desafio à teoria darwiniana da evolução e dos pressupostos uniformitaristas e gradualistas da história da Terra – a ideia de que as forças que agem sobre a Terra hoje são as mesmas que sempre agiram desde o começo – aceitos por geólogos e astrônomos. “A crença de que vivemos em um universo sereno, que nada ocorreu com a Terra e com outros planetas desde o começo, que nada ocorrerá até o fim, é uma ilusão que contamina os livros didáticos. E é igualmente uma ilusão pensar que vivemos em um sistema solar seguro, imperturbável, hoje como no passado.”

As teorias de Velikovsky apelam para um sentimento bastante difundido de que o mundo, de alguma forma, está condenado à destruição iminente.De fato,no final da vida,nos anos 1970,resignado e cansado de guerra,Velikovsky passou a advertir para os perigos da Era Nuclear e para a ameaça de uma destruição completa do planeta (em uma catástrofe dessa vez gerada pelo próprio homem) pelo belicismo paranoico da Guerra Fria, não raramente compartilhado pela própria comunidade científica.Por improváveis e excêntricas que fossem suas teorias, Velikovsky soube tirar delas uma lição pacifista.

CIÊNCIA E A GRANDE INDÚSTRIA

Uma das lições centrais do livro de Gordin é (além da análise dos usos retóricos e políticos da noção de pseudociência) que,mais do que o conjunto não pouco numeroso de malucos inofensivos e suas criações fantasiosas (catástrofes cósmicas, ovnis, astronautas do futuro, mensagens apocalípticas criptografadas em calendários de civilizações antigas) que povoam as franjas do mundo científico, a grande ameaça pública associada à ciência é a cooptação de parte da comunidade científica pelos interesses da Grande Indústria. Não são poucos os recursos destinados à investigação científica cujo objetivo é dirimir as preocupações contemporâneas com os riscos do consumo de tabaco, álcool, da queima de combustíveis fósseis ou do uso crescente de remédios psiquiátricos.

Velikovsky estava, certamente, errado ao imaginar que uma única “descoberta” histórica poderia revolucionar toda a ciência moderna.A lógica da ciência é ela própria uniformitária,gradualista,e nem mesmo os períodos revolucionários se assemelham às catástrofes velikovskianas:o impacto de uma única obra nunca é suficiente para forçar o abandono completo dos consensos em torno dos quais a comunidade científica trabalha. Antes, é o trabalho longo e contínuo de acúmulo de evidências e contraevidências que faz a ciência progredir. Uma tarefa coletiva e no mais das vezes tediosa, sem os grandes arroubos de imaginação e a eloquência visionária dos tantos Velikovskys que, felizmente, povoam as periferias da ciência.

Joaquim Toledo Junior– Doutorando em filosofia pela Unicamp.

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O retorno do real – HAL (NE-C)

HAL, Foster. O retorno do real. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2014. Resenha de: LEONÍCIO, Otavio. O real e a História. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.101, Jan/Mar, 2015.

Os problemas em torno dos quais O retorno do real se constitui são imensos. Eles têm pautado o pensamento e a prática de críticos e artistas desde meados dos anos 1960 – ou seja, há exatamente meio século; de um modo ou de outro, e sobretudo no que concerne à questão do significado da arte dita contemporânea, dizem respeito a uma questão crucial: a crise da concepção de história sobre a qual a arte vinha sendo (e,parcialmente pelo menos,ainda vem sendo) produzida desde o romantismo. Mais especificamente, a questão central de O retorno do real é a eventual superação de um “historicismo persistente que julga a arte contemporânea atrasada, redundante e repetitiva” (p. 30). Em certo sentido, portanto, Foster se vê aqui às voltas com os mesmos desafios e dilemas de uma geração de artistas e críticos que, como afirmou um de seus maiores expoentes, Robert Smithson, percebeu que “uma consciência transistórica emergiu nos anos sessenta”1.

A agenda de Foster não coincide, todavia, com a dos artistas sessentistas. Pois o que está em jogo para ele é também, e talvez sobretudo, a viabilidade de uma modalidade discursiva (a crítica de arte) que, desde o romantismo, busca o significado das obras de arte na interseção entre qualidade estética (vinculada à noção transcendental de experiência estética) e pertinência histórica (vinculada à situação das obras de arte no quadro geral da História da Arte). Ou seja, o que está em jogo para Foster são as condições de possibilidade de um discurso crítico cujos fundamentos em larga medida coincidem com o próprio advento (em fins do século XVIII) do historicismo – precisamente os fundamentos que a arte dos anos 1960 pôs em xeque. Quer dizer, diferentemente do que ocorre com boa parte da práxis artística dos anos 1960 e 1970, Foster pretende salvaguardar a prática crítica tradicional. Como? Dotando-a de um vocabulário conceitual “pós-histórico” (p. 25) não apenas operativo mas igualmente legitimável num ambiente de crescente desprestígio das “grandes narrativas” – as históricas, sobretudo2.

A solução encontrada por Foster lança mão do conceito de “neovanguarda”, compreendido aqui de modo idiossincrático, i.e., em termos da noção de “Nachträglichkeit” (“efeito a posteriori” ou, literalmente, “ação retardada”). Tomada de empréstimo à teoria psicanalítica, a noção supõe que “um evento só é registrado por meio de outro que o recodifica; só chegamos a ser quem somos no efeito a posteriori(Nachträglichkeit)”. Toda a argumentação de Foster parte pois da hipótese de que “a vanguarda histórica e a neovanguarda são constituídas de maneira semelhante, como um processo contínuo de protensão e retenção, uma complexa alternância de futuros antecipados e passados reconstruídos” (p. 46). Nessa perspectiva, supostamente cairia por terra o argumento (levantado por Peter Bürger em Teoria da vanguarda, contra o qual O retorno do realexplicitamente se volta)3 de que a arte dos anos 1960 se restringiria a uma repetição farsesca e acrítica das ações empreendidas pelas chamadas vanguardas históricas. Para Foster,ao contrário,a neovanguarda dos anos 1960 consistiria na plena efetivação daquilo que apenas de modo incompleto ou inacabado foi empreendido no início do século XX por movimentos como construtivismo, dadaísmo e surrealismo.

Obviamente, pode-se arguir o rendimento heurístico do modelo psicanalítico proposto por Foster, quer dizer, questionar em que medida ele constitui de fato um ganho de conhecimento sobre a arte dos anos 1960.Significativamente,a questão é levantada pelo próprio autor, o qual, numa nota de pé de página desconcertante, admite que “[a]inda que eu combine o desenvolvimento com o efeito a posteriori, minha extensão da (re)construção do sujeito individual até a (re) construção de um sujeito histórico é problemática”. Donde a dúvida: “Será que posso abordar historicamente a lógica do sujeito se meu modelo da história pressupõe essa lógica? Esse vínculo duplo seria produtivo ou paralisante”.

O fato de Foster ter ido adiante com seu modelo psicanalítico (sem o qual este livro não existiria) não dá por encerrada a questão. De fato, em termos epistemológicos, o livro apenas explicita os dilemas de uma geração de intelectuais progressistas que, tendo sido formada num ambiente francamente desconstrutivista, viu-se nos anos 1980 (ou seja, num contexto em que grassavam sem resistência institucional tanto Aids quanto Reaganomics) à procura de um aparato teórico porventura menos irrealista que o desconstrutivismo. A advertência de Foster acerca dos limites de sua própria empreitada intelectual, voluntariamente destinada a resgatar não todo e qualquer real, mas apenas a uma reconstrução subjetiva sua4, soa nesse sentido duplamente sintomática: por um lado, evidencia um incontido desejo de realidade; por outro, denuncia o mal-estar para com a própria noção de realidade – ao menos com relação àquelas noções de realidade que, advertidamente ou não, possam evocar uma referencialidade minimamente estável. Mais do que um dilema, a posição de Foster expõe a condição porventura aporética do projeto pós-pós-modernista, do qual Foster é um avatar. Significativamente, no capítulo final de O retorno do real, Foster se pergunta acerca das desconstruções operadas por Foucault e Derrida: “Esses pós-estruturalismos reelaboram os acontecimentos do pós-colonial e do pós-moderno criticamente? Ou servem de ardis por meio dos quais esses acontecimentos são sublimados, deslocados ou, ao contrário, desativados?” (p. 199). Enredado numa espécie de limbo epistemológico, Foster – como muitos de nós, aliás – procura abrigo num mundo pós-transcendental particularmente inóspito a desconstrutivistas não irrealistas e sobretudo não pluralistas (avessos portanto ao “falso pluralismo do museu, do mercado e da academia pós-históricos” [p. 7]).

O que a solução proposta por Foster revela, no entanto, é um vício de origem – qual seja, a suposição de que, como queria Bürger, a arte dos anos 1960 caracterizar-se-ia por um resgate (aos olhos de Bürger, acrítico e anacrônico, aos de Foster, deliberado e pertinente, porquanto produto de uma inusitada e lúcida “consciência histórica”) de práticas próprias às “vanguardas históricas”. De fato, nas palavras de Foster, “os artistas da década de 1960 tiveram de elaborar [os procedimentos da vanguarda histórica] criticamente; a pressão da consciência histórica não permitia nada menos do que isso” (p. 25). Este, de fato, o pressuposto não problematizado de O retorno do real: dar por suposto (contra inúmeras evidências de que o que de fato caracteriza a arte dos anos 1960 não é em absoluto o predomínio de uma consciência histórica, senão a emergência e disseminação de uma consciência meta ou anti-histórica) que a questão crucial para a neovanguarda seria “remodela[r] procedimentos da vanguarda para fins contemporâneos” (p. 8). Como se vê, a divergência de Bürger é apenas parcial, a diferença residindo no modo como um e outro interpretam um mesmo fenômeno, Bürger condenando-o, Foster exaltando-o.

Os limites insuperáveis de O retorno do real vêm daí. A começar pela evidente dificuldade do autor de dar conta da arte com a qual, aparentemente, tem maior empatia – o minimalismo. Pois se de um modo ou de outro o minimalismo (mas também uma parte importante da arte produzida em sua esteira) põe em xeque a ideia de vanguarda (em função justamente da consciência de seus vínculos com a visão de mundo historicista), Foster se revela incapaz de conceber quaisquer práticas artísticas “ambiciosas” que não sejam igualmente “avançadas” ou “inovadoras” (passim), ou seja, que não suponham a noção de “desenvolvimento histórico”. Dito de outro modo, o que Foster não parece estar pronto a conceber (a exemplo de Bürger) e mais ainda aceitar é – parafraseando T.J. Clark – uma arte sem futuro5. Donde o descompasso: ali onde uma parte significativa da arte dos anos 1960 e 1970 buscava conjurar uma experiência temporal meta-histórica (em cujo contexto o conceito de vanguarda simplesmente não faz sentido), Foster se empenha a todo custo em preservar a ideia e o valor não apenas da vanguarda, mas acima de tudo de uma historicidade supostamente inerente à arte – em suas palavras, a “historicidade de todas as artes, incluindo a contemporânea” (p. 33). De par com essa historicidade essencial, o que Foster pretende salvaguardar é a criticalidade da arte – mais especificamente, a criticalidade histórica da arte. Uma vez mais, estamos diante de uma posição axiomática. Pois, aos olhos de Foster, simplesmente não há criticalidade num ambiente em que predomina a “desatenção à historicidade” e no qual, portanto, a crítica resulta marcada pela “perda de influência histórica” (p. 13).

Os pressupostos modernistas dessa salvaguarda da historicidade da arte (e com ela de uma crítica baseada num conceito supostamente renovado de “desenvolvimento histórico”, não mais progressista e teleológico) são evidentes: com a noção de neovanguarda o que se quer preservar é uma tradição: a tradição do novo, i.e., de uma ideia de arte segundo a qual,como afirmou um de seus mais influentes praticantes – Harold Rosenberg –, “ter um lugar na história da arte é o valor”6.

Obviamente, Foster não há de concordar com essa leitura; de toda evidência, ele está convencido de que seu modelo alternativo de desenvolvimento histórico foi de fato capaz de complexificar categorias fundamentais como “causalidade”, “temporalidade” e “narratividade” (cap. 1, passim), e, assim, superar o modelo historicista de desenvolvimento, na qual a narrativa modernista se baseia. Até onde percebo, no entanto, o que Foster logrou superar não foi propriamente o modelo historicista, mas uma versão bastante simplória deste.

Não que Foster ignore a complexidade dos problemas teóricos com os quais está lidando aqui. Notadamente, o autor está a par da centralidade que aqui adquire a noção de evento – o fato de que, como adverte Zizek, uma das referências teóricas de O retorno do real, “o ponto crucial aqui é o status modificado do evento”7. Mas aqui também fica claro como o diálogo com Bürger resultou pouco produtivo. Pois a noção de evento que Foster pretende complexificar, tomada emprestada de Bürger, não vai muito além daquela que subjaz à boutade marxiana de que “todos os grandes acontecimentos da história mundial ocorrem duas vezes, a primeira como tragédia, a segunda como farsa” (p. 32). A escolha de Foster é curiosa – mesmo de parte um intelectual marxista; surpreende sobretudo que Foster tome como contramodelo uma noção tão estereotipada de evento histórico – noção que ignora a evidência de que o traço principal da noção de evento no contexto do historicismo não é nem a originalidade nem a autonomia, senão, conforme a formulação de Reinhart Koselleck, o fato de estar sempre pronto a “alterar sua identidade em função do status cambiante que adquire no progresso da história”8. Nessa perspectiva, fica claro como a noção de evento que Foster deriva de Marx (na qual, em parte pelo menos, se baseiam os realismos de um e de outro) deixa de lado a questão central do significado dos eventos num contexto epistemológico (o historicismo) comandado pela noção de “processo” – mais especificamente, por um processo que, como percebeu Hannah Arendt, “torna por si só significativo o que quer que porventura carregue consigo, adquirindo assim um monopólio de universalidade e significação”9. A suposição de que Foster logrou complexificar as noções de evento e, por conseguinte, de desenvolvimento histórico é, como se vê, enganosa. O que Foster complexificou foi um par de estereótipos.

A opção de Foster por operar a partir de tal contramodelo não é injustificada, contudo; ela se adéqua à perfeição a uma argumentação que pretende requalificar historicamente as neovanguardas, vistas não mais como repetição farsesca mas, alternativamente, como plena realização histórica. Uma vez mais, fica claro quão limitada é a divergência de Bürger. Pois a leitura de Foster permanece atravessada pelas noções – e, além dessas, pelos valores – tipicamente modernistas de autenticidade e originalidade. Afinal, o que Foster pretende sustentar por meio de seu modelo alternativo de desenvolvimento senão a tese de que as neovanguardas não são farsescas e espúrias? A argumentação de Foster é, de fato, sem ambiguidade: se as neovanguardas repetem eventos históricos, isso se deve ao fato de que, de acordo com o conceito de “efeito a posteriori”, sua primeira manifestação/ocorrência se restringiria apenas a uma dimensão incompleta, reprimida. Em vez de mera repetição, sua segunda ocorrência nos anos 1960 seria portanto da ordem do desrecalque de algo que por trinta, quarenta anos havia permanecido reprimido. O que a teoria de Foster sustenta, portanto, é a ideia de que, em sua integridade e plenitude, as ações retardadas da neovanguarda constituem um evento histórico autêntico, original, verdadeiramente vanguardista. Ora, mas uma posição de fato meta-historicista não deveria, ao contrário, simplesmente descuidar das noções de autenticidade e originalidade, não obstante os enormes problemas que esse deslocamento coloca para um sistema de arte dependente – hoje como ontem – da ideia de vanguarda?

O que Foster não é capaz de conceber, em revanche, é uma história que não seja desenvolvimental, isto é, que não se oriente naturalmente em direção ao futuro – mais especificamente, a um futuro entendido como “horizonte de expectativa”, i.e., como campo aberto a transformações mais ou menos utópicas. Dito de outro modo, desenvolvimento é compreendido aqui não como categoria adstrita a um regime de historicidade específico (o historicismo), senão como condição antropológica e transistórica,e nesse sentido insuperável, da experiência temporal humana. Como se vê, o argumento em favor de uma “historicidade de todas as artes” tem uma origem definida.

Que a defesa de um marxismo renovado (em contraste com o marxismo alegadamente ossificado de Bürger) esteja no centro da reflexão de Foster não é, como se vê, fortuito: é sempre preservar a ação historicamente empenhada – isto é, a ação empreendida na e para a “História” – aquilo que está em jogo aqui. Para Foster, afinal, prática artística ambiciosa é também, necessariamente, prática engajada. Dito de outro modo, aos olhos de Foster o que cabe à práxis artística não diverge muito do que cabe à ação política: viver no front da História, fazer com que esta avance, combater a ameaça de estagnação. O pressuposto tem, é claro, um desdobramento no âmbito da crítica: se não se faz arte ambiciosa fora da História, o mesmo se dá com respeito à crítica. Esta, de fato, a função precípua, e a decorrente legitimidade, da crítica modernista (mas também, como se vê, da crítica supostamente pós-modernista de Foster), cuja principal incumbência, na prática, é de fato a atribuição da situação histórica das obras, quer dizer, a definição do lugar preciso ocupado pelas obras de fato avançadas e inovadoras em cada etapa do “desenvolvimento histórico”. Tanto quanto a práxis artística, a atividade crítica deve pois obedecer ao preceito de que “a compreensão histórica não depende do apoio contemporâneo, mas um engajamento no presente, seja artístico, teórico e/ou político, é indispensável” (p. 11).

Mas, repare-se: tanto quanto o “engajamento no presente”, o argumento supõe um “presente” definido essencialmente como tempo e espaço de “engajamento”, quer dizer, como tempo e espaço de uma ação historicamente engajada e transformadora. Ora, como destacou Hans U. Gumbrecht, tal concepção do presente é um dos pressupostos mais básicos, ainda que tácitos, do historicismo. Segundo Gumbrecht, é de fato apenas no contexto do regime temporal historicista que “em cada momento presente, o sujeito deve imaginar uma gama de situações futuras que têm de ser diferentes do passado e do presente e dentre as quais ele escolhe um futuro de sua preferência”; é apenas nesse contexto que a “subjetividade pode integrar o componente de ação na autoimagem que ela oferece à humanidade. E é essa inter-relação entre tempo e ação que cria a impressão de que a humanidade é capaz de ‘fazer’ sua própria história”. Coerentemente, é também apenas nesse contexto que o tempo, compreendido como agente absoluto de mudança, “dá à inovação o rigor de uma lei compulsória”10. Como fica claro, modernismo e consciência histórica (mas também marxismo) são astros de uma mesma constelação epistemológica, em cujo centro jaz o regime de historicidade historicista. O que tal evidência expõe é o tamanho dos desafios que a crise do historicismo coloca para a crítica “progressista”. Pois o que está em jogo neste caso é nada menos do que a viabilidade não apenas de uma esquerda sem futuro (nas palavras de Clark, uma esquerda apta a “não ver uma forma ou uma lógica – um desenvolvimento desde o passado até o futuro”, e que portanto diz adeus às “reflexões [afterthoughts] e imagens da vanguarda”)11, mas de uma esquerda historicamente desengajada, ou pelo menos eventualmente disposta a engajar-se numa concepção alternativa de história. Não por acaso, Foster conclui O retorno do real indagando-se em que medida um sujeito pós-moderno disfuncional (o sujeito “suspenso entre a proximidade obscena e a separação espetacular”) não se limitaria a obedecer à lógica de “uma razão cínica [que] não elimina mas renuncia ao poder de ação [agency]” (p. 206).

Que o apego de Foster à episteme modernista/historicista constitui tanto a marca registrada quanto os limites de O retorno do real fica evidente na afirmação de que Michael Fried (como se sabe, o grande detrator do minimalismo)12 “é um excelente crítico do minimalismo não porque tem razão em condená-lo, mas porque, para ser persuasivo, tem de entendê-lo, e isso significa entender sua ameaça ao modernismo tardio” (p. 66). A tese é absurda; Fried jamais compreendeu o minimalismo, fenômeno que ele – como tantos outros depois dele, aliás – se restringia a ver do ponto de vista de sua suposta objetidade literal, uma visão que, como destacou Anne M. Wagner, é francamente reducionista13. O que tal afirmação deixa claro, no entanto, é a afinidade entre os fundamentos vanguardistas (e portanto modernistas/ historicistas) das práticas críticas de Fried e Foster.

Não surpreende, nesse sentido, que, não obstante a ressalva que faz à ênfase excessivamente fenomenológica que Rosalind Krauss dá ao minimalismo14, Foster tenda sempre a ver o minimalismo como expressão essencialmente fenomenológica e de tipo site specific (específico do lugar) – em suas palavras, como uma arte na qual o espectador “é instigado a explorar as consequências perceptivas de uma intervenção particular num determinado local [site]. É esta reorientação fundamental que o minimalismo inaugura” (p. 53). Que tal definição (afeita à obra tipicamente antiminimalista do segundo Robert Morris, mas também aos objetos e operações fenomenológicos de um Richard Serra) implica uma redução absurda do significado da obra crucial de Donald Judd é uma das consequências do enviesamento conceitual/ ideológico de Foster. Que ela não acomode, ou acomode de modo canhestro, no espaço minimalista a obra essencialmente antifenomenológica e anti-site specific de Robert Smithson, é outro. Numa chave psicanalítica, pode-se dizer que, em sua busca pelo desrecalque do real, Foster acabou reprimindo o real minimalista – algo, aliás, que Joseph Kosuth já havia destacado com respeito às construções historiográficas perpetradas ainda nos anos 1970 pelo grupo de críticos ao qual Foster está ligado, a começar por Krauss. De fato, como afirmou Kosuth, “a fácil assimilação do minimalismo no mainstream como mais um tipo de forma na história da escultura constitui basicamente a limpeza [cleansing] de seu peso filosófico”15.

Nada disso diminui a importância de O retorno do real. Publicado originalmente em 1996, mas contendo partes fundamentais apresentadas ainda em meados dos anos 1980, o livro deixa claro como as questões levantadas pela arte dos anos 1960 ainda pautam, e em grande medida assombram, a arte e a crítica atuais. Nesse sentido, a importância do livro está menos em seus achados que no modo como revela, ainda que involuntariamente, os desafios e dilemas que a crise do conceito moderno de história coloca para o pensamento crítico (ou metacrítico) contemporâneo, o de Hal Foster inclusive. Em tempo: a presente edição conta com tradução de Célia Euvaldo, especialmente eficaz na manutenção da fluidez da leitura16.

Notas

1 SMITHSON, Robert. “Ultramodern”. Arts Magazine, v. 42, nº 1, set.- out. 1967, p. 31. Minha tradução.

2 LYOTARD, JF. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

3 BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: CosacNaify, 2008.

4 “Reprimido por numerosos pós-estruturalismos, o real retornou, mas como real traumático” (p. 46, n. 38). Em sua formulação original, tal restrição era ainda mais rigorosa: “Reprimido por vários pósestruturalismos, o real retornou – mas não um real qualquer, apenas o real traumático”. Foster, Hal. “What’s new about the neoavantgarde?”October, v. 70, outono 1994, p. 29. Minha tradução.

5 CLARK, T.J. Por uma esquerda sem futuro. São Paulo: Ed. 34, 2013.

6 ROSENBERG , Harold. “O novo como valor”. In: ___. Objeto ansioso. São Paulo: CosacNaify, 2004.

7 ZIZEK, Slavoj, apud Foster, p. 46, n. 42. Minha tradução.

8 KOSELLECK, ReinhartFuturo passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Contraponto, 2006.

9 ARENDT, Hannah. “O conceito de história: antigo e moderno”. In: ____. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 96.

10 GUMBRECHT, Hans U. “Cascatas de modernidade”, In: ___. Modernização dos sentidos. São Paulo: Ed. 34, pp. 15-16.

11 CLARK, T.J., op. cit. Minha tradução.

12 Cf. FRIED, Michael. “Arte e objetidade”. A/E Revista da Pós-Graduação em Artes Visuais, Rio de Janeiro, EBA-UFRJ, 2002, pp. 130-147.

13 WAGNER, Anne M. “Reading minimal art”. In: BATTCOCK, GregoryMinimal art: a critical anthology. Berkeley: University of California Press, 1995.

14 Ver, em especial KRAUSS, Rosalind. “Sense and sensibility: reflection on post ‘60s sculpture. Artforum, v. 12, nº 3, nov. 1973, pp. 43-53.

15 KOSUTH, Joseph, “History for”. Flash Art, Milão, nº 143, nov.-dez. 1988, p. 101. Minha tradução.

16 Agradeço a leitura e os comentários de Marcelo G. Jasmin, Felipe Charbel e Henrique Estrada.

Otavio Leonidio – Arquiteto, doutor em História, professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio.

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Capital in the Twenty First Century – PIKETTY (NE-C)

PIKETTY, Thomas. Capital in the Twenty First Century. Trad. Arthur Goldhammer. Cambridge: Harvard University Press, 2014. Resenha de: RUGITSKY, Fernando. Diagnóstico Capital: O Capital no Século XXI. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.99, Jul, 2014.

Em certa passagem de seu livro, ao examinar a evolução da desigualdade na França ao longo do século XX, Thomas Piketty afirma que “[d]esigualdades socioeconômicas – disparidades de renda e riqueza entre grupos sociais – são sempre tanto causa quanto efeito de outros desenvolvimentos em outras esferas. Todas essas dimensões são indissociavelmente entrelaçadas”. E conclui: “Assim, a história da distribuição da riqueza é uma das maneiras de interpretar a história mais geral de um país”1. Qual é a natureza de O capital no século XXI, este livro de recepção estrondosa? Na pletora de comentários, resenhas e críticas, é possível encontrar quem pretenda interpretar o livro seguindo a pista do trecho acima. Nessa leitura, Piketty partiria da história da distribuição da riqueza e da renda nos países ricos, ao longo dos últimos três séculos, mas terminaria propondo uma reinterpretação histórica abrangente. O livro, segundo Mike Konczal, seria “uma grande façanha da história econômica”2. Há também aqueles que veem o livro como uma contribuição à teoria econômica. Nesse caso, as várias séries históricas a que Piketty recorre não seriam senão instrumentos para questionar hipóteses teóricas dominantes e fundamentar um “modelo” alternativo. Suas duas “leis fundamentais do capitalismo”, em conjunto com a “contradição central” que ele identifica, são interpretadas como elementos de uma formulação teórica que representa, nas palavras de Branko Milanovic, “uma combinação da teoria do crescimento com as teorias da distribuição funcional e pessoal da renda e, assim, uma descrição abrangente da economia capitalista”3. Não há dúvida de que ambas as leituras dão conta de parte do livro de Piketty. Mas a sua contribuição não se esgota aí. Para usar uma expressão cara à teoria crítica, o que ele realizou no livro, com suas ousadias e seus limites, foi um diagnóstico do tempo presente4 . Debruçado sobre o capitalismo do início do século XXI, Piketty buscou apreender sua estrutura e sua dinâmica, apontando as tendências de desenvolvimento visíveis e as alternativas possíveis. Para tanto, recorreu a um primoroso e inestimável esforço coletivo de coleta e organização de séries estatísticas que lhe permitiram colocar o presente em perspectiva histórica e jogar nova luz sobre os últimos três séculos. Todavia, o resultado essencial da análise é a descrição do momento atual como uma bifurcação, explicitando os termos dos conflitos que estão e seguirão sendo travados no século atual. Como indica, aliás, o próprio título do livro, trata-se de examinar o capital no século XXI.

A DESIGUALDADE DO VELHO AO NOVO MUNDO

O diagnóstico de Piketty baseia-se em um contraste entre duas trajetórias estruturalmente diferentes de aumento da desigualdade: a que caracteriza a realidade europeia e a dos Estados Unidos5. São, para tomar emprestado o título de um dos capítulos do livro, “dois mundos” distintos6. O ponto essencial do diagnóstico, contudo, é sugerir a possibilidade de tal contraste estar se tornando uma característica do passado. A convergência do pior dos dois mundos poderia criar, no século XXI, um padrão de desigualdade inédito e, segundo Piketty, “aterrorizante”7 . Seria a emergência de um “novo capitalismo patrimonial”8.

Comecemos pela trajetória da Europa. Uma das variáveis que organizam o argumento de Piketty é a razão capital/renda. A sua pouco usual definição do capital de um país inclui sob essa rubrica propriedades rurais, imóveis residenciais, o capital das firmas e das organizações governamentais (incluindo imóveis, máquinas, computadores, patentes) e ativos líquidos detidos no resto do mundo (isto é, os ativos detidos por residentes menos os ativos no país detidos por estrangeiros)9. Assim, quando ele afirma que tanto na Inglaterra como na França a razão capital/renda era aproximadamente 7 ao longo dos séculos XVIII e XIX, isso quer dizer que o capital acumulado era cerca de 7 vezes maior do que a renda gerada nesses dois países a cada ano10.

Na França e na Inglaterra, a razão capital/renda apresentou uma trajetória muito similar. Após a mencionada estabilidade nos séculos XVIII e XIX, tal razão cai de aproximadamente 7 para menos de 3 entre o começo do século XX e o ano de 1950. Essa queda vertiginosa é, então, seguida de uma recuperação gradual. Em 2010, a razão capital/renda estava entre 5 e 6 na Inglaterra e havia superado 6 na França11 . Os dados para a Alemanha estão disponíveis apenas a partir do processo de unificação do país, na década de 1870. Mas a trajetória é semelhante: a razão capital/renda cai de cerca de 6,5 em 1910 para pouco mais de 2 em 1950 e a partir daí recupera-se gradualmente12.

A questão essencial a explicar, tendo em vista tal paralelismo, é a queda observada na primeira metade do século XX13. Dentre as razões plausíveis, seria possível incluir as destruições físicas do capital durante as duas guerras mundiais, especialmente na Europa continental. Piketty argumenta, no entanto, que essa não é a explicação principal. Ele atribui uma importância substancial ao virtual desaparecimento dos patrimônios europeus (líquidos) detidos no resto do mundo, devido tanto a expropriações (empréstimos ao governo russo que foram repudiados pela revolução de 1917, a nacionalização do canal de Suez etc. ) como ao processo de descolonização. Além disso, o entreguerras foi marcado por crescimento baixo e pelo colapso da Grande Depressão, o que afetou particularmente a renda dos mais ricos. Visando manter o seu padrão de vida, eles reduziram substancialmente sua poupança (e em muitos casos até se desfizeram de parte do patrimônio) e assistiram à diminuição de seu capital. Piketty afirma que tais desdobramentos “provaram-se mais destrutivos para o capital do que o próprio combate”14. Finalmente, parte da queda da razão capital/renda deve ser atribuída a “escolhas políticas deliberadas” do pós-guerra, isto é, a políticas de controle de aluguéis, regulação financeira e tributação de dividendos e lucros que levaram a uma redução dos preços dos imóveis e das ações negociadas em bolsa. Nas palavras de Piketty, “o declínio da razão capital/renda entre 1913 e 1950 é a história do suicídio da Europa e, em particular, da eutanásia dos capitalistas europeus”15.

Nas últimas quatro décadas, no entanto, a razão capital/renda aumentou de modo marcante nos países ricos (inclusive fora da Europa), aproximando-se dos valores observados na belle époque (quando, nas palavras dele, “o capital reinava”16). Sua explicação para esse desenvolvimento é o fato de que as taxas de poupança recuperaram-se após a crise da primeira metade do século XX e permitiram uma aceleração da acumulação de capital, ao passo que o crescimento da renda nacional desacelerou17. A isso se deve adicionar ainda uma recuperação dos preços dos imóveis e das ações negociadas em bolsa, fruto das desregulamentações observadas no período, “em um contexto político que era em geral mais favorável à riqueza privada do que aquele do imediato pós-guerra”18.

Mas como essas trajetórias relacionam-se com o padrão de desigualdade observado na Europa? A resposta dele pode ser dividida em três partes. Em primeiro lugar, um valor elevado da razão capital/renda é, por si só, um indicativo do poder político e social dos proprietários. Assim, a tendência de essa razão retornar a valores observados às vésperas da Primeira Guerra Mundial aponta para o restabelecimento de um nível de desigualdade que não foi observado, nos países ricos, ao longo de todo o século XX. Em segundo lugarPiketty argumenta que a elevação da razão capital/renda pode ser acompanhada da elevação do percentual das rendas do capital na renda nacional e, como as rendas do capital são sempre mais concentradas do que as rendas do trabalho, essa última elevação se reflete automaticamente em uma maior desigualdade19. Em terceiro lugar, o aumento da razão capital/renda, por uma decomposição contábil, eleva o percentual do fluxo de heranças na renda naciona20. Assim, a importância crescente da riqueza acumulada tende a resultar no predomínio das heranças sobre o esforço individual, no que concerne à obtenção da renda, colocando em xeque a retórica meritocrática das sociedades contemporâneas: “o passado tende a devorar o futuro”21.

A ênfase na razão capital/renda como uma das raízes da desigualdade é uma das inovações mais importantes do livro de Piketty, uma vez que o debate sobre desigualdade tem se concentrado há algum tempo quase que exclusivamente nas disparidades salariais22. Segundo ele, esse foco desconsidera um dos principais determinantes do aumento recente da desigualdade. É necessário, assim, voltar a examinar a riqueza acumulada e sua distribuição. A trajetória da razão capital/renda explica boa parte da trajetória da desigualdade na Europa ao longo do século XX: do violento declínio entre 1913 e 1950 ao aumento expressivo a partir da década de 1970.

O mesmo não é verdade, no entanto, para os Estados Unidos. Não apenas porque lá a razão capital/renda foi muito mais estável do que nos países europeus, mas também porque o principal determinante do aumento recente da desigualdade norte-americana é a explosão dos salários elevados dos executivos das grandes empresas23. Tendo se estabelecido essencialmente a partir de intensos fluxos migratórios, é compreensível que a riqueza acumulada tenha desempenhado um papel muito distinto nos Estados Unidos ao longo do século XIX. Enquanto os imigrantes traziam consigo muito pouco capital acumulado, do outro lado do Atlântico a economia capitalista escorou-se nas riquezas herdadas do Ancien Régime24. Além disso, o impacto destrutivo das duas guerras mundiais foi muito menor para o capital norte-americano.

Levando em consideração essa estabilidade maior da razão capital/renda e o fato de que, apesar dela, a desigualdade nos Estados Unidos trilhou uma trajetória similar à europeia (reduzindo-se substancialmente na primeira metade do século XX e recuperando-se a partir da década de 1970), conclui-se que a desigualdade salarial desempenhou um papel importante. Piketty passa, então, a descrever com detalhes a “ascensão dos superexecutivos”, um fenômeno característico dos Estados Unidos, mas que também pode ser observado, em algum grau, nos demais países anglo-saxões25. Segundo ele, deve-se atribuir predominantemente aos tais supersalários o fato de que atualmente a desigualdade na economia norte-americana tenha atingido um nível semelhante àquele observado na Europa do início do século XX, no qual o percentil dos mais ricos (que ocupa um “lugar proeminente na paisagem social e não apenas na distribuição de renda”26) apropria-se de um quinto de toda a renda gerada anualmente no país, a mesma quantia que é dividida pela metade mais pobre da população27.

TEORIA E HISTÓRIA

Tendo em vista, por um lado, que a razão capital/renda está aumentando, tanto na Europa como nos Estados Unidos, podendo alcançar os níveis observados na belle époque e, por outro, que a explosão dos salários dos superexecutivos pode vir a se difundir para além dos países anglo-saxões, Piketty teme que o século XXI assista à emergência de uma sociedade ainda mais desigual do que a Europa de 1910 e os Estados Unidos de 2010. Uma sociedade em que uma parcela ainda maior da renda seja apropriada pelo percentil dos mais ricos, povoado por herdeiros que vivem de renda e por superexecutivos transformados em rentistas28. Esse é o seu sombrio diagnóstico, o “novo capitalismo patrimonial”.

O que lhe permite relacionar a trajetória retrospectiva da desigualdade a um prognóstico para o século atual é um conjunto de hipóteses teóricas relativamente simples. Dentre elas, está uma relação que ele denomina “segunda lei fundamental do capitalismo”, formalmente = s/g (sendo que é a razão capital/renda, s é a taxa de poupança e g é a taxa de crescimento da renda nacional)29. Na sua argumentação, no longo prazo, com a estabilização de s e de g, a razão capital/renda é explicada por essa “lei”, desde que os preços relativos do capital e dos bens de consumo não se alterem, em média, e que a parcela do capital representada por recursos naturais puros seja pequena. Ele usa essa relação não apenas para explicar as trajetórias da razão capital/renda na Europa e nos Estados Unidos, mas também para prever, com alguma hesitação, sua trajetória futura. Supondo um declínio de g, devido predominantemente ao declínio da taxa de crescimento demográfico30, e uma estabilização de s, Piketty conclui que, “em 2100, o planeta inteiro poderá se parecer com a Europa da virada para o século XX, pelo menos em termos de intensidade de capital”31.

Conforme mencionado anteriormente, um dos mecanismos pelos quais um aumento da razão capital/renda gera uma maior desigualdade, na argumentação de Piketty, é um aumento no percentual das rendas do capital na renda total. A relação entre essas duas variáveis é determinada pela “primeira lei fundamental do capitalismo”, α = rβ (sendo α, o percentual das rendas do capital na renda nacional, e r, a taxa de retorno sobre o capital)32. A hipótese convencional sobre essa “lei” (que, como o próprio autor reconhece, é simplesmente uma identidade contábil) é que um aumento de β seria sempre compensado por uma diminuição de r, de modo que permaneceria estável. Segundo o jargão, isso é o que se pode derivar de uma função de produção Cobb-Douglas em que a elasticidade de substituição entre capital e trabalho é igual a 1. Intuitivamente, significa que, dado um número determinado de trabalhadores, um aumento no capital leva a uma diminuição de sua produtividade marginal e, consequentemente, de sua taxa de retorno33.

Piketty argumenta, entretanto, que a própria elasticidade de substituição é historicamente determinada: ela parece ter sido inferior a 1 em economias agrícolas tradicionais, em que havia poucas alternativas para utilização do capital, e poderá ser maior do que 1 no século XXI 34. Além disso, o fato de que tanto β como aumentaram nos últimos quarenta anos sugere que ela já ultrapassou 1. Esse movimento paralelo de β e α não é apenas importante para o argumento do autor porque ele permite relacionar o aumento da razão capital/renda com o aumento da desigualdade. Ainda mais crucial é que ele evita que o aumento de β seja acompanhado por uma queda acentuada de r.

Chega-se, assim, à terceira hipótese teórica adotada por Piketty, a “contradição central do capitalismo”, formalmente r > g 35. Essa desigualdade é a razão principal para a concentração da riqueza e, consequentemente, das rendas do capital. Ela permite que, nas palavras do autor, “a riqueza acumulada no passado seja recapitalizada muito mais rapidamente do que a economia cresce”36. Foi a sua operação através do tempo que permitiu que, na Europa da belle époque, o percentil dos mais ricos detivesse metade de todo o patrimônio acumulado. Atualmente, esse percentil ainda detém uma parte menor da riqueza total tanto na Europa como nos Estados Unidos (25% e 35%, respectivamente). Mas, segundo Piketty, isso se deve, essencialmente, à imensa destruição de capital ocorrida na primeira metade do século XX, ao crescimento acelerado observado nas três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial e a imposição de uma tributação elevada sobre os lucros e a riqueza. A combinação desses fatores permitiu que, por quase um século, a desigualdade se invertesse, isto é, r < g. Também a esse respeito, o século XX parece ter sido um período excepcional: com a desaceleração do crescimento e a redução dos impostos sobre o capital desde os anos 1980, a “contradição central” tende a se restabelecer no século XXI 37.

O foco nessa desigualdade entre r e g representa uma inversão significativa dos termos do debate usual. Segundo a inclinação tecnocrática da maior parte dos economistas, a questão que foi objeto de investigação principal nas últimas décadas foi o impacto da distribuição de renda no crescimento econômico. Dessa maneira, não se considerava a desigualdade um problema em si, mas buscava-se analisar se ela contribuía ou não para a obtenção de uma elevada taxa de crescimento do produto, o fetiche dos economistas. Esse foco, na realidade, remonta a um deslocamento da teoria econômica iniciado por John Maynard Keynes. Os economistas políticos clássicos e seu principal crítico centravam sua investigação nos determinantes da distribuição da renda entre os proprietários de terra, os capitalistas e os trabalhadores. Era esse, na expressão de David Ricardo, o “problema principal” da economia política38. No segundo capítulo de sua Teoria geral, Keynes menciona essa tradição e se distancia dela, afirmando que o que lhe interessa é a determinação da renda total, independentemente de sua distribuição39. O livro de Piketty é um esforço inequívoco para retornar àquela tradição do século XIX, e a “contradição central”, explicitando o impacto do crescimento na distribuição (ao invés do impacto desta naquele), deixa isso claro.

A formulação teórica principal de Piketty e a base de seu diagnóstico do tempo presente consistem na combinação das duas “leis fundamentais do capitalismo” com essa “contradição central”. Ela permite que ele explique tanto a importância crescente da riqueza acumulada como a tendência à sua concentração. Mas, para dar conta do aumento da disparidade salarial, com a ascensão dos superexecutivos, ele a combina com outro argumento, que consiste em uma crítica à teoria da produtividade marginal como determinante de tais supersalários e a indicação de que eles são predominantemente determinados por um crescente poder de barganha dos próprios superexecutivos40.

ECONOMIA E POLÍTICA NO NOVO CAPITALISMO PATRIMONIAL

Uma das reações plausíveis a essa argumentação é pessimista: tanto o crescimento demográfico como a elasticidade de substituição entre trabalho e capital não são exatamente passíveis de intervenção e suas trajetórias atuais parecem condenar o século XXI a uma desigualdade crescente. No entanto, há no horizonte de Piketty uma alternativa, ainda que utópica. Trata-se da adoção de um imposto global sobre o capital41. Para entender o seu significado, é necessário observar que a taxa de retorno sobre o capital que aparece na “primeira lei fundamental do capitalismo” é a taxa de retorno bruta, isto é, a taxa de retorno obtida antes de se descontar os impostos devidos. Entretanto, a taxa de retorno que deve ser comparada à taxa de crescimento, isto é, a taxa de retorno que importa para a “contradição central do capitalismo” é aquela líquida de impostos, que pode de fato ser recapitalizada pelos proprietários. Assim, ainda que a taxa de retorno bruta permaneça elevada, devido ao aumento da elasticidade de substituição entre capital e trabalho, é possível atenuar ou até eliminar a “contradição central” por meio de impostos que reduzam a taxa líquida. Além disso, o próprio crescimento da desigualdade das rendas do trabalho, fruto da elevação do poder de barganha dos superexecutivos, pode ser parcialmente atribuído à redução da progressividade tributária desde a década de 1980. Desse modo, se se quiser resistir à realização de seu prognóstico sombrio, a saída é tributária.

Independentemente do potencial dessa alternativa, o que ela revela é uma tensão entre economia e política no pensamento de Piketty. Nas palavras de Suresh Naidu, ele “oscila entre prestar homenagem às forças fundamentais da tecnologia, das preferências e da oferta e da procura e retroceder para afirmar que a política e as instituições são importantes”42. Apesar de sua frequente defesa de uma abordagem interdisciplinar, em alguns momentos seu argumento ainda recorre a um economicismo excessivo. Não obstante afirmar que admira mais Fernand Braudel, Claude Lévi-Strauss e Pierre Bourdieu do que Robert Solow e Simon Kuznets, sua abordagem por vezes o aproxima destes últimos e o distancia dos primeiros43. É possível que isso se deva, ao menos em parte, à tentativa do autor de comunicar suas conclusões aos demais economistas, para isso ele recorre em alguns momentos a conceitos e teorias correntes. Mas o preço dessa opção é empobrecer sua compreensão da dinâmica capitalista e estreitar seu horizonte normativo.

Uma ilustração curiosa dessa tensão é sua interpretação sobre a história econômica recente. Ainda que ele considere que as políticas adotadas no pós-guerra e a sua reversão no rastro da “revolução conservadora” de Margaret Thatcher e Ronald Reagan (a expressão é de Piketty) tenham tido profundos impactos distributivos, ele atribui as taxas de crescimento observadas no período exclusivamente ao processo de catch-up tecnológico44. Nas suas palavras, “nem a liberalização econômica que começou em torno de 1980 nem o intervencionismo estatal que se iniciou em 1945 merecem tais elogios ou críticas. A França, a Alemanha e o Japão teriam muito provavelmente alcançado o Reino Unido e os Estados Unidos, depois do seu colapso entre 1914 e 1945, independentemente de que políticas tivessem adotado (afirmo isso apenas com leve exagero)”45. A admissão do exagero apenas confirma a tensão entre inscrever sua interpretação na dinâmica dos processos sociais e atribuir partes do seu raciocínio a determinantes técnicos apartados da estrutura social.

O caso mais relevante, contudo, é o da “primeira lei fundamental do capitalismo”. No que tange à remuneração dos superexecutivos, Piketty critica a teoria que visa a explicar a sua determinação pela produtividade marginal, afirmando que se trata de uma ilusão46. Já no que diz respeito à remuneração do capital, ele recorre à produtividade marginal, assentando seu argumento em uma função de produção agregada. Essa opção foi objeto de críticas de economistas heterodoxos que consideram a própria ideia de uma função de produção agregada insustentável teoricamente47. O que poucos notaram, no entanto, é que o argumento não é isento de ambiguidades, uma vez que o próprio Piketty fornece as bases de uma alternativa teórica. Afinal, segundo ele, “é importante enfatizar que o preço do capital [e, logo, o seu retorno] […] é sempre em parte uma construção social e política: ele reflete a noção de propriedade de cada sociedade e depende de muitas políticas e instituições que regulam as relações entre diferentes grupos sociais e, especialmente, entre aqueles que detêm e aqueles que não detêm capital”48.

Se essa afirmação for levada a sério, não faz sentido considerar que é um resultado inexorável da elasticidade de substituição entre capital e trabalho. Economistas críticos têm enfatizado há algum tempo que o aumento do percentual das rendas do capital na renda é resultado de um conflito político em que os trabalhadores têm sido derrotados49. E, assim, conseguem explicá-lo sem recorrer a uma função de produção agregada50. Para Piketty, dar o passo de inscrever a sua “primeira lei fundamental do capitalismo” no seio do conflito distributivo representa simplesmente levar às últimas consequências a sua compreensão política sobre o capital. Esse passo teria, contudo, implicações significativas. Uma concepção ampliada do conflito distributivo permitiria cogitar soluções à espiral da desigualdade que não se restringiriam a corrigir, via sistema tributário, uma realidade determinada tecnicamente. Significaria integrar, na dinâmica que ele identifica, um elemento surpreendentemente ausente: as lutas políticas e sociais. Não se trata de questionar a relevância do imposto global sobre o capital que ele defende, que sem dúvida tem um papel destacado a desempenhar. Mas, apenas, de apontar para a necessidade de alargar o horizonte normativo. Segundo ele, “se quisermos retomar o controle sobre o capitalismo, devemos apostar tudo na democracia”. Apostar tudo na democracia significa também compreender que o seu real alcance está menos sujeito a limites técnicos do que faz crer uma parte substancial da teoria econômica dominante.

Nos limites dessa resenha, não é possível fazer justiça ao livro de Piketty. A fim de privilegiar uma exposição resumida de seu diagnóstico do tempo presente, optou-se por não abordar muitas outras contribuições do livro: da metodologia inovadora para coletar dados sobre desigualdade aos comentários críticos a teorias econômicas variadas, do exame detalhado da história da progressividade tributária ao modo de apresentação erudito, entre muitas outras. Não é possível julgar com certeza, passados apenas alguns meses de sua publicação, se o argumento de Piketty resistirá à passagem do tempo. No entanto, não há dúvida de que, na grande disputa ideológica que está se travando sobre os rumos futuros da teoria econômica e sobre a própria natureza do debate público sobre desigualdade, O capital no século XXI desempenhará um papel de protagonista. Os jovens que ocuparam Wall Street e colocaram na pauta a distinção entre os 99% e o 1%, assim como vários outros movimentos sociais que combatem as desigualdades, têm um novo aliado.

Notas

1 PIKETTY, T. Capital in the Twenty-First Century. Trad. Arthur Goldhammer. Cambridge: Harvard Uni-versity Press, 2014. p. 274-275.

2 KONCZAL, M. “Studying the Rich“. Boston Review, jul.-ago. 2014.

3 MILANOVIC, B. “The Re-turn of ‘Patrimonial Capi-talism’: A Review of Tho-mas Piketty’s ‘Capital in the Twenty-First Century'”. Journal of Economic Literature, vol. 52, n. 2, 2014. p. 520.

4 NOBRE, M. A teoria crítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

5 Utiliza-se aqui a palavra “desigual-dade” para se refe-rir às desigualdades socioeconômicas, de renda e riqueza, que são investiga-das por Piketty. Há, é claro, muitas ou-tras desigualdades (de gênero, de po-der, de reconheci-mento social etc.) que não podem ser ignoradas em um diagnóstico do tempo presente que se pretenda abran-gente.

6 PIKETTY, T. op. cit., cap. 8.

7 Ibi-dem, p. 571.

8 Ibi-dem, p. 173.

9 Ibidem, p. 47-50, 119.

10 A renda nacio-nal é igual ao pro-duto interno bruto (PIB) menos a de-preciação mais a renda líquida rece-bida do exterior, segundo as defini-ções convencionais da contabilidade nacional, adotadas por Piketty.

11 PIKETTY, T., op. cit., cap. 3.

12 Ibidem, p. 140-146.

13 Ibidem, p. 146-150.

14 Ibidem, p. 148.

15 Ibidem, p. 149. Em outra passa-gem, Piketty afirma que não é necessá-rio concordar com todas as teses de Lênin para compar-tilhar sua conclusão de que “o acirra-mento da competi-ção entre as potên-cias europeias por ativos coloniais obviamente contri-buiu para o clima que, em última instância, levou à declaração de guerra no verão de 1914”. Piketty, T., op. cit., p. 142.

16 Ibi-dem, p. 154.

17 Ibidem, cap. 5.

18 Ibidem, p. 173.

19 Ibidem, p. 220-222, 255-260. Para uma exposi-ção formal da rela-ção entre a distri-buição funcional (isto é, entre salá-rios e rendas do capital) e a distri-buição pessoal da renda, ver: ATKINSON, A. “Factor Shares: The Principal Pro-blem of Political Economy?”. Oxford Review of Economic Policy, vol. 25, n. 1, 2009. p. 8-12.

20 Piketty, T., op. cit., p. 383-385.

21 Ibi-dem, p. 378.

22] ACEMOGLU, D. “Technical Change, Inequality, and the Labor Market”. Journal of Economic Literature, vol. 40, n. 1, 2002. p. 7-72.

23 PIKETTY, T., op. cit., p. 150-156.

24 Um dado rela-tado por Piketty ajuda a dar a di-mensão dessa diferença: enquanto a população da França dobrou entre a Revolução Fran-cesa e o momento atual (passando de cerca de 30 milhões de habitantes para 60 milhões), a po-pulação dos Esta-dos Unidos au-mentou cem vezes no mesmo período (de 3 milhões para 300 milhões). Pi-ketty, T., op. cit., p. 29.

25 PIKETTY, T., op. cit., pp. 315-321.

26 Ibidem, p. 254.

27 Ibidem, p. 249.

28 Como observa o autor, é muito difícil distinguir ambos na prática. Piketty, T., op. cit., p. 439-447.

29 PIKETTY, T., op. cit., p. 166-170.

30 Ibidem, cap. 2.

31 Ibidem, p. 196. Tal suposição para s foi objeto de críti-cas, mas o prog-nóstico pouco se altera se a taxa de poupança cair, desde que caia menos do que g. Krusel, P.; Smith, T. “Is Piketty’s ‘Second Law of Capitalism’ Fundamental?”. Mimeo, 2014. Para uma exposição mais detalhada do argumento de Pi-ketty, ver: Piketty, T.; Zucman, G. “Capital Is Back: Wealth-Income Ratios Is Rich Countries, 1700-2010”. Paris School of Economics, 2013. p. 9-18.

32 PIKETTY, T., op. cit., p. 52-55.

33 FOLEY, D.; Michl, T. Growth and Distribution. Cam-bridge: Harvard University Press, 1999. p. 146-149.

34 PIKETTY, T., op. cit., p. 217-223. A crítica conservadora ao livro de Piketty tem se focado es-pecialmente nesse ponto. Summers, L. “The Inequality Puzzle”. Democracy: A Journal of Ideas, n. 33, 2004. Pessôa, S. “Erros e acertos do fenômeno ‘O capital no século 21′”, Folha de S.Paulo, Ilustríssi-ma, 8 jun. 2014. Para uma análise mais cuidadosa da questão, relacio-nando o argumento de Piketty com seu conceito ampliado de capital, ver: Rowthorn R. “A Note on Thomas Piketty’s ‘Capital in the Twenty-First Centu-ry'”. Mimeo, 2014.

35 PIKETTY, T., op. cit., p. 571. Ver também Piketty, T., op. cit., p. 25-27, 350-358.

36 Ibi-dem, p. 351.

37 Ibidem, p. 353-358.

38 RICARDO, D. On the Principles of Political Economy and Taxation. 3. ed. Indianapolis: Liberty Fund, 2004. p. 5.

39 KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest, and Money. Nova York: Pro-metheus Books, 1997. p. 4-5.

40 PIKETTY, T., op. cit., p. 508-514.

41 Ibidem, cap. 15.

42 NAIDU, S. “Ca-pital Eats the World“. Jacobin, 2014.

43 PIKETTY, T., op. cit., p. 30-33.

44 Ibidem, p. 96-99.

45 Ibidem, p. 98-99.

46 Ibidem, p. 330-333.

47 GALBRAITH, J. “Kapital for the Twenty-First Centu-ry?”. Dissent, 2014. Ackerman, S. “Pi-ketty’s Fair-Weather Friends”. Jacobin, 2014. Nesse ponto, o isolamento da teoria econômica dominante, na qual Piketty foi formado, em relação a pers-pectivas alternativas cobrou o seu preço. Seus comentários sobre as chamadas controvérsias do capital, assim como seus comentários sobre Marx, de-monstram uma falta de familiaridade surpreendente, dado o cuidado com o qual o livro foi escrito. Ver Pi-ketty, T., op. cit., p. 7-11, 227-232.

48 PIKETTY, T., op. cit., p. 188.

49 STOCKHAMMER, E. “Why Have Wage Shares Fallen? A Panel Analysis of the Determinants of Functional Income Distribution“. ILO, n. 35, 2013. (Condi-tions of Work and Employment Seri-es).

50 Há uma vasta literatura que de-fende que a distri-buição funcional da renda é resultante de um conjunto de determinantes econômicos, políti-cos e sociais. Ver, por exemplo, Foley, D.; Michl, T. op. cit., p. 146-149. Um dos desdobramentos dessa literatura é a investigação da trajetória da taxa de lucro, por meio da sua decomposição no percentual dos lucros no produto multiplicado pela razão produ-to/capital, que é uma outra versão da “primeira lei fundamental do capitalismo” de Piketty. Um exem-plo recente dessa literatura é BASU, D.; R. Vasudevan. “Technology, Dis-tribution and the Rate of Profit in the US Economy: Un-derstanding the Current Crisis”. Cambridge Journal of Economics, vol. 37, n. 1, 2013. p. 57-89.

Fernando Rugitsky – Pesquisador do Núcleo de Direito e Democracia do Cebrap.

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Martinha versus Lucrécia. Ensaios e entrevistas, de Schwarz, Roberto-Schwarz-(NE-C)

SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia. Ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Resenha de: QUERIDO, Fabio Mascaro. Colapso da modernização. Roberto Schwarz e a atualização da dialética à brasileira. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.97, Nov, 2013.

A figura intelectual de Roberto Schwarz (1938) dispensa grandes apresentações. Filho de imigrantes vienenses, crítico e ensaísta bastante (re)conhecido, sua trajetória permite observar de um ângulo privilegiado – do ponto de vista dos vencidos de hoje e de ontem – as experiências da esquerda intelectual brasileira, desde a aposta algo otimista nos desdobramentos da radicalização política do início da década de 1960 até o atual estágio destrutivo do desenvolvimento capitalista, já num contexto de “colapso da modernização”. A abrangência temática, passando por diferentes esferas da vida cultural, assim como a originalidade de sua filiação dialética, fizeram da obra de Roberto Schwarz um testemunho ativo das transformações e reviravoltas do pensamento crítico brasileiro, em suas diversas tentativas de se reinventar à luz das condições de possibilidade de um presente determinado.

Por isso mesmo, seu mais recente livro, Martinha versus Lucrécia – que reúne quase duas dezenas de ensaios e entrevistas do autor no último decênio -, constitui uma bela amostra de uma crítica dialética afinada com seu “tempo-de-agora”, capaz de articular num só processo de reflexão as novas aparições de sua matéria básica (no caso, a matéria brasileira) e a meditação sobre as formas de abordagem teórica dessa matéria. Com efeito, se os ensaios retomam temas que há muito constavam no repertório do autor – sobretudo a interpretação de Machado de Assis e a presença teórica constante de Antonio Candido -, o fazem sob nova chave histórica, acompanhando, por assim dizer, os desdobramentos da ordem capitalista contemporânea. O método dialético afiado permanece, mas adquire novas tonalidades, à altura da ruptura de época, que altera significativamente os termos da oposição entre local e universal – o que já se pode notar no primeiro texto, “Leituras em competição”, no qual as divergências entre leituras nacionais e estrangeiras da obra de Machado de Assis são postas à prova das novas características do desajuste entre a particularidade brasileira e a pretensa universalidade da experiência europeia transformada em modelo histórico.

A compreensão deste verdadeiro “sentimento da dialética” que a experiência brasileira colocava em cena, e da qual Machado foi um “mestre” em sua capacidade de formalização literária, apresentava-se para Roberto Schwarz – desde os tempos de estudante de Ciências Sociais, quando participara ativamente das reuniões do Seminário d’O Capital – como oportunidade histórica para o desenvolvimento de um ensaísmo dialético estreitamente vinculado às transformações de sua matéria particular (o próprio Brasil), cujas características de atraso em relação à norma-padrão não significavam um simples desvio ou exceção, pronto a ser superado por uma “viravolta iluminada”, mas, sim, parte constituinte e indispensável à reprodução da ordem capitalista global. O “progresso” já estava em marcha, e a condição de subdesenvolvimento era já o próprio futuro no presente, reincorporando em novas formas aspectos aparentemente insuperáveis do passado. “Os meninos vendendo alho e flanela nos cruzamentos com semáforo não são a prova do atraso do país, mas de sua forma atroz de modernização.”1

Como já havia demonstrado em seus trabalhos anteriores, a função do narrador nos romances de Machado de Assis posteriores à “reviravolta machadiana” (título do penúltimo ensaio2), mais concretamente após a publicação do célebre Memórias póstumas de Brás Cubas, em 1880, era justamente articular um novo dispositivo formal (não realista) capaz de forjar uma percepção realista das dissonâncias e ambivalências das classes dominantes no Brasil do século XIX, as quais “lideravam” a desagregação do progresso burguês na periferia do sistema, e “afastavam do padrão moderno – mas não da modernidade sem padrão – a nossa gente de bem”3. A acuidade dialética era inequívoca, pois, com esse arranjo formal, “o narrador machadiano realizava em grau superlativo as aspirações de elegância e cultura da classe alta brasileira, mas para comprometê-la e dá-la em espetáculo”, ridicularizando-a aos olhos do superego europeu4. No plano histórico-concreto, demonstrava-se então que “os proprietários [brasileiros] participa[va]m intensamente do progresso contemporâneo, mas isto graças às relações antiquadas em que se apoia[va]m, e não a despeito delas, e menos ainda por oposição a elas, como imaginaria o senso comum”5.

É por este motivo que, no fim das contas, as ideias liberais-burguesas estavam e não estavam no lugar na sociedade brasileira periférica do século XIX, conforme reafirma Roberto na conferência “Por que ‘ideias fora do lugar’?”6, proferida em Buenos Aires, em 2009, na qual o crítico sustenta – na contramão das críticas de Maria Sylvia de Carvalho Franco e de Alfredo Bosi – que o título aludia, à época, mais a uma sensação comum de desajuste e dissonância do que a uma opinião ou prognóstico do autor, uma vez que, no limite, as “ideias têm sempre alguma função, e nesse sentido sempre estão no seu lugar”7.

Para entender a realidade brasileira, em sua conexão com a ordem mundial, mas também em suas singularidades mais ou menos irredutíveis, era preciso, portanto, na ótica de Schwarz, restabelecer o primado do objeto (no dizer de Adorno, tema exclusivo de uma das entrevistas do livro8), configurando uma dialética aberta – avessa às formalizações sistemáticas – e que opera por meio de totalizações provisórias. Entre processos sociais globais e objetos estético-culturais não há, no pensamento de Roberto, qualquer forma de sociologismo, tampouco de determinismo causal. Há, isto sim, complexos de relações expressivas (como diria Walter Benjamin) entre domínios diversos, e às vezes opostos, da vida social e das mudanças culturais, que se “internalizam” reciprocamente e, assim, “ficam articulados por dentro”9. A sua própria forma de exposição sugere um olhar duplo: de “dentro” e de “fora”, como se cultura e relações capitalistas, ou, em outras palavras, civilização e barbárie, fossem uma só totalidade dialética em movimento.

Trata-se, no limite, de encontrar nos pequenos fragmentos da cultura – através dos artifícios da crítica imanente – indícios analíticos do processo social, num constante vaivém dialético entre mediações de diversos níveis. Daí o seu ensaísmo inconfundível, no qual os temas vão reaparecendo e sendo retomados com novas configurações no interior dos textos. A impressão de redundância representa, antes, uma escrita certeira, não linear, que, se não escapa às vezes a certo hermetismo, quase sempre flui como uma espécie de composição dialética em ato. Basta ver, por exemplo, suas análises da prosa ensaística de Gilda de Mello e Souza, em que – ao sustentar teoricamente a análise formalimanente da autora – compõe ele próprio uma prosa que é também uma amostra de tal método crítico, cujo papel ativo na determinação do objeto não anula – muito pelo contrário – o seu primado materialista.

A preocupação com as tensões entre a escrita e o objeto abordado, entre forma de exposição e conteúdo, preocupação que atravessa o ensaísmo de Schwarz, revela não apenas a precariedade do objeto, senão também a precariedade da própria escrita, motivo pelo qual o autor é impelido a realizar um significativo esforço de autorreflexão, num esplêndido exemplo daquilo que Fredric Jameson denominou “autoconsciência dialética”, dispositivo necessário para a manutenção do caráter crítico e atualizador do marxismo.

Mas “autoconsciência”, no caso, era nada mais nada menos do que a consciência permanente de que o ponto de vista do crítico, além de “universalmente” anticapitalista, está situado na periferia do sistema, impondo desafios extras, além dos materialmente já conhecidos, ao mesmo tempo que abre um novo leque de possibilidades no âmbito da reflexão crítica sobre a ordem burguesa moderna. Dos elos mais débeis da reprodução global do sistema capitalista, com todas as mazelas que lhes correspondem, aparecem com maior nitidez e agudeza as perversões e os limites do “progresso”. Não por acaso, e a obra de Roberto Schwarz (bem como a de seu mestre Machado) é uma prova concreta disso, a perspectiva da periferia estimulou respostas intelectuais e artísticas ousadas, difíceis de visualizar situando-se sob o ângulo da linha evolutiva do progresso dos países centrais. Uma pequena “vantagem do atraso”, meramente intelectual ou simbólica, mas que em certa medida serviu para antecipar alguns dos rumos assumidos pelo capitalismo contemporâneo, quando a fratura social não é mais privilégio da periferia.

Desde algumas décadas, com a terceira revolução industrial e o consequente esgotamento dos paradigmas da modernização e do desenvolvimentismo, novas dificuldades surgiram no espectro do pensamento crítico e da esquerda intelectual. (A propósito, ver o ensaio do próprio Roberto sobre a – não – atualidade de Brecht, baseado no argumento de que, no contexto contemporâneo, a “verdade” não aparece na vida social com a mesma nitidez dos tempos do poeta e dramaturgo alemão). Neste contexto, salta aos olhos a necessidade de um novo diagnóstico de época, cuja realização depende de uma “atualização” da reflexão teórica em função do presente, uma “atualização” que, cancelando todo compromisso com a modernização capitalista, encontra nas experiências da periferia um prelúdio trágico da nova ordem: a flexibilidade (leia-se: precariedade) e a informalidade não são uma novidade para nós.

Por isso, é como se o “presente [fizesse] ver no passado sobretudo o prenúncio do impasse atual, impugnando as evidências externas do progresso”10. Pois agora, de uma vez por todas, “o jogo entre informalidade e norma perdeu o vetor temporal, ligado às promessas da modernização. A informalidade não está vencida, a norma não está no futuro, ou, ainda, a norma é que pode ser coisa do passado, enquanto a informalidade se instalou a perder de vista”11 – como diz Schwarz ao comentar os poemas de Francisco Alvim (“Um minimalismo enorme”12). Bem entendido, desde a emergência dos tempos da assim chamada globalização, “para desconcerto geral da esquerda, a modernização agora se tornava e reiterava a marginalização e a desagregação social em grande escala”13, afirma o crítico numa das três entrevistas inseridas no livro (“Agregados antigos e modernos”14). Da dialética da malandragem com seus contornos de uma via alternativa de modernização chega-se, enfim, à marginalidade entranhada num “estado de exceção permanente”.

Como observa muito bem Roberto Schwarz no ensaio “Prefácio a Francisco de Oliveira, com perguntas”, a própria trajetória intelectual de Chico de Oliveira, da Crítica à razão dualista (1972) ao Ornitorrinco (2003), reflete os andamentos do congestionamento histórico do desenvolvimentismo como solução para os problemas estruturais do país, no espectro das brechas propiciadas pela modernização e pela segunda revolução industrial. Se, no primeiro trabalho, embora desmontasse criticamente o dualismo cepalino e, por conseguinte, os esquemas etapistas do marxismo oficial (pcb), ainda restava alguma esperança nas possibilidades da luta nacional contra o subdesenvolvimento, o segundo ensaio, em espírito de anticlímax, “reconhece o monstrengo social que, até segunda ordem, nos transformamos”15: o “ornitorrinco”, este “bicho que não é isto nem aquilo” que veio a se tornar o “país do futuro”. Neste contexto, “o subdesenvolvimento deixa de existir, mas não as suas calamidades”16.

O longo ensaio sobre o livro de Caetano Veloso (“Verdade Tropical: um percurso de nosso tempo”17), previsivelmente o mais comentado nos âmbitos midiáticos, é peça-chave da composição desta argumentação, à medida que desvela um processo concreto de aceitação deliberada dos termos da “nova ordem mundial” em sua versão periférica, refletindo os ressentimentos subsequentes ao fracasso do “percurso democrático de modernização”18. Para Schwarz, o valor literário da obra de Caetano, publicada em 1997, encontra-se na capacidade de descrever, mais de três décadas depois, a atmosfera de esperança e de ebulição (e, claro, também de ilusões) da radicalização política e estética em Salvador (e no Brasil) nos anos que precederam 1964. Mas tal valor reside também, desde que o texto seja lido como uma “dramatização histórica” – o que inclui uma “boa dose de leitura a contrapelo” -, na análise da maneira como Caetano vai acertando os pontos com a normalização e o “horizonte rebaixado e inglório do capital vitorioso”19.

É no espectro deste “inconsciente político” – que vai da esquerda à direita – que sobressai a versão carnavalizada (tropicalista) de uma modernização que, sobretudo após o golpe de 64, seguiu o rumo dos imperativos do mercado (acrescida de boa dose de violência política), abandonando de vez as promessas que pareciam acompanhá-la. Se a nossa modernidade é isso que está aí, o caminho em direção ao mercado, assim como o abandono das esperanças políticas anticapitalistas, era quase inevitável, intensificando-se até chegar ao auge (neo)liberal a partir da década de 1990.

No caso de Caetano, o fracasso da esquerda ganhava ares de alívio, sendo antevisto como estímulo à libertação dos mitos dos revolucionários, com sua fé disciplinada na “energia libertadora do povo”. A sensação era de ruptura com uma prisão mental, algo um tanto análogo ao culto pós-modernista da falência dos grandes projetos intelectuais e artísticos mais ou menos engajados. E para facilitar o trabalho de “desconstrução”, Caetano generalizava “para a esquerda o nacionalismo superficial dos estudantes que o vaiavam, bem como a idealização atrasada da vida popular que o Partido Comunista propagava”20.

Com uma leitura bem particular (para dizer o mínimo) de Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, Caetano levou adiante um processo de reavaliação radical do passado recente, visualizando nas decepções do personagem intelectual Paulo Martins o clímax da desintegração definitiva da aliança entre intelectual e povo – argumento que lhe bastava para comprovar a necessidade de se abandonar o engajamento e as “ilusões” de outrora, inserindo-se nas questões de real importância, sediadas no mercado. Noutras palavras: “A desilusão de Paulo Martins transformara-se em desobrigação. Esta a ruptura, salvo engano, que está na origem da nova liberdade trazida pelo tropicalismo. Se o povo, como antípoda do privilégio, não é portador virtual de uma nova ordem, esta desaparece do horizonte, o qual se encurta notavelmente”21. O antagonismo cede lugar ao desejo de conciliação, que não recuou nem mesmo diante do desafio de legitimar a ditadura civil-militar implantada em 1964, “contra a ameaça do bloco comunista”, como diz o próprio Caetano22. Daí em diante, a adesão ao discurso dos vencedores transformava-se em fato consumado, adesão, aliás, que permanece dando o tom cada vez mais conservador das posições políticas do compositor.

Pois bem: destas análises contemporâneas de Roberto Schwarz, que mantêm e, de certa forma, ampliam o nível de acuidade crítica que sempre lhe foi característico, sobressalta a ideia-básica – que também pode ser encontrada nas reflexões mais recentes de Chico de Oliveira ou de Paulo Arantes – de que um novo diagnóstico de época pressupõe, acima de tudo, a atualização da tradição dialética à brasileira, dotando-a de condições teóricas, intelectuais e políticas para confrontar os novos dilemas que emergiram no atual estágio de reprodução social e cultural do sistema. Melhor dizendo: tratar-se-ia de se repassar os lugares-comuns da tradição crítica brasileira, como a ideia da construção nacional interrompida, por um prisma teórico e político à altura das inflexões do presente (mais uma vez, seria preciso questionar: “Que horas são?”).

Pois o “colapso da modernização” (Robert Kurz) e de suas brechas históricas significa, ao mesmo tempo, um esmaecimento de um padrão (e/ou norma) histórico que, de fato, nunca passou de uma “inspiração”, ou melhor, “aspiração” política, intelectual e cultural de nações de desenvolvimento capitalista tardio, da periferia da ordem global. Hoje em dia, quando o estado de exceção parece permanente até mesmo em alguns países ditos centrais, a periferia continua periferia (“Martinha [continua estando] para Lucrécia como o Brasil para os países adiantados”23, donde a filiação machadiana do título24). Porém, agora, também a periferia está completamente sitiada pelos preceitos da forma-mercadoria e dos seus paradoxais “sujeitos monetários sem dinheiro” (outra ideia de Robert Kurz retomada criticamente por Schwarz). Com efeito, o cenário se complica ainda devido ao caráter difuso e à aparente ausência de classes sociais potencialmente antagônicas, as quais se revelam como que emboladas na vala comum das “águas geladas do cálculo mercantil” (Marx).

O pensamento de Roberto Schwarz, que jamais se furtou a tomar como matéria decisiva os imbróglios do presente (“O crítico precisa ter a atualidade bem agarrada pelos chifres”, como disse Walter Benjamin, citado pelo autor25), constitui uma preciosa – se não indispensável – contribuição para a revitalização da teoria crítica e o alargamento do horizonte político das classes subalternas no Brasil e no mundo, que ainda aguardam, a partir dos múltiplos focos de lutas de resistência (como os mutirões e as lutas por moradia popular, abordadas nos dois textos sobre temas da arquitetura26), um novo despertar histórico. Este protagonismo do presente, que Roberto Schwarz visualiza na obra de seu amigo Michael Löwy (“Aos olhos de um velho amigo”27), caracteriza um pensamento em consonância com a realidade realmente existente, mas voltado também para a “imaginação” dialética das potencialidades emancipatórias imanentes dirigidas ao futuro.

 Notas

1 SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 164.         [ Links ] 2 Ibidem, pp. 247-79.
3 Ibidem, p. 272.
4 Ibidem, pp. 271-3.
5 Ibidem, p. 275.
6 Ibidem, pp.165-72.
7 Ibidem, p. 170.
8 Ibidem, pp. 44-51.
9 Ibidem, p. 72.
10 Ibidem, p. 136.
11 Ibidem, p. 136.
12 Ibidem, pp. 111-42.
13 Ibidem, p. 178.
14 Ibidem, pp. 173-83.
15 Ibidem, p. 152.
16 Ibidem, p. 157.
17 Ibidem, pp. 52-110.
18 Ibidem, p. 75.
19 Ibidem, p. 110.
20 Ibidem, p. 90.
21 Ibidem, p. 79.
22 Cf. ibidem, p. 108.
23 Ibidem, p. 44.
24 A crônica “O punhal de Martinha”, publicada por Machado de Assis em 1894, e que serve de inspiração ao título dado por Schwarz, está reproduzida como apêndice no livro (pp. 307-10).
25 SCHWARZ, op. cit., p. 157.
26 “Saudação a Sergio Ferro” (pp. 215-22) e “Um jovem arquiteto se explica” (pp. 223-31).
27 Ibidem, pp. 207-14.

Fabio Mascaro Querido- Doutorando em Sociologia no IFCH-Unicamp e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

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São Paulo: Novos recursos e atores – Sociedade, cultura e política – KOWARICK; MARQUES (NE-C)

KOWARICK, Lúcio; MARQUES, Eduardo (Orgs.). São Paulo: Novos recursos e atores – Sociedade, cultura e política.  São Paulo: Editora 34/Centro de Estudos da Metrópole, 2011. Resenha de: Goulart, Jefferson. Novos percursos e atores em São Paulo: indicativos para uma agenda de pesquisa. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.97, Nov, 2013

É conhecido o enigma da esfinge: decifra-me ou te devoro. A ideia fundamental consiste em que o ignorado é capaz de nos tragar precisamente pela dificuldade de compreendê-lo. Provavelmente a mais radical efetivação do enunciado tenha se materializado por ocasião da ruptura com o Ancien Régime e na invenção da modernidade, quando Saturno revelou sua fúria e devorou os próprios filhos – os rebentos da revolução. A pergunta indigesta permanece: mesmo em um novo mundo pautado pela razão, estaríamos condenados à ignorância?

Particularmente no que respeita aos estudos urbanos, nossa trajetória intelectual é valiosíssima. As pesquisas de diferentes áreas do conhecimento e mesmo aquelas de abordagem interdisciplinar produziram um extenso mosaico sobre a realidade urbana brasileira, notadamente das grandes cidades. Não por acaso, a obra organizada por Kowarick e Marques se inicia no olhar panorâmico e retrospectivo sobre essa produção.

O legado desse conhecimento influenciou gerações de estudos, demarcando a indissociável relação entre segregação socioespacial e dinâmica capitalista, ou seja, o urbano tratado como objeto privilegiado de reprodução do capital sob o impulso do Estado mediante a existência de um exército industrial de reserva. Pobreza e desigualdade tematizaram a literatura correspondente para depois se fragmentarem teórica e metodologicamente.1

Mesmo assumindo-a como uma escolha arbitrária, a síntese dessa tradição de pesquisa pode ser identificada no achado seminal de que a percepção de caos e a aparente ausência de ordem tinham, sim, uma lógica: a da espoliação urbana.2 Mais ainda: a acumulação foi operada por meio de mecanismos de dilapidação da força de trabalho (e nas formas perversas de sua reprodução), da primazia do capital financeiro-imobiliário que se manifestou em grandes ações das incorporadoras e da interrupção de direitos de cidadania mediante uma ação estatal autoritária. Enfim, uma urbanização anômica3 que se traduziu em uma desordem ordenada.

A multiplicidade de influências teóricas e de escolhas metodológicas dessa rica tradição – dentre as quais se destaca o prestígio da matriz estruturalista da sociologia marxista francesa – ensejou um consenso genérico sobre o processo de urbanização em geral e particularmente sobre sua maior cidade: “cidade multifacetada, plena de contrastes, conjugando dinamismo, coração econômico do país marcado por vastas extensões de pobreza”.4 São Paulo é isso e muito mais.

São Paulo: novos percursos e atores se debruça precisamente sobre esse “muito mais”, e oferece um largo panorama das mudanças recentes, das permanências e das rupturas que fizeram dessa megalópole um lugar paradoxal que provoca amor e ódio, e cujo magnetismo já não é mais o mesmo a ponto de atrair e fascinar os incautos. Assim desmistificam-se as previsões demográficas do século XX5, constatação inseparável da tendência à sobreposição de funções de estruturas econômicas industriais e terciárias.6 Mais ainda: as desigualdades do mercado de trabalho têm determinações anteriores ao acesso à ocupação, relacionadas aos atributos desses candidatos ao emprego e aos contextos nos quais estão inseridos.7

A chave do enigma foi anunciada no título da obra, na adoção de um adjetivo temporal no plural: novos. É em torno dessa escolha (menos semântica e mais conceitual e analítica) e de sua subjacente aspiração ao postulado de que, com efeito, emergiram novos personagens e engrenagens, que o livro deve ser compreendido. E a referência cronológica não deve ser ignorada: embora nem todos os autores a adotem como recorte específico, as últimas quadro décadas alteraram substantivamente as configurações socioeconômica e político-institucional da cidade. Dessa perspectiva, organizadores e autores não só são convincentes como remetem a problemas cuja complexidade ainda precisa ser analisada contínua e detidamente.

Nesses termos, São Paulo: novos percursos e atores ingressa na galeria das leituras obrigatórias sobre o urbano porque sintetiza uma guinada sutil nos estudos sobre a grande megalópole. E as razões dessa distinção são diversas.

Primeiro, naturalmente, porque é convincente na pretensão de demonstrar a originalidade de alguns desses novos atores e percursos. Vista de um ângulo genérico ou aparente , evidente que São Paulo permanece segregadora, desigual e paradoxal: opulência e riqueza de um lado, vulnerabilidade e miséria de outro. Mas o tempo e os subterrâneos da cidade abrigaram mudanças importantes de quantidade e qualidade que a tornaram efetivamente diferente sob vários aspectos, a ponto de a oposição centro-periferia não ser mais suficiente como modelo explicativo das desigualdades urbanas.

Alguns exemplos simbolizam bem essas mudanças. O primeiro deles reside no plano da identidade cultural e particularmente na emergência do rap como expressão periférica de ressignificação da vida pública fundada em uma “ordem moralista, onde não existe lugar para diferença”.8 Outro é a dificuldade de discernir linhas divisórias precisas entre o “correto” e o “ilegal, o informal e o ilícito”, afinal essas dimensões (como o negócio do comércio de drogas) são socialmente legitimadas, assim como “nesses pontos de fricção que homens e mulheres negociam a vida e os sentidos da vida. No fio da navalha. O fato é que os indivíduos e suas famílias transitam nessas tênues fronteiras do legal e do ilegal…”.9

Além da presença de novos atores (caso emblemático do pcc), “o mapa da violência em São Paulo revela o confinamento da violência letal nas periferias: as franjas da cidade concentram o maior numero de homicídios”.10

Antes cidade de portugueses, italianos, espanhóis, orientais, sírio-libaneses, ex-escravos e judeus que imprimiram suas marcas a bairros, costumes e à materialidade da urbe, a São Paulo contemporânea acolhe novos estrangeiros, cujo ingresso é útil para também compreender processos complementares como a produção de serviços urbanos, as relações capital-trabalho ou as interações culturais.11

Cidade de favelização tardia comparativamente ao Rio de Janeiro, São Paulo vem registrando uma expansão desse tipo de habitação precária que sintetiza um fenômeno indissociável de sua dinâmica econômica, com destaque para a precarização do trabalho como sintoma de um estado de vulnerabilidade social mais amplo. Essa trajetória, contudo, não é linear. Tal heterogeneidade autoriza a formulação de uma “tipologia das favelas”, cuja “análise comparativa permite sustentar a existência de uma razoável variabilidade entre núcleos favelados da cidade”.12 Ainda mais surpreendente (e perturbador) é que “em termos relativos, as favelas não apenas melhoraram, como se aproximaram da situação de outros moradores da cidade, sugerindo um processo de convergência, incompleto e talvez excessivamente lento, mas mesmo assim existente entre os indicadores médios de favelados e não favelados”.13

Outros exemplos se situam no plano das relações políticas. De um lado, há que se reconhecer o processo de institucionalização da participação, mas essa trajetória não prescindiu da permanência dos movimentos sociais. Pelo contrário, estes ainda são vigorosos, sobretudo, nas temáticas mais sensíveis das políticas públicas, caso notável da centralidade da habitação.14 Claro que as práticas de clientela não desapareceram, mas os atores também não são apenas os tradicionais, aos quais se juntaram as articuladoras do associativismo, “novo tipo de ator criado na última década [que] ganhou centralidade e posicionou-se ao lado dos movimentos pela sua capacidade de agregação de demandas e de coordenação da atuação de outros atores”.15

Nessa senda, a violência organizada não se confunde com os movimentos sociais, mas não deixa de exprimir um novo e importante protagonista na cena urbana. Se em tempos não tão remotos a ascensão socioeconômica transcorria por meio das teias de integração social do trabalho, agora o cenário é bem diferente, pois “abriu-se espaço para que o ‘mundo do crime’ disputasse legitimidade com toda essa série de instituições e atores tradicionalmente legítimos nas periferias da cidade”.16 Tais mudanças foram percebidas inclusive pelo cinema, que as retratou de maneira ora caricata, ora mais realista, através de registros que às vezes selam o abismo entre distintos universos sociais e a impossibilidade de convívio entre esses mundos diferentes ou que exaltam marcas identitárias da periferia.17

No plano estritamente político, a análise de Limongi e Mesquita18 demonstra a polarização entre direita e esquerda no comportamento do eleitorado paulistano desde o restabelecimento das eleições diretas para prefeito da capital, em 1985. Os autores observam a estabilidade do eleitorado e enfatizam que as disputas têm nos eleitores de educação média (no quesito socioeconômico) e de centro (no quesito ideológico) seu núcleo decisivo. Se tais postulados estiverem corretos – e há fortes razões para aceitá-los -, os resultados de 2012 marcam uma importante guinada rumo à esquerda, cuja inclinação do centro ainda está por ser analisada.

Mas há pelo menos duas omissões importantes nas abordagens políticas do livro. A primeira diz respeito não às estratégias eleitorais e ao comportamento (relativamente flutuante) do eleitorado, mas ao desempenho desses diferentes governos de direita e de esquerda, ou seja, como estes têm se comportado na gestão de políticas públicas e quais teriam sido as razões para as oscilações do eleitorado centrista.

Outra ausência é a escassez de análises de gestão urbana, isto é, as políticas públicas e os instrumentos através dos quais os diferentes governos municipais têm enfrentado a agenda urbana: a gestão do território, a aplicação da função social da propriedade, o tratamento das agudas questões da mobilidade urbana e da habitação social (dentre outras), enfim uma avaliação político-institucional do modelo de produção do espaço urbano. Nesse sentido, um balanço – mesmo que preliminar – sobre a aplicação do Estatuto da Cidade seria indispensável, afinal, trata-se de bandeira histórica do movimento pela reforma urbana que vigora desde 2001, regulamentou o capítulo da Política Urbana da Constituição cidadã e que tem suas marcas institucionais no Plano Diretor Estratégico de São Paulo.

A segunda razão do caráter original do livro diz respeito à sua pluralidade teórica e metodológica, mérito que corrobora a correção de abordagens interdisciplinares e multidisciplinares sobre um mesmo objeto.

Definitivamente não há hierarquia entre escolhas de ferramentas sociológicas, urbanísticas, etnográficas, demográficas, políticas, comunicacionais e quaisquer outras. Pelo contrário, seus usos simultâneos produzem modelos explicativos mais sólidos e análises mais críveis. Essa diversidade de olhares revela descobertas e resultados complementares. Tal virtude contrasta com a tendência tão em voga de fragmentação excessiva do conhecimento, inclinação absorvida pelas instituições científicas e respectivas agências cujo maior risco é o confinamento do saber. São Paulo: novos percursos e atores ousa ir contra a maré, e o faz de forma persuasiva.

A terceira virtude da obra é que, mesmo não tendo a pretensão de ser conclusiva, remete a uma agenda de pesquisa que, embora já se manifestasse de forma mais ou menos difusa, ainda não fora objeto de um esforço de sistematização.

Em boa medida, essa agenda está anunciada nos temas e nas abordagens dos autores – e até poderíamos aceitar o agrupamento apresentado pelos organizadores: “viver e habitar na cidade”; “trabalho e produção”; “política e representação”; e “sociabilidade, cotidiano e violência” -, mas a proposta ainda se revela incompleta. E este é um ponto delicado, pois também envolve escolhas éticas e alguns tabus no universo acadêmico.

Um exemplo provocativo: conhecemos razoavelmente a precariedade da infraestrutura urbana das periferias, das favelas e dos cortiços, estudamos as diferentes expressões da violência e suas determinações e impactos ou ainda sabemos dimensionar minimamente os efeitos da informalidade nas relações de trabalho, todas essas dimensões relativas aos pobres e miseráveis, mas são escassos os estudos sobre os “de cima” da pirâmide social, como se sua posição socioeconômica privilegiada fosse justificativa moral para ignorá-los.

Essa lacuna é reconhecida pelos próprios organizadores quando advertem que [o livro] “não analisa centralmente um outro lado da cidade, que envolve parcela significativa da riqueza nacional”.19

A propensão a dar as costas a esses atores gera prejuízos cognitivos à medida que desconhecemos como vivem, como se organizam e como atuam tais personagens. Ou seja, como suas escolhas (e percursos) interferem na dinâmica urbana. Claro que a “desumanidade da Cracolândia”20, por exemplo, é um grande tema de pesquisa, porém, é inegável que a solução dessa chaga – em suas múltiplas dimensões: da marginalização social per se, da generalização do consumo de drogas, da saúde pública ou da violência – implica conhecer o “outro lado”, qual seja, a banda dos concertos da Sala São Paulo e os interesses imobiliários que operam no Projeto Nova Luz (e que são característicos de quaisquer processos de gentrification). Ou ainda: que o conhecimento sobre a expansão da favelização é inseparável da ação dos interesses do capital imobiliário e da conduta empresarial nas relações trabalhistas. Assim sucessivamente poderiam ser invocados exemplos ad nauseam. Fato é que ainda conhecemos pouco os “de cima”, e como estes efetivamente interferem na cena urbana e nas decisões públicas.

Em seu primeiro pronunciamento após vencer as eleições de 2012, o novo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, declarou que a cidade foi inventada para proteger e promover a integração social, e que era seu compromisso resgatar tais ideais. Bom presságio, em que pese o sabido abismo que separa o discurso normativo da realidade. O enigma da esfinge permanece nos desafiando: ou compreendemos São Paulo ou ela nos devora. Nesses termos, seria mais do que oportuno – na verdade um imperativo – absorver a advertência de J. Jacobs de que cidades vivas têm em suas próprias crises os germes da regeneração.21 O próximo período poderá responder se esse otimismo contido é justificável.

Novos personagens e seus respectivos caminhos foram enunciados em 16 textos por 26 autores – baliza paradigmática na agenda de pesquisa sobre o urbano em geral e São Paulo em particular -, restando agora continuar a decifrá-los. Este é, simultaneamente, o mérito e o desafio de São Paulo: novos percursos e atores.

Notas

1 MOYA, Maria Encarnación. “Os estudos sobre a cidade: quarenta anos de mudança nos olhares sobre a cidade e o social”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (Orgs.). São Paulo: novos percursos e atores – sociedade, cultura e política. São Paulo: Editora 34/Centro de Estudos da Metrópole, 2011, pp. 25-50.         [ Links ] 2 A esse respeito, ver: KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.         [ Links ] 3 KOWARICk e MARQUES (orgs.), op. cit., p. 15.
4 Ibidem, p. 9.
5 BAENINGER, Rosana. “Crescimento da população na Região Metropolitana de São Paulo: descontruindo mitos do século XX”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 53-78.         [ Links ] 6 COMIN, Alvaro. “Cidades-regiões ou hiperconcentração do desenvolvimento? O debate visto do Sul”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp.157-177.         [ Links ] 7 GUIMARÃES, Nadya; BRITO, Murillo de; SILVA, Paulo Henrique da. “Os mecanismos de acesso (desigual) ao trabalho em perspectiva comparada”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 179-204.         [ Links ] 8 CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. “O rap e a cidade: reconfigurando a desigualdade em São Paulo”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 318.         [ Links ] 9 TELLES, Vera da Silva; Hirata, Daniel. “Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 391.         [ Links ] 10 MIRAGLIA, Paula. “Homicídios: guias para a interpretação da violência na cidade”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 334.         [ Links ] 11 LEME, Maria Cristina da Silva; Feldman, Sarah. “A presença estrangeira: processos urbanos e escalas de atuação”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 131-154.         [ Links ] 12 SARAIVA, Camila; Marques, Eduardo. “Favelas e periferias nos anos 2000”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 119.
13 Ibidem, pp. 126-7.
14 TATAGIBA, Luciana. “Relação entre movimentos sociais e instituições políticas na cidade de São Paulo: o caso do movimento de moradia”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 233-252.         [ Links ] 15 LAVALLE, Adrian Gurza; CASTELLO, Graziela; BICHIR, Renata. “Movimentos sociais e articuladoras no associativismo do século XXI”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 260.         [ Links ] 16 FELTRAN, Gabriel. “Transformações sociais e políticas nas periferias de São Paulo”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 361.         [ Links ] 17 HAMBURGUER, Esther; STÜCKER, Ananda; CARVALHO, Laura; Ramos, MIGUEL. “Cinema contemporâneo e políticas de representação da e na urbe paulistana”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 279-299.         [ Links ] 18 LIMONGI, Fernando; Mesquita, Lara. “Estratégia partidária e clivagens eleitorais: as eleições municipais pós-redemocratização”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 207-232.         [ Links ] 19 KOWARICK e MARQUES, op. cit., p. 16.
20 KOWARICK, Lúcio. “O centro e seus cortiços: dinâmicas socioeconômicas, pobreza e política”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p.88.         [ Links ] 21 JACOBS, Jane. Morte e Vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.         [ Links ]

Jefferson O Goulart – Professor do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec).

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Marking samba: A new History of race and music in Brazil – HERTZMAN (NE-C)

HERTZMAN, Marc. A. Marking samba: A new History of race and music in Brazil Durhcham: University Press, 2015. Trad. Livre  Dmitri Cerbonicine Fernandes. Resenha de: FERNANDEZ, Dmitri Cerbonicine. De “pelo telefone” a “internet”: tensões entre raça, direitos, gênero e nação. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.102, Jul, 2013.

Nos últimos quinze anos, os chamados brasilianistas norte-americanos e britânicos voltaram seus olhos a temas anteriormente circunscritos aos nativos – caso geral da música popular brasileira e, em específico, do samba e do choro1. Se, por um lado, nossas obras musicais populares desde há tempos são bastante apreciadas e (re) conhecidas, chamando a atenção de vasto público, o mesmo não se poderia dizer das reflexões acadêmicas tecidas sobre essas obras e seus criadores.Os trabalhos da nova geração de brasilianistas são,por isso mesmo,um alento em diversos sentidos.A mera existência de um interesse estrangeiro por objetos de pesquisa tradicionalmente relegados a segundo plano nas ciências humanas auxilia a modificação do panorama de certo desapreço pelo assunto, forçando a universidade e demais instituições a reverem suas posições.A lastimável ausência de tradução dessas pesquisas para o português e a falta de interlocução dos estudiosos brasileiros – muitas vezes encerrados apenas na discussão em língua pátria e,quando não,em sua própria área ou subárea-talvez estejam com os dias contados; prenúncio de uma possível maturação de um campo de estudos que, embora secundário se comparado com o dos “grandes temas” – políticos, históricos, sociais -, não se iniciou ontem2.

Conquanto os resultados das análises empreendidas por esse novo grupo de brasilianistas variem bastante em termos de metodologia empregada, escopo, materiais coletados e ineditismo, são evidentes o impacto e a qualidade, se não de todas, pelo menos de algumas delas, o que as equipara ao que de melhor já foi escrito por aqui sobre a música popular em seus diversos aspectos. Dentre os livros que se destacam, um deles, sem dúvida, é Making samba: a new history of race and music in Brazil, do professor da Universidade de Illinois, Estados Unidos, Marc A. Hertzman. Originalmente uma tese de doutorado em História da América Latina defendida na Universidade de Wisconsin-Madison, em 2008, o livro recebeu dois prestigiosos prêmios nos Estados Unidos3, o que o gabaritaria, por si só, à tradução imediata.

Logo de início, Marc Hertzman propõe um novo mergulho em águas passadas, quer dizer, ele se dispõe a revisitar pelo menos três eixos estruturantes de nossa música que já foram, em separado, alvos da bibliografia específica: 1) o lugar do negro e as possibilidades de ação, repressão e reconhecimento no nascente universo artístico4; 2) o aparecimento das instituições comerciais em meio ao fazer musical popular e as resistências e colaborações que essas instituições passaram a alimentar da parte de artistas, intelectuais, jornalistas, políticos, folcloristas etc.5; 3) os sentidos do entrelaçamento da ascendente forma musical popular brasileira no início do século XX com a ideia emergente de nação e a instauração da República6. No entanto, há em sua problematização um entrelaçamento entre esses três eixos, algo que nunca havia sido tentado antes. O resultado é um livro que traz inúmeros dados, situações, fotos e declarações que recebem nova luz interpretativa, fornecendo no conjunto um panorama inédito de questões que se pensavam solucionadas.Os que,mesmo assim,ainda imaginarem que se trata de mero exercício desnecessário e repetitivo de diletantismo rapidamente se convencerão do contrário por conta de outro motivo: a presença de um elemento que confere o tom central à obra e que, sozinho, já a justificaria de imediato. Falamos aqui da postura epistemológica adotada por Hertzman, que o diferencia do viés que predominou durante largo espaço de tempo na academia brasileira: o do ensaísmo.

Por um lado, é bem verdade, tal pendor ao ensaio conformou uma maneira toda especial, muito criativa e prolífica de interpretação em um ambiente científico inóspito e incipiente,momento em que financiamentos para a realização de surveys e a disposição de arquivos e materiais minimamente organizados eram escassos em nosso país. Em tal conjuntura, onde sobravam erudição e capacidade de síntese aos nossos intelectuais “heroicos”, a necessidade teve de se fazer virtude, e os clássicos pioneiros demarcaram o início de uma profunda autocompreensão que ensejou, por linhas tortuosas, trabalhos como os do próprio Marc Hertzman. Por outro lado, há até hoje resquícios desse modo de fazer que, desacompanhados das antigas virtudes, mais servem para escamotear resultados duvidosos, destilar arrogância, falta de empenho e de energia em vasculhar bibliotecas, museus e arquivos do que em iluminar o que quer que seja. Atêm-se ou a materiais recauchutados, apropriando-se de modo acrítico de “verdades” jornalísticas que rondam os mais diversos estudos sobre música no Brasil há tempos, ou a letras de canções e células musicais, como se a partir delas, e só delas, fosse possível, sem um objetivo claro ou um problema teoricamente orientado, reconstruir toda a história de um gênero musical ou de uma época.

Nesse sentido, Hertzman desdobrou-se como poucos haviam feito nos estudos históricos sobre o samba; correu atrás de comprovações documentais, muitas delas localizadas em acervos pessoais de difícil acesso ou em museus que, geralmente, sofrem e sofreram durante décadas com o descaso governamental, a falta de verbas, incêndios, desfalques, perdas, desorganização. O resultado dessa tarefa árdua e minuciosa de levantamento de informações não o tornou mero coletor nem fez de seu trabalho uma descrição insossa de materiais repertoriados,o que costuma ocorrer quando tamanha energia tem de ser gasta tão somente no serviço de garimpagem. Pelo contrário, ele logrou conectar a criatividade intelectual e a audácia interpretativa de nossos antigos ensaístas com o emprego de uma empiria embasada em recolhimento e análise de dados, descortinando de maneira surpreendente, aos nativos e aos gringos, um novo universo em torno de um domínio que, à primeira vista, nada mais ou muito pouco ainda tinha a render. Dito isso, não se trata, assim, de qualquer “revisita” às três questões apontadas; antes, de uma pesquisa de fôlego que tenta fornecer, se não a última palavra sobre o assunto, ao menos uma palavra muito mais balizada, material e metodologicamente bem orientada do que as que tínhamos à mão até o presente momento.

O livro percorre um largo período cronológico ao longo de seus nove capítulos: passa-se desde a abolição da escravidão no Brasil, em 1888,até meados da década de 1970,quando se dá a instauração definitiva das modernas leis de proteção aos direitos autorais – embora as análises mais consistentes do livro, com fartura de materiais inéditos, estejam concentradas nas quatro primeiras décadas do século XX. Apenas o último capítulo se dedica ao escrutínio da conjuntura musical da década de 1960 em diante, o que, no conjunto da obra, representa mais elemento de verificação das teses defendidas sobre a “época de ouro” do que uma parte autônoma. O acompanhamento da noção de autoria, em termos legais e materiais, e seu correlato simbólico, qual seja, a individuação dos artistas, bem como o desenvolvimento das instituições que lidavam com essas questões e a legislação pertinente serviram como o fio de Ariadne de toda a estruturação do argumento de Hertzman; ele empregou uma embocadura até então menosprezada pelos demais estudiosos no intento de penetrar, de modo inovador, por veredas já caminhadas: “Embora estudiosos de muitas disciplinas venham se fascinando com a construção da autoria, poucos se interessaram pela relação entre propriedade intelectual e constituição nacional pós-colonial – sobretudo nas Américas – ou as histórias imbricadas entre raça, propriedade intelectual e nação” (p. 3)7.Em outras palavras,os marcos legislativos e as instituições que regulamentavam o fazer musical, a distribuição monetária e o papel desempenhado pelo Estado na garantia,manutenção e modernização de todo o engenho assomado no espaço de tempo compreendido pela pesquisa fizeram render uma nova visão sobre processos há muito mal compreendidos, pois faltavam materiais pertinentes ao demais autores,conforme argumentado,a fim de que pudessem chegar a conclusões mais robustas e precisas, que ultrapassassem o acolhimento acrítico dos depoimentos de quem viveu os acontecimentos em tela – referenciais fartamente empregados até então por alguns estudiosos.E é justamente a esta tarefa que Marc Hertzman se propõe:buscar no emaranhado que se formou entre as questões que envolvem raça, propriedade intelectual e nação o sentido da constituição do samba e, em uma via de mão dupla, a partir da problematização que parte da constituição do samba enquanto gênero musical negro, comercial e nacional, enxergar de modo mais exato e minucioso a imbricação de todo o processo cultural,econômico e político que conformou o Brasil.

No primeiro capítulo, Hertzman procura traçar uma espécie de pré-história das formas musicais populares que desaguariam no samba, bem como dos condicionantes sociais que assomavam ao final do século XIX com elas, isto é, os lugares de raça, de autoria e do vínculo possível dessas formas artísticas e seus produtores correspondentes com a ideia de nação em uma sociedade escravocrata. Hertzman, no entanto, passa longe de um denuncismo vazio ou de tomar um parti pris tão comum nos estudos atuais sobre raça e nação. O autor deixa claro desde o início que não guarda o propósito de esposar asserções como as que essencializam o samba como puro produto de uma “resistência negra” em abstrato nem as que retiram a agência dos negros, outorgando aos intelectuais brancos ou ao Estado varguista a proeminência na conformação dos traços das expressões culturais brasileiras. Hertzman tampouco se vincula seja à visão que adula a intermediação efetuada pelos meios de reprodução comercial da música popular,seja à que a rechaça apriori,pois considerada maléfica ou deturpadora de uma imagem “pura” e “autêntica”.Pelo contrário,colocar todas essas cosmovisões nativas abraçadas pela academia em perspectiva, fazê-las confrontarem-se umas com as outras para que, ao fim e ao cabo, venha à tona um panorama mais complexo do que aquele com o qual a literatura específica se habituou: este sim é um dos propósitos centrais de Hertzman, alcançado justamente por meio do que anunciamos como o grande feito de seu trabalho, quer dizer, a confrontação com materiais inéditos, que auxiliam a desvendar mitos até então inquestionáveis e uma visão que não se detém em fronteiras específicas do saber.

Um desses mitos que fundamentaram o memorialismo da música popular brasileira é o do que o autor denomina de “paradigma da punição” (p. 31). A ação supostamente praticada por parte do Estado de maneira sistemática,que penalizava os praticantes do samba com a prisão, de acordo com declarações à imprensa de sambistas que viveram a “época gloriosa dos primórdios”,é posta em suspenso no segundo capítulo. Hertzman, por meio de pioneiro mergulho nos arquivos penais das primeiras décadas do século XX,descobre que jamais houve uma única punição estatal por conta da prática do samba,ao contrário do que é alardeado em quase todos os trabalhos acadêmicos que lidam com a época. Tal relato mais servia como estratégia discursiva – um tanto exagerada para antigos sambistas firmarem-se como mártires de uma época ou para construírem a autenticidade requerida do gênero samba e, de lambujem, de si mesmos, dentro do circuito de valores que aos poucos foi se estabelecendo naquele gênero – do que refletia fielmente os processos históricos, entremeados na realidade de alianças e colaborações entre a polícia, o Departamento de Imprensa e Propaganda de Vargas e os órgãos representativos dos músicos.Isso não quer dizer, por outro lado, que Hertzman pinte um ambiente de igualdade e liberalidade generalizados para a prática musical popular no início do século XX, conforme veremos a seguir.

O olhar atento do historiador,que busca em uma miríade de eventos nem sempre vinculados imediatamente ao fenômeno a ser explicado os desenvolvimentos possíveis dos caminhos da história, evidencia-se no terceiro capítulo, em meio à interpretação de uma ilustração de um jornal da década de 1910 trazida à baila por Hertzman. O desenho tentava retratar uma tragédia: um dos primeiros artistas populares de relativo sucesso à época, um negro de apelido “Moreno”, havia sido supostamente traído por sua esposa,uma branca portuguesa.Ele resolveu matá-la a facadas e, em seguida, se matar. A representação da situação congregava todas as chaves necessárias para o desvendamento da figuração que ascendia na primeira década do século XX, para os temores que suscitava, para as apreensões que fazia refulgir: um novo universo estava se abrindo,com possibilidade de fama e sucesso àqueles que sempre foram apartados da ribalta da vida nacional, embora prenhe de todas as contradições que tão bem expressam a nossa formação. Que se atentasse para o “perigo” de permitir que essas figuras tão fascinantes quanto temerárias, aos olhos dos brancos, prosseguissem por uma via de acesso a patamares que já tinham dono: as mulheres brancas, o dinheiro, a fama. Isso é o que argumentavam os jornalistas que comentaram a mencionada cena de “Moreno”:o negro não tinha estruturas psicológicas nem sociais para angariar sucesso, para se manter na independência econômica, para se casar com uma mulher branca, em suma, para deixar de ser negro naquela sociedade dominada pelos brancos (p. 87). A igualdade democrática, o reino do direito abstrato e universal, a possibilidade de uma vida econômica e socialmente digna em seu próprio país não passavam de quimeras. Afinal, “quem eles pensavam que eram?”. Em contrapartida, alguns conseguiam escalar parcialmente as trilhas abertas pelo desenrolar da individuação artística e pelo novo comércio, por mais que tivessem que forjar por meio de suas mãos,do sangue de “Moreno”,ou de oportunidades ímpares, por um lado, ou apoiados em trajetórias distintas e caminhos compartilhados com os dominantes, por outro.

O que importa até aqui é que não cabem mais,de acordo com a proposta do autor,a aceitação pura e simples de quaisquer generalizações de categorias, como as de “o samba”, “a raça”, “a nação”, “a autoria” ou “o comércio”: há nas entrelinhas dos processos constitutivos de cada um dos fatores assinalados minúcias geralmente ignoradas, tensões e conflitos constitutivos dos próprios conceitos e processos que, se vistos desvinculados dos artífices que lhes deram viço,de seus tempos históricos, das funções que cumpriram e das atuações concretas dos atores que as encarnavam, mais borram a compreensão historiográfica do que a auxiliam em sua missão de reconstituição da figuração em pauta. Assim, Hertzman dá à mostra que existiram projetos autorais, intelectuais mesmo, por trás de cada grupo e personagens distintos que ocupavam posições díspares na sociedade brasileira das primeiras décadas do século XX. Figuras que, ao mesmo tempo que se confrontavam, teciam por vezes alianças e podiam ainda manter certo grau de cumplicidade, de animosidade, de distanciamento ou de proximidade, a depender de coordenadas e de conjunturas específicas.

Uma das mais expressivas comprovações diz respeito ao escrutínio dos que rodeavam a famosa casa de Tia Ciata, figuras centrais que participaram do que se convencionou denominar de “a nossa música” (p. 95): Hertzman demonstra no quarto e no quinto capítulos que jamais eles poderiam ser equiparados sem mediação a outros artistas que não tivessem nem a inserção socioeconômica deles, nem o conhecimento formal de música, nem o trânsito com jornalistas, industriais da arte e figurões da política e da intelectualidade nacional, nem a decorrente capacidade de mediação, seja artística ou intelectual. Igualar um Pixinguinha a um Baiaco ou a um Brancura, ou até mesmo a um Ismael Silva, pelo simples fato de serem negros esconde um abismo muito revelador do próprio modo pelo qual o racismo à brasileira se constituiu: por meio de reentrâncias e sutilezas, ou, mais especificamente, por meio de um engenhoso dégradé. Se é verdade que em determinado momento de suas trajetórias artísticas todos os citados enfrentaram alguma face do racismo, não se pode dizer que tenha sido da mesma maneira: as margens de manobra variavam muito, bem como o grau de sofrimento que os acometia,a depender da posição social que ocupavam. No caso de Pixinguinha e dos seus, tratou-se de notícias jornalísticas denominando-os de “negroides pardavascos”, incapazes de representar o Brasil,ou de pretendentes a um patamar mais elevado, como Catulo da Paixão Cearense, a desatiná-los (p. 113); no caso de Brancura, Baiaco e Ismael, tratou-se de uma vida tortuosa e de pobreza, de marginalidade, eivada de prisões, brigas e outros eventos manifestos de violência. Embora todos eles, de alguma forma, tenham contribuído para a criação e sustentação de símbolos guindados à condição de “nacional”, Hertzman chama a atenção para o fato de que cumpre visualizar com cuidado os modos pelos quais quando e cada um deles pôde – e se pôde – e por meio de quais contextos e estratégias ser alçado e se alçar ao panteão do samba e, por que não e por consequência, ao panteão nacional. A luta que envolveu a imposição de certa visão que concedia às suas criações a imagem de autêntica, única, sofisticada e respeitável toma, assim, lugar de destaque na análise (p. 115).

Transparecem, destarte, por meio de diversos exemplos, elementos intrínsecos à formação da nação, caracterizada sobretudo pelo tipo de estrutura social herdada da escravidão. Pela primeira vez tal situação é sistematicamente levada em consideração em conjunto com os efeitos simbólicos e econômicos que incidiram nas atividades artísticas populares. Hertzman demonstra no capítulo sexto como até mesmo intelectuais e artistas do porte de Villa-Lobos,Mário de Andrade e Luciano Gallet compartilhavam com maior ou menor ênfase de visões de época, segundo as quais se deveriam abrir alas à construção de um desejado Brasil “civilizado” e seu pressuposto, as correntes da modernidade, o que incorria em algum tipo de rebaixamento do que era apreendido como hierarquicamente inferior em uma escala artística de sensibilidade e racionalidade. Nesses casos, iniciavam-se discussões sobre o que podia ser aproveitável ou não para se entabular o concerto da nação,e aquilo que identificassem como “africano” era posto na berlinda.O mesmo se passava entre os intelectuais nativos do samba, como Tio Faustino, Vagalume ou China, irmão de Pixinguinha,que buscavam enfatizar a autenticidade de certa herança da África contra o que viria a ser uma África corrompida (p.156).Nesse cenário, alguns podiam tanto desempenhar o papel de dominantes em meio aos dominados como podiam ser defenestrados e ter as portas fechadas em diversos âmbitos. Em outros momentos, conforme frisado por Hertzman no capítulo sétimo, alguns podiam até mesmo se reportar diretamente ao presidente da República, como ocorreu em 1930 com os mencionados Pixinguinha e Donga, que clamavam a Getúlio Vargas,em meio a uma procissão de músicos,o auxílio do “pai dos pobres” à música nacional (p. 170). Já dentre os diversos artistas negros, sobretudo os semidesconhecidos resgatados pelo autor na intenção de iluminar comparativamente as possíveis trajetórias artísticas e seus liames com suas posições sociais, a situação era distinta: torna-se claro como os empecilhos enfrentados por eles dificultavam não só suas condições simbólicas naquelas instituições como ainda a simples manutenção econômica de suas vidas. A vinculação desses e de vários estorvos com outros fatores, como o de gênero, foi realizada no trabalho também de modo pioneiro.

A ascensão do samba em sua concretude pôde ser vislumbrada por meio de representações monetárias de quanto ganhava um grande artista – um cantor branco como Francisco Alves, por exemplo – em comparação com um compositor negro à margem dos estabelecimentos comerciais da música, como Ismael Silva (p. 129); de outro lado,a partir da constatação de uma tal pista micro,quer dizer, da assimetria econômica existente entre figuras de um mesmo universo, passa-se ao escrutínio do modo pelo qual se organizavam as instituições políticas e culturais, e como os elementos “raça”, “classe” e “gênero” se vinculavam de forma intrínseca ao funcionamento dessas instituições. É o que se vê com nitidez nos capítulos sétimo e oitavo. No caso das que lidavam com a música popular, como a Sociedade Brasileira de Autores (SBAT, fundada em 1917), a primeira que tomou para si a função de arrecadação e distribuição monetária dos proventos das atividades artísticas em geral no Brasil, percebia-se em suas entranhas a reprodução de todas as desigualdades de nossa sociedade em termos econômicos e simbólicos. O mesmo ocorrendo com os produtos de seus cismas ao longo do tempo,casos da União Brasileira dos Compositores (UBC),a Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (SBACEM) etc., todas as que deram origem ao moderno sistema de arrecadação e distribuição de direitos ainda hoje vigente.Seus dirigentes,em maioria homens brancos vinculados a atividades consideradas “nobres” à época – como o teatro ou a “grande” música, em meados dos anos 1910 e 1920,ou os mais bem-sucedidos em termos econômicos com a ascensão do universo musical popular, a partir dos anos 1930 -, não se fizeram de rogados para eternizar a posição subalterna que os artífices negros, sobretudo os socialmente mais desprivilegiados, ocupavam em meio às estruturas das instituições à primeira vista “universais” que dirigiam, o que sublinha o caráter racial e economicamente assimétrico que perpassou a constituição de todas as nossas instituições democráticas, quando vistas de mais perto.

Emerge, assim, uma verdadeira história “materialista” do samba – e, por que não, do choro -, na melhor acepção do termo: em primeiro lugar, pelo fato de Hertzman lidar com estimativas sistematizadas de vendas de discos, com cifras relativas aos direitos autorais de canções, de lucros de gravadoras e de estações de rádio, de execuções de canções e de várias operações econômicas que dão à mostra a real dimensão das transformações estruturais ocorridas em meio à atividade musical popular. Em segundo lugar, o aspecto eminentemente “materialista” de sua proposta também se revela por conta do método: a visada totalizante, que pressupõe uma aguçada capacidade comparativa entre fatos, personagens e momentos aparentemente despidos de qualquer relação ou pertinência a fim de iluminar, a partir de distintos vieses, uma mesma questão específica. Hertzman arrisca, destarte, uma espécie de história total, onde condicionantes institucionais, geográficos, raciais, econômicos e culturais são movimentados para dar vida à agência dos atores (p. 11). Modificando seu foco a todo instante,passando de uma interpretação de um fato micro a uma correlação estrutural macro,e vice-versa,um verdadeiro mosaico das relações que davam viço àquela figuração nascente vem à tona. Embora a incursão na justificativa teórica de seu trabalho seja deveras enxuta,haja vista Hertzman nomear,e muito de relance,apenas Homi Bhabha, Michel Foucault e Peter Wade como inspiradores da empreitada (p. 10), é notória a contribuição tácita de autores como Norbert Elias, Pierre Bourdieu, Fernand Braudel, E. P. Thompson, Raymond Williams,dentre outros grandes nomes das ciências humanas,em seu modo de reconstituir a urdidura da história em voga. Mas essa explicitação, enfim, é o que menos importa, pois o primordial foi efetuado, quer dizer, o manejo teoricamente orientado do material levantado para além das fronteiras disciplinares artificialmente demarcadas.

Notas

1 Ver, por exemplo, DAVIS, DARIÉN J. White face, black mask: Africaneity and the early social history of popular music in Brazil. East Lansing: Michigan State University Press, 2009; Livinsgton-Isenhour, Tamara E. e Garcia, Thomas G. C. Choro: a social history of a Brazilian popular music. Bloomington: Indiana University Press, 2005; McCann, Bryan. Hello, hello Brazil: popular music in the making of modern Brazil. Durham: Duke University Press,2004;Stroud,Sean.The defence of tradition in Brazilian popular music: politics, culture and creation of Música Popular Brasileira. Aldershot: Ashgate, 2008; Shaw, Lisa. The social history of the Brazilian samba. Aldershot: Ashgate, 1999.

2 Ressalte-se a ausência de obras dedicadas à reflexão sobre música popular nos principais centros brasileiros produtores de conhecimento até meados da década de 1970, que vê, muito timidamente em sua segunda metade, o início de estudos regulares e sistematizados sobre o assunto. Balanços críticos de publicações na área podem ser encontrados em Béhague, Gerard. “Perspectivas atuais na pesquisa musical e estratégias analíticas da Música Popular Brasileira”. Latin American Music Review. Austin: University of Texas Press, v. 27, no 1, 2006; Napolitano, Marcos. “A Música Popular Brasileira (MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural”. In: IV Congreso de la Rama Latinoamericana del IASPM, 2002, Nicarágua. Atas del IV Congreso de la Rama Latinoamericana del IASPM, 2002, mimeo; Naves, Santuza C. et alli. “Levantamento e comentário crítico de estudos acadêmicos sobre música popular no Brasil”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais — BIB. São Paulo: ANPOCS, no 51, 2001.

3 Trata-se do prêmio de melhor tese de doutorado da New England Council of Latin American Studies (NECLAS) e de uma menção honrosa do Bryce Wood Book Award pelo livro, comenda concedida anualmente pela Latin American Studies Association ao melhor livro que verse sobre a América Latina.

4 Como, por exemplo, RODRIGUES, Ana Maria. Samba negro, espoliação branca. São Paulo: Hucitec, 1984.

5 Como, por exemplo, FROTA, Wander Nunes. Auxílio luxuoso: samba símbolo nacional, geração Noel Rosa e indústria cultural. São Paulo: Annablume, 2003.

6 Como, por exemplo, WISNIK, José Miguel e SQUEFF, Enio. Música: o nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo:Brasiliense,2a ed.,1983.

7 Tradução livre realizada pelo autor da resenha.

Dmitri Cerboncini – Fernandes– Professor de Sociologia na Universidade Federal de Juiz de Fora.

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Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School – ABROMEIT (NE-C)

ABROMEIT, John. Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. Resenha de: NOBRE, Marcos; JANUÁRIO, Adriano; CONCLI, Raphael; YAMAWAKE, Paulo. Os modelos críticos de Max Horkheimer. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.96, Jul,  2013.

Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School, de John Abromeit, vem somar-se a uma dupla já estabelecida de estudos de referência sobre o nascimento e o desenvolvimento da Teoria Crítica (que, em alguns lugares, como nos Estados Unidos e na França, ainda é conhecida pelo equívoco rótulo “Escola de Frankfurt”): A imaginação dialética, de Martin Jay1, e A Escola de Frankfurt, de Rolf Wiggershaus2. O livro de Abromeit não tem a abrangência desses dois. Dedica-se apenas ao exame aprofundado de parte da trajetória intelectual de Horkheimer, de seu nascimento, em 1895, até o ano de 1941, que marca uma redução ao mínimo das atividades do Instituto de Pesquisa Social em Nova York e uma virada no pensamento do teórico social. Mas é de Horkheimer que se trata: as fases de sua produção examinadas no livro são não apenas altamente profícuas como também inaugurais, o que é sugerido pela ambição teórica bem mais ampla estampada no subtítulo: apresentar nada menos do que “as fundações da Escola de Frankfurt”.

Nessa comparação com os dois outros estudos de referência sobre a Teoria Crítica, importa também não apenas a distância temporal que os separa, mas a diferença de fontes. John Abromeit pesquisou em um momento em que já se encontrava em pleno funcionamento o Arquivo Max Horkheimer e em que já tinha sido completada a publicação dos Escritos reunidos pela editora Fischer. Além disso, o livro pretende não apenas reconsiderar as “fundações” da Teoria Crítica, mas recuperar o modelo crítico formulado por Horkheimer para levar adiante essa tradição intelectual. Para isso, parte de um diagnóstico do campo crítico marcado por duas balizas fundamentais. De um lado, quer abrir caminhos que não se fechem na conhecida “aporia” da Dialética do Esclarecimento3. De outro lado, aceita implicitamente o desafio colocado pela teoria crítica de Habermas, ao indicar que é possível construir uma alternativa a essa aporia a partir do movimento teórico fundamental realizado por Horkheimer nos anos 1925-1931, que teria significado nada menos do que uma “ruptura com a filosofia da consciência”. Com isso, torna-se possível reconstruir de outro modo o próprio desenvolvimento da Teoria Crítica, de maneira a fugir à interpretação de conjunto consolidada por Habermas4:

Uma biografia intelectual que aspire a se manter fiel ao espírito crítico de Horkheimer — como esta pretende — deve não apenas tentar apresentar suas ideias em toda sua complexidade e radicalidade para assim salvá-las da onda de amnésia e conformismo que ameaçam devastar o presente. Tal obra deve também procurar identificar os fatores sociais e históricos que condicionaram sua teoria crítica nos vários estágios de seu desenvolvimento. Só assim será possível o direcionamento para a importante tarefa final de determinar quais aspectos da teoria crítica de Horkheimer ainda são relevantes no presente e quais devem ser revisados ou abandonados5.

Se a explicitação desse engajamento e dessa tomada de posição já distingue de saída o livro de John Abromeit dos livros de referência de Martin Jay e de Rolf Wiggershaus, a sua escolha de objeto aprofunda as diferenças. A grande sacada do livro pioneiro de Martin Jay –orientador de John Abromeit, cuja tese de doutorado foi a base para a redação do livro — esteve em realizar a “biografia” intelectual de uma instituição (o Instituto de Pesquisa Social) entre as décadas de 1920 e 1940, o que lhe permitiu escapar à ideia confusa (e redutora, como mostrou o próprio Jay em seu livro) de uma “Escola”. Essa abordagem lhe permitiu ainda mostrar em ato a ideia-força do “materialismo interdisciplinar”, que guiou o trabalho coletivo a partir dos anos 1930.

A escolha de Abromeit não é menos engenhosa: reconstruir o momento inaugural dessa vertente intelectual permite abrir o campo das possibilidades de desenvolvimento teórico, trilhadas ou não, tanto em relação ao passado como em relação ao presente, concretizadas em uma direção determinada, abandonadas ou retomadas. Não é outra a razão pela qual o livro se encerra em 1941, com a Dialética do Esclarecimento já a caminho, momento em que Horkheimer decide por tomar um dos muitos possíveis caminhos que ele mesmo havia aberto. A consolidação dessa virada está no artigo “The end of reason”, de 19426, cuja versão em alemão tem por título “Razão e autopreservação”. A partir daí, segundo John Abromeit, o “abandono por Horkheimer do modelo de uma dialética da sociedade burguesa levou ao desaparecimento de distinções-chave que tinham estruturado seu trabalho anterior tanto em nível sincrônico como diacrônico”7.

A reconstrução do projeto de uma “antropologia da época burguesa”, conjugado a uma determinada apropriação do “materialismo” e à ideia de um livro sobre “lógica dialética”, surge como configuração por excelência do trabalho de Horkheimer nos anos 1930. O livro de John Abromeit está armado de maneira a mostrar como esse projeto tinha várias possibilidades de desenvolvimento, sendo o resultado dos anos 1940 (que gira em torno da Dialética do Esclarecimento) apenas uma das suas possíveis realizações. Com isso, Abromeit aponta também, implicitamente, que seria possível continuar esse projeto em sentido diverso da Dialética do Esclarecimento no momento presente.

Esse sentido diverso pode ser relacionado a uma tendência atual no campo crítico de tematizar o afastamento da Teoria Crítica de certa concepção de pesquisa empírica. Pois retomar e pôr em relevo os trabalhos de Horkheimer anteriores a 1941 possui também essa intenção, embora não explicitamente declarada, de mostrar os vínculos desse período de sua produção com um determinado modo de realizar pesquisa empírica desenvolvida então no Instituto de Pesquisa Social. O livro de Abromeit pode ser lido também como uma defesa de uma maneira possível de articular teoria social e pesquisa empírica, da qual os trabalhos de Horkheimer da década de 1930 seriam exemplares.

Se, após a leitura do livro, a estatura intelectual atribuída a Horkheimer parece mais do que justificada, por outro, a reconstrução do seu modelo crítico dos anos 1930 nesses termos é, por exigir ênfase na originalidade das formulações, pouco convincente. Pode ser que John Abromeit tenha razão em seu diagnóstico de que houve “uma forte tendência na literatura secundária a subsumir a obra de Horkheimer e de Adorno a um conceito mais geral de ‘marxismo ocidental’, que tem como ponto de partida a ênfase metodológica de Lukács no conceito de totalidade, no de forma-mercadoria e no de reificação”. Mas combater essa tendência — vale dizer, em boa medida, combater a versão de Habermas do desenvolvimento da Teoria Crítica — não exige necessariamente se colocar a tarefa nos termos em que pôs o livro: “Um dos principais objetivos deste estudo como um todo foi o de demonstrar que o caminho de Horkheimer para a Teoria Crítica foi independente daquele de Lukács e de Adorno”8.

Afirmar, por exemplo, que as formulações de Horkheimer dos anos 1930 têm por pano de fundo conceitual as formulações de História e consciência de classe9, de Lukács, em nada diminui a originalidade do então diretor do Instituto de Pesquisa Social. Pelo contrário, apenas torna mais precisa essa originalidade, dando-lhe maior substância. Isso se exprime até mesmo em oscilações argumentativas sintomáticas: “Como mostraram Michiel Korthals e Ferio Cerruti, Horkheimer não se apropriou do conceito de totalidade de Lukács seja nesse período, seja posteriormente”, o que contrasta com uma afirmação poucas linhas adiante: “Depois de sua ruptura com Hans Cornelius, Horkheimer usaria o conceito de totalidade tanto em termos metodológicos como substantivos em sua teoria social, mas permaneceram importantes diferenças em relação a Lukács”10.

De um lado, John Abromeit propõe uma mudança de foco extremamente fecunda: retirar os escritos de Horkheimer da rubrica abstrata da “metodologia” de maneira a mostrar o vínculo indissolúvel, no campo da Teoria Crítica, entre a sistematização teórica e a investigação empírica. Com isso, consegue não apenas dar ao projeto de uma “Antropologia da época burguesa” (e, em especial, ao artigo “Egoísmo e movimento de libertação”11) o destaque e a centralidade que merece, mas consegue despertar o interesse com respeito às possíveis linhas de continuidade desse projeto no momento atual. De outro lado, entretanto, esse movimento muitas vezes acaba por reduzir a importância de outros textos do período que merecem pelo menos igual destaque, como é o caso de “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”12. Assim como teria sido necessário atribuir pesos diferentes a diferentes influências teóricas, seria necessário também distinguir as diferentes estaturas de textos que possuem temas tão variados; uma análise mais de perto desses textos apontam que não são todos de mesma densidade e fecundidade.

Seja como for, é já muito impressionante a segurança e o interesse no manejo simultâneo de tantas fontes de alta densidade. A estratégia adotada por John Abromeit suplanta largamente essas possíveis objeções pelas possibilidades de leitura e de caminhos para a renovação da Teoria Crítica que seu livro oferece. Não por último porque o livro, no seu conjunto, é um plaidoyer pelo pluralismo e pelo diálogo no interior do campo crítico, sem em nenhum momento abdicar dos necessários embates teóricos que marcam a vitalidade dessa tradição.

De maneira consequente, o objetivo de abrir um leque muito mais amplo de possíveis caminhos para a Teoria Crítica determina também a estrutura do livro. A ênfase na fase decisiva de formação de Horkheimer (1925-1931) prepara a apresentação das muitas linhas de desenvolvimento que marcaram o período seguinte (1932-1941). E, no entanto, a periodização foi estabelecida a partir da articulação conceitual da trajetória de Horkheimer, e não a partir de eventos histórico-mundiais como a crise de 1929, a ascensão do nazismo ao poder, em 1933, ou a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939. A falta dessa referência a eventos histórico-mundiais é de grande importância, tanto pela centralidade da noção de “diagnóstico de tempo” no campo da Teoria Crítica quanto pelo próprio gênero do livro, uma “biografia intelectual”: não são os sucessivos diagnósticos de tempo de Horkheimer nesse período especialmente conturbado que estruturam o livro.

Desde a introdução, Abromeit levanta, mediante a leitura e a organização dos textos de Horkheimer do período, pelo menos cinco temas que contribuem para jogar uma nova luz na Teoria Crítica hoje: “história intelectual materialista”, “história sociopsicológica”, “antropologia da época burguesa”, uma “abordagem verdadeiramente interdisciplinar para a Teoria Crítica” e “pensamento pós-metafísico”. Mais do que uma enumeração de temas, é uma tese de leitura que procura mostrar que a obra de Horkheimer extrapola os ensaios metodológicos — nos quais se concentram a maioria dos comentadores. Ao dar ênfase a esses novos temas, Abromeit introduz uma nova organização na obra de Horkheimer.

Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School possui nove capítulos e dois excursos, além de uma introdução e um epílogo. A primeira seção (capítulos 1 e 2) pretende reconstruir o período que vai desde a infância de Horkheimer até 1925, ano em que escreve sua tese de livre-docência [Habilitationsschrift], intitulada Zur Antinomie der teleo­logischen Urteilskraft [Sobre a antinomia do juízo teleológico]13, apresentada na Universidade de Frankfurt. O primeiro capítulo se concentra na infância e adolescência, destacando suas primeiras experiências emocionais, políticas e intelectuais, período em que Horkheimer escreve uma série de textos literários. Já o segundo capítulo — centro dessa primeira seção — trata dos anos como estudante em Frankfurt, nos quais Horkheimer entra em contato com as principais correntes teóricas que estavam em seu estágio “mais avançado”, mais especificamente, com os avanços na filosofia, na psicologia e na sociologia. A exposição em maior detalhe desse período de estudos iniciais de Horkheimer tem, para Abromeit, o objetivo de primeiramente se contrapor aos comentadores que não atribuem qualquer importância teórica a essa fase. Embora Horkheimer não tenha produzido nesse período seu modelo crítico mais acabado, Abromeit sustenta que é nesse momento — entre 1920 e 1925 — que surgem alguns elementos importantes do modelo da década de 1930.

Segundo Abromeit, esse período da formação acadêmica fornece a Horkheimer três elementos centrais que acabaram por reverberar na fase madura do desenvolvimento de sua “Teoria Crítica primeira” (early Critical Theory) na década de 1930. O primeiro desses elementos é a aproximação e o interesse de Horkheimer pela pesquisa empírica, utilizando-se dessas últimas — desenvolvidas pela Gestalt — para se contrapor aos neokantianos do início do século. Essa contraposição crítica, segundo Abromeit, é justamente o escopo de sua tese de livre-docência. O segundo elemento que Horkheimer desenvolve é o conceito de “totalidade”, esboçado a partir de seu contato mais direto com a psicologia de modo geral. O último elemento destacado nesse perío­do é a ideia de unidade entre “razão prática e teórica”, que será crucial para seu modelo crítico dos anos 1930. Nesse quadro geral surge pela primeira vez a ideia de “interdisciplinaridade”, que será um dos elementos principais da Teoria Crítica de Horkheimer na década de 1930.

A segunda seção do livro (capítulos 3, 4 e 5) cobre o período 1925 a 1931, culminando com o momento em que Horkheimer assume a direção do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. A principal tese desse bloco de capítulos é a de que a Teoria Crítica primeira de Horkheimer teria se constituído, ainda que em linhas gerais, em meados dos anos 1920, e não apenas quando assume a direção do instituto, como defende a grande maioria dos comentadores.

No capítulo 3, Abromeit apresenta a intenção de Horkheimer de construir uma “interpretação materialista da filosofia moderna”. O início desse projeto marca seu afastamento de Hans Cornelius e da “filosofia da consciência” no momento em que Horkheimer se torna Privatdozent em Frankfurt. Para Horkheimer, um dos principais problemas da “filosofia da consciência” é seu afastamento das condições históricas nas quais seus conceitos surgem. Com o intuito de evitar esse problema, ele desenvolve suas teses sobre a “interpretação materialista da história da filosofia moderna”, tomando o seu surgimento como vinculado ao surgimento da “época burguesa”. Abromeit ressalta que Horkheimer tentava superar a “filosofia da consciência” através do “materialismo”, isto é, vincular a “filosofia da consciência” ao surgimento da “época burguesa”. Nesse momento, Horkheimer dá os primeiros passos para constituir uma teoria social própria, o que o faz iniciar seus estudos do pensamento de Marx com o objetivo de construir uma “teoria sociológica adequada”14.

Nesse sentido, para Abromeit, a obra Dämmerung: Notizen in Deutschland [Crepúsculo: notas na Alemanha]15 serve como importante fio condutor de seu argumento mais geral para essa fase da produção de Horkheimer. Publicada somente em 1934, mas cujos excertos são datados do período de 1926 a 1931, e sob o pseudônimo de Heinrich Regius, Dämmerung representaria uma tentativa de atualizar a teoria de Marx a partir da ideia de “subjetividade”, sendo esta vinculada ao modo como a sociedade capitalista produz e reproduz seus próprios meios. Para Abromeit, Dämmerung se utiliza de aforismos, anedotas, metáforas e exemplos concretos para expressar as tendências sociais mais gerais da sociedade capitalista, assim como expressa também os mecanismos próprios desse modo de produção, os quais estão incrustados na sociedade. Em Dämmerung surge a ideia de que a “epistemologia” daquele momento não seria “consciente de suas determinações sociais” e, nesse sentido, ela acaba por reforçar e justificar as condições injustas da sociedade capitalista. Horkheimer pretende com esse escrito defender uma “individualidade concreta” contraposta ao “capitalismo monopolista”. É nessa obra que ele teria começado a esboçar uma vinculação entre a pesquisa empírica e uma possível renovação do marxismo.

Essa necessidade de renovação do marxismo vinculado à pesquisa empírica fez com que Horkheimer levasse adiante a integração da psicanálise à teoria contemporânea da sociedade, objeto de discussão no capítulo 5. Para Abromeit, as investigações empíricas de Erich Fromm realizadas no final da década de 1920 foram cruciais para o desenvolvimento da Teoria Crítica. Após relatar como Horkheimer e Fromm se conheceram, assim como as aproximações teóricas de ambos, Abromeit passa a apresentar o “lugar teórico da psicanálise no pensamento de Horkheimer”, “uma teoria materialista da subjetividade que pode ajudar a explicar melhor a consciência das ações individuais e dos grupos sob determinadas condições”16. Evitando a categoria de “inconsciente coletivo”, Fromm direciona suas análises para as “experiências individuais” e de “grupos que sofrem a mesma pressão”17, isto é, seu intuito é observar o indivíduo concreto num contexto histórico determinado. Essa perspectiva foi incorporada pelo primeiro modelo crítico de Horkheimer. No contexto dessa colaboração surgiu o trabalho A classe trabalhadora na Alemanha de Weimar. Abromeit considera esse o “primeiro trabalho da Teoria Crítica”, tomando esse período como aquele em que Horkheimer começa a traçar as linhas de seu primeiro modelo crítico.

Não obstante, Abromeit registra uma mudança no pensamento de Horkheimer a partir do momento em que assume a direção do instituto. Essa mudança teria se dado justamente porque Horkheimer disporia então de um aparato institucional para implementar seu projeto de Teoria Crítica. Cada capítulo do “coração” do livro, a sua terceira seção (capítulos 6, 7 e 8), pretende expor um dos três conceitos mais importantes para a Teoria Crítica “durante este momento particular”18, uma espécie de convergência e concentração de temáticas ainda mais amplas do período anterior: “materialismo” (cap. 6), “antropologia da época burguesa” (cap. 7) e, por fim, “lógica dialética” (cap. 8).

No curto capítulo 6, Abromeit apresenta o conceito de materialismo em Horkheimer a partir de dois temas — que se referem a dois textos da primeira metade da década de 1930 — nos quais seus escritos incidem: “Materialismo e metafísica”19 e “Materialismo e moral”20. O materialismo, segundo Abromeit, surge primeiramente como uma espécie de “negação determinada” do “idealismo”. Ele aponta que, para Horkheimer, os princípios universais de certas teorias expressam, na verdade, interesses particulares de “grupos” em momentos históricos determinados. Nessa expressão de interesses particulares em princípios universais, Horkheimer entende que “os conceitos”, de modo geral, vinculam-se às classes sociais bem como à posição que estas ocupam na estrutura histórica e social. É nesse sentido que o “materialismo” surge nesse período também como tentativa de compreender a “moralidade”, na medida em que tenta compreender como “a moralidade moderna se tornou a moralidade burguesa”. Registre-se aqui, de passagem, uma dificuldade de leitura específica: não se sabe ao certo o que distinguiria fundamentalmente esse tema e esse capítulo daquele dedicado à “lógica dialética” (cap. 8).

Os conceitos de “antropologia da época burguesa” e “época burguesa” são o tema do capítulo 7. Aqui, Abromeit aponta que Horkheimer se contrapõe a um conceito tradicional de “antropologia” que acaba por hipostasiar uma essência humana a-histórica, assim como hipostasia também um “indivíduo abstrato”. A noção de antropologia de Horkheimer incorpora uma “teoria dialética da história” que leva em conta um período histórico específico — tal como a “época burguesa” — e admite a existência de grupos particulares que compartilham a mesma experiên­cia social. A influência de Fromm no pensamento de Horkheimer é marcante nesse período, fazendo com que este último levasse em conta em seus escritos a relação não somente entre indivíduo, história, sociedade e grupo, como também a constituição psicológica dos indivíduos em determinada sociedade e em determinada época — destaca-se aqui a distância dos trabalhos de Peter Stirk e Helmut Dubiel sobre Horkheimer. A noção de época histórica em Horkheimer se aproximaria da noção de Marx, mas iria além, na medida em que pressuporia uma independência da “cultura” frente ao “mundo físico”.

É nesse sentido que “Egoísmo e movimento de libertação”21 de Horkheimer é apontado como principal escrito do período. Segundo Abromeit, esse ensaio foi o mais influente entre os teóricos críticos do período. Tanto é assim que ele surge citado nos textos de Marcuse, Adorno e Benjamin. Horkheimer teria levado adiante seu conceito de “antropologia da época burguesa” nesse ensaio justamente porque vinculou a análise histórica dos movimentos de libertação com o surgimento do “egoísmo”, apresentando ambos como tendências presentes no nascimento da sociedade burguesa. Nessas análises históricas estão presentes também, de forma marcante, os conceitos advindos da psicanálise. É principalmente com o conceito psicanalítico de “introversão” que Horkheimer compreende o discurso para as massas, em momentos revolucionários, como um “movimento de manipulação”. Disso surge a noção de “nova barbárie”, que possui sua historicidade no decorrer da “época burguesa” e que se encontra na tendência histórica tanto da “integração das massas”, quanto da institucionalização da “crueldade racionalizada”. Essas condições permitem a Horkheimer compreender que na “época burguesa primeira” se desenvolve o “fascismo no século XX”.

Outro trabalho importante que também se insere nessa perspectiva da “antropologia da época burguesa” é Estudos sobre autoridade e família22. Ao examinar mais de perto essa obra, levando a sério a reivindicação de Horkheimer de que ela visa a uma articulação efetiva entre o arcabouço teórico que apresenta e a pesquisa empírica — assim como as relações destas com a noção mesma de “interdisciplinaridade” —, Abromeit novamente destaca-se de leituras tradicionais, como a de Rolf Wiggershaus. Contudo, a importância decisiva de Estudos reside no fato de a obra servir como fonte de um conjunto relevante de categorias da psicologia social para a elaboração da ideia de antropologia da época burguesa: as contribuições de Erich Fromm, especialmente suas teses psicanalíticas sobre o caráter masoquista ou autoritário como tipo dominante na Europa contemporânea, permitirão a Horkheimer uma melhor compreensão do desenvolvimento histórico de seus conceitos centrais desta primeira Teoria Crítica23.

A conexão com a série de “reflexões sobre a lógica dialética”, tema do capítulo 8, é explicitada desde o início: Horkheimer considerava o conceito de antropologia burguesa também como parte do projeto mais amplo sobre a lógica dialética24. Mas, devido aos percalços ocorridos no período — as várias mudanças do instituto, em fuga do nazismo e da guerra —, esse projeto acabou se transformando substancialmente. É nesse sentido que, para Abromeit, os escritos reunidos sobre a lógica dialética possuem um duplo caráter: por um lado, eles fazem parte dos desenvolvimentos da Teoria Crítica primeira de Horkheimer nos anos 1930; por outro, constituem também as bases para a composição da Dialética do Esclarecimento, obra publicada em 1947. As reflexões sobre lógica dialética, segundo Abromeit, partem da crítica à filosofia cartesiana e ao empirismo, retomando assim o tema da “crítica à filosofia da consciência” presente na segunda metade da década de 1920. E é com o estudo de Hegel que Horkheimer aprofunda sua concepção de lógica dialética, movimento que termina com a “reformulação da Teoria Crítica de Marx” numa tentativa de juntar tanto a lógica categórica quanto a própria história. Essa reformulação é sintetizada no notório ensaio “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”. Para Abromeit, esse ensaio faz parte das reflexões sobre lógica dialética, o que acaba por diminuir o peso da psicanálise e da pesquisa empírica presentes em outros ensaios da década de 1930.

Finalmente, a última seção do livro trata do gradual afastamento do modelo primeiro de Teoria Crítica de Horkheimer. A tese de Abromeit é a de que uma separação de Fromm (Excurso I) e uma aproximação de Adorno (Excurso II), somadas à tese do capitalismo de Estado desenvolvida por Friedrich Pollock, passaram a influenciar decisivamente a teoria de Horkheimer, distanciando-o da Teoria Crítica primeira dos anos 1930. A tese defendida por Abromeit é que o conceito de “capitalismo de Estado” acabou ocupando um espaço cada vez maior nos escritos de Horkheimer, culminando esse movimento de distanciamento em O fim da razão25, ensaio que seria o limite entre a Teoria Crítica primeira e as primeiras reflexões que levariam à Dialética do Esclarecimento.

A centralidade que o conceito de capitalismo de Estado acabou ocupando teve consequências: Horkheimer acaba por abandonar o modelo da “dialética da sociedade burguesa” e desaparecem as distinções-chave que estruturavam seu pensamento inicial26. Mais que isso, Horkheimer abandona as análises dos “potenciais revolucionários” que pautaram o início da era burguesa de tal modo que o conceito de capitalismo de Estado e “sua lógica imanente” permite a ele igualar as diferenças entre “pensadores opostos do mesmo período”, assim como as diferenças de “pensadores e conceitos de diferentes períodos”. Perde-se assim a característica fundamental de sua primeira Teoria Crítica: a dialética da sociedade burguesa e sua historicidade. Abromeit destaca também que essa mudança está diretamente relacionada à grande influência das “Teses sobre História”27 de Walter Benjamin tanto em Horkheimer quanto em Adorno. A influência desse texto levou os autores a interpretarem o passado a partir do presente, acabando por levá-los a um processo de “des-historicização” de seu pensamento.

Por isso, com o modelo da Dialética do Esclarecimento, segundo Abromeit, perde-se o que há de mais rico para contribuir com a teoria social contemporânea. É nesse sentido que a Teoria Crítica primeira de Horkheimer da década de 1930 pode “contribuir para uma renovação da Teoria Crítica”. Com isso, o posicionamento de Abromeit a respeito da interpretação da obra de Horkheimer surge de modo marcante: a crítica à Dialética do Esclarecimento é acertada quando se refere somente a essa obra. Essa crítica, como mostra Abromeit, não se estende aos escritos anteriores a O fim da razão. Daí que ele afirme que o mais interessante da obra da primeira geração da Teoria Crítica está no projeto da década de 1930.

O gênero “biografia intelectual” permite a John Abromeit resolver, pela primeira vez e de maneira convincente, intrincados problemas teó­ricos dos estudos sobre Horkheimer, como é o caso do famoso “juízo existencial” que ocupa posição de destaque no ensaio “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”28. Mostra-se igualmente capaz de dar explicação convincente e coerente em aspectos para os quais as fontes são escassas, como é o caso do capítulo 5 do livro, que trata da integração da psicanálise na teoria social de Horkheimer (mesmo se aqui fica a impressão de que a importância de Reich foi subestimada, por exemplo). Não por acaso, portanto, John Abromeit encerra o livro apontando para um modelo de renovação da Teoria Crítica que é aguardado com expectativa: “Um novo modelo de Teoria Crítica necessitaria preservar as tradições do materialismo histórico e da psicanálise junto com os melhores aspectos da tradição política democrática liberal”29. Mas, antes de exigir do autor que continue a trilha que ele próprio abriu, cabe antes recomendar à leitora e ao leitor que aproveite a leitura deste livro excepcional.

Notas

1 The dialectical imagination: a history of the Frankfurt School and the Institute of Social Research 1923-50. Boston: Little, Brown and Co., 1973.         [ Links ] [Ed. bras.: A imaginação dialética: história da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923-1950. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008].
2 Die Frankfurt Schule. Geschichte, Theoretische Entwicklung, Politische Bedeutung. Munique: Hanser,         [ Links ] 1986. [Ed. bras.: A Escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Trad. Vera de Azambuja Harvey. São Paulo: Difel, 2002].
3 ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar,         [ Links ] 1985.
4 HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns, Band 1. Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Frankfurt am Main: Suhrkamp,         [ Links ] 1995.
5 ABROMEIT, J. Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 170.         [ Links ] 6 HORKHEIMER, M. “The end of reason”. Studies in Philosophy and Social Sciences, vol. IX, Nova York,         [ Links ] 1942.
7 ABROMEIT, op. cit., p. 395.
8 ABROMEIT, op. cit., p. 392.
9 LUKÁCS, G. História e consciência de classeEstudos sobre a dialética marxista. Trad. de Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
10 ABROMEIT, op. cit., p. 82.
11 HORKHEIMER, M. “Egoismus und Freiheitsbewegung”. In: Gesammelte Schriften. Band 4: Schriften 1936-1941. Org. A. Schmidt. Frankfurt: Fischer, 1988, pp. 9-88.         [ Links ] 12 Idem, “Traditionelle und kritische Theorie”. In Gesammelte Schriften. Band 4: Schriften 1936-1941, op. cit., pp. 162-216.         [ Links ] 13 HORKHEIMER, M. “Zur Antinomie der teleologischen Urteilskraft”. In: Gesammelte Schriften. Band 2: Schriften 1922-1932. Org. A. Schmidt. Frankfurt: Fischer, 19885, pp. 15-         [ Links ]72.
14 ABROMEIT, op. cit., p. 141.
15 HORKHEIMER, M. “Dämmerung. Notizen in Deutschland”. In: Gesammelte Schriften. Band 2: Schriften 1922-1932, op. cit., pp. 312-         [ Links ]452.
16 ABROMEIT, op. cit., p. 200.
17 Ibidem, p. 207.
18 Ibidem, p. 227.
19 HORKHEIMER, M. “Materialismus und Metaphysik”. In: Gesammelte Schriften. Band 3: Schriften 1931-1936. Org. A. Schmidt. Frankfurt: Fischer, 1988, pp. 70-         [ Links ]105. [Trad. bras. “Materialismo e metafísica”. In: Horkheimer, M. Teoria crítica I: uma documentação. Trad. de Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva/ edusp, 1990.] 20 Idem, “Materialismus und Moral”. In: Gesammelte Schriften. Band 3: Schriften 1931-1936, op. cit., pp. 111-         [ Links ]149. [Trad. bras. “Materialismo e moral”. In: Horkheimer, Teoria crítica I, op. cit.] 21 HORKHEIMER, “Egoismus und Freiheitsbewegung”, op. cit.
22 HORKHEIMER, M; Marcuse, H.; Fromm, E.; et al. Studien über Autorität und Familie. Forschungsberichte aus dem Institut für Sozialforschung. Mit einem Vorwort von Ludwig von Friedeburg. Reprint der Ausgabe Paris 1936. Klampen, Lüneburg 2005.         [ Links ] 23 Sobre este ponto, registre-se o aparecimento, em 2013, do interessante livro de Katia Genel, Autorité et emancipation. Horkheimer et la Théo­rie critique (Paris: Payot & Rivages). Como no caso de John Abromeit, a visada mais ampla da autora é a de uma reconstrução não apenas da trajetória intelectual de Horkheimer, mas do conjunto da Teoria Crítica. Katia Genel, no entanto, o faz a partir da noção de “autoridade”. O que a leva a sustentar a tese de que, nessa vertente intelectual, a noção fundamental é antes a de “autoridade” do que a de “dominação”, por exemplo. O livro de John Abromeit se posiciona claramente contra tal possibilidade de reconstrução (ver, por exemplo, a nota 13, p. 303).
24 ABROMEIT, op. cit., p. 302.
25 HORKHEIMER, M. “The end of reason”. Studies in Philosophy and Social Sciences, vol. IX, Nova York,         [ Links ] 1942
26 ABROMEIT, op. cit., p. 395.
27 BENJAMIN, W. Obras Escolhidas; vol.1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,         [ Links ] 1994.
28 ABROMEIT, op. cit., p. 330.
[29] Ibidem, p. 430.

Marcos Nobre – Professor no Departamento de Filosofia do IFCH da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

Adriano Januário – Doutorando no programa de pós-graduação em Filosofia da Unicamp.

Raphael Concli – Mestrando no programa de pós-graduação em Filosofia da Unicamp.

Paulo Yamawake – Mestrando no programa de pós-graduação em Filosofia da Unicamp.

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Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura – FURTADO (NE-C)

FURTADO, Celso. Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. Resenha de: KORNIS, George. A cultura no pensamento (e na ação) de Celso Furtado: desenvolvimento, criatividade, tradição e inovação. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.96, Jul, .2013.

Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura, organizado por Rosa Freire d’Aguiar Furtado, é o quinto volume da série Arquivos Celso Furtado e contém muitas informações sobre o pensamento de Celso Furtado (1920-2004), um intelectual que teve a ousadia de ultrapassar os limites disciplinares em favor da construção de uma dicção autoral. Furtado foi um homem de pensamento e ação que circulou por distintos territórios, da vida universitária a órgãos de governo, além de transitar por organismos internacionais e nacionais. Essa publicação, que reúne um conjunto bastante diversificado e pouco conhecido de textos (documentos, artigos e entrevistas), apresenta o autor como intelectual, homem público e um brasileiro de projeção internacional.

O foco do livro é (in)formar os leitores sobre o pensamento de Celso Furtado no campo da cultura — campo sobre o qual ele se debruçou ao longo de várias décadas. No entanto, essa reflexão ainda não é percebida, sobretudo no meio acadêmico, como um vetor importante de sua obra.

O pensamento desse intelectual tem hoje uma presença ainda limitada na universidade brasileira. De modo geral, restringe-se às (boas) faculdades de economia, que, do amplo espectro da obra do autor, utilizam pouco além do clássico Formação econômica do Brasil, publicado originalmente em 1959. Assim, para ter uma maior presença na universidade brasileira, o pensamento de Furtado — que está ainda muito circunscrito ao campo da história econômica e do desenvolvimento econômico — depende diretamente da percepção do seu caráter multidisciplinar.

Na introdução do livro aqui resenhado, Rosa Freire d’Aguiar Furtado delimita os quatro momentos da extensa reflexão de Furtado no campo da cultura. O primeiro deles data dos anos 1970 e sua obra síntese é o livro Criatividade e dependência na civilização industrial, publicado originalmente em 1978. O segundo momento situa-se no período compreendido entre 1986 e 1988, quando Furtado foi ministro da Cultura no governo Sarney. O terceiro diz respeito ao período compreendido entre os anos de 1992 e 1995, quando a Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento (CMCD) da onu/Unesco reuniu, além de Furtado, um conjunto de intelectuais do porte de Amartya Sen (Prêmio Nobel de Economia/1998) e Elie Wiesel (Prêmio Nobel da Paz/1986). O quarto e último momento se dá em 1997, quando Furtado ingressa na Academia Brasileira de Letras, instituição na qual profere um conjunto de conferências cujos textos integram a coletânea em análise.

O bloco “Documentos de Celso Furtado” é, sem dúvida, a parte mais consistente da publicação. Ele contém 23 textos subdivididos em quatro tópicos intitulados “Primeiras reflexões”, “O Ministério da Cultura”, “A Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento” e “Páginas acadêmicas”. Esse conjunto central é sucedido por dois outros blocos que lhe são complementares. O primeiro, intitulado “Artigos”, consiste em dois textos de autoria de dois importantes dirigentes culturais durante a gestão de Furtado do Ministério da Cultura (MinC): Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, chefe de gabinete do MinC, e Fábio Magalhães, secretário de Apoio à Produção Cultural do MinC e presidente da Funarte. Ambos são textos de caráter documental que podem legitimamente ser considerados complementares aos textos do tópico específico “O Ministério da Cultura”.

O bloco seguinte é composto de duas entrevistas com Celso Furtado: a primeira, realizada em 1987, foi conduzida por duas pesquisadoras francesas — Hélène Rivière d’Arc e Hélène Le Doaré — do Comité National de la Recherche Scientifique (CNRS) e do Centre de Recherche et Documentation sur L’Amérique Latine (CREDAL/Paris); a segunda, realizada no ano anterior, coube a Gabriela Marinho e foi publicada na revista Arquitetura e Urbanismo. Na primeira entrevista Celso Furtado retomou elementos centrais de seu pensamento tais como as categorias de desenvolvimento, de criatividade, de cultura (em especial de política cultural e de economia da cultura) e de identidade cultural e, nessa perspectiva, ela é ainda hoje um documento importante.

O bloco “Documentos de Celso Furtado” inicia-se com o tópico “Primeiras reflexões”, que reúne dois textos: o interessante “Que somos?” — no qual o autor aborda os temas da identidade e da cultura brasileira e ainda tangencia Schumpeter ao relacionar crise a criatividade — e o vigoroso “Criatividade cultural e desenvolvimento dependente” — um trabalho exploratório que, segundo a organizadora, é a “primeira versão de um dos ensaios de Criatividade e dependência na civilização industrial“, livro-chave da obra de Furtado.

O primeiro texto é a conferência proferida no I Encontro Nacional de Política Cultural, ocorrido em Belo Horizonte em abril de 1984. Nesse momento, o Brasil estava próximo de operar a passagem da mais longa ditadura militar da história do país (1964-1985) para uma restauração da ordem democrática sem a presença de eleições diretas para a presidência da República. A dificuldade dessa transição política ampliava-se no quadro de uma desaceleração do crescimento econômico em paralelo a uma intensificação inédita do processo inflacionário. Nesse contexto os secretários estaduais de Cultura, somados a vários dirigentes de instituições culturais das três esferas de governo e a um grande número de artistas e intelectuais, acreditavam que a criação do Ministério da Cultura — em substituição a uma Secretaria de Cultura vinculada ao Ministério da Educação e Cultura — seria um importante vetor da reconstrução democrática do país. Nessa pers­pectiva destaca-se a relevância da afirmação de Celso Furtado — proferida por um intelectual nacional-desenvolvimentista e ex-ministro do governo Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964 — segundo a qual “uma reflexão sobre a nossa própria identidade terá de ser o ponto de partida do processo de reconstrução que temos pela frente, se desejamos que o desenvolvimento futuro se alimente da criatividade do nosso povo e contribua para a satisfação dos anseios mais legítimos desse”. O mesmo texto trouxe uma contribuição igualmente importante ao apresentar sete teses sobre a cultura brasileira, que consistem, na verdade, numa visão panorâmica e histórica do processo cultural brasileiro do século XVI até o final do século XX, quando a indústria da cultura passava a atuar como instrumento da modernização dependente do país. E não menos importante é a referência, ao final, de breve e precisa reflexão sobre política cultural, cujo centro é a afirmação de que “o objetivo central de uma política cultural deveria ser a liberação das forças criativas da sociedade”, as quais deveriam interagir com as forças produtivas. Furtado apontava assim para a necessária interação entre cultura enquanto sistema de valores (que definem os fins) e o desenvolvimento das forças produtivas (que definem os meios), ou, noutros termos, a necessária interação entre identidade (cultural) e potência (produtiva).

O segundo artigo, datado da segunda metade dos anos 1970, como foi dito, é uma versão preliminar de um ensaio que integra o livro Criatividade e dependência na civilização industrial, no qual Furtado demonstra sua singularidade como economista, ao introduzir, de modo inovador, a dimensão cultural na questão do desenvolvimento. Segundo Rosa Freire d’Aguiar Furtado, o desenvolvimento, para esse autor, “seria menos o resultado da acumulação material do que um processo de invenção de valores, comportamentos, estilos de vida, em suma, de criatividade”.

O tópico subsequente, “O Ministério da Cultura”, apresenta nove textos escritos entre fevereiro de 1986 e julho de 1988, período no qual Celso Furtado foi o titular da pasta da Cultura, sucedendo a José Aparecido de Oliveira — o primeiro ministro da Cultura, que permaneceu no cargo somente por dois meses, em 1985 — e a Aluísio Pimenta — que passou apenas pouco mais de oito meses no exercício da função. Sua permanência à frente do ministério, com duração de dois anos e cinco meses, foi das mais longevas da história dessa pasta, tendo sido superada apenas por Francisco Weffort (1995-2002) e Gilberto Gil (2003-2008). A alta rotatividade dos titulares de um Ministério da Cultura recém-criado é um dado contextual que não pode ser desconsiderado quando da leitura dos textos de Furtado, escritos quase sempre com brevidade e urgência para expressar seu pensamento e ação.

Um desses textos foi seu discurso de posse. Afirmava naquele momento que o desafio não era apenas preservar o passado, mas transformá-lo em fonte de criatividade no presente e no futuro. O então ministro se apresentava como consciente de que “a revolução nas tecnologias de comunicação está modificando profundamente a problemática da cultura” e que ela conduz à massificação e à hipertrofia do mercado. Assim, para ele e seus colaboradores, “a política cultural, em face da revolução das tecnologias de comunicação, terá de preocupar-se não apenas em democratizar o acesso aos bens culturais, mas também em defender a criatividade”.

No texto “Economia da cultura”, Furtado tratou brevemente de um tema tão importante quanto até hoje relativamente pouco elaborado no Brasil, apesar de objeto de reflexão de importantes economistas norte-americanos e europeus desde os anos 1960. Furtado, na década de 1980, estava consciente desse atraso bem como da necessidade de sua superação. Nesse sentido, é importante destacar que seu texto é uma breve introdução ao estudo “Economia e cultura: reflexões sobre as indústrias culturais no Brasil”, realizado pela Fundação João Pinheiro, em 1988. A despeito de todos os seus limites, “Economia da cultura” e o estudo acima citado foram iniciativas pioneiras na abordagem do processo de produção, distribuição e consumo de bens e serviços culturais no país.

Os vínculos existentes entre desenvolvimento econômico e social e política cultural são apontados no texto “Pressupostos da política cultural”. Aqui o pensamento de Furtado revela-se com clareza ao afirmar que “o que chamamos de política cultural não é senão um desdobramento e um aprofundamento da política social”. Demonstra aqui a preocupação em articular as políticas econômica (cuja tônica é a acumulação), social (cujo foco é a inserção) e cultural (cujo essencial é a criatividade e a consequente transformação), ou seja, estabelece os elos entre os meios e os fins do processo de desenvolvimento. Ao privilegiar as articulações políticas e institucionais, seu pensamento também destaca a ação do Estado que “longe de se substituir à sociedade aplica-se em criar as condições que propiciem a plenitude das iniciativas surgidas dessa sociedade […] concentrando esforços [na] preservação do patrimônio e da memória culturais, [no] estímulo à criatividade de nosso povo, [na] defesa da identidade cultural do país e [na] democratização do acesso aos valores culturais”.

Em outro texto intitulado “O IPC, cultura e desenvolvimento tecnológico”, Furtado revelava sua preocupação com a estruturação do próprio ministério. Trata-se de discurso proferido em 1986, na abertura de seminário interno do Instituto de Promoção Cultural, órgão criado com a missão de desenvolver um pensamento no campo da economia da cultura e com função estratégica durante sua gestão. Faz-se aqui presente o estrategista político, que centra seu pensamento de curto e longo prazo no Estado e na cultura enquanto um processo produtivo. Como expressão de um pensamento atento para o desenvolvimento tecnológico — e Furtado chega a mencionar a necessária articulação política com o Ministério da Ciência e Tecnologia —, o mercado e a indústria cultural assumem centralidade.

Um balanço das realizações da gestão Furtado à frente do ministério até fins de 1987 encontra-se no texto “A ação do Ministério da Cultura”. Estão ali apresentadas as quatro diretrizes que nortearam sua gestão: a preservação e o desenvolvimento do patrimônio cultural; o estímulo à produção cultural preservando a criatividade; o apoio à atividade cultural onde ela se apresenta como ruptura com respeito às correntes dominantes; e, finalmente, o estímulo à difusão e ao intercâmbio culturais visando democratizar o acesso ao nosso patrimônio e aos bens culturais no país e no exterior. Furtado expõe ainda as realizações de sua pasta, segundo cada uma dessas diretrizes, além das opções feitas por sua gestão. Destaca os programas constituídos por setor de atividade; os compromissos socioculturais são mencionados de modo sistemático; demonstra o empenho em redesenhar instituições com ênfase nas fundações e, finalmente, a Lei Sarney (Lei 7.505, de 2 de julho de 1986) é apresentada grandiosamente como “a grande contribuição prestada pelo atual governo ao desenvolvimento cultural do país”. Dedica-se especialmente a esse tema, ao destacar o pioneirismo da criação de uma legislação de incentivos fiscais à cultura, por acreditar que, a partir desse momento, a sociedade civil e, em particular, os empreendedores brasileiros assumiriam iniciativas no campo da produção cultural tendo em vista as limitações de recursos do Estado. Caberia ao Estado gerir tanto o cadastro das entidades às quais é conferido o incentivo, quanto o Fundo de Promoção Cultural. O foco dessa estratégia era “o fortalecimento das atividades empresariais de interesse cultural de origem e controle nacionais”. Ao supor adesões, Furtado possivelmente minimizou a oposição que conduziria à substituição da referida lei, já no governo Fernando Collor, pela Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, conhecida como Lei Rouanet.

No texto intitulado “Política cultural e criatividade”, fruto de pronunciamento na abertura do Fórum de Secretários de Cultura, realizado em abril de 1987, no qual reiterou a importância da preservação da força criativa do povo brasileiro como fator de identidade cultural, Furtado buscou — talvez com alguma ingenuidade — adesões das Secretarias de Cultura à Lei Sarney, “que tem sido interpretada apenas como um mecenato tradicional embora sua essência seja um convite para que a sociedade participe mais amplamente das iniciativas culturais”. No entanto, passado menos de um ano de existência da Lei Sarney, Furtado já identificava de modo arguto “um forte declínio na participação dos recursos destinados à cultura nos orçamentos de muitos estados da federação”.

Uma reflexão mais apurada é apresentada em “Política cultural e o Estado”, texto datado de fins de 1986, no qual Furtado articula a preservação do patrimônio com inovação e a identidade com democratização do acesso aos valores culturais. Com clareza, há ali uma síntese de seu pensamento: os papéis do Estado e da sociedade civil estão definidos, e temas tais como a descentralização e o desenvolvimento foram devidamente abordados. Trata-se de um documento que foge ao padrão dos discursos comemorativos e dos balanços de gestão para afirmar-se como um arcabouço de um projeto para o desenvolvimento fundado na cultura.

O terceiro tópico do bloco “Documentos de Celso Furtado”, denominado “A Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento”, compõe-se de dois textos que ajudam na compreensão de seu pensamento no campo da cultura, além de serem bastante consistentes e politicamente relevantes. O primeiro deles, datado de 1994, intitula-se “Economia e cultura” e foi preparado para o projeto preliminar do relatório da CMCD. Trata-se de um texto no qual o pensamento de Celso Furtado é apresentado a partir das seguintes proposições: “a cultura tem que ser observada a um só tempo como processo cumulativo e como sistema”; “se o objetivo fundamental da política de desenvolvimento é melhorar a vida dos homens e das mulheres, seu ponto de partida terá de ser a percepção dos fins, dos objetivos que se propõem alcançar os indivíduos e as coletividades”; “nas sociedades economicamente dependentes a política cultural se faz particularmente necessária [pois] é nela que se manifesta a importância do conceito de identidade cultural que traduz a ideia de manter com o nosso passado uma relação capaz de enriquecer o nosso presente”. O segundo texto, intitulado “Cultura e desenvolvimento” (1995), parte da necessidade de aprofundar as análises e discussões centradas na relação entre cultura e desenvolvimento, avança pela proposição de direitos culturais no desenvolvimento dos direitos humanos e, ao concluir, destaca a importância de princípios éticos e democráticos no curso desse processo.

Já o último tópico desse mesmo bloco, intitulado “Páginas acadêmicas”, apresenta um conjunto de dez pequenos textos sobre autores brasileiros que, no entanto, não expressam um vínculo maior com a obra de Furtado nem com as ideias contidas no seu projeto de desenvolvimento centrado na cultura. Uma exceção é o texto de seu discurso de posse, em 1997, na Academia Brasileira de Letras, no qual ele homenageia Darci Ribeiro, homem de pensamento e ação que, como ele próprio, tanto marcou o país. Ambos pertenceram à mesma geração de intelectuais brasileiros, e tiveram em comum o desejo de transformar o país com base em um projeto nacional de desenvolvimento autônomo. Com suas singularidades, Celso Furtado e Darci Ribeiro ocuparam a mesma cadeira na Academia Brasileira de Letras, e suas obras, através do ensino e da pesquisa, podem alimentar novos processos de transformação fundados em projetos de desenvolvimento nacionais e autônomos.

Longe de ser uma compilação voltada para o passado, o livro Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura é uma fonte contemporânea para reflexão e debate sobre cultura e desenvolvimento. Ademais, ele torna evidente a diversidade e a originalidade do pensamento de Furtado e seu compromisso com uma ação orientada para a mudança social.

George Kornis – Doutor em Economia, professor associado do ims/Uerj e autor de diversos trabalhos e pesquisas no campo da economia da cultura.

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A História das Constituições brasileiras: 200 anos de luta contra o arbítrio – VILLA (NE-C)

VILLA, Marco Antonio. A História das Constituições brasileiras: 200 anos de luta contra o arbítrio. São Paulo: Leya, 2011. Resenha de: SILVA, Virgílio Afonso da. Historinhas (Irrelevantes) sobre as Constituições brasileiras. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.96, Jul,.2013.

Em alguns âmbitos, e certamente no campo do direito, a academia brasileira escreve muito pouco para o grande público. Em sua História das constituições brasileiras, Marco Antonio Villa avisa, logo no início, que não se trata de um livro de direito constitucional, tampouco de uma obra acadêmica1 , o que certamente chama a atenção para o livro. O autor conseguiu mostrar que é possível escrever sobre um tema árido sem que a linguagem seja necessariamente árida. Infelizmente, contudo, talvez esse seja o único mérito do livro.

Villa não conta uma história das constituições brasileiras; simplesmente compila anedotas e lugares-comuns ao lado de equívocos conceituais e falta de informação. No livro, quase tudo é classificado como “bizarro”, “curioso”, “inusitado” ou “exótico”, e o Brasil como um país sem “seriedade legal”2 .

O livro carece, também, de fio condutor identificável. Quando muito, baseia-se em duas premissas que, se não necessariamente equivocadas, demandam alguma fundamentação. O simples fato de ser um livro não acadêmico, não jurídico, feito para o grande público, não isenta o seu autor de expor suas premissas e justificá-las. Essas duas premissas, ainda que não explícitas, são: (1) as constituições brasileiras, com raríssimas exceções, sempre foram muito detalhadas e tratam, frequentemente, de assuntos não constitucionais; (2) as constituições brasileiras são muito longas, têm muitos artigos (uma consequência quase natural, aparentemente, da primeira premissa)3. Essas premissas não são necessariamente equivocadas, mas demandam fundamentação. Quando o autor afirma que as constituições brasileiras com frequência trataram de assuntos que não são tipicamente constitucionais4 , parece ele supor que existe um critério claro que permita, em todos os casos, distinguir o que é assunto constitucional do que não é. Mas Villa parece não ser capaz de definir esse critério. Não basta citar aqui e ali artigos, incisos ou parágrafos anedóticos dessa ou daquela constituição, que, por razões que não importam neste momento, conseguiram chegar ao texto constitucional. Infelizmente, contudo, esse é o argumento-padrão de Villa ao longo do livro: ao invés de buscar critérios ou parâmetros para as suas afirmações, ele recorre ao anedótico.

A obsessão pelo número de artigos das nossas constituições segue a mesma linha: elas seriam muito longas porque tratam de muitos assuntos. Mas, da mesma forma que Villa não explica o que deve e o que não deve ser tratado em uma constituição, também não explica o que é uma constituição longa, tampouco qual é a relação do tamanho de uma constituição com sua qualidade e capacidade de produzir os efeitos desejados.

Com essas deficiências no pano de fundo, pretendo, nos próximos tópicos desta resenha, analisar as principais ideias e problemas do livro de Villa: a questão do tamanho de nossas constituições; o recurso a anedotas como estratégia argumentativa; o uso questionável de comparações com outros países (apenas quando isso interessa aos objetivos do autor); o grande número de equívocos conceituais e a frequente referência a situações fora de contexto, com o intuito de apresentá-las, para usar o vocabulário de Villa, como “bizarras”, “exóticas” ou “curiosas”.

O TAMANHO DE NOSSAS CONSTITUIÇÕES

Villa está convencido de que nossas constituições sempre foram muito longas, com muitos artigos, muitos dos quais tratam de “assuntos não constitucionais” ou são, para usar o termo preferido do autor, simplesmente bizarros. Villa compra um dos maiores lugares-comuns a respeito da extensão das constituições: boa é aquela com poucos artigos5. De brinde, leva também outra história da carochinha: a Constituição dos Estados Unidos é boa e longeva porque tem poucos artigos6.

Duas questões, no entanto, não são respondidas: (1) por que uma constituição com poucos artigos é melhor do que uma com muitos? (2) O que exatamente significa “poucos artigos” (ou “muitos artigos”)? Villa faz uma discutível contraposição entre países “com seriedade legal” e países “sem seriedade legal”. Aqui tampouco diz o que significam esses dois conceitos. Apenas ficamos sabendo que, para ele, o Brasil se inclui na segunda categoria. Mas não parece ser difícil supor que Estados Unidos e alguns países europeus seriam incluídos na primeira. A Constituição brasileira de 1988 tinha, em seu texto original, 245 artigos. Já a Constituição dos Estados Unidos, que parece ser o ideal de constituição para Villa, tem apenas sete artigos no seu texto original e 27 artigos extras, inseridos por emendas. Mas o que dizer então das constituições da Alemanha, com 146 artigos, dos Países Baixos, com 142, ou da Suíça, com 197 artigos? Se a qualidade de uma constituição é medida pelo número de artigos, Brasil e Suíça parecem ter muito em comum. Pelo menos essa deveria ser a conclusão de Villa.

O que Villa não quer ver é o óbvio: ter poucos ou muitos artigos, em si, não significa absolutamente nada. Em primeiro lugar, por uma razão trivial: o conceito de artigo não é algo estanque e igual para todas as constituições. Aquilo que a Constituição dos Estados Unidos chama de artigo é uma unidade dividida em diversas seções que, por sua vez, estão divididas em diversos parágrafos. Ou seja: o conceito de artigo na Constituição dos Estados Unidos equivale a uma divisão interna do texto que teria função mais próxima dos títulos e capítulos da Constituição brasileira, não do nosso conceito de artigo. Tendo isso em mente, a comparação muda bastante. Os sete artigos originais da Constituição dos Estados Unidos não seriam, na verdade, sete artigos para os padrões legislativos brasileiros (e de diversos outros países). Mas, mesmo com esses ajustes, a comparação continua não tendo nenhuma relevância.

A quantidade de artigos ou, o que é muito mais relevante, a quantidade de temas tratados em uma constituição não são questões definíveis a priori, com base em padrões imutáveis. Quem afirma que determinados artigos não deveriam estar na constituição tem que expor o seu conceito de constituição. O leitor que procurar esse tipo de informação no livro de Villa sairá frustrado. A tentativa de demonstrar que há coisas fora de lugar é feita apenas por meio de exemplos anedóticos escolhidos a dedo, ignorando tradições jurídicas, conjunturas históricas ou aspectos políticos.

Villa não pretende, por exemplo, contextualizar sua análise e afirmar que a Constituição dos Estados Unidos é mais enxuta do que a de outros países simplesmente porque foi feita em uma época distinta da maioria das constituições ainda em vigor. O que se almejava com uma constituição no século XVIII não é o mesmo que se costuma pretender atualmente. Tendo esse contexto em mente, a Constituição brasileira, ainda que possa ser mais pródiga em temas do que outras, destoa menos do padrão contemporâneo do que Villa quer fazer crer.

Além da recorrente crítica ao suposto tamanho exagerado de nossas constituições, o livro é também um desfile de “causos” que nada provam e não têm, de fato, qualquer relação com a história de nossas constituições. Villa dedica páginas e mais páginas a expor informações absolutamente irrelevantes, como se interessasse a alguém que quer conhecer a história de nossas constituições saber que Olavo Bilac, no exercício da função pública, escrevia despachos em forma de versos7 , ou que o Visconde de Taunay impediu José do Patrocínio de fazer um discurso no primeiro casamento civil celebrado no Brasil8 , ou ainda que, na década de 1930, um açougueiro foi preso por uma diferença de 50 gramas na venda de carne9. Informações como essas, que nada dizem sobre as constituições brasileiras, recheiam o livro de Villa.

Nas suas críticas às constituições brasileiras, Villa usa as experiências internacionais apenas e tão somente na medida em que sirvam aos seus objetivos. Em diversos momentos, ele finge estar diante de artigos que só poderiam fazer parte de constituições de “repúblicas bananeiras”, para usar outra expressão do próprio Villa10 . A leitura de constituições de outros países, no entanto, mostraria um cenário diverso.

Villa afirma, por exemplo, que o artigo que define a língua portuguesa como idioma oficial do Brasil (art. 13) é muito “estranho”, “pois ninguém estava pretendendo adotar outra língua”11. Do ponto de vista jurídico, essa afirmação não faz sentido, pois supõe que só deve fazer parte de uma constituição aquilo que está em risco. Além disso, no plano do direito comparado, teríamos que supor, por exemplo, que o art. 2 º da Constituição da França, que declara o francês idioma oficial do país, deve ter sido uma reação a alguma revolta desconhecida que pretendia forçar a adoção de outra língua na terra de Molière. O mesmo vale para o art. 8 º da Constituição da Áustria, que diz que o alemão é o idioma oficial do país, e para o art. 27 da Constituição polonesa, que declara que o polonês é o idioma oficial da Polônia.

O art. 4º da Constituição de 1988 é chamado de “latino-americanismo” (em sentido irônico e pejorativo, claro), por fomentar a integração latino-americana12. Talvez fosse o caso de perguntar se Villa diria o mesmo sobre o art. 23 da Constituição alemã acerca da consolidação da União Europeia.

Para Villa, é “incrível” o fato de que a Constituição de 1824 tivesse um artigo que declarava que “a pessoa do imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma”13. Se a “rigorosa pesquisa” a que faz menção a orelha do livro tivesse de fato ocorrido, teria sido fácil descobrir que outras constituições da época tinham artigos idênticos. Uma sugestão de leitura seria o art. 5º da Constituição da Noruega (ainda hoje em vigor), segundo o qual “a pessoa do rei é sagrada; ele não pode ser censurado ou acusado”.

O tamanho da Câmara dos Deputados também é alvo da estratégia de mostrar dados de maneira enviesada. Na aritmética de Villa, se a Câmara brasileira tem 513 e a dos Estados Unidos tem 435 membros, algo está errado, porque a população americana é maior do que a nossa. Villa afirma: “A Câmara chegou ao número total de 513 deputados, uma das maiores do mundo (nos Estados Unidos, a Câmara dos Representantes tem 435 membros e a população é superior à brasileira)”14. Mas o que dizer, então, da Assembleia Nacional francesa, com 577 membros, ou do Parlamento alemão, com 620, ou da Câmara dos Comuns na Inglaterra, com, pasmem, 650 membros? Aqui, de novo, esses exemplos atrapalhariam o esquisito argumento de Villa. Melhor então escondê-los (já que, se Villa afirma que a Câmara brasileira é “uma das maiores do mundo”, é possível supor que ele tenha pesquisado o tamanho de outras casas legislativas e, portanto, sabia desses números).

Além de não fazer comparações internacionais quando não interessa, Villa baseia parte da sua análise de casos supostamente “bizarros” em noções jurídicas bastante equivocadas. Ele confunde impedimento do presidente com impeachment, para depois chamar de “exótico” o sistema de substituições e sucessões da atual Constituição brasileira15. O exotismo, contudo, só surge por causa dessa confusão conceitual.

Outro equívoco recorrente, especialmente na análise da Constituição de 1988, é forçar incompatibilidades entre dispositivos constitucionais com o propósito de mostrar que nossas constituições são feitas sem cuidado, que aceitam qualquer coisa e que nelas haveria diversas previsões mutuamente excludentes. Villa afirma: “É evidente que são excludentes a democracia direta e a representativa. A dubiedade constitucional foi um meio de aparar as arestas entre os diferentes grupos políticos”16. A afirmação está fora de qualquer contexto e é difícil saber o que Villa quer dizer com ela. É possível supor que ele esteja mencionando o parágrafo único do art. 1º da Constituição, que prevê que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Embora Villa afirme que há uma contradição “evidente”, ele não diz a razão. O certo é que há inúmeras constituições pelo mundo afora que se apoiam em ideias semelhantes: a democracia representativa é matizada por instrumentos de democracia direta como plebiscitos, referendos ou leis de iniciativa popular. Não há aqui qualquer exotismo.

Pelo contrário, é absolutamente comum que constituições contenham regras gerais que sejam excepcionadas pela própria constituição. É tarefa básica do jurista harmonizar esse tipo de relação entre normas. Villa engana-se, portanto, quando afirma que a contradição que ele aponta como evidente “vai se repetir várias vezes” ao longo da Constituição17. Seu segundo exemplo de normas “evidentemente excludentes” é igualmente equivocado: segundo ele, não é compatível garantir a propriedade (art. 5º, XXII ) e, ao mesmo tempo, exigir que ela cumpra sua função social (art. 5º, XXIII). Qualquer estudante de primeiro ano de direito aprende a resolver essas relações entre regra geral e regra especial.

Quando Villa comenta o art. 4º , parágrafo único, da Constituição de 1988, já mencionado acima, segundo o qual a “República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”, além de pejorativamente classificar o artigo de “latino-americanismo”, Villa afirma:

O despropósito está explícito. Não é somente um princípio. Muito mais do que isso, trata-se da determinação para iniciar o processo de formação de uma comunidade de nações, tal qual a europeia. Como se bastasse simplesmente externar um desejo, como se a palavra substituísse a ação e todas as contradições na organização de uma comunidade tão díspar18.

O que está explícito, contudo, não é o despropósito do texto constitucional, mas o despropósito da interpretação de Villa, que, de novo, tenta forçar a impressão de algo exótico e incrível. É claro que a palavra não substitui a ação. Mas a palavra — no caso uma previsão constitucional — tem uma força normativa que não pode ser ignorada, pois aponta para uma direção a ser seguida. Normas constitucionais não garantem apenas direitos ou definem a organização do Estado, elas também podem definir — e com frequência definem — objetivos a serem perseguidos. O art. 4º , parágrafo único, faz exatamente isso.

Há diversos outros equívocos conceituais ao longo do livro de Villa. Embora isso possa indicar menos cuidado na elaboração do livro do que a orelha e a apresentação do livro sugerem, alguns desses equívocos conceituais não seriam necessariamente um problema digno de muita atenção, especialmente em um livro não jurídico e não acadêmico. A menção a alguns deles acima não tem, portanto, o objetivo de apontar o erro pelo erro. O problema é que cada um dos incontáveis equívocos serve de trampolim para que Villa invente mais uma de suas situações aparentemente “exóticas”, “bizarras” ou “inusitadas”. Tendo esse objetivo em mente, Villa deveria ter se preparado melhor. É claro que, se o tivesse feito, teria encontrado menos historinhas para contar, mas certamente haveria menos razões para corrigi-lo.

Outra forma de forçar exotismos é por meio da referência a situações descontextualizadas. Assim, o leitor incauto poderá imaginar que o voto censitário (baseado na renda ou propriedade) durante o império era mais uma invenção brasileira19 , embora qualquer estudioso saiba (Villa inclusive) que o voto censitário era a regra geral no século XIX , no mundo inteiro.

No capítulo sobre o STF , Villa cita a frase, supostamente dita por um de seus ministros no passado: “Estamos aqui para aplicar a lei e não para fazer justiça”20. O objetivo de Villa parece ser o de sugerir aos leitores que o STF sempre foi formado por pessoas de caráter duvidoso. O problema é que a frase não tem nada de peculiarmente brasileira e nada diz sobre o caráter de um juiz. Ela expressa, ainda que de forma simplificada, um dos pontos centrais de uma corrente jurídico-filosófica dominante por muito tempo (e ainda influente) — o positivismo jurídico — que defende, entre outras coisas, que não cabe ao juiz fazer juízos morais21. Mas revelar esse decisivo detalhe atrapalharia os objetivos de Villa. E não se trata de mero desconhecimento do autor. A frase acima citada teria sido dita pelo ministro Hahnemann Guimarães a Lêda Boechat Rodrigues, autora de um extenso trabalho sobre a história do STF , que Villa cita. É possível supor, então, que ele o tenha lido. No entanto, ao contrário de Villa, Lêda Boechat Rodrigues não cita o episódio de forma descontextua­lizada e faz questão de explicar o que há por trás da frase do ministro: “A convicção do Ministro Hahnemann Guimarães era a de um ardente positivista jurídico”22. E, embora de forma bastante simplificada, não deixa dúvidas de que se trata de um embate de correntes jurídico-filosóficas, não de questões de caráter: “Mais próximas do meu sentir ressoavam as palavras do admirável Benjamin N. Cardozo […]. A Escola Sociológica do Direito americana parecia-me levar a sentenças de muito maior valia que as inspiradas pelo Positivismo Jurídico”23. Se Villa tivesse exposto o contexto, teria perdido a oportunidade de tripudiar às custas de um possível desconhecimento de seus leitores do que está por trás dos fatos que narra. Mais uma vez, preferiu esconder os detalhes.

O livro de Villa, em suma, além de não ser uma história das constituições brasileiras (tampouco do STF), mas uma mera coleção de anedotas pouco relevantes sobre temas marginais, é todo baseado em estratégias argumentativas duvidosas, por não mostrar contextos, por esconder a experiência internacional com o intuito de fazer crer que nossa experiência é sempre singular e, por fim, por basear-se em interpretações equivocadas dos textos constitucionais.

Villa parece se divertir com um suposto exotismo brasileiro. Uma pena que não o demonstre por meio de uma análise mais bem informada. Com isso, perdeu a oportunidade de escrever um livro interessante, que analisasse por que, em determinados momentos, as constituições brasileiras não conseguiram produzir os efeitos esperados. Poderia, até mesmo, tentar entender por que nossas constituições foram aumentando de tamanho, já que esse parece ser um tema que o interessa. Poderia, por que não, também mostrar o que funcionou nos últimos quase duzentos anos. Isso não significaria fazer uma análise ufanista de nossas constituições. Tampouco deixaria o livro mais árido. Mas Villa preferiu o caminho fácil, o anedótico. Para quem está atrás de anedotas irrelevantes, pode ser um passatempo indolor. Já para quem procura uma história das constituições brasileiras, ler o livro de Villa é definitivamente pura perda de tempo.

Notas

1 VILLA, Marco Antonio. A história das constituições brasileiras: 200 anos de luta contra o arbítrio, pp. 9-10.         [ Links ] 2 Ibidem, p. 126.
3 Não quero com isso dizer que essas são as duas únicas premissas do livro de Villa. Com certeza deve haver outras, tão pouco explícitas quanto essas que menciono. Se há alguma premissa explícita, talvez sejam as duas definidas na apresentação do livro: a predominância do arbítrio estatal em nossas constituições e a dissociação dos textos constitucionais com o Brasil real (p. 10). Essas duas premissas, contudo, não são de fato desenvolvidas ao longo do livro (ainda que, no caso da primeira, ela seja o pano de fundo das constituições dos períodos autoritários de nossa história).
4 Por exemplo, Villa, op. cit., pp. 40, 48, 56, 90, 126.
5 Ao longo de quase 150 páginas, Villa consegue encontrar apenas um único ponto positivo em todas as constituições da história do Brasil: a de 1891 foi uma constituição concisa (p. 32). O número de artigos das nossas constituições é quase um fetiche para Villa e é tema recorrente no livro (além da p. 32, cf. também as pp. 48 e 115, por exemplo).
6 Ibidem, p. 116.
7 Ibidem, p. 28.
8 Ibidem, p. 39.
9 Ibidem, p. 64.
10 Ibidem, p. 90.
11 Ibidem, p. 127.
12 Ibidem, p. 117.
13 Ibidem, p. 19.
14 Ibidem, p. 119, grifos meus.
15 Ibidem, pp. 121-122, 125.
16 Ibidem, p. 118.
17 Ibidem, p. 118.
18 Ibidem, pp. 117-118.
19 Ibidem, p. 17.
20 Ibidem, p. 131.
21 Apenas para ficar nos autores clássicos dessa corrente jusfilosófica, cf. KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre. 2. ed. Viena: Deuticke,         [ Links ] 1960; HART, H. L. A. The concept of law. Oxford: Clarendon Press,         [ Links ] 1961. Há traduções brasileiras de ambos os livros.
22 RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, t. III,         [ Links ] p. 39.
23 Ibidem.

Virgílio Afonso da Silva – Professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP.

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Sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador – SINGER (NE-C)

SINGER, André. Sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Resenha de: MIGUEL, Luis Felipe Limites da transformação social no Brasil. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.95, Mar 2013.

No primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006), o cientista político e jornalista André Singer ocupou a função de porta-voz da presidência da República. No segundo mandato, de volta ao mundo acadêmico, colocou-se na posição de intérprete do “lulismo”, buscando entender algo que, para ele, é mais do que a simples adesão a um líder carismático: é um projeto político complexo, baseado no apoio da massa de excluídos e voltado para a superação da miséria sem o enfrentamento dos privilégios. Apresentado em artigos que causaram razoável polêmica, o argumento está agora consolidado no livro Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador, que reúne os três textos antes publicados e acrescenta a eles uma introdução e um capítulo inéditos. Como posfácio, o autor inclui uma versão modificada do memorial que apresentou ao concurso para livre-docência na Universidade de São Paulo, mas que – à parte desvelar sua relação afetiva com o ideário original do Partido dos Trabalhadores – pouco soma ao livro.

Essa vinculação, no entanto, não é irrelevante. No início do livro, Singer faz o elogio ritual da “objetividade científica”, garantindo que o trabalho não é contaminado por suas preferências e afetos políticos. Evidentemente, não é assim – e não há nenhum demérito nisso. Os sentidos do lulismo tem a ambição de mostrar que, no PT de hoje, que abraça Paulo Maluf e se entrega gostosamente às práticas da política tradicional brasileira, ainda sobrevive o compromisso popular e mesmo socialista dos primeiros anos. Não se trata de negar as mudanças sofridas pelo partido, nem o caráter conservador delas, mas de enquadrá-las numa narrativa em que aquilo que, à primeira vista, parecia ser oportunismo ou capitulação se torna peça de um projeto, muito moderado, é verdade, mas orientado decididamente na direção da mudança do país.

A tese principal do livro é que o “reformismo fraco” do lulismo não é o abandono, muito menos a traição, e sim a “diluição” do “reformismo forte” do petismo de antes. O reformismo diluído lulista evita a todo custo o confronto com a burguesia, optando por políticas que, na aparência, não afetam quaisquer interesses estabelecidos. Tal opção não se deve, ou não se deve principalmente, ao jeito matreiro e ao pendor acomodatício do ex-presidente, como a imprensa gosta de afirmar. É fruto, por um lado, da chantagem que os proprietários fizeram nas campanhas presidenciais do pt, desde a ameaça aberta de desinvestimento em 1989 até a elevação exagerada do câmbio em 2002. Lula aprendeu que não deve mexer com o capital. Por outro lado, a diluição do reformismo reflete a compreensão de que o maior contingente do eleitorado brasileiro – o “subproletariado”, segundo o conceito que o livro busca na obra de Paul Singer – deseja um Estado ativo no combate à pobreza, mas que não ponha em risco a manutenção da “ordem”.

O subproletariado reúne aqueles que não conseguem vender sua força de trabalho pelo valor necessário para sua própria reprodução e que formariam cerca de metade da população economicamente ativa do Brasil. Singer discute, com algum cuidado, a opção pelo conceito, em vez de falar em “excluídos” ou mesmo na “ralé” dos livros de Jessé Souza. É o gancho para sua defesa de uma análise das disputas políticas focada nas classes sociais, que parte da observação – correta – de que, ao deixar esse eixo de lado, a ciência política se torna insensível a elementos centrais do conflito de interesses na sociedade. A ambição é mostrar que as decisões eleitorais acompanham as clivagens de classes. No entanto, o argumento é enfraquecido pelo fato de que, em boa parte da análise, voto classista é tratado como equivalente de voto econômico.

O ponto é intrincado porque, na percepção de Singer, o subproletariado tem como único projeto deixar de existir, isto é, transformar-se em proletariado. Ele deseja ser incorporado ao mercado formal de trabalho, receber salários que garantam um padrão mínimo de consumo e gozar das garantias que o Estado concede a esses trabalhadores. O livro observa, com razão, que a “nova classe média”, tão badalada, é na verdade formada por neoproletários, sejam eles operários tradicionais da indústria ou empregados dos escalões inferiores do crescente setor de serviços. São setores intermediários, sim, porque abaixo deles permanece o subproletariado, mas estão longe de possuir as características associadas às classes médias propriamente ditas.

No meio disso tudo, as classes, protagonistas da narrativa do livro, não se caracterizam por quaisquer antagonismos – que é o que permite a mágica do lulismo, de dar aos pobres sem tirar dos ricos. Como se fosse o avesso da percepção de E. P. Thompson, de que as classes sociais se formam como efeito das lutas que ocorrem no interior da sociedade, aqui a classe surge pela identificação que algum outro agente político faz dos desejos e necessidades de um aglomerado de pessoas. Essa visão explica porque Singer problematiza tão pouco o apego à “ordem” por parte do subproletariado. A ojeriza à desordem, que significa na verdade qualquer política de enfrentamento do capital, explica por que o subproletariado foi historicamente a base eleitoral da direita, por que ele se converteu ao lulismo ao longo do primeiro mandato de Lula e por que tentativas de mobilizá-lo de outra forma, como a buscada pelo MST, não obtiveram êxito mais do que parcial. Mas permanece, ela mesma, inexplicada.

Seja como for, foi a sensibilidade de Lula para o programa dessa camada (um Estado atuando em favor dos mais pobres, sem confrontar a ordem) que permitiu o realinhamento eleitoral de 2006, quando o presidente trocou parte do eleitorado petista tradicional, baseado nas classes médias urbanas mais escolarizadas, pela massa de subproletários. A tese do realinhamento é polêmica, como Singer mesmo indica no livro, mas os dados são eloquentes quando mostram a mudança na base eleitoral dos candidatos presidenciais do PT em 2006 e 2010, em comparação com as disputas anteriores.

A necessidade de manter a ação governamental dentro dos limites da “ordem” tem consequências quanto ao ajuste do foco das políticas. Singer observa, com razão, que o reformismo fraco tem como meta a superação da pobreza, ao passo que o reformismo forte buscava a superação da desigualdade – e que as duas coisas não confluem necessariamente. É essa observação que permite colocar em sUSPeita a tese, central ao livro, da continuidade do programa petista, apesar da diluição de seu componente reformista. A diluição implicou a substituição do horizonte almejado, que deixa de ser um país sem desigualdade para ser um país sem pobreza, como diz o slogan do governo Dilma Rousseff.

Muito mais do que a convivência e o amálgama entre as duas “almas” do pt, como diz Singer, a socialista aguerrida dos primórdios e a moderada de agora, é possível ver a consolidação de uma hegemonia interna, com a marginalização dos setores mais principistas do partido – por mais que, como aponta o livro, muitas de suas teses permaneçam brilhando nas resoluções dos congressos petistas. É uma mudança que se refere ao abandono do projeto não só de transformação socialista das relações de produção, mas também de renovação das práticas políticas, com o aprofundamento da democracia e a revalorização da experiência popular. Quanto a esse quesito, o autor evoca a realização das conferências nacionais de políticas públicas, embora se veja constrangido a reconhecer que seus resultados práticos são “discutíveis”1. Mas é indiscutível a adesão do PT ao “toma lá, dá cá” que caracteriza o jogo político brasileiro.

O questionamento da tese da continuidade entre o petismo inicial e o lulismo não significa que a obra de Singer não faça uma análise competente da gestão do Estado brasileiro desde 2002. A redução da miséria e da pobreza, fruto de uma ação política que a priorizou, por meio de medidas como Bolsa Família, aumentos reais do salário mínimo e ampliação do crédito consignado, além de programas que evitaram ativamente o desaquecimento da economia, como o Minha Casa, Minha Vida, é um fato de enorme relevância política e social, valioso por si só. Mas Os sentidos do lulismo não avança na investigação sobre o impacto da diminuição da pobreza nos padrões de distribuição da riqueza.

De fato, os dados têm mostrado uma redução significativa da desigualdade de renda no Brasil desde o início do governo Lula. Mas os números dizem respeito apenas aos rendimentos do trabalho; dito de outra forma, as disparidades salariais estão diminuindo, sobretudo pela redução do contingente dos que são severamente sub-remunerados – o que já é uma vitória em si, já que a discrepância entre maiores e menores salários, no Brasil, sempre foi obscena. Para críticos das administrações petistas, entre os quais Francisco de Oliveira, o dado esconde o fato de que, ao mesmo tempo, a parcela abocanhada pelo capital, na riqueza nacional, estaria crescendo. Ou seja, os mais pobres seriam beneficiados por políticas compensatórias, ao mesmo tempo que a burguesia auferiria lucros recordes. Singer cita brevemente dados que contradizem essa interpretação e mostram que, na verdade, a participação do trabalho na renda nacional estaria aumentando. Em nota de rodapé, admite que os dados são controversos e que é possível que esteja ocorrendo o contrário. Uma interpretação razoável, baseada nas contas nacionais, parece ficar no meio termo: a repartição da renda entre capital e trabalho tem ficado estável desde o início do século XXI, com o rendimento do capital correspondendo a cerca de três quintos do total.

Se é mesmo assim, os limites da política lulista são bem mais claros do que a narrativa de Singer acaba por indicar. Fato que ecoa uma das ausências importantes do livro, que é a plataforma política do capital. O subproletariado é, evidentemente, personagem importante, tendo encontrado quem realize por ele seu programa. O proletariado seria beneficiado objetivamente com a redução do exército industrial de reserva, o que lhe colocaria em condições mais vantajosas nas disputas salariais. E as classes médias aparecem como as antagonistas, perdendo tanto o sentimento subjetivo de distinção social, que a distância em relação aos mais pobres concedia, quanto as vantagens objetivas advindas do acesso a uma multidão de pessoas dispostas ao subemprego, uma realidade apreendida pela infeliz boutade do ex-ministro Delfim Netto sobre a empregada doméstica como “animal em extinção”. Pouco se fala, porém, de como os interesses da burguesia se expressam. Seguramente porque, no jogo político brasileiro de hoje, que o lulismo não questiona, os interesses do capital são intocáveis.

As vantagens do operariado sob o lulismo também merecem uma atenção maior. André Singer concentra toda a interpretação no efeito que a redução do subemprego tem na correlação de forças dos embates por melhores salários e condições de trabalho. Cita, como sustentação, a elevada proporção de greves que têm obtido reajustes reais para suas categorias profissionais. Mas não leva em conta o fato de que o perfil das categorias paradas mudou, com uma concentração no setor público, bem como o alcance de suas reivindicações. Embora a mudança do perfil da economia brasileira seja apontada, com o peso crescente das commodities e decrescente da produção industrial, o reflexo desse fato na ação política da classe operária não é discutido.

Ao tratar dos governos anteriores, é lembrado o esforço de Fernando Henrique Cardoso para quebrar a espinha do sindicalismo, com sua atuação na greve dos petroleiros de 1995, que seguiu a melhor cartilha thatcherista. Mas o PT também trabalhou na direção do esvaziamento do movimento sindical – e dos movimentos sociais em geral – com políticas de cooptação de suas lideranças, engessamento de suas agendas e sufocamento de suas demandas. Conforme o célebre conselho de François Andrieux a Napoleão, “on ne s’appuie que sur ce qui résiste“: só nos apoiamos sobre o que resiste. Ao dobrar a resistência dos movimentos sociais no Brasil, o PT enfraqueceu sua própria base de apoio. Sua atual incapacidade de mobilização ficou patente no recente julgamento do chamado “mensalão”. Mas não se trata de um efeito colateral ou inesperado. O enfraquecimento dos movimentos sociais que alimentaram a experiência do PT em sua fase heroica representou a garantia dada ao capital de que a inflexão moderada, pragmática ou conservadora, expressa em documentos como a “Carta aos brasileiros” da campanha de Lula em 2002, não seria letra morta. Minando a possibilidade de ação efetiva dos setores que sustentariam um projeto de transformação mais radical, garantiu-se a credibilidade das promessas feitas de manutenção das linhas gerais do modelo de acumulação vigente. Por isso, a afirmação de que o lulismo é vantajoso para a classe operária precisa ser matizada com outros elementos.

Da mesma forma, o entendimento de que os programas de inclusão social do período lulista se tornaram um componente inarredável do consenso político no Brasil parece ter muito de wishful thinking. É verdade que o lulismo avançou sobre as bases eleitorais tradicionais dos partidos de direita e os obriga a uma reorganização do próprio discurso. Nem por isso é preciso aceitar ao pé da letra as afirmações – anódinas e inconvincentes – dos candidatos do psdb, de que vão ampliar os benefícios do Programa Bolsa Família. A verdade efetiva por trás delas só será verificada quando retornarem ao poder. É mais significativa sua guinada para um discurso moralista, que, quando voltado para as classes médias urbanas, ganha um matiz udenista e foco na probidade administrativa, e, quando voltado para os mais pobres, assume a forma do fundamentalismo cristão, voltando-se contra os direitos das mulheres e dos homossexuais. As campanhas de José Serra em 2010 e 2012 são exemplos eloquentes.

A mobilização eleitoral desse tipo de discurso ainda não rendeu os frutos esperados e restam dúvidas sobre o êxito da “americanização” da disputa política no Brasil. Mas é um elemento importante para entender os processos em curso, na redefinição das posições dos principais partidos. Da forma que Singer coloca, o lulismo também teria promovido uma elevação do patamar do consenso político, incluindo o compromisso com a superação da pobreza, o que de alguma maneira até poderia compensar a perda da promessa de uma nova forma de fazer política, que o PT representava. Levando em conta a guinada reacionária no discurso do psdb, os termos da equação se alteram. E nada disso é incompatível com uma proposta de fazer a análise dando centralidade à clivagem de classes: a disputa ideológica faz parte da luta de classes, que não se resume ao aspecto econômico.

Ao final do livro, o leitor não fica inteiramente convencido de que o lulismo é um projeto, realmente, e não a expressão apenas de sensibilidade política e senso de oportunidade. A noção de cesarismo ou bonapartismo, que Singer mobiliza mais de uma vez ao longo da obra, encontra dificuldades para se adaptar a uma democracia eleitoral moderna, mas apresenta vias de interpretação interessantes, sobretudo se lembramos que são soluções conservadoras para impasses na reprodução da dominação.

Escrito com clareza – e justamente por isso se abrindo de maneira franca ao debate -, Os sentidos do lulismo é uma contribuição valiosa para o entendimento da política atual no Brasil. Trata-se de um processo complexo, eivado de ambiguidades e ainda em curso. André Singer ajuda a pensá-lo para além das oposições esquemáticas e dicotomias grosseiras que se apresentam em muitas das análises mais correntes. Entre ganhos sociais que não podem ser negados e o abandono, também inegável, de ideais mais exigentes de sociedade, permanece em aberto o saldo do experimento lulista.

Nota

1 SINGER, A. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 122.         [ Links ]

Luis Felipe Miguel – Professor titular de ciência política na Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).

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Patópolis – COELHO (NE-C)

COELHO, Marcelo. Patópolis. São Paulo: Iluminuras, 2010. Resenha de: FIGUEIREDO, Priscila. A duras pens caráter e Mitologia em “Patópolis”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.91, Mar, 2013.

A bidimensionalidade de Patópolis, de Marcelo Coelho, sua falta de profundidade e subjetividade é um dos aspectos que poderiam identificá-la como obra pós-moderna. Mas talvez esse aspecto se deva antes à cidade fictícia dos gibis de Walt Disney que fornece o nome e o tema mais manifesto do livro:

Em Patópolis só se vive em duas dimensões; a profundidade não existe, e cada esmagamento, menos que a morte, é indicação daquilo que cada bicho desenhado – coiote, mosca, pato, cachorro – no fundo sempre foi, e será. Mas não há fundo1.

Em princípio o leitor nada com dificuldade na piscina rasa da superfície pop da obra, descobrindo no entanto que debaixo dela há outra, e ainda outra, e assim por diante. Trata-se antes de uma profundidade de superfícies, não reduzida à intertextualidade, à qual o autor no entanto presta sua homenagem. Essa sobreposição de planos bem pode ser uma sobreposição de rostos, cada um dos rostos-superfície que uma pessoa teve destruídos por sucessivas decepções: “O menino que se olha no espelho sabe perfeitamente disso”, afirma-se em certa altura2. Ele pode compreender a conclusão a que chega Foucault na página final de As palavras e as coisas, referida no livro e conforme a qual o homem seria uma invenção com data recente. Também é nova no tempo a criança, passado de quem narra, recordada, como em outros momentos, tão sem ênfase que quase não reparamos que se trata de nota autobiográfica (ou pseudoautobiográfica).

Esse garoto é uma invenção recente, fresca, porque ainda não é adulto, e vir a sê-lo depende muito menos de uma maturação organicamente motivada – na verdade ela não existe – que da envergadura de uma máscara, ou sequência de máscaras, quase tão míticas e iniciatórias quanto as das sociedades ditas primitivas: a do homem-morcego Batman, às voltas com a Mulher-Gato, a do homem-aranha etc. “Para humanizar-se, o menino segue todas as transições da escala evolutiva: de aranha a morcego, daí a super-homem, eis o minúsculo Zaratustra entoando seus acordes de ‘2001’”3. A saída da infância, “desse mal-entendido, dessa desproporção entre cabeça e corpo”4, é arbitrária e lembra um pouco a passagem de Macunaíma criança para Macunaíma adulto, no qual é jogado um caldo mágico de mandioca – mas porque ele desviasse a cabeça, ficou para sempre, diz-nos Mário de Andrade, com uma “carinha enjoativa de piá”, isto é, de criança, sobre o corpo desenvolvido abruptamente. O “herói de nossa gente” nunca deixará de ser um tanto infantil, como Pato Donald jamais tirará do corpo a roupa de marinheiro, que usa desde a infância. Talvez seja por isso, por uma vaga familiaridade com algo que nos concerne (familiaridade nova para o leitor), que, entre as recordações infantis, tenha se fixado mais a imagem do destrambelhado e bocejante pato, pouco afeito ao trabalho, que a do industrioso Mickey.

Mas o menino é também uma invenção recente porque os estilhaços de seu rosto, desfeito por algum choque, uma “noite atônita e destruída”, alguma desilusão ou indiferença cortante, o recompõem de novo, “como num desenho animado”. Pois, sabemos, num desenho animado os personagens podem se partir em mil pedacinhos e depois se reconstituir como se nada tivesse acontecido, sobrevoados pelos “alegres passarinhos da catástrofe”5 – alegres talvez porque, nascidos do choque, não têm memória ou ainda porque o show, ou o bate-estaca, não pode parar. Também Macunaíma morre algumas vezes e, numa delas, vira milhares de torresminhos. Depois é ressoldado e reanimado com guaraná, e tudo continua como antes. Nas histórias de Disney essa destruição seguida de imediata ressurreição, sem marca visível na rotina que lhe segue, é também frequente e delas se nutre esse livro de memórias hipermediadas. Num outro passo comenta-se a explosão de dinamite de que os personagens às vezes são vítimas: “depois de aceso o isqueiro-bomba o rosto do animal ficará negro por segundos; mas, na esportividade incansável desse mundo, a pele, ou melhor, o pelo logo renasce incólume”6. Ou ainda:

A recusa amorosa – não por acaso chamada “tábua” – surpreendeu-me várias vezes igual a mim mesmo, repassando no espelho o fracasso da véspera, sem notar no rosto a pressão do rolo compressor, a humilhação de dinamite pronunciada calmamente pela mulher amada, na indiferença, na inocência também, de uma pessoa que simplesmente obedecesse ao aviso invisível – “xute-me” – que tantas vezes portamos sem saber7.

Não fossem o rolo compressor, a dinamite, o “xute-me”, com a grafia insólita que o narrador vira reproduzido no bolso traseiro de algum personagem, ou pelo fato de que todo o comentário fora inspirado pela lembrança do pato tentando abater uma mosca, elementos todos que não nos deixam esquecer o universo do vulgar gibi, não fosse por isso sentiríamos melhor a cadência e a motivação proustiana do trecho citado. Decerto alguma modificação se produz em quem recebe a notícia de um infortúnio, ou em quem cujo amor não é correspondido e se sente fender, mas ela “produziu-se por dentro, não por fora”. A insistência com que se volta a essa devastação sem consequências aparentes, como se a superfície em que ela ocorreu ou refletiu não conseguisse ou estivesse impedida de reproduzir em toda sua dimensão o estrago que causou, chama a atenção para o que permaneceu inexpresso, como uma tosse para dentro. Ou para o fato de que o homem é uma invenção recente também em sua própria vida, a qual é a soma das muitas mortes que teve e por certo terá. Mas o autor precisa temperar essa reflexão, a qual poderia ter saído de Em busca do tempo perdido, com “a esportividade incansável desse mundo”, ou um “cada novo dia é um novo quadrinho”. Porque se o romance de Proust já realçava o aspecto fantasioso, mitológico, da individuação, a campanha de psicólogos atuais pelo desenvolvimento, no indivíduo, do que chamam de resiliência, que na Física indica a “propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica”8, atesta o quanto aquela fantasia, que incluía a de liberdade, simplesmente não é mais projetada.

O mito atual é o da personalidade invulnerável, pois, como recomenda um psiquiatra famoso, solicitado por empresas e com MBA em gestão de negócios: “Algumas pessoas já nascem com essa capacidade, recebem um choque e voltam mais rapidamente ao normal. As outras, porém, precisam de treino”9. Treino militar, diríamos, cujas técnicas as corporações empresariais não se intimidam mais de alardear. Só esse tipo de treino, qualquer que seja o nome que receba, tem a ambição de que um rosto e um corpo não manifestem o ricto de uma afronta ou violência, da vida ou da autoridade. A extrema dureza alcançada é, porém, a extrema doçura de um exército a postos. A palavra resiliência, que lembra lataria de carro, passa perto de resistência, mas esta ainda evocaria um material demasiado humano. Fala-se em taxa de resiliência: no atual estágio do capitalismo o que de melhor se pode desejar da pessoa é que ela seja um empregado ideal, aquele que, esmagado por um rolo compressor, ou estilhaçado por sucessivos choques, pode, no menor tempo possível, voltar à antiga forma. Essa pessoa resiliente (que, como o indivíduo autônomo, também é uma fantasia, mas provavelmente com menos potencial formativo) parece de fato mais próxima dos desenhos animados.

Parece ser ainda de Proust que o autor retira a disposição de ver “o mundo em estado de semelhança” (W. Benjamin), entretecido por correspondências, analogias. Com a diferença, que muda tudo, de que esse mundo é o da indústria cultural, aqui convertida em primeira natureza. E em presente ininterrupto, razão por que o tom pode imitar, entre outros, o da locução esportiva, com o que ganha agilidade, ou o de um relato etnológico – com os patopolenses surpreendidos em seus hábitos peculiares e na sua organização social e política, apesar da ressalva de que seu Estado parece existir antes na forma de agentes de polícia10. Voltando às correspondências: a abertura de cada capítulo apresenta uma breve notícia do que se seguirá, composta por uma pequena lista de nomes. Estes são como coágulos no fluxo das associações do narrador. Assim, por exemplo, o capítulo 7 abre com a seguinte enumeração, aparentemente caótica: “Presuntos. O cisne de Tuonela. Onomatopeias. Congestionamentos. O Diário de Bedrock. Nádia Comaneci”11. Como ele vai de presuntos, os avós dos Três Porquinhos, a Nádia Comaneci, passando por Reader’s Digest, Patinho Feio, uma cartilha anticomunista, Richard Strauss, Madame Min, não apenas indica, quase parodiando, o ecletismo pós-moderno, que trafega desenvolto entre dimensões diferentes da cultura (erudita, popular, popularesca), desierarquizando-as, como também mostra o quanto tal desierarquização é efeito do sujeito, daquele que se dispõe a ver semelhanças entre as coisas (ou o mundo como “floresta de signos”, como se diz em certa altura, em alusão ao poema famoso de Baudelaire12). As conjunções e intercalações comparativas são o padrão do livro e por elas subitamente deslizamos de uma ordem a outra. Mas a floresta nesse caso é muito mais a floresta do espetáculo e pode acontecer de, perdendo-se nela, o sujeito deparar até mesmo com imagens da sua vida na copa de uma árvore. Penso que é por aqui que se tem acesso ao realismo do livro. Submetendo Patópolis, Pato Donald e toda a parafernália visual de distração infantil a uma hermenêutica rigorosa, mas muito imaginativa, o memorialista-ensaísta fala de si mesmo, mas esse “si mesmo”, assim redescoberto, surge um tanto desbastado, um tanto raso, ou arrasado, como as imagens da cultura de massa pelas quais se filtra. No entanto é como se ele nos dissesse (aprisionando-nos um pouco): “Tudo isso sou eu, assim é que me fiz homem, com todo tipo de material que achei disponível, pois esse era meu mundo”. É o nosso também.

“O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural”, escreveram Adorno e Horkheimer nos anos 194013, acrescentando que, quanto mais esta se esmera em duplicar a realidade, como no cinema, mais parece fácil se iludir de que o mundo exterior prolonga o mundo da imagem, estando a serviço desta, e não o contrário. É algo covarde citar tais autores ou outros, como Debord, que continuariam a análise desse fenômeno novo na cultura e das novas formas que veio a tomar com o avanço do capitalismo tardio. Covardia porque é evidente que o livro em questão (o livro, e não apenas o autor) é bastante consciente dessas análises críticas, como também das teorias pós-estruturalistas. Poderíamos perguntar se essa consciência não sobredetermina em demasia a disposição e seleção da matéria, fazendo o conceito se impor às imagens. Mas quais imagens? Não são as da Natureza, totalmente fora do horizonte aqui, e muito pouco as da vida social, que, quando surgem, é porque foram devolvidas pela mitologia da cultura comercial. Assim, uma imagem do adolescente, já homenzinho forçado, inteirando-se dos negócios do pai e chegando do escritório, é traduzida pela forma equivalente de Fred Flintstone chegando em casa,

o jornal de pedra na mão esquerda, a mão direita usando para afagar o animal doméstico que pretende me derrubar com as patas de lagarto afetivo, gritando festivamente o nome de Wilma enquanto o apetite de leão mal se contém diante da fumaça das panelas, que com dedos de fada me puxam pelo nariz, me enleiam com danças de Salomé, até o T-Bone brontossauro14.

Essa equivalência foi feita a posteriori, no processo de autocompreensão biográfica do presente, ou se dera já no passado? Provavelmente esta última hipótese: imitando um pouco os trejeitos de Flintstone, o menino-homem se virava melhor com os apuros da individuação. Espontaneamente ele se valeu do que Debord chamou “humanismo da mercadoria [que] se encarrega dos ‘lazeres e da humanidade do trabalhador'”15 – e da formação das crianças também.

De maneira análoga, quando se refere ao modo como aprendeu o conto do Patinho Feio, o narrador não se lembra de rapsodo, ama, tia, avó ou livro. Ou ainda apenas da história, sem carne, soprada como brisa ao ouvido infantil. A contingência do suporte de plástico azul e reprodução magnética paira no espírito tanto quanto seu conteúdo arquetípico:

[…] O disquinho que contava a história – um compacto de plástico transparente azul – terminava com um grande coral de júbilo no galinheiro: a mãe desnaturada (ou seria desnaturado o próprio filho putativo?) prosternava-se diante do rapaz a quem rejeitara quando bebê; o peru, oportunista e bajulador, espécie de Polônio frente ao pequeno Hamlet palmípede, sente-se honrado com a visita de um “cisne rial” (o sotaque do locutor era português), e o bom patinho não guarda rancores de sua expulsão, não traz mágoas do seu exílio. A voz ainda impúbere do herói pronuncia palavras de perdão: “O que passou, passou!”

Difícil obedecer neste caso, diga-se entre parênteses, a regra que proíbe separar com vírgula o sujeito do predicado. Eis um caso, o do patinho feio, em que precisamente o sujeito se separou do predicado: o que passou, passou16.

Embora a especificação “entre parênteses” venha no fim, introduzindo um comentário aparentemente de outra ordem, o trecho todo já compõe uma longa intercalação dentro da especulação mais manifesta do livro. A imagem do disco, mas também o acento do locutor português se contrabandeiam para a imagem do conto de Andersen, que, puxado pela memória do adulto, agora é em parte revisto à luz de outra espécie de personagens, vindos da alta literatura. A proximidade os deixa não apenas mais encorpados como cômicos pela equivalência inesperada (o pato é um Hamlet palmípede, o peru é um oportunista Polônio), e a aliteração em P advoga ainda mais pela aproximação ora descoberta entre o mundo de animais bicudos, de andar reboleante e plebeu, e o de aristocratas mais longilíneos de uma tragédia clássica.

A observação sobre a regra conforme a qual seria preciso dispensar a vírgula entre sujeito e predicado mesmo num caso em que o primeiro fosse uma oração (o que passou = sujeito, passou = predicado) já diz respeito à fixação escrita e posterior dos diálogos da historinha que lhe fora transmitida oralmente, mas é apenas em aparência uma observação metalinguística. De fato, contrariando a regra, o narrador não dispensa a vírgula. Esta tem função aqui menos de pausa irresistível ou quebra infratora de uma articulação lógico-sintática essencial (sujeito-predicado) do que de baliza, ou tabuleta fincada no meio da frase, avisando que depois de “o que passou” a paisagem é outra, muito diferente, ou ainda que o tempo é outro. O que nos é dito é que, considerando-se o contexto da fábula, o sujeito está tão separado do predicado como o passado fora superado pelo presente, ou o filhote feio e desajeitado pelo cisne “rial”. Após tais cogitações, essa vírgula, emissária de uma nova época (e épica), revela tanto mais sua natureza hieroglífica quanto menos ela de fato separa conteúdos opostos. Pois “O que passou passou” diz tão somente respeito ao tempo passado, afirmado com ênfase. Mas é como se o narrador afetasse um estranhamento ou desentendimento do conteúdo da sentença, que passa a importar mais pelo seu aspecto gráfico e construtivo, de dois membros:

– – – – , ——-

Entre o passou do primeiro e o do segundo haveria mais diferença que identidade. Um é interpretado como “antes”, outro como “depois”. Entre as simétricas partes, contraditórias no entanto como duas faces de Jano, a alegórica – e não mais sintática – vírgula, sacerdote que preside o ritual de passagem, ou metamorfose radical. A vírgula separaria, como um verdadeiro marco histórico, o passado de opressão mítica de um presente aberto de possibilidades.

Por coerência mimética, digamos, o fato é que a narrativa do Patinho Feio tem lugar subordinado no livro, assim como, em determinadas configurações, na mitologia grega ou no romance balzaquiano, por exemplo, há certos personagens, potências ou divindades que sabemos representar etapas evolutivas anteriores ou esboço de uma perspectiva que não pôde ir adiante. Esse modo de produção mitológico, ou ainda figural, projetado por Marcelo Coelho no conjunto de imagens e significantes da indústria cultural, sobretudo a de determinado período, fim dos anos 1960 e década de 1970, coincidente no Brasil com a ditadura militar e a formação da Rede Globo, por sua vez tão ambiciosa em forjar totalidade e identidade como o são as mitologias e as ditaduras, é uma das coisas, aliás, mais interessantes e inventivas em Patópolis. Por ela passamos a compreender, por exemplo, os sujos e malvados Irmãos Metralha, cachorrões escuros, cuja faina se resume a roubar a fortuna de Patinhas, como figura, antecipação, ainda que rude e pouco concisa (também “seu nome é legião”), da enxuta e única Maga Patológica17. Às vezes ambos podem aparecer na mesma história, mas o fato é que a última já é representação mais refinada da mesma compulsão que move os Metralhas. Mas não é só isso: a bruxa de cabelo Chanel é também mais sofisticada por não almejar se apropriar da fortuna líquida de Patinhas, que os bandidos broncos carregam em trabalhosos sacos. Ela quer a sintética moedinha mágica, o fundamento de toda a riqueza. O que o nosso comentador realça é a crescente abstração dessa riqueza – e dos bandidos também. Não é por acaso que se menciona em certa altura, como parte da conjuntura histórica de juventude, o fim do acordo de Bretton Woods, datado do início dos anos 1970 e com o qual se pôs fim à conversibilidade do dólar em ouro. Sabe-se o quanto a criação do “dólar flexível” favoreceu a carreira que o capital financeiro veio a ter nas últimas décadas, carreira desastrosa para o mundo, como se tornou evidente com as reformas neoliberais e a crise de 2008.

Esse plot de Metralhas, Maga e Patinhas pode sustentar projeções desse tipo? As histórias de Donald não seriam criação dos anos 1930, ainda que, conforme um mecanismo comum nessa indústria do seriado, continuem a ser lidas nas décadas seguintes, com os personagens eternamente fixados, sob pequenas variações de traço, costume e indumentária, no momento que os viu nascer? Por uma superposição curiosa, algo do parasitismo e do aventureirismo do capital rentista parece aludir mais de uma vez a aspectos da formação social e econômica brasileira. “O trabalho gasto na produção não existe em Donald”, já tinham observado há mais de quarenta anos Ariel Dorfman e Armand Mattelart, em Para ler o Pato Donald, ensaio cuja ênfase estava na sociedade de consumo e na indústria norte-americana do lazer18. Não é difícil sentir o quanto o tédio de Donald, pato branco em geral desocupado e consumista, evoca, pelo deliberado destaque dado a ele, glosado de muitas formas, o tédio de Brás Cubas e mesmo o de Macunaíma, figuras-chave de nossa autocompreensão intelectual (leia-se Um mestre na periferia do capitalismo, de Roberto Schwarz). Por seu turno, o nome “Patópolis” é homenagem à classe dos brancos emplumados e quase sempre improdutivos, e não à dos cachorros pretos e mais visivelmente às voltas com a luta pela sobrevivência, ainda que na forma do banditismo19. Eles moram nas franjas dessa cidade organizada e asfixiosamente ensolarada (a frase “Faz calor em Patópolis” é um marca-passo do livro), que é como um plano-piloto erguido sobre o nada, sobre a não-História. Como os personagens mencionados da literatura brasileira, também Donald, adulto mimado e ranheta, que deixa perplexos os sobrinhos ainda crianças que o cercam, leva uma existência sem projeto, e sua agitação frequentemente dá em nada. Suas peripécias inevitavelmente o recolocam no lugar de sempre, como se ele nunca o tivesse deixado.

A respeito da fábula do Patinho Feio, arrematada com a transformação do filhote desengonçado em cisne real, o narrador observa, porém, que tal mudança de estado ocorre “só nos contos de fadas. Pois nada passa. Nada se passa, e por isso mesmo Donald não larga as páginas tediosas de seu livro inesquecível, o livro, afinal, de sua vida: Contos Chatos. Não há mágicas nem princesas ali”20. O Patinho Feio é a narrativa da transformação imprevista e redentora, que acena com a promessa de beleza e integração social a cada adolescente desconjuntado. Mas o “herói” do livro é de fato Pato Donald e seu mundo desencantado e chato, embora muito encantado em outro aspecto, com dinheiro correndo, às vezes do céu, e artefatos que dão em árvore. Um pouco como em Macunaíma, para voltar à comparação já feita. Desse mundo achatado, bidimensional, sedimenta-se a imagem de Donald confortavelmente instalado em sua poltrona ergonômica (alusão à poltrona de Hans Castorp e a todos os prazeres mortíferos da Montanha mágica, reservados aos que desafiam a experiência burguesa do tempo?), lendo um livro cuja capa naturalmente está virada para nós e em que lemos Contos chatos21. Essa é, digamos, a imagem que propriamente “desencadeia” a obra, seu motivo inicial e na verdade condutor, cujo enigma causara impressão à mente infantil e o adulto agora se impõe a tarefa de decifrar – como pode Donald ler um livro assim intitulado? Esse título está escrito para nós e consiste numa graça do desenhista, um momento de tédio dele mesmo e profundo distanciamento em relação ao seu trabalho? Ou o próprio livro se assume como conto chato, em todas as acepções desse qualificativo? O que apenas sabemos, como foi dito, é que ele não é o conto da transformação radical.

Notas

1 COELHO, Marcelo. Patópolis. São Paulo, Iluminuras, 2010, p. 33.         [ Links ] 2 Ibidem, p. 106.
3 Ibidem, p. 107.
4 Ibidem, p. 12.
5 Ibidem, p. 42.
6 Ibidem, p. 29.
7 Ibidem, p. 30.
8 Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.         [ Links ] 9 Roberto Shinyashiki, em entrevista para a Folha de São Paulo, 15/06/2003.         [ Links ] 10 Ibidem, p. 53.
11 Ibidem, p. 103.
12 Ibidem, p. 47.
13 ADORNO, T. W. e Horkheimer, M. Dialética do esclarecimento. Trad. Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 104.         [ Links ] 14 COELHO, op. cit., p. 111.
15 DEBORD, G. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992, p. 41.         [ Links ] 16 COELHO, op. cit., pp. 113-4.
17 Ibidem, pp. 91-2.
18  Para ler o Pato Donald. Trad. Alvaro de Moya. São Paulo: Paz e Terra, 1977, p. 92.         [ Links ] [19] COELHO, op. cit., p. 40.
[20] Ibidem, p. 114.
[21] Ibidem, p. 12.

Priscila Figueiredo- Poeta e ensaísta. Publicou Mateus – poemas (Bem-te-vi, 2011), Navios negreiros (Edições SM, 2009) e Em busca do inespecífico (Nankin, 2001), sobre Mário de Andrade

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Hobbes e a liberdade Republicana – SKINNER (NE-C)

SKINNER, Quentin. Hobbes e a liberdade Republicana. Trad. Modesto Florenzano. São Paulo: Editora da Unesp, 2010. Resenha de: SILVA, Ricardo. Skinner e a liberdade Hobbesiana. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.95, Mar., 2013.

A mais recente incursão de Skinner no pensamento político de Hobbes é algo mais do que uma elegante contribuição à reconstituição histórica da concepção de liberdade do filósofo inglês. Trata-se também de um “lance” (move) – para usar uma expressão cara ao próprio Skinner – nos embates atuais entre teóricos liberais e republicanos. Crítico da hegemonia do pensamento liberal na política contemporânea, Skinner oferece um suporte historiográfico importante às pretensões normativas do neorrepublicanismo. Sua genealogia do conceito de liberdade é o melhor exemplo desse tipo de suporte, e Hobbes e a liberdade republicana ocupa um lugar de destaque nessa genealogia. Focalizando a turbulenta década inglesa de 1640, o livro documenta os momentos em que Hobbes elabora uma alternativa de grande consistência teórica à então convencional concepção republicana de liberdade, desenvolvendo uma concepção negativa de liberdade que será mais tarde apropriada pela tradição liberal. Hobbes e a liberdade republicana é produto do encontro entre a historiografia do pensamento político e o debate analítico e normativo na teoria política contemporânea.

A LIBERDADE NEORROMANA

O ponto de partida para a compreensão da narrativa de Skinner sobre a evolução do conceito hobbesiano de liberdade é a apresentação das características básicas da concepção republicana que Hobbes teria combatido e derrotado. Skinner remonta à legislação compilada no Digesto do direito romano para revelar as origens da concepção republicana de liberdade, que acabou inspirando os ataques à Coroa no período mais agudo dos conflitos na Inglaterra de meados do século XVII. Na seção relativa ao direito das pessoas (De statu hominum), já surge a “distinção primordial no seio das associações civis”, aquela entre os que “gozam do status de liberi hominus ou ‘homens livres’ e aqueles que vivem na servidão”1.

Conforme vem defendendo Skinner, em sintonia com o filósofo Philip Pettit, a concepção republicana (ou neorromana) de liberdade é irredutível a qualquer um dos polos da dicotomia entre liberdade negativa e liberdade positiva. Ou seja, ela não se define nem pela simples ausência de oposição externa às ações individuais, nem pela pura presença da participação dos cidadãos no autogoverno da cidade2. Embora a liberdade republicana seja também um tipo de liberdade negativa, uma vez que ela decorre da ausência, e não da presença de algo, o que se encontra ausente não é a indiscriminada interferência externa nas escolhas e ações dos indivíduos, como na concepção liberal, mas sim um tipo particular de interferência, resultado da dependência e da dominação derivadas da existência do “poder arbitrário” de determinados agentes sobre outros3. Na fórmula consagrada por Pettit, a liberdade republicana é a liberdade como não dominação4.

Uma das características centrais da relação de dominação é que ela permanece em vigor mesmo quando o agente dominante abstém-se de interferir efetivamente nas escolhas e ações do agente dominado. Tome-se o caso extremo e paradigmático da relação de dominação entre senhor e escravo. O fato de um escravo viver sob o domínio de um senhor benevolente não faz dele menos escravo, ou seja, não o torna mais livre. A ausência atual de impedimentos às suas escolhas e ações é apenas um corolário de um dos estados possíveis dos desejos de seu senhor, e ele, escravo, sabe disso. A consciência desse estado de sujeição pesa inevitavelmente sobre suas atitudes, que tendem a antecipar a vontade do senhor. O ponto decisivo é que não se pode considerar livre um agente cujas escolhas e atitudes realizam-se sob a influência da ansiedade decorrente da sua consciente dependência da vontade de outrem. Segundo Skinner, este ensinamento, que se encontra no núcleo da concepção de liberdade reivindicada pelos teóricos atuais do republicanismo, era corrente na época de Hobbes:

Como James Harrington afirmaria, em 1656, na sua exposição clássica da teoria republicana, Oceana, a desgraça dos escravos é que eles não têm o controle de sua vida, estando consequentemente forçados a viver em um estado de incessante ansiedade com relação ao que lhes pode ou não acontecer5.

MÉTODO E HISTÓRIA

Ao narrar a “batalha” de Hobbes contra a teoria neorromana, Skinner faz duas asserções interdependentes, ambas inovadoras em relação aos estudos sobre a teoria hobbesiana da liberdade. A primeira é de caráter metodológico, a segunda, de caráter histórico. A inovação metodológica consiste em compreender o desenvolvimento das ideias de Hobbes sobre o conceito de liberdade como “lances” em uma disputa simultaneamente intelectual, política e constitucional. O propósito de tal metodologia é abordar “a teoria de Hobbes não simplesmente como um sistema geral de ideias, mas também como uma intervenção polêmica nos conflitos ideológicos de seu tempo”6. Skinner reafirma os princípios interpretativos do contextualismo linguístico da Escola de Cambridge. Conforme postulou originalmente há mais de quatro décadas, todo pensador político, por mais sistemático e abstrato que seja, no ato de criação de um texto, encontra-se irremediavelmente envolvido em um processo comunicativo com seus contemporâneos. Mais do que simplesmente constatar ou descrever certo estado de coisas, os textos dos escritores políticos são invariavelmente destinados a realizações práticas. Os autores cujos textos pretendemos interpretar estão sempre “fazendo coisas com palavras”7. A questão norteadora de qualquer interpretação de textos que se pretenda “genuinamente histórica” deveria assumir a seguinte forma: o que determinado autor “estava fazendo” ao escrever ou publicar seus textos8?

No caso de Hobbes, a resposta oferecida por Skinner é direta: Hobbes estava combatendo os defensores da concepção republicana de liberdade. Na verdade, o filósofo inglês “era o mais formidável inimigo da teoria republicana da liberdade”9. A crítica de Hobbes à liberdade republicana aparece já em seu primeiro esforço sistemático de teorização política, presente em Elementos da lei natural e política (1640), e uma nova tentativa acontece logo em seguida, com a publicação de Do Cidadão em 1642. No entanto, uma alternativa capaz de destronar a concepção neorromana de liberdade só seria definitivamente alcançada no Leviatã (1651).

A demonstração da ocorrência de mudanças significativas no pensamento de Hobbes sobre o conceito de liberdade nos leva à inovação histórico-substantiva de Skinner, que vai de encontro à visão quase consensual sobre a suposta imutabilidade do conceito nas sucessivas versões da teoria política hobbesiana. Para a ampla maioria dos intérpretes, nenhuma diferença marcante haveria no modo como a liberdade é apresentada nos Elementos da lei, em Do Cidadão e no Leviatã. Mesmo Philip Pettit, cuja reconstrução analítica da liberdade republicana é fortemente tributária de Skinner, acredita jamais ter ocorrido qualquer “alteração maior no pensamento de Hobbes sobre a liberdade”10. Skinner oferece uma vigorosa contraposição a tal consenso interpretativo, sugerindo que Hobbes não apenas modificou sua concepção de liberdade, mas que o fez de maneira particularmente radical. Assim, “a análise de Hobbes da liberdade no Leviatã representa não uma revisão, mas um repúdio ao que ele havia anteriormente argumentado”11.

A BATALHA DE HOBBES

Em Elementos da lei natural e política, Hobbes volta-se contra diversas correntes teóricas de algum modo comprometidas com a tese de que a liberdade dos súditos é uma espécie de função da forma de governo. Skinner refere-se a três dessas correntes de pensamento, em relação às quais Hobbes teria “manifestado consciência aguda”12. A primeira é a dos monarquistas moderados ou constitucionais, cujas manifestações iniciais remontam às primeiras décadas do século XVII. O núcleo normativo dessa corrente reside na ideia de que “não é necessariamente incompatível viver como homens livres e submetidos ao governo de reis”13. A publicação da tradução inglesa da República de Bodin forneceu argumentos úteis à corrente em questão. Bodin admitia a incompatibilidade entre liberdade e monarquia quando esta fosse do tipo “senhorial”, em que o príncipe é o “senhor dos bens e das pessoas de seus súditos”. Nesse caso, os súditos são governados como “o senhor de uma família governa seus escravos”. No entanto, se a monarquia em questão é do tipo legal (ou régia) os súditos permanecem livres, protegidos da vontade arbitrária do rei, pois “o monarca régio ou rei, instalado na soberania, sujeita a si mesmo às leis da natureza”14.

A segunda corrente do pensamento constitucional a chamar a atenção de Hobbes defendia um “Estado misto”, combinando os princípios monárquico, aristocrático e democrático. Apenas essa forma de Estado teria a virtude de conciliar a ordem política com a liberdade. Segundo Skinner, Hobbes dá inúmeras mostras de que está atento à existência dessa corrente de pensamento, mas não se detém com especial interesse em sua crítica. Uma das razões para isso é que ele estava muito mais preocupado com uma terceira corrente, representativa de um desenvolvimento ainda mais radical da ideia de que a liberdade está associada a uma forma particular de governo.

O núcleo normativo dessa terceira corrente reside na proposição de que só é possível viver como homem livre no âmbito de um “Estado livre”. Conforme esclarece Skinner, os defensores dessa perspectiva tinham em mente um Estado no qual

somente as leis imperam, e no qual todos dão seu consentimento ativo às leis que a todos obrigam. Em outras palavras, sustentava-se ser essencial viver em uma democracia ou em uma república que se autogoverna, em oposição a qualquer forma de regime monárquico ou mesmo misto15.

Nos Elementos da lei, Hobbes dirige ataques específicos a cada uma dessas correntes, mas empenha-se sobretudo em refutar o que há em comum entre elas: a ideia de que a liberdade é uma função de forma de governo. O ataque de Hobbes parte da premissa de que a liberdade está associada à condição natural dos indivíduos. Ou seja, só há liberdade no Estado de natureza, e no momento em que os indivíduos pactuam para a instituição do Soberano, eles abandonam sua liberdade natural para ingressar na condição de súditos. Hobbes chega a definir a liberdade como “o estado de quem não é súdito”16. Os indivíduos, na condição de súditos de um poder soberano, seriam tão destituídos de liberdade numa democracia como numa monarquia, não fazendo qualquer diferença se a monarquia é régia ou senhorial, como queria Bodin.

Embora a impressão dos Elementos da lei tenha ocorrido apenas em 1650, o manuscrito começou a circular já em 1640. Neste mesmo ano, intensificou-se a tensão entre o Parlamento e a Coroa resultante da tentativa de Carlos I de reabilitar o ship-money17. A criação de um imposto sem a aprovação do Parlamento fez com que muitos parlamentares se pronunciassem nos termos da teoria neorromana da liberdade. Os adversários das pretensões absolutistas do rei consideraram a iniciativa uma afronta à liberdade e um caminho certo para reduzi-los da condição de homens livres à de escravos. Por outro lado, partidários de Carlos I defendiam-no esgrimindo os recursos retóricos do absolutismo, mormente da teoria do direito divino dos reis. Roger Maynwaring, ex-capelão de Carlos I, era uma dessas vozes em favor do poder absoluto do rei, que deveria incluir o poder de criar impostos. Ele já havia sido submetido a processo de impeachment e aprisionado pelo Parlamento em 1629, mas acabou beneficiado pelo perdão do rei, que ainda o faria bispo de St. Davis em 1636. Em 1640 ele não teve a mesma sorte. As duas Câmaras voltaram-se contra o bispo, preparando um ato para a anulação do perdão real. Maynwaring preferiu não permanecer na Inglaterra para conferir o desfecho dos acontecimentos, e partiu em busca de esconderijo na Irlanda. É certo que o absolutismo de Maynwaring diferia filosoficamente daquele articulado por Hobbes, que dispensava a tradicional teoria do direito divino dos reis. Seja como for, como sugere Skinner, Hobbes percebeu que, para fins práticos, a posição defendida por Maynwaring poderia ser plenamente justificada pela teoria contida nos Elementos da lei. John Aubrey, em seu perfil de Hobbes, relata que este lhe teria confidenciado que “o bispo Maynwaring pregara sua doutrina, daí a razão, dentre outras, de ele estar aprisionado na Torre”18. Em novembro de 1640, prevendo possíveis situações de perigo a que ele próprio estaria exposto, Hobbes segue para seu exílio de onze anos em terras estrangeiras.

Assim que Hobbes instalou-se em Paris, passou imediatamente a revisar os Elementos da lei, ao mesmo tempo em que vertia a obra para o latim. O trabalho foi concluído em novembro de 1641 e publicado em abril de 1642, com o título latino De Cive (Do Cidadão). De acordo com Skinner, no que se refere ao tema da liberdade, a par de uma série de modificações menores, ao menos duas importantes inovações são introduzidas nessa obra.

A primeira decorre da nova postulação de Hobbes de que “a única coisa verdadeira no mundo é o movimento”19. A liberdade passa então a ser definida como a ausência de todo e qualquer impedimento ao movimento dos corpos. Não há dúvida de que uma compreensão adequada de tal definição requer que se esclareça o que de fato conta como impedimento ao movimento. Hobbes refere-se a duas modalidades de impedimentos capazes de subtrair-nos a liberdade: os impedimentos externos e os impedimentos arbitrários. Os impedimentos externos são aqueles causados por obstáculos surgidos de causas exteriores ao corpo em movimento. É possível afirmar, por exemplo, que as águas de um rio sofrem um impedimento absoluto para mover-se livremente além dos limites das margens do rio. Analogamente, no que se aplica à liberdade humana, diz-se, por exemplo, que uma pessoa encerrada numa prisão está privada da liberdade de mover-se além dos limites das grades da prisão. Já a noção de impedimento arbitrário indica que a causa que impede o movimento não é mais exterior ao corpo, porém interna a ele. Se os impedimentos externos criam obstáculos absolutos ao movimento dos corpos, os impedimentos arbitrários, conforme os define Hobbes, “não impedem absolutamente o movimento, mas o fazem per accidens, isto é, por nossa própria escolha”20. O fato de esse tipo de impedimento derivar de uma “escolha” indica que seu âmbito de aplicação é a liberdade humana. O impedimento arbitrário à liberdade surge quando uma pessoa se abstém de realizar determinada ação mesmo quando tem a capacidade e o desejo de agir. Neste ponto, como observa Skinner, a questão que emerge é a seguinte: que “tipo de força” pode ser considerada “capaz de nos impedir de querer executar uma ação que está em nosso poder”. Hobbes responde que a força em questão “procede de nossas paixões, e acima de tudo a paixão do medo”21.

A segunda inovação introduzida em Do Cidadão é a ideia de liberdade civil. Nada semelhante pode ser encontrado nos Elementos da lei. Na verdade, a lógica argumentativa que animava essa primeira sistematização da teoria política de Hobbes não somente ignorava, mas também vetava a concepção de qualquer forma de liberdade além da liberdade natural. Skinner argumenta que Hobbes, influenciado pelo clima político e ideológico que o levou à decisão de exilar-se, procede à revisão dos Elementos da lei de modo a apresentar sua “defesa da soberania absoluta em um estilo mais conciliador e menos inflamado”22. A admissão da possibilidade de os indivíduos preservarem alguma forma de liberdade mesmo depois da efetuação do pacto que os retira do estado de natureza requer claramente a renúncia à tese de que a liberdade “é o estado de quem não é súdito”. Contudo, se não se pode mais afirmar que qualquer forma de governo suprime a liberdade, também não se sustenta a crença de que apenas determinadas formas de governo favorecem a liberdade, ao passo que outras levam necessariamente à escravidão. Com base na ideia de liberdade como ausência de impedimento externo ao movimento, Hobbes passa a afirmar que “todos os servidores e súditos que não estão acorrentados nem encarcerados são livres”23. Ademais, independentemente da forma de governo, haverá sempre um “número quase infinito de ações que não são nem prescritas nem proibidas”, constituindo a “liberdade inofensiva” dos súditos. Por outro lado, com base em sua concepção de impedimento arbitrário ao movimento dos corpos, ele reconhece que as leis civis constituem uma limitação à liberdade, uma vez que o medo das consequências previsivelmente advindas de sua infração levaria os indivíduos ao refreamento de ações que eles têm vontade e capacidade para realizar. Em suma, medo e liberdade seriam incompatíveis.

Porém, conforme o historiador inglês, a formulação definitiva do conceito hobbesiano de liberdade só viria a acontecer no Leviatã. Hobbes tinha consciência “de que precisava enfrentar os teóricos da liberdade republicana em seu próprio terreno”24. Tal enfrentamento traduziu-se na disputa pelo sentido da expressão “homem livre”. O discurso republicano contra a monarquia absolutista (e em grande medida contra a monarquia tout court) fazia da ideia de “homen livre” sua principal arma de luta ideológica. Tradução da expressão latina liber homo, o termo freeman circulava amplamente entre os republicanos ingleses contemporâneos de Hobbes. Viver sob o domínio absoluto de um monarca seria incompatível com a manutenção do status de homem livre. É nesses termos que se expressam, por exemplo, John Milton e John Hall, dois dos mais notáveis escritores republicanos da época. Segundo Milton, se não podemos ter a expectativa de alcançar nossos objetivos “sem o dom e o favor de uma única pessoa” não somos “nem República, nem livres”, somos “vassalos de posse e domínio de um senhor absoluto”. John Hall é ainda mais categórico ao afirmar que “viver sob uma monarquia é viver como um escravo”25.

Skinner procura mostrar como a revisão do conceito de liberdade no Leviatã decorre do esforço de Hobbes para desacreditar a noção de “homem livre” dos republicanos. Consolidando desenvolvimentos anteriores de sua reflexão sobre o tema, Hobbes parte da definição do que ele considera a “liberdade em sentido próprio”, aplicável tanto a criaturas irracionais e inanimadas como a racionais. Em seu “sentido próprio”, a liberdade define-se exclusivamente pela ausência de oposição ao movimento. Esta fórmula já aparecia em Do Cidadão. Agora, porém, a ideia de oposição (ou impedimento) é restringida para referir-se apenas a barreiras externas ao movimento dos corpos. Hobbes faz desaparecer o conceito de impedimento arbitrário como uma possível causa da redução da liberdade, uma alteração que traz profundas consequências em sua argumentação. Agora medo e liberdade não são mais incompatíveis, pois resta evidente que o medo não pode ser tomado como um obstáculo externo às nossas escolhas. Ao eliminar a possibilidade de tratar constrangimentos internos como restrição à liberdade, Hobbes prepara o terreno para o assalto definitivo à noção republicana de homem livre. A ansiedade, o medo ou qualquer outro freio de ordem psicológica capaz de interferir nas escolhas e nos movimentos de um indivíduo em situação de dependência não constituem o tipo de impedimento que Hobbes considera contrário à liberdade. Neste caso, bem como quando se trata de um impedimento interno de ordem física, a exemplo do enfermo imobilizado em seu leito, não é de ausência de liberdade que se trata, mas da ausência de poder.

E o que dizer da lei civil? Em que medida ela pode ser tomada como um impedimento à liberdade? Em Do Cidadão, Hobbes já havia chamado a atenção para o fato de que sob qualquer sistema de leis há um sem-número de ações não proibidas nem prescritas pelo soberano. Ele repete esse argumento no Leviatã, com a máxima de que a liberdade reside no “silêncio da lei”. Mas agora Hobbes vai adiante, realizando uma operação decisiva para seu propósito de desvincular a liberdade da lei. Anteriormente ele havia apresentado o medo de infringir a lei como impedimento arbitrário à ação livre. Com o subsequente abandono da noção de impedimento arbitrário, o medo perde sua função de impedimento da ação e a lei deixa de significar restrição à liberdade. Hobbes oferece como prova o fato de que mesmo diante de uma lei proibitiva ou prescritiva extremamente rigorosa restará sempre aos súditos a alternativa da desobediência. Como sintetiza Hobbes, “o medo e a liberdade são compatíveis […]. E de maneira geral todos os atos praticados pelos homens no interior de repúblicas, por medo da lei, são ações que os seus autores têm a liberdade de não praticar”26. Ora, se não há qualquer conexão necessária entre a liberdade dos cidadãos e a forma jurídica do Estado, deixa de fazer sentido a questão sobre qual seria a forma de Estado mais afeita à liberdade. Deixa de fazer sentido também a resposta republicana segundo a qual somente numa república autogovernada, num “Estado livre”, a liberdade humana poderia ser assegurada. Hobbes encerra a questão afirmando que “quer a república seja monárquica, quer seja popular, a liberdade é sempre a mesma”27.

PASSADO E PRESENTE

Skinner conclui sua narrativa com a sugestão de que a fórmula definida no Leviatã resultou em uma mudança conceitual revolucionária e em poderosa arma de luta ideológica contra o republicanismo. Hobbes “venceu a batalha”28, deixando como herança uma concepção de liberdade que, na atualidade, tem sido “amplamente tratada como um artigo de fé”29.

A esta altura, um crítico familiarizado com a metodologia contextualista de Skinner poderia legitimamente perguntar: a afirmação de que a concepção de liberdade desenvolvida por Hobbes no longínquo século XVII grassa hoje como um “artigo de fé” não levaria ao tipo de “anacronismo” tão estigmatizado nos ensaios metodológicos do próprio Skinner? Há quem acredite que sim, considerando “estranho encontrar um escritor que começou pela insistência na especificidade histórica de cada período agora vindo a defender o tipo de categoria meta-histórica maniqueísta que ele tanto deplorou”30. Há também os que julgam “desconcertante que grande parte dos escritos de Quentin Skinner nos estágios mais adiantados de sua carreira seja informada por seus compromissos políticos e filosóficos fortemente assumidos”31.

No entanto, quando se observa a trajetória recente de Skinner, seu afastamento de alguns de seus postulados metodológicos originais não surpreende32. Há pelo menos uma década, Skinner já afirmava que passara a encontrar “mais coisas na perspectiva de uma tradição e, consequentemente, de uma continuidade intelectual do que costumava encontrar”, e que isso o fez ver “mais promissoramente do que costumava ver” o valor atual do engajamento crítico “com nossos antepassados e grandes pensadores, ao menos quanto a alguns conceitos-chave que continuam a estruturar nossa vida em comum”33. Mais do que qualquer outro livro de Skinner, Hobbes e a liberdade republicana reflete essa alteração na perspectiva do autor sobre a relação entre o passado e o presente da teoria política.

Notas

1 SKINNER, Q. Hobbes e a liberdade republicana. São Paulo: Ed. da Unesp, 2010, p. 10.         [ Links ] 2 A distinção entre as concepções negativa e positiva de liberdade é fortemente tributária de um ensaio de Isaiah Berlin, publicado originalmente em 1958. Cf. BERLIN, Isaiah. “Dois conceitos de liberdade”. In: HARDY, Henry e HAUSHEER, Roger (orgs.). Isaiah Berlin: estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 226-72.         [ Links ] 3 SKINNER, Q. “Freedom as the absence of arbitrary power”. In: LABORDE, Cécile e MAYNOR, John (eds.). Republicanism and political theory. Londres: Blackwell, 2008.         [ Links ] 4 PETTIT, Philip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Oxford University Press, 2007.         [ Links ] 5 SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 12.
6 Ibidem, p. 14.
7 Conforme o título de um dos livros que mais influenciaram o método skinneriano: Austin, J. L. How to do things with words. 2.ed. Massachusetts: Harvard University Press, 1975.         [ Links ] 8 Cf. SKINNER, Q. “Meaning and understanding in the history of ideas“. History and Theory, vol. 8, no 3, 1969, pp. 3-53.         [ Links ] 9 SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 13.
10 PETTIT, Philip. “Liberty and Leviathan“. Politics, Philosophy and Economics, vol. 4, no 1, 2005, p. 150.         [ Links ] 11 SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 14.
12 Ibidem, p. 70.
13 Ibidem, p. 70.
14 Citado em Skinner, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 71.
15 Ibidem, p. 75.
16 Citado em Skinner, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 83.
17 Tradicionalmente, os reis da Inglaterra contavam com a prerrogativa de requisitar às cidades costeiras embarcações (ou o dinheiro equivalente à construção dessas embarcações) para a defesa naval em situações em que o reino via-se na iminência de sofrer invasões inimigas. Em 1635, em meio a uma crise financeira, Carlos I, alertando para a possibilidade de invasão, passa a requerer o recolhimento do ship-money para fazer frente às dificuldades. A prática repetiu-se nos anos seguintes, mesmo na ausência de qualquer ameaça externa, o que levou a uma crescente insatisfação no Parlamento. Não tardaram a aparecer discursos protestando contra o caráter abusivo e arbitrário do tributo, o que culminou, em 1641, na decretação da sua ilegalidade.
18 Citado em Skinner, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 93.
19 Citado em Skinner, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 111.
20 Ibidem, p. 112.
21 Ibidem, p. 113.
22 Ibidem, p. 116.
23 Citado em SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 117.
24 Ibidem, p. 143.
25 Citados em SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 141.
26 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 180.         [ Links ] 27 Ibidem, p. 184.
28 SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 197.
29 Ibidem, p. 194.
30 DIENSTAG, Joshua. “Man of peace: Hobbes between politics and science”. Political Theory, vol. 37, no 5, 2009, p. 703.         [ Links ] 31 COLLINS, Jeffrey. “Quentin Skinner’s Hobbes and the neo-republican project”. Modern Intellectual History, vol. 6, no 2, 2009, p. 365.         [ Links ] 32 SILVA, Ricardo. “O contextualismo linguístico na história do pensamento político: Quentin Skinner e o debate metodológico contemporâneo”. Dados, vol. 53, no 2, 2010.         [ Links ] 33 SKINNER, Quentin. “Quentin Skinner on encountering the past (interview)”. Finnish Yearbook of Political Thought, vol. 6, 2002, p. 55.         [ Links ]

Ricardo Silva – Professor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina.

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Das recht der freiheit – HONNETH (NE-C)

HONNETH, Axel. Das recht der freiheit. Berlim: Suhrkamp, 2011. Resenha de: PINZANI, Alessandro. O valor da liberdade na sociedade contemporânea. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.94, Nov, 2012.

Das Recht der Freiheit [O direito da liberdade], o livro mais recente de Axel Honneth representa, por um lado, a tentativa mais sistemática de organizar sua teoria, que – como se sabe – tem seu centro no conceito de reconhecimento, e, por outro, a tentativa de atualizar o pensamento hegeliano1. É necessário considerar este último objetivo para melhor entender os alcances e os limites do primeiro. Em geral, tem-se a impressão de que o autor, ao seguir de perto a estrutura da Filosofia do direito de Hegel, coloca sua própria teoria em um corpete rígido e justo demais. A proximidade com Hegel parece mais evidente na segunda parte do livro, a mais propriamente sistemática, que é estruturada de forma tripartida e segue de perto a estrutura da seção “Eticidade” da Filosofia do direito. À parte sobre família do texto hegeliano corresponde, no texto de Honneth, a parte sobre relações pessoais; àquela sobre sociedade civil corresponde a parte sobre o mercado; finalmente, à parte sobre o Estado corresponde a parte sobre o Estado democrático. Não se trata de meras analogias formais, já que a pretensão é atualizar o pensamento hegeliano, livrando-o da sobrecarga metafísica2.

Contra a perspectiva normativa que busca seu ponto de partida em normas, princípios ou procedimentos ideais, e não na empiria e na descrição de sociedades concretas – perspectiva que caracteriza a maioria das teorias da justiça contemporâneas (John Rawls, Ronald Dworkin, etc.) -, Honneth defende uma perspectiva “hegeliana”, que dê relevância central aos acontecimentos históricos e à interpretação deles nos termos do que o autor chama de reconstrução normativa, ou seja

[…] um procedimento que tenta traduzir para o plano da teoria social as intenções normativas de uma teoria da justiça, tomando como fio condutor, para selecionar e elaborar o material empírico, valores justificados de forma imanente [à própria sociedade]: as instituições e práticas existentes são analisadas e apresentadas em relação às suas prestações normativas e na ordem pela qual se tornam significativas para a encarnação e realização dos valores socialmente legitimados3.

A análise das instituições e práticas sociais existentes é, portanto, ao mesmo tempo, uma avaliação com base em sua capacidade de realizar os valores próprios da sua sociedade (e não de outra). Ora, isso levanta um problema metodológico importante, já que a análise histórica de Honneth não é acompanhada, como acontece em Hegel, por uma visão metafísico-racionalista que vê na história das instituições o caminho do Espírito, isto é, um progresso constante, ainda que descontínuo. A renúncia a tal visão abre a possibilidade de que a história não consista em um progresso, mas possa resultar em regressos e recaídas na irracionalidade e na barbárie.

Honneth, contudo, não parece disposto a aceitar completamente essa conclusão, que tornaria questionável a própria noção de uma reconstrução normativa. Portanto, ao longo do livro, descreve os fenômenos históricos, que lhe servem como base para sua reconstrução normativa, como se constituíssem um caminho fundamentalmente progressivo e positivo. Embora reconheça a existência de patologias sociais e de desenvolvimentos errados [Fehlentwicklungen], termina seu livro expressando a esperança (ainda que não a certeza, como o faria Hegel) de que é possível que surja uma “cultura europeia de cuidados compartilhados e de solidariedades ampliadas”4.

Na leitura de Honneth, os valores legítimos característicos das sociedades liberal-democráticas modernas “se fundiram em um único, a saber, na liberdade individual nos seus sentidos plurais que conhecemos”5, não porque a liberdade represente em si um valor superior aos outros, mas porque a própria sociedade moderna ocidental lhe atribui esse valor superior. Neste sentido, Honneth se serve do conceito de justiça a partir de uma perspectiva sociológica e não abstratamente normativa: trata-se de considerar o que uma determinada sociedade considera justo. Portanto, é possível analisar as diferentes esferas que formam nossa sociedade (relações íntimas, mercado e Estado democrático) com base em como e quanto realizam a liberdade individual6. Na leitura de Honneth, todas as lutas por reconhecimento social “escreveram em seus estandartes o lema da liberdade individual”. Mais do que isso: na modernidade “a exigência de justiça pode ser legitimada publicamente somente se faz referência, de uma maneira ou de outra, à liberdade individual”7.

A centralidade da liberdade individual não implica, contudo, a assunção de um paradigma, tipicamente liberal, de individualismo ontológico ou metodológico: Honneth não parte da ideia de que os indivíduos representam um prius ontológico, isto é, que existem anterior e independentemente do seu contexto social; tampouco faz do indivíduo o juiz último da legitimidade das instituições sociais, como na tradição liberal8. Seu conceito de liberdade individual não desconsidera o fato de que o indivíduo está desde sempre inserido em um contexto social caracterizado pela existência de instituições e práticas sociais legítimas.

Hegel tinha dividido sua Filosofia do direito em três partes, dedicadas respectivamente ao direito abstrato, à moralidade e à eticidade. Honneth identifica três diferentes sentidos de liberdade que, grosso modo, correspondem à tripartição hegeliana: a liberdade negativa ou jurídica, a liberdade reflexiva ou moral e a liberdade social9.

A liberdade jurídica está ligada à existência de um sistema de direitos subjetivos, surgido na modernidade por um processo paulatino. Honneth reconhece que inicialmente os direitos subjetivos tiveram primariamente caráter econômico, com o primado do direito à propriedade – primado não somente prático, mas também teórico (de Locke ao próprio Hegel tal direito recebe um lugar de primazia nas relações dos indivíduos entre si e com a comunidade). Contudo, ao longo do tempo, os direitos subjetivos acabaram criando um espaço de proteção do indivíduo, que lhe permite desenvolver autonomamente seu plano de vida independentemente das concepções e dos valores socialmente dominantes. Os direitos subjetivos constituem uma esfera privada, à qual o indivíduo pode retirar-se, subtraindo-se às obrigações comunicativas ligadas à exigência de justificar escolhas de vida e valores individuais10.

Mas na liberdade jurídica estaria presente o risco de uma patologia social: a total identificação, pelos indivíduos, de sua liberdade com a liberdade jurídica, isto é, com seus direitos negativos e que, portanto, tais direitos acabem sendo os elementos constitutivos do plano de vida de seus titulares. Assim, os sujeitos tendem a “retirar-se na gaiola de seus direitos subjetivos e a pôr-se perante os outros exclusivamente como pessoas jurídicas”, demandando a resolução de todos os seus conflitos unicamente aos tribunais. A pessoa se reduz assim à “soma de suas pretensões jurídicas”11, fechando-se ao fluxo comunicativo que a une às outras pessoas12. Os direitos são usados, portanto, como uma barreira às exigências de justificação que provêm dos outros indivíduos.

O segundo tipo de liberdade, a liberdade moral, coincide com aquilo que na tradição filosófica foi definido como “autonomia moral”, e consiste basicamente na capacidade de pôr em questão normas, exigências ou instituições socialmente válidas com base em razões universais, isto é, com base em argumentos que poderiam encontrar o consenso de todos os envolvidos (manifesta-se aqui a influência da teoria do discurso de Habermas). Em outras palavras, cada indivíduo é livre para questionar as exigências morais que a sociedade lhe impõe, contanto que desde um ponto de vista universal. Neste sentido (como salientava Hegel em sua crítica a Kant), essa liberdade toma uma forma negativa: é a liberdade de rechaçar normas ou instituições sociais que não superem o teste de universalização (isto é, que se fundam sobre argumentos que não podem encontrar o consenso dos envolvidos). Isso implica que – contrariamente ao que acontece no caso da liberdade jurídica – os sujeitos estão dispostos, se necessário, a justificar suas ações e suas escolhas recorrendo a argumentos universalizáveis13. A liberdade moral exige, para ser exercida, não somente que os indivíduos possuam a capacidade de distinguir entre razões corretas ou falsas, mas também que sejam capazes de colocar-se no lugar dos outros.

Justamente essa capacidade, contudo, abre o risco de outras duas patologias sociais: o indivíduo tornar-se um moralista incapaz de situar-se no próprio contexto social, agindo como se tal contexto não existisse, isolando-se socialmente e tendendo a considerar-se como um “legislador” moral todo-poderoso, ou chegar a uma postura de verdadeiro terrorismo com motivações morais, a partir da qual a ordem social é considerada injusta e imoral na sua totalidade, exigindo a sua destruição14.

Ao terceiro tipo de liberdade, à liberdade social, são dedicados quase dois terços do livro, já que nela se realizaria, para Honneth, a liberdade do indivíduo. Em relação às outras duas, Honneth afirma que elas se comportam de forma “parasitária perante uma práxis de vida social que não somente as precede sempre, mas à qual devem também seu direito de existir”15. A liberdade jurídica e a moral permitem que o indivíduo distancie-se ou feche-se perante as exigências ligadas a relações sociais preexistentes, mas são incapazes de criar elas mesmas “esta realidade intersubjetivamente compartilhada no interior do mundo social”16. A tese central de Honneth, nesse sentido, é a de que

a liberdade individual alcança uma realidade socialmente experimentável e socialmente vivida somente em construtos institucionais que dispõem de obrigações complementares ligadas a papéis [sociais], enquanto nas esferas do direito e da moral, previstas “oficialmente” para ela, possui somente o caráter de um mero distanciamento ou de uma revisão reflexiva17.

Isto é, experimentamos nossa liberdade individual somente no contexto de obrigações sociais que surgem do fato de desempenharmos certos papéis sociais (por exemplo, enquanto parceiros, pais, amigos, agentes econômicos, produtores, consumidores, cidadãos, etc.). Essa liberdade é social, pois, longe de isolar o indivíduo do contexto social no qual se encontra, só é vivida em tal contexto, isto é, na interação com outros indivíduos. Isso leva Honneth a não identificar patologias sociais ligadas ao seu exercício, já que tais patologias remetem a um mal-entendido sistemático que leva o indivíduo a atribuir um sentido errado à sua liberdade jurídica ou moral – mal-entendido que, contudo, tem suas causas nas próprias formas de liberdade em questão; no caso da liberdade social, estamos perante desenvolvimentos errados que, segundo Honneth, não seriam provocados pelo próprio sistema da liberdade social. Ora, com isso, o autor abre espaço para uma ambiguidade, pois aparentemente as causas de tais desenvolvimentos não seriam imanentes ao sistema descrito, por exemplo à esfera do mercado ou do Estado democrático. Na realidade, como o próprio Honneth explicou em ocasião de uma discussão sobre seu livro realizada em Berlim em fevereiro de 2012, no caso da liberdade social, os fenômenos negativos se dão quando um certo patamar de desenvolvimento de tal liberdade é atingido e, em seguida, novamente abandonado. Trata-se, em suma, de regressões históricas, que levam a sociedade a perder um nível de liberdade social que já tinha alcançado, e não de patologias individuais. Por isso, contrariamente ao que acontece nos capítulos dedicados à liberdade jurídica e moral, o objeto principal de Honneth nessa parte é uma leitura do desenvolvimento histórico das três esferas nas quais se realiza a liberdade social: as relações pessoais, o mercado e o Estado democrático. Trata-se, nesse caso, de ver qual é a contribuição das três esferas à realização daquela liberdade, na qual se concentram os valores considerados legítimos na sociedade dos países industrializados e democráticos da Europa ocidental. Como acontece com Hegel, contudo, o leitor suspeita que a reconstrução normativa em pauta tenha como objeto uma sociedade específica, a saber, a do autor: a Alemanha, já que boa parte do material empírico apresentado refere-se evidentemente, ainda que não explicitamente, à sociedade alemã e só em parte pode ser visto como uma descrição fiel de outras sociedades, inclusive as de outros países industrializados.

Assim, na reconstrução da evolução das maneiras de viver as relações pessoais, que compreendem amizade, relações íntimas (quer no sentido de relações amorosas, quer no sentido de relações sexuais) e família, Honneth mostra como se passa da visão clássica de amizade masculina a formas de amizade entre pessoas de diferentes gêneros, ou como se passa do amor romântico ao amor “livre” dos anos 1970 e a uma maior abertura em relação a tais questões, ou como a família patriarcal ampliada dá lugar à família nuclear tradicional, na qual os pais ficam presos a seus papéis (o homem trabalha e sustenta a família, a mulher fica em casa cuidando dos filhos), à família moderna, na qual a divisão dos papéis entre os gêneros não é tão rígida, e, finalmente, às novas famílias, não mais compostas por dois pais de gênero diverso e pelos filhos, mas, eventualmente, por pais do mesmo gênero ou por diferentes casais de pais, consequências de divórcios, etc. Essa “história”, embora incompleta (faltam, por exemplo, formas de relações pessoais importantes como clubes, associações, camaradagem, etc.), é, provavelmente, a menos problemática para efetuar uma reconstrução normativa que aponte para um progresso. É significativo que o único risco de um desenvolvimento errado mencionado diga respeito à família e se refira à ausência eventual de políticas públicas de apoio às famílias (portanto, seja atribuível à esfera da política).

A tarefa mais árdua talvez seja mostrar como a esfera do mercado pode ser o lugar onde se realiza a liberdade social dos indivíduos. O próprio Honneth reconhece as dificuldades ligadas a essa tarefa, uma vez que o sistema da economia de mercado capitalista não parece minimamente orientado à construção de uma relação de reconhecimento recíproco, na qual os indivíduos possam ver na liberdade dos outros a condição para o exercício da sua própria liberdade, como exige o conceito de liberdade social que deveria ser realizado pela esfera do mercado18. Destarte, parece difícil ver como “a esfera do mercado organizado de forma capitalista” possa ser considerada uma “instituição ‘relacional’ de liberdade social”19. É verdade que tal esfera pressupõe a institucionalização de direitos individuais que correspondem à criação da liberdade jurídica; e que, portanto, nela os indivíduos possuem um mínimo de liberdade. Contudo, prevalece a concentração no interesse particular e uma visão pela qual cada um vê no outro meramente um meio para alcançar seus fins particulares. O atual mercado capitalista (quer o mercado de trabalho, quer o mercado “tradicional” onde se trocam mercadorias) tende a isolar os indivíduos uns dos outros e a convencê-los de que a única coisa que conta é a maximização dos lucros individuais, não a satisfação das carências sociais. Isso leva os indivíduos a não assumir aquela atitude de confiança e benevolência que, já segundo Adam Smith, representa a condição necessária para o correto funcionamento do sistema20. Em harmonia com essa visão, Honneth pensa, então, que as relações contratuais no mercado de trabalho deveriam obedecer não somente a imperativos econômicos (a “lei” da oferta e da procura, por exemplo), mas também a normas e princípios normativos independentes e, sobretudo, deveriam ser expressão de relações de reconhecimento recíproco: “os atores econômicos devem ter se reconhecido de antemão como membros de uma comunidade cooperativa antes de poderem atribuir-se reciprocamente o direito de maximizar seu lucro no mercado”21.

Na sua reconstrução normativa do desenvolvimento histórico do mercado capitalista, Honneth vê a “realização paulatina dos princípios de liberdade social, que lhe servem de fundamento e asseguram sua legitimação”. Em particular, menciona os mecanismos institucionais que visam garantir um “procedimento discursivo de acordo de interesses” e ancorar juridicamente “a igualdade de oportunidades”22. Na realidade, aqui como em outros momentos, Honneth parece referir-se à realidade alemã, na qual, como se sabe, existe (melhor seria dizer: existia – em consideração das profundas transformações pelas quais passou o modelo de mercado social alemão) um mecanismo de cogestão das empresas e de harmonização dos interesses por meio de contratos nacionais e da mediação do governo. Em outros países, contudo, os mecanismos institucionais mencionados por Honneth permanecem uma utopia, e o mercado de trabalho não obedece a regras estabelecidas discursivamente, nem ao princípio da igualdade de oportunidades. Portanto, a reconstrução normativa, neste caso, parece questionável não somente com base na interpretação do dado empírico (isto é, não somente questionando se até no modelo social de mercado alemão de fato os mecanismos mencionados por Honneth funcionaram da maneira descrita pelo autor), mas também com base nos próprios dados empíricos apresentados.

Além disso, chamam a atenção os fatos de Honneth não tratar o mercado financeiro, hoje tão dramaticamente importante, e não mencionar em momento nenhum a grande cisão histórica marcada pela queda do Muro e pelo fim do socialismo real – o que admira, em uma obra que pretende oferecer uma reconstrução normativa baseada na história das sociedades ocidentais modernas. A situação atual, caracterizada pelo aumento vertiginoso do desemprego na maioria dos países industrializados, pelo desmantelamento do modelo social de mercado alemão, pela progressiva mas constante redução dos direitos trabalhistas, pela concorrência entre países, que querem oferecer às empresas condições mais vantajosas à custa dos empregados, etc., é considerada por Honneth um mero desenvolvimento errado de um processo que, de outra forma, poderia ter levado a uma sociedade mais justa e não, como acham outros autores23, como a consequência inevitável de certa lógica imperante nas últimas décadas de privatizações e desregulamentações.

A última parte do livro é dedicada à reconstrução normativa do processo que levou do Estado liberal de direito ao atual Estado democrático constitucional e social. Em particular, o autor analisa “a instituição da esfera pública democrática como um espaço social intermédio, no qual cidadãs e cidadãos devem formar aquelas convicções passíveis de um consenso geral, que deveriam ser respeitadas pelo processo de legislação parlamentar por meio de procedimentos próprios do Estado de direito”24. Contrariamente ao que acontece com as relações pessoais e o mercado, a realização da liberdade social nessa esfera depende da sua realização nas outras duas. A reconstrução normativa da formação da esfera pública democrática oferecida por Honneth segue em geral a operação análoga realizada por Habermas em 196225. Honneth salienta a importância do Estado-nação nesse processo e fala da necessidade – para o desenvolvimento de uma esfera pública democrática – de “uma certa medida de ‘patriotismo'”, que, contudo, deve assumir hoje o aspecto de um “patriotismo constitucional”, para que se estabeleçam “pontes de comunicação” entre órgãos de governo e população26.

Falando dos desenvolvimentos errados nessa esfera, Honneth menciona o fato de que a mídia deixou de gerar informação para comercializar-se e tornar-se um mecanismo de produção de riqueza através da venda de de espaço publicitário, e lamenta a apatia presente entre os cidadãos, que parecem não ter interesse em participar ativamente do processo de formação da vontade política (que não se limita somente à participação nas eleições, mas compreende a participação nas discussões que acontecem no contexto da esfera pública). Honneth apresenta cinco condições que deveriam permitir um melhor exercício da liberdade social, embora em princípio não possam ser preenchidas todas e completamente27, mas sem as quais não seria possível pensar a esfera pública como esfera de liberdade social. As menos problemáticas dizem respeito à existência de garantias jurídicas para a participação política dos indivíduos e à presença de um espaço comunicativo comum, já a terceira, relativa à existência de um sistema diferenciado de mídia, é mais difícil de ser realizada; extremamente complicada é a realização das duas últimas: a disponibilidade dos cidadãos a se engajarem nas discussões públicas e o desenvolvimento de um sentimento de solidariedade cívica mantido por uma correspondente cultura política da solidariedade.

As convicções elaboradas nos debates públicos devem transformar-se em estratégias concretas de ação ou em normas jurídicas através da atividade legislativa dos parlamentos, isto é, através da ação do Estado. Honneth define o Estado como “o ‘órgão reflexivo’ ou a rede de instâncias políticas com a ajuda da qual os indivíduos, que se comunicam entre si, tentam transpor na realidade suas visões, alcançadas ‘experimental ou deliberativamente’ relativamente às soluções moral e pragmaticamente adequadas de problemas sociais”28. Nessa visão, o Estado é o instrumento através do qual os cidadãos ativos politicamente realizam suas convicções e, portanto, sua liberdade social. Contudo, os desenvolvimentos errados são particularmente numerosos e concernem à incapacidade concreta do Estado em lidar com os problemas ligados à economia, com a influência dos lobbies, com a burocratização dos partidos políticos, etc. Uma saída possível é identificada por Honneth na capacidade de pressionar os parlamentos demonstrada pelos movimentos sociais e as associações civis29.

Apesar dos diagnósticos negativos sobre os inúmeros desenvolvimentos errados que assombram as esferas do mercado e do Estado, o livro termina com uma nota otimista: a esperança no surgimento de uma cultura política democrática e participativa capaz de retomar o caminho fundamentalmente progressivo registrado por Honneth na sua reconstrução normativa da maneira em que a liberdade social veio afirmando-se como o valor principal da sociedade ocidental moderna. O otimismo de Honneth não é, portanto, crença dogmática no progresso de tal liberdade (como em Hegel), mas um otimismo cauteloso e consciente das dificuldades com as quais ela ainda tem que lidar.

Notas

1 Tarefa que já animava obras anteriores, como Sofrimento de indeterminação (São Paulo: Esfera Pública, 2007) e o próprio Luta por reconhecimento (São Paulo: Editora 34, 2003), até agora seu livro mais conhecido e teoricamente mais denso.
2 Operações análogas foram praticadas nos últimos anos por alguns pensadores norte-americanos. Ver PINKARD, T. Hegel’s Phenomenology. The Sociality of Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 1994; NEUHOUSER, FrederickFoundations of Hegel’s Social Theory. Actualizing Freedom. Cambridge (MA): Harvard University Press, 2000. Pippin, Robert. Hegel’s Practical Philosophy. Rational Agency as Ethical Life. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
3 HONNETH, A. Das Recht der Freiheit. Berlim: Suhrkamp, 2011, p. 23. [Citações traduzidas pelo autor.] 4 Ibidem, p. 624.
5 Ibidem, p. 9.
6 Em nota, o autor faz uma afirmação bastante relevante do ponto de vista teórico: “Em seguida não considerarei a ideia de ‘igualdade’, por mais influente e rica de consequências que seja, como um valor independente,” já que pode ser entendida somente em relação à igualdade individual (p. 35, nota 1). Essa breve observação é o único espaço que Honneth reserva em seu livro ao conceito de igualdade, tradicionalmente central nas teorias da justiça (o termo nem sequer aparece no índice analítico).
7 HONNETH, op. cit., p. 38.
8 Como veremos, Honneth considera até certo ponto estas perspectivas patologias sociais.
9 Na primeira parte do livro o autor realiza uma reconstrução histórica dos diferentes conceitos de liberdade, servindo-se da obra de pensadores bastante diversos entre si: Hobbes, Sartre, Nozick, Rousseau, Kant, Rawls, Habermas, os românticos alemães, Herder, Mill, Arendt, Hegel, Marx e Gehlen. Neste contexto não temos espaço para dedicar-nos à análise da leitura que Honneth faz desses autores e que, de qualquer maneira, é funcional à parte mais sistemática do livro, dedicada à exposição teórica dos três conceitos de liberdade.
10 Trata-se, portanto, de direitos meramente negativos, já que os direitos políticos pertencem, segundo Honneth, à esfera da liberdade social.
11 HONNETH, op. cit., pp. 161 e 164.
12 Analogamente, na seção da Filosofia do direito de Hegel dedicada ao direito abstrato, o autor criticava a tendência, típica de muitos juristas e filósofos, a reduzir o indivíduo à mera pessoa jurídica detentora de direitos formais.
13 HONNETH, op. cit., p. 193.
14 Aqui também há um eco da crítica à posição da subjetividade moral efetuada por Hegel na seção “Moralidade” da sua Filosofia do direito.
15 HONNETH, op. cit., p. 221.
16 Ibidem, p. 222.
17 Ibidem, p. 229.
18 Ibidem, p. 318.
19 Ibidem, p. 302.
20 Idem, 330 e ss.
21 Ibidem, p. 349.
22 Ibidem, p. 358.
23 Por exemplo: ROSA, H. Beschleunigung. Die Veränderung der Zeitstrukturen in der Moderne. 2. ed. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2005; Foster, J. B. e Magdoff, F. The Great Financial Crisis. Causes and Consequences. Nova York: Monthly Review Press, 2009; Stieglitz, J. Freefall. Free Markets and the Sinking of the Global Economy. Londres: Penguin, 2009; Dörre, K., Lessenich, S. e Rosa, H. Soziologie – Kapitalismus – Kritik. Eine Debatte. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2009; Chang, H.-J. 23 Things They Don’t Tell You About Capitalism. Londres: Allen Lane, 2010; Harcourt, B. E. The Illusion of Free Markets. Cambridge (MA): Harvard University Press, 2011.
24 HONNETH, op. cit., p. 471.
25 HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
26 HONNETH, op. cit., pp. 495-9.
27 Ibidem, p. 540, nota 505.
28 Ibidem, p. 570.
29 Ibidem, p. 608.

Alessandro Pinzani – Professor da Universidade Federal de Santa Catarina.

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Raúl Prebisch (1901-1986): A Construção da América Latina e do Terceiro Mundo – DOSMAN (NE-C)

DOSMAN, Edgar JUNIOR. Raúl Prebisch (1901-1986): A Construção da América Latina e do Terceiro Mundo. Trad. Teresa Dias Carneiro; César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2011. Resenha de: BARBOSA, Alexandre de Freitas. O anti-herói desenvolvimentista. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.94, Nov, 2012.

Raúl Prebisch e Ernesto Che Guevara, antípodas em quase tudo, foram as duas maiores contribuições argentinas para a política internacional do século XX. A tal ponto se tornaram cidadãos do mundo que o apodo argentino vem apenas como local de origem. Mas enquanto Che possui várias biografias, figura como símbolo pop e é perseguido por estudiosos em cada uma de suas facetas, don Raúl parecia relegado ao esquecimento.

O leitor latino-americano tem agora acesso à bela e rigorosa biografia escrita por Edgar Dosman – professor de ciência política da Universidade de York, no Canadá – publicada em inglês em 2009, lançada em espanhol em 2010 e em português em 2011. Sim, um autor canadense produziu a obra que nenhum latino-americano se dispôs a escrever como forma de erguer trincheiras contra a avalanche livre-cambista que tomou a região no último quarto do século XX.

PREBISCH, O OUTSIDER

Prebisch foi o primeiro grande pensador econômico latino-americano, tendo iluminado as trilhas próprias percorridas por Celso Furtado e Aníbal Pinto, “formados” na escola da CEPAL , e que o superariam em vários aspectos.

Seu papel foi o de um ousado abridor de caminhos, não o de um economista acadêmico. Interpretou a realidade argentina e, depois, latino-americana, porque a conhecia a partir da perspectiva privilegiada de servidor público e de construtor de instituições nacionais (Banco Central argentino), regionais (cepal e ilpes) e globais (UNCTAD ). Antidogmático por essência, o escrutínio do real lhe permitira romper os diques das teorias consagradas, avançando a sua reflexão à medida que propunha novas políticas e instrumentos de ação.

Economista que possuía tão somente um diploma de contador, Prebisch revolucionaria a forma de pensar a economia latino-americana e seria o primeiro a cunhar teórica e politicamente a ideia de uma “nova ordem econômica internacional”1. De livre-cambista com ressalvas nos anos 1920, se tornaria nos anos 1930 defensor de um papel ativo do Estado na vida social e econômica. Nos anos 1940, ainda de maneira solitária, e nos anos 1950 e 1960 com maior contundência, formularia com rigor teórico os conceitos de “centro” e “periferia”, “desenvolvimento para dentro”, “insuficiência dinâmica”, ao mesmo tempo que apostava na integração latino-americana e na “alteração das relações de dependência” entre os países do Sul e do Norte.

Ao contrário da versão tão difundida de que fora um conservador, um financista e um funcionário pró-eua, Prebisch acionou políticas anticíclicas nos anos 1930, fez a reforma do imposto de renda na Argentina, tornando-o mais progressivo, e defendeu a industrialização latino-americana com reforma agrária. Se não relutava em negociar com os Estados Unidos – no governo argentino, durante a CEPAL e a UNCTAD – era porque este país aparecia como a principal, e talvez única, potência efetiva de sua época; por outro lado, talvez tenha sido quem mais sofreu na pele o poder do império norte-americano, que sempre podou seus esforços por uma distribuição mais justa do poder econômico em escala regional e global. Muito do que se escreveu sobre Prebisch em artigos acadêmicos nas revistas da economia convencional ou foi publicado na imprensa dos países latino-americanos pelos novos policy-makers dos anos 1980 e 1990 não resiste à pesquisa cuidadosa realizada por Dosman.

Prebisch era um outsider em todos os aspectos. Filho de imigrante alemão, nascido em Tucumán, longe do brilho de Buenos Aires, o funcionário acusado de “entreguista” na sua terra natal criou uma burocracia econômica com sentimento de dever ao Estado e à nação. O poder curvara-se a ele, não o contrário. Depois daria fôlego inusitado às duas instituições rebeldes do sistema internacional – CEPAL e UNCTAD – não para estilhaçá-lo, mas na pretensão de corrigi-lo.

Dosman procura revelar a personalidade por trás do mito, de modo a desmontá-lo. Em vez de autoritário, pretensioso e europeizado, vemos um homem reservado, sem arroubos, dedicado ao serviço público e contemporizador. Orgulhava-se dos “quatrocentos anos de história argentina que correm nas suas veias”2 e da tarefa que se impôs numa quadra histórica que permitiu a ascensão de um pensamento latino-americano original. Enfim, um anti-herói, pois jamais posou de mártir.

O livro nos conta de maneira romanceada a trajetória quixotesca desse homem abnegado, “movido por uma busca de momentos históricos”3, mas que encontraria sempre, a cada esquina, a história – ou as artimanhas do poder, do qual se aproximara como a única forma de mudar o mundo – pregando-lhe peças, impedindo que a sua missão fosse concluída. De derrota em derrota, ele mudaria a história da América Latina, embora não no sentido que almejara.

A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO E O EXÍLIO FORÇADO

O jovem Prebisch chega a Buenos Aires em 1918, aos dezessete anos. A capital exibia o fausto da prosperidade econômica gerada pelas exportações de cereais e de carne. Os sistemas de ensino, de transportes e eleitoral estavam anos-luz à frente dos demais países da região. Parecia uma nova Europa gerada pela pampa humeda.

Estudaria economia na primeira universidade a criar este curso na região. Logo se desanima, entretanto, com a retórica fastidiosa de seus professores, que repetiam os tratados ingleses sem qualquer originalidade. Em 1920, antes de se formar, já trava debate com Alejandro Bunge, o Roberto Simonsen argentino. Discorda então o jovem de dezenove anos da industrialização como alternativa para o desenvolvimento de seu país. Chega a tentar uma filiação ao Partido Socialista argentino, mas desiste depois que um artigo seu contra a volta da Argentina ao padrão-ouro rende-lhe uma censura por parte de nada menos que Juan Justo, o famoso líder socialista.

Influenciado pela leitura de Vilfredo Pareto, decepcionado com a tradição bacharelesca da vida acadêmica, avessa à pesquisa empírica, e sentindo-se não contemplado por nenhuma das facções políticas argentinas, decide servir ao seu país, dotando-o de uma nova elite administrativa. Trabalha para a poderosa Sociedade Rural argentina por duas vezes, nos anos 1920, sendo em ambas demitido pela independência dos seus relatórios. Como consultor do Ministério da Fazenda visita a Austrália e o Canadá, onde percebe as vastas diferenças com sua terra natal, que sofria os efeitos da concentração da propriedade fundiária e a da lenta modernização do Estado. Vira assessor do Ministério da Agricultura e depois se torna diretor-adjunto do Departamento Nacional de Estatísticas.

Em 1927, dá o primeiro salto de sua carreira. É nomeado, aos 26 anos, para o cargo de diretor do Banco de la Nación, tornando-se responsável pelo novo departamento de pesquisas econômicas. Procura trazer para o Sul a experiência do fed norte-americano, que tanto o impressionara. Em 1930, logo após o golpe de Uriburu, é convidado para assumir a subsecretaria da Fazenda. Prebisch toma então as rédeas da economia argentina. Procura inovar, abandonando as teorias sem serventia num momento de crise.

A saída do presidente leva à sua queda. Faltavam então as bases institucionais para uma gestão econômica eficiente. Do contrário, pensava, teria que depender sempre do beneplácito dos poderosos de ocasião. Ao final de 1932, é escolhido como membro da Comissão Preparatória da Conferência Econômica Mundial da Liga das Nações. É então que percebe a irrelevância dos países periféricos: tratava-se de “uma briga de cachorro grande”. No início do ano seguinte, é convocado para fazer parte das negociações do famigerado Pacto Roca-Runciman, quando a Argentina é forçada a aceitar as concessões exigidas pelos ingleses. Estava morta a teoria neoclássica e, junto com ela, o multilateralismo. É então que lê entusiasmado, na Inglaterra, o artigo “Road to prosperity”, de Keynes.

Na volta à Argentina, a sorte – ou a mudança na administração – lhe presenteia com a dupla assessoria dos ministérios da Fazenda e da Agricultura, acumulando tais cargos com o que ainda ocupava no Banco de la Nación. Formula o Plano de Recuperação Econômica, que tira a Argentina da crise antes dos países industrializados. Acusado de participar de um governo autoritário, Prebisch aproveita as brechas do poder para modernizar o Estado. Acredita-se um “economista nacionalista e profissional que escolhera participar em vez de ficar de fora”4. No íntimo, percebe a mediocridade dos militares e das elites tradicionais que dão sustentação aos governos da Concordancia.

O próximo salto se daria quando assume o cargo de gerente-geral do Banco Central argentino, criado em 1935. Ele e seu “cartel de cérebros” implantam um novo estilo de gestão na máquina pública, caracterizado pela sobriedade, dedicação abnegada e capacidade técnica. Prebisch redige de próprio punho os relatórios anuais da instituição. O Banco Central exerce o papel de garantidor da estabilidade ao mesmo tempo em que apoia a expansão econômica, modulando os ciclos.

Em 1940, Prebisch elabora o Plan Pinedo, não aprovado em virtude da crescente oposição ao governo, enfraquecido e sem base de sustentação. Procura reduzir a dependência da Inglaterra, aproximando-se dos Estados Unidos – para quem quer vender produtos industrializados – e da América do Sul. Em 1943, é demitido com a ascensão de Perón à estrutura de poder. Passa a sofrer vigilância policial e tem que fugir para Mar del Plata. Tem seu salário suspenso, o que faz com que volte a ministrar aulas na Faculdade de Ciências Econômicas.

Entretanto, convites não lhe faltam. Assessora o Banco Central mexicano e os governos da Venezuela, Paraguai, República Dominicana e Guatemala, dentre outros. Rejeita todos os convites para ensinar em universidades norte-americanas. Prepara-se para voltar ao governo, na expectativa de que “o peronismo acabaria um dia”5.

O homem que ditara os rumos da economia argentina por quinze anos entra em depressão, o que faz com que se lance numa tentativa árdua de processar teoricamente a sua experiência. Não consegue publicar o que escreve – à exceção de Introducción a Keynes, de 1947, lançado pela Fondo de Cultura Económica -, apesar da recepção que seu trabalho tem nos Estados Unidos e na América Latina, inclusive no Brasil, onde tem em Eugenio Gudin um grande admirador, embora este conhecesse tão somente o gerente financeiro. O teórico iconoclasta estava, àquela altura, ainda lapidando seu novo sistema de ideias.

A CEPAL E A INVENÇÃO DA AMÉRICA LATINA

Pouca gente sabe que, ao fim de 1948, Prebisch parte para Washington para assumir o cargo de assessor do diretor-geral do FMI. E que graças às vicissitudes da política norte-americana – bem como à oposição dos governos brasileiro e argentino – lhe sobra como última opção a de consultor da CEPAL , recém-criada, e que ele imaginara como uma instituição de fachada. Depara-se desde logo com o desafio de torná-la efetiva: a depender dos Estados Unidos, a CEPAL nasceria moribunda.

Santiago era a última opção para o obstinado construtor de instituições econômicas. Tinha um desafio: elaborar em três meses o documento Investigación Económica de América Latina para a sessão da CEPAL , a se realizar em maio de 1949, em Havana. Além de tecer um panorama geral da região, deveria oferecer uma direção para a instituição, que contava com a oposição cerrada dos Estados Unidos, que pareciam determinados a extingui-la em 1951. Com uma equipe pequena, enfrentando o ceticismo dos norte-americanos, do Banco Mundial e do FMI, e contando apenas com algum apoio da onu, o documento é elaborado.

Mas Prebisch queria também apresentar algo menos técnico, que refletisse o seu acúmulo teórico nos tempos de exílio do governo argentino – já em 1945, os conceitos centro e periferia aparecem nos seus textos e correspondências – e apontasse para uma nova estratégia de desenvolvimento na região. Algo que juntasse teoria, política e utopia.

A primeira versão do que viria a ser o “manifesto latino-americano”, de abril de 1949, era bastante rebuscada. Celso Furtado, já então na CEPAL , a lera, tendo achado o texto muito acadêmico e defensivo. Prebisch, também insatisfeito, reescreve-o completamente, em três dias e três noites, tornando-o mais acessível. Introduzia assim um novo vocabulário no debate sobre desenvolvimento em escala internacional, partindo da especificidade latino-americana. E o diagnóstico convidava à ação.

A apresentação em Havana foi acontecimento inesquecível para os que ali estavam. O documento recebeu o apoio dos governos latino-americanos e foi recebido com frieza pela delegação de baixo perfil do governo norte-americano. Acadêmicos do mainstream da época, como o professor Jacob Viner, de Princeton, sentiram calafrios. O documento continha no seu entender “fantasias desvairadas, conjecturas históricas distorcidas e hipóteses simplistas”6. Não era para menos: o texto batia de frente com a ortodoxia das vantagens comparativas. Ainda pior para os seus detratores, não era comunista nem protecionista. Defendia o comércio, apostava na industrialização, sem menosprezo pela agricultura, e propugnava uma ação reformadora e inteligente do Estado.

Inventava-se assim a América Latina, uma região com especificidade histórica, decorrente da sua inserção no sistema internacional, mas agora dotada de ferramentas de reflexão próprias e de um conjunto de novos instrumentos de política econômica adequados à sua realidade. Ao voltar-se sobre si mesma, a América Latina oferecia uma nova interpretação sobre o universal. O véu que protegia o mundo ocidental era descoberto pelo olhar periférico. As ideias encontravam, nesta quadra histórica, o seu lugar7. Para Prebisch, não se tratava de separar a periferia do centro, ou de negar os aportes científicos da teoria econômica – o próprio manifesto não continha uma teoria acabada, antes prometia mais pesquisa e reflexão -, mas de destacar a dinâmica e estrutura da desigualdade global. Diferenciava-se, inclusive, do marxismo dominante, refutando as análises acerca do imperialismo como simples manifestação do capitalismo monopolista.

De regresso ao Chile, Prebisch possuía agora um novo “cartel de cérebros”, que contava com economistas de vários países da região e formações teóricas bem diversas, como Celso Furtado, o cubano Regino Boti, o mexicano Juan Noyola (que chegaria apenas em 1951) e o chileno Jorge Ahumada. Este último, de Harvard, chefiava a Divisão de Treinamento, enquanto Furtado ficara com a de Desenvolvimento, chamada de “divisão vermelha”.

A ameaça contínua à própria existência da CEPAL criava um vínculo especial entre os seus “combatentes”. Prebisch estimulava o debate entre os quadros, exigindo-lhes maior rigor na exposição dos argumentos. Chamava para si a responsabilidade política e dava autonomia para os seus jovens tocarem o barco, inclusive resistindo às perseguições ideológicas durante a maré montante do macartismo norte-americano.

A segunda grande batalha foi a Conferência do México de 1951. A CEPAL passava agora a ter um mandato por tempo indeterminado, com plena independência, e novas funções além da produção de relatórios de pesquisa. Na sua nova fase, a organização latino-americana atuaria como centro de treinamento para quadros governamentais da região e de assistência técnica para as políticas de desenvolvimento de cada país.

As expectativas eram elevadas. A CEPAL assumia o papel de “usina de ideias” para a América Latina. Aproveitando o cenário positivo, Prebisch, secretário-executivo da CEPAL desde 1950, amplia e reestrutura a equipe da organização, que contaria ao final de 1953 com um corpo técnico de 130 funcionários em regime de tempo integral. É quando clama por cooperação internacional, reforço do planejamento econômico, estabilidade de preços para as exportações de matérias-primas, necessidade de um banco regional de desenvolvimento, mudança tributária e reforma agrária.

Entretanto, na segunda metade dos anos 1950, Prebisch vê o seu raio de manobra se estreitar. O cenário internacional não é favorável. A instituição, agora consolidada, está atolada de projetos. A reflexão teórica fica em segundo plano, contra os anseios de Furtado e Noyola, que passam inclusive a se ressentir da visão mais “ortodoxa” de Prebisch, que vira uma espécie de representante político de alto nível, priorizando as relações com os governos da região.

Na sua nova fase, a CEPAL concentra-se na defesa da integração latino-americana. Seria a solução para a expansão do comércio e para o prosseguimento da industrialização, rumo aos setores intensivos em capital nos países maiores, e abrindo novas possibilidades de especialização para os menores. Mas o projeto de mercado comum transforma-se na proposta tímida da alalc, lançada em 1960. Os Estados Unidos recusam qualquer perspectiva de colaboração mais ativa com a região.

O quadro aparentemente mudaria com a Revolução Cubana e a eleição de Kennedy. Em março de 1961, os Estados Unidos lançam de maneira retumbante a Aliança para o Progresso, com a presença aclamada de Prebisch, seu arquiteto intelectual. O Império assimila todo o vocabulário cepalino e o oferece de volta para a região: capitalismo progressista, reformas estruturais, cooperação para o desenvolvimento.

Prebisch sente-se desnorteado. Desconfia da adesão dos governos da região às reformas (fiscal e agrária) e do compromisso estadunidense com o desenvolvimento. A liberação de recursos da Aliança para o Progresso deveria estar subordinada, no seu entender, a uma comissão de sete especialistas, com a responsabilidade de aprovar os planos nacionais. A comissão de sete transforma-se no painel dos nove, de perfil apenas consultivo, facilitando a vida dos governos latino-americanos e dos Estados Unidos, que poderiam distribuir os recursos de acordo com suas prioridades políticas. Nosso anti-herói entrega os pontos. O triunfo dos Estados Unidos na guerra dos mísseis joga a penúltima pá de cal, justamente no momento em que a ala econômica mais conservadora do governo Kennedy assume a dianteira. A última seria o desembarque das ditaduras militares no Cone Sul.

Prebisch volta a Santiago em 1962, e enquanto espera a transição na secretaria-executiva, cria, com apoio do Fundo Especial da onu e do bid, o ilpes (Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social). Quer voltar à reflexão teórica, deixando à CEPAL o trabalho mais aplicado.

O DESPERTAR DO TERCEIRO MUNDO

Se os ventos cepalinos se haviam abrandado na América Latina, eles voltariam a soprar pelos mares revoltos do Terceiro Mundo com a descolonização africana e asiática. Na Conferência do Cairo, de 1962, com a participação de 36 países não alinhados, Prebisch percebe que um novo mundo podia emergir, ou seja, que as ideias cepalinas podiam ser “globalizadas”. O G-77 seria criado, naquele ano, com a aprovação, na Assembleia Geral da onu, da realização da Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento, a futura UNCTAD , em 1964. Prebisch, com seu prestígio junto aos países do Terceiro Mundo, assume o cargo de secretário-geral até a conferência. A oposição dos países desenvolvidos, especialmente dos Estados Unidos, mostrava-se forte. E o gatt, composto majoritariamente pelo “clube dos ricos”, não queria concorrente. Trabalhando em Nova York, Prebisch organizaria mais uma vez uma equipe só de craques, provenientes de todas as partes do mundo, para viabilizar o maior evento internacional da história das Nações Unidas até o momento.

Diferentemente de hoje, quando dispomos de voos diretos para a Europa de todas as partes, acesso a internet e blackberries, os representantes dos 119 países ficariam “isolados” em Genebra durante três meses. Tratava-se de uma nova aventura para Prebisch: o mesmo script da CEPAL , mas em escala ampliada. O documento por ele produzido lançava o conceito de desequilíbrio comercial. Se este se mantivesse entre países do Norte e do Sul, fluxos financeiros equivalentes a US$ 20 bilhões anuais teriam que ser acionados pelos primeiros para manter as contas externas dos últimos em ordem, caso estes lograssem um ritmo de crescimento anual de 5%.

A solução seria uma “nova ordem econômica internacional”, que estabilizasse os preços dos produtos primários, criasse um sistema de preferências para os manufaturados dos países do Sul e ampliasse o financiamento para o desenvolvimento. O burocrata global viajaria o mundo inteiro antes da UNCTAD I, desembarcando em várias capitais do mundo rico e pobre para apresentar seu novo evangelho.

Prebisch seria aplaudido de pé após seu discurso inaugural em Genebra. Nele, afirmara que a cooperação internacional não poderia ser vista como substituta do desenvolvimento. Cada país deveria fazer sua parte. Ele sabia da oposição que encontraria da parte dos Estados Unidos e das demais potências.

O desastre era iminente. Para impedi-lo, nosso anti-herói reúne em seu apartamento, em Genebra, representantes de oito países. A pauta não avança na direção das ações concretas reivindicadas pelo G-77. Prebisch, entretanto, consegue parir a UNCTAD , garantindo sua autonomia e independência. A entidade atuaria como espaço de pesquisa e fórum de negociação não neutro, ou seja, a serviço dos países em desenvolvimento, mas sem oposição aberta ao Norte, essencial para que qualquer acordo vingasse. Apesar da recepção hostil da plateia do G-77, que lamentava os ganhos retóricos, Prebisch vencera, e a UNCTAD está aí até hoje8, com menos poder do que ele gostaria, mas assumindo o papel que ele imaginara.

Durante a UNCTAD II, realizada em Nova Delhi, os mesmos choques de posições se sucederiam. O prazo para o término da conferência seria prorrogado duas vezes. Os países desenvolvidos comemoravam o sucesso da inércia, enquanto o G-77 via o novo vocabulário do desenvolvimento em escala ampliada ser soterrado. Prebisch aparecia como algoz dos países desenvolvidos e traidor do Terceiro Mundo. Mas o sgp9 seria aprovado, novos conceitos introduzidos, propostas concretas elaboradas (mesmo que engavetadas), com relatórios de qualidade produzidos a serviço dos países mais pobres.

Acertada a sua demissão da UNCTAD para março de 1969, Prebisch iria para Washington trabalhar no novo relatório sobre o desenvolvimento latino-americano a convite do bid. Nele, apontaria para a “crise do desenvolvimentismo”, contrapondo a região aos países do Sudeste Asiático, capazes de realizar reforma agrária, transformações institucionais e em sua estrutura econômica. Com o golpe de Pinochet, a CEPAL torna-se uma organização sitiada. Apenas com a crise do petróleo, Prebisch voltaria a ser saudado, por ricos e pobres, como um “visionário global”10.

Prebisch ainda teria tempo para criticar o endividamento excessivo dos países latino-americanos no final dos anos 1970, contra os prognósticos das entidades tradicionais que o louvava; e participar do governo Alfonsín na Argentina, defendendo o Consenso de Cartagena, em prol de uma posição comum para os países devedores, trazendo calafrios para o FMI, o Banco Mundial e o governo norte-americano. Não obstante, mais uma vez seria visto em casa como “entreguista”. Os peronistas já se encontravam na antessala do poder, como se a história dos anos 1940 tivesse que se repetir, mas dessa vez como farsa.

PREBISCH, FURTADO E O ESTRUTURALISMO

Seguimos acima a trajetória de Prebisch a partir da câmera lenta de nosso cineasta-biógrafo. Por mais que procure integrar as ideias de Prebisch e o seu estilo de liderança, iluminando as restrições e potencialidades das organizações em que nosso anti-herói trabalhara em cada momento histórico, nem sempre Dosman abarca essas várias dimensões em toda a sua complexidade.

Joseph Hodara11 ressalta a importância de um paradigma triangular entre ideias, estilo de liderança e entorno organizacional para entender a contribuição de Prebisch. No seu entender, a CEPAL alçou voo em virtude da “ética de seita” instaurada pelo argentino. Depois ela teria se enrijecido, alcançando o “estágio eclesiástico”, na qual a rotina burocrática acaba por vencer, inclusive se amoldando às novas modas do pensamento econômico, no máximo temperadas por adjetivos desenvolvimentistas.

Em vez de um típico tecnocrata, o economista argentino destacava-se pelo estilo argumentativo, nada neutro, brindando novas mensagens políticas e uma clara preocupação pedagógica. Adicionalmente, se o vocabulário prebischiano caracterizava-se pela polissemia, de modo a permitir-lhe maior margem de negociação, ele encontrava pouca receptividade nos ambientes acadêmicos, onde neoclássicos e marxistas ressentiam-se ao ver seus conceitos sofrer interpretações por demais arejadas12. Não à toa, Furtado o descrevera como o “grande heresiarca”13.

Outro aspecto digno de menção refere-se à história do estruturalismo. Prebisch aparece na biografia de Dosman como o primeiro praticante de um novo método de reflexão sobre as economias e sociedades latino-americanas. O próprio Dosman afirma que, depois da Conferência da CEPAL de Cuba, em 1949, Prebisch “teria criado o estruturalismo”14. Os estudos clássicos apontam para a mesma interpretação. É o caso de Rodríguez15, para quem, nos anos 1950, o estruturalismo parte do enfoque econômico, para depois, nos anos 1960, incorporar as dimensões social e política. Ou de Bielschowsky16, que percebe uma “teoria ‘estruturalista’ do subdesenvolvimento periférico” já no manifesto de Prebisch.

A origem está em Prebisch, é certo. No entanto, ele não era nem “estruturalista” nem havia formulado nenhuma “teoria do subdesenvolvimento” nos anos 1950. O “manifesto latino-americano”17 sequer continha a palavra “subdesenvolvimento”. Prebisch refere-se quando muito aos países da América Latina como “novos”, que não seguem – e nem há por que imaginar que devessem fazê-lo – os mesmos estágios e dinâmicas dos países centrais, até porque não contam com as mesmas premissas.

A segunda ruptura que levaria ao que se convencionou chamar de “teoria do subdesenvolvimento” é furtadiana até a medula. Não se trata aqui de discutir paternidade teórica, mas de ressaltar que a primeira CEPAL apenas lançara a semente do que seria chamado de pensamento econômico estruturalista latino-americano. Depois de um esforço inaudito durante a segunda metade dos anos 1950, Furtado vai explicitar as características do método histórico-estruturalista, conferindo-lhe um enfoque teórico específico, tal como apresentado em Desenvolvimento e subdesenvolvimento18. Essa hipótese é lançada por Mallorquín19.

Para além de se comportarem de maneira distinta nos ciclos, em Furtado, centro e periferia fazem parte de uma mesma totalidade histórica, que se manifesta com dinâmicas estruturais distintas que extravasam o econômico. O mais interessante é que o mestre Prebisch se transforma em discípulo, com O capitalismo periférico, publicado em 1981, mas escrito ao final da década de 1970, quando não se encontra mais preso às artimanhas organizacionais e ao peso da ação política.

O próprio Prebish o admite nos agradecimentos ao livro: “ante todo, Celso Furtado”, “nadie ha penetrado com más profundidad en la interpretación del desarrollo”20 – antes de entrar de cheio na dinâmica do “capitalismo periférico”, da sua estrutura social e de suas travas políticas. Prebisch não deixa de assinalar as mudanças do “capitalismo central” – até porque ambos fazem parte de um todo integrado – mas concentra o seu olhar na assincronia das estruturas latino-americanas.

A heterogeneidade estrutural – o mestre também aprendeu com Aníbal Pinto21 – é antes reforçada pela industrialização, pois este capitalismo, por ser imitativo, está baseado fundamentalmente na desigualdade. Isto porque parcela expressiva do excedente é esterilizada internamente ou drenada para fora, desperdiçando o potencial de acumulação de capital, que poderia atender às demandas sociais e revigorar os processos de democratização22.

Nesse último exercício teórico, Prebisch argumenta que o esquema centro-periferia pode e deve ser enriquecido, de acordo com as mudanças históricas, mas desde que tenha como objetivo a elaboração de uma teoria global do desenvolvimento23, que capte as dinâmicas internas e articulações externas entre os “capitalismos” central e periférico.

PREBISCH REDIVIVO

O Prebisch que podemos herdar, mantendo a sua embocadura analítica, é este que fala do “meu pensamento cepalino”, como se um mar metodológico desaguasse em vários rios interpretativos; bem diverso da CEPAL no seu estágio “pós-eclesiástico”, que inclusive endossou o credo neoliberal, antepondo-lhe algumas vírgulas nos anos 1990. Um Prebish em diálogo profundo com Celso Furtado e Aníbal Pinto e com outras correntes de interpretação, como a “teoria da dependência”, o pensamento histórico-institucionalista e as contribuições neo-schumpeterianas, dentre outras. Mas também um autor que casa embasamento empírico com generalizações teóricas e formulações políticas de longo prazo – o que só é possível quando se assume uma perspectiva metodológica que associa o “intervencionismo decidido do Estado”, num contexto social e histórico específico, onde o “não reducionismo econômico deriva de um não determinismo definido”, nos termos de Rodríguez24, sempre levando em consideração os impactos das conformações cambiantes da totalidade capitalista.

Nesse sentido, a compreensão da realidade histórica latino-americana, ontem, hoje e amanhã, pode ser feita a partir dessa metodologia de análise que parte de tendências gerais, como, por exemplo, a dinâmica do sistema centro-periferia, sempre reciclada de modo a concentrar os frutos do progresso técnico em áreas privilegiadas da economia-mundo capitalista, reforçando por sua vez a heterogeneidade estrutural que permite a recriação do subdesenvolvimento sob novas formas.

A pergunta que se coloca então é sobre o papel da ciência econômica e das ciências sociais em geral. Tal como no passado, a marca da cepal está no ecletismo em assimilar e reprocessar as contribuições do pensamento clássico, marxista e keynesiano, a partir de uma experiência histórica peculiar. Neste sentido, o vigor de um programa científico do estruturalismo estriba justamente na capacidade de acompanhar os avanços teóricos das várias formulações heterodoxas, de modo a fornecer os “fundamentos” para uma “teoria especial” do acontecer econômico25 nos diversos países latino-americanos no contexto histórico atual. A própria evolução do pensamento cepalino propriamente dito esteve sempre relacionada não somente à história real do objeto de análise, como com o próprio contexto ideológico, relacionando inserção internacional, tendências e contradições internas do crescimento da periferia e ação do Estado26.

Dessa forma, associar o estruturalismo, a teoria do subdesenvolvimento ou a economia política cepalina à “teoria da deterioração dos termos de troca”, atitude hoje muito em voga, é tomar a parte pelo todo. Ora, aquela tendência apenas indicava que, num contexto específico, o do novo centro global protagonizado pela economia norte-americana nos albores do pós-Segunda Guerra Mundial, levaria inexoravelmente ao processo de industrialização, que deveria ser planejado, de modo a não internalizar as características concentradoras da dinâmica do sistema capitalista, as quais encontravam solo fértil em virtude das peculiaridades estruturais da região.

Num contexto de ascensão chinesa, crise das economias ditas centrais e reorganização da divisão internacional do trabalho, ou seja, em que mais uma vez o centro de gravidade da economia-mundo capitalista passa por deslocamentos que alteram de maneira sistêmica a sua dinâmica de funcionamento 27, Prebisch e seus “companheiros de seita” parecem mais bem aparelhados com suas categorias28 para enfrentar o real do que os economistas com instrumental estático ou os catastrofistas de plantão.

Notas

1 DOSMAN, Edgar JUNIOR. Raúl Prebisch (1901-1986): a construção da América Latina e do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2011, p. 489.
2 Ibid., p. 246.
3 Ibid., p. 27.
4 Ibid., p. 121.
5 Ibid., p. 261.
6 Ibid., p. 285.
7 CARDOSO, F. H. As ideias e seu lugar: ensaios sobre as teorias do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1993, pp. 29, 59, 70-4. Nesse texto, dialogando com os conceitos de Roberto Schwarz, o sociólogo aponta para a “originalidade da cópia cepalina”.
8 Ver a reedição dos “mesmos conflitos” na recente UNCTAD XIII, realizada na cidade de Doha em 2012. “UNCTAD expõe racha entre ricos e emergentes”. Valor Econômico, 27, 28 e 29 de abril de 2012, p. A13.
9 Trata-se da sigla de Sistema Geral de Preferências (gps, em inglês), que até hoje responde por parcela importante das exportações de manufaturados da periferia capitalista para os países do Norte.
10 Edgar Dosman, op. cit., pp. 537-8.
11 HODARA, J. Prebisch y la CEPAL : sustancia, trayectoria y contexto institucional. Mexico: El Colegio de Mexico, 1987, pp. 12-4, 16-23, 38-9.
12 O’HIRSCHMAN, A. A economia como ciência moral e política. São Paulo: Brasiliense, 1986, pp. 66-7, 75. O autor menciona a “estranha coalizão entre marxismo e monoeconomismo”.
13 FURTADO, C. A fantasia organizada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, 5. ed., cap. vii.
14 DOSMAN, op. cit., p. 314.
15 RODRÍGUEZ, O. O estruturalismo latino-americano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, pp. 27 e 41.
16 BIELSCHOWSKY, R. “Cincuenta años del pensamiento de la CEPAL : una reseña”. InCincuenta años de pensamiento en la CEPAL : textos seleccionados. vol. 1. Santiago: Fondo de Cultura Económica/cepal, 1998, pp. 14 e 17.
17 PREBISCH, Raúl. “El desarrollo econômico de la América Latina y algunos de sus principales problemas”. In: Cincuenta años de pensamiento en la CEPAL , op. cit. Trata-se do texto original de 1949.
18 FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1965. A primeira edição é de 1961.
19 MALLORQUÍN, Carlos. Celso Furtado: um retrato intelectual. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Xamã, 2005, pp. 16, 122-31, 261 e 328.
20 PREBISCH, Raúl. Capitalismo periférico: crisis y transformación. México: Fondo de Cultura Económica, 1981, p. 9.
21 PINTO, A. “Naturaleza e implicaciones de la ‘heterogeneidad estructural’ de la América Latina”. In: Cincuenta años de pensamiento en la CEPAL : textos seleccionados, vol. 2, op. cit. Esse texto foi publicado pela primeira vez em 1970 e significou uma ruptura com as teses dualistas.
22 PREBISCH, R., Capitalismo periférico, op. cit., pp. 14-15, 37-45.
23 Ibid., pp. 26 e 30.
24 RODRÍGUEZ, op. cit., pp. 46-8.
25 Ibid., pp. 42-4 e 61.
26 BIELSCHOWSKY, op. cit., pp. 11 e 17.
27 CASTRO, Antonio Barros de. No espelho da China, 2009 (mimeo).
28 Para um intento de aplicar as categorias cepalinas de modo a compreender os impactos da ascensão chinesa sobre a América Latina, ver Barbosa, Alexandre de Freitas. “China e América Latina na Nova Divisão Internacional do Trabalho”. In: Leão, Rodrigo Pimentel Ferreira, Pinto, Eduardo Costa e Acioly, Luciana (orgs.). A China na nova configuração global: impactos políticos e econômicos. Brasília: ipea, 2011.

Alexandre de Freitas Barbosa – Professor de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) e pesquisador associado do Cebrap.

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Luto e Melancolia-FREUD et al (NE-C)

FREUD, Sigmund; KEHL, Maria Rita; PERES, Urania T.; CARONE, Modesto; CARONE, Marilene, Luto e Melancolia. Trad. Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011. Resenha de: RIVERA, Tania. Entre dor e deleite. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.94, Nov, 2012.

A leva de novas traduções surgida recentemente e disseminada graças à passagem da obra de Freud para o domínio público tem, finalmente, fornecido ao leitor brasileiro versões condizentes com a envergadura intelectual e literária desse grande pensador. Além de permitir um contato mais direto com o próprio texto do pai da psicanálise, essa nova situação abre caminho para a diversificação dos modos de acesso a escritos quase sempre reunidos em volumes organizados cronologicamente. Destaca-se nesse conjunto a bela edição da Cosac Naify para “Luto e melancolia”, um grande clássico escrito em 1915 (e publicado em 1917) cujo interesse só se renova, especialmente em tempos marcados por uma aparente profusão de quadros depressivos.

Acompanhada de textos de duas importantes psicanalistas brasileiras, Maria Rita Kehl e Urania Tourinho Peres, a edição traz uma tradução – de Marilene Carone – que fez história e permanecia inédita em livro, tendo sido publicada pela Novos Estudos Cebrap em 1992. Ela conta, ainda, com uma introdução e comentários da tradutora, além de uma curta nota do escritor e tradutor Modesto Carone, que foi seu marido. Como salienta o professor e tradutor André Medina Carone, estudioso, como a mãe, da prosa científica de Freud (sobre a qual fez sua tese de doutorado em filosofia), “Luto e melancolia” jamais foi publicado como livro pelo próprio autor, e seu aparecimento ao lado da contribuição de outros autores reproduz, de maneira pertinente, a condição polifônica que era aquela das primeiras publicações de seus textos na época, em geral em revistas reunindo textos de seus discípulos.

A psicanalista e tradutora Marilene Carone fez seus estudos de psicologia na Universidade de São Paulo e na Universidade de Viena. Foi na Áustria que ela iniciou o estudo da psicanálise, que mais tarde, já de volta à capital paulista, a levou a empreender uma formação no Instituto Sedes Sapientiae, no qual depois viria a atuar como professora. Marilene em primeiro lugar dedicou-se à tradução de Memórias de um doente dos nervos (Graal, 1984), o livro de Daniel Paul Schreber cuidadosamente estudado por Freud em seu “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia” (1911). Com a intenção de verter para nossa língua a totalidade da obra freudiana, ela voltou-se em seguida para outro forte texto, “A negação”, de 1925, antes de realizar a tradução de “Luto e melancolia”, seguida daquela das “Conferências introdutórias à psicanálise” (1916-1917), concluída pouco antes de seu precoce falecimento por um tumor cerebral, em 1987. A Cosac Naify já trabalha na edição de “A negação”, que também trará a contribuição de outros autores, e pretende em seguida publicar o mais longo e último texto traduzido por Marilene Carone.

A entrada dessa editora no campo da psicanálise é, sem dúvida, motivo de contentamento e expectativa por parte dos leitores, até hoje apenas parcialmente atendidos pelas versões brasileiras. Parte da obra freudiana foi traduzida no Brasil já nos anos 1940 pela editora Delta, tendo como base versões francesas e espanholas. Na versão completa e oficial da Imago, dos anos 1970, realizada a partir da tradução inglesa de James Strachey, seria questionável a ausência de confronto imediato com o original alemão, mas isso ficava em segundo plano diante do amadorismo da tradução promovida pela editora, que deteve os direitos de publicação até 2010. Na cena internacional, Bruno Bettelheim e outros autores chamavam a atenção, no início da década de 1980, para o enviesamento cientificista da tradução inglesa, que buscava tornar o revolucionário e perturbador pensamento freudiano mais palatável para os meios científicos anglo-saxões. Nesse mesmo momento, começa a ganhar espaço no Brasil o retorno a Freud empreendido por Jacques Lacan, impondo respeito à literalidade da obra freudiana, o que não era propriamente a tônica na cena psicanalítica dominada pela ipa, a International Psychoanalytical Association, fundada pelo próprio Freud em 1910.

Nesse contexto inscreve-se um artigo de Marilene Carone, publicado na Folha de S.Paulo em 1985, que denuncia a aterradora qualidade da tradução na Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Freud. A psicanalista mostrava que essa versão nem sequer merecia o tipo de análise inaugurado por Bettelheim, pois comprometia a recepção e o estudo do texto freudiano com erros muito mais primários e grosseiros. “Trata-se pura e simplesmente de falta de competência e responsabilidade no trabalho intelectual”, julgava Marilene, para acrescentar, jocosa, que para o leitor brasileiro Freud falaria “como um personagem dublado de filme de televisão”1. Não apenas a fluidez e estilo do texto freudiano seriam massacrados, mas também sua coerência conceitual. Tratava-se, definitivamente, de uma “tradução selvagem”, cheia de barbarismos e deturpações e que chegaria a criar noções estapafúrdias, ausentes no pensamento do autor.

Em sua introdução a “Luto e melancolia”, Marilene Carone compara a tarefa de tradução àquela do psicanalista, na medida em que ambas envolveriam um “trabalho de interpretação de texto” e buscariam manter uma certa neutralidade (p. 38). A tradutora afirma que é inevitável que transpareça, contudo, em tradução como em análise, a formação e os posicionamentos teóricos e técnicos do tradutor ou do analista. Se a neutralidade absoluta não é mais que uma quimera, isso não alarga a liberdade do intérprete, antes pelo contrário: ao tradutor, assim como ao analista, cabe identificar as balizas e os limites que o “texto” em questão impõe por si mesmo, e ser fiel a eles. Imbricada à experiência clínica da psicanalista, tal concepção de tradução precipita-se em uma versão em português que é duplamente rigorosa: fiel tanto à conceitualização freudiana quanto à prosa ensaística que a torna fluida e literariamente “tocante”. Ela representa, portanto, o feliz encontro de duas posturas habitualmente tomadas como opostas no tratamento dado à obra do mestre: aquela que privilegia a literalidade do texto e aquela que se preocupa com a qualidade literária de sua transposição para outra língua.

“Luto e melancolia” é, sem dúvida, um texto privilegiado para o desdobramento dessa sofisticada proposta. Trata-se do último dos textos metapsicológicos escritos por Freud em 1914-1915, dos quais a metade foi destruída pelo autor. Seu embasamento clínico é evidente e seu alcance teórico não deixa por menos. O mais importante, contudo, é que ele mostra como poucos a força e a beleza do ensaio freudiano. Apesar da reflexão contundente e da consistência teórica, o texto em nenhum momento torna-se hermético ou árduo para o leitor, mesmo que este não possua conhecimento prévio em psicanálise. A genialidade freudiana está no difícil equilíbrio entre ousadia na teoria e generosidade na exposição, e para isso contribui o fato, sublinhado por Marilene Carone e tomado como a base de sua tradução, de que Freud “preenche de conteúdos novos palavras antigas, reconhecíveis no ‘modo popular’ de dar nome às coisas”, como lembra em sua nota Modesto Carone (p. 34-5). Hoje, é corrente entre os estudiosos a ideia de que “em Freud, a fronteira entre uma linguagem científica especial e a linguagem comum, não específica, é sempre móvel”, nas palavras do tradutor Paulo César de Souza2. Mas isso não garante que as traduções mais recentes dos textos fundamentais da psicanálise façam jus a essa mobilidade, nem tampouco que o uso desse vocabulário nas atuais investigações psicanalíticas seja leal à flexibilidade da linguagem freudiana. Ambos tendem a se aproximar mais da rigidez do conceito que da força (literária, mas ao mesmo tempo conceitual) do texto.

Assumindo tal extraordinária mobilidade da linguagem, Freud nega-se a apresentar uma explicação teórica inteiramente pronta e bem acabada, e é justamente na medida em que se arrisca no pensamento, mostrando seus percalços, que constrói um texto que não se endereça apenas a psicanalistas ou filósofos, mas a cada um de nós. E como bem aponta Maria Rita Kehl em sua apresentação, “o mérito de um texto bem escrito é, sobretudo, ético: liberta o leitor” (p. 9).

TRABALHO DO LUTO E REBELIÃO MELANCÓLICA

Mais do que um estudo sobre as manifestações de luto e, em cotejamento com elas, sobre o quadro clínico da melancolia, trata-se em “Luto e melancolia” de um escrito fundamental sobre o eu (ou ego, como prefere a tradutora, alinhando-se à proposta do tradutor inglês James Strachey para das Ich). Freud faz uso do recurso metodológico conhecido como “princípio do cristal”, por ele exposto nas “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise” (1933): a psique, como um cristal, só mostra suas linhas de estrutura quando se quebra. Não existe, portanto, uma clara oposição entre normal e patológico. Enquanto não se quebrar, o cristal parecerá “normal” – entretanto, ele é composto de fraturas que, no momento em que alguma circunstância desencadeadora o fizer “cair”, guiarão o modo como ele se partirá.

Um ano após introduzir o conceito de narcisismo, que localiza o eu como objeto de amor para si mesmo e o delineia como reservatório do qual a libido pode ser enviada – e retirada – aos demais objetos, Freud nos mostra, com a melancolia, a face noturna desse jogo entre sujeito e objeto que pode chegar ao suicídio. Com isso, não se trata apenas de explicar o fenômeno do luto e o quadro clínico da melancolia e da depressão, mas de romper definitivamente com qualquer postulação empírica do indivíduo como idêntico a si mesmo e distinto do objeto (com o qual ele entreteria uma relação de complementariedade). O eu só se constitui ao preço de sua divisão: ele deve fazer-se objeto para si mesmo. E deve se amar, ou seja, a libido deverá tomá-lo como objeto. Mas Narciso também pode se odiar e chegar a abandonar ou aniquilar a si mesmo. Se seu apaixonamento é perigoso por sua exclusividade, como aponta a lenda grega, a escolha de objeto não basta para salvá-lo, pois o objeto deve ser perdido. Trata-se, fundamentalmente, em “Luto e melancolia”, de conceber o eu como um trabalho de perda do objeto.

De fato, uma das principais lições desse texto é a de que não basta que o objeto desapareça para que dele nos separemos. É necessário um verdadeiro trabalho psíquico de perda, chamado por Freud “trabalho do luto” – tarefa lenta e dolorosa através da qual o eu não só renuncia ao objeto, dele se desligando pulsionalmente, como se transforma, se refaz no jogo com o objeto.

Nesse sentido, “Luto e melancolia” traz uma estranheza fundamental que a leitura “diagnóstica” tende a esconder. Longe de consistir em uma unidade narcísica irredutível e capaz de assegurar alguma identidade, o eu não é mais do que um mosaico de traços de objetos perdidos, como uma mulher na qual seria possível reconhecer as características dos homens com os quais já se relacionou, na curiosa observação de Freud3. Tributário da perda do objeto, o eu se constitui apartado de si mesmo, e pode mais ou menos facilmente voltar a se “situar” no outro, exercitando suas identificacões plurais. Em “O Ego e o Id”, de 1923, o autor reconhece que no momento em que se debruçou sobre a melancolia não pôde perceber “a significação plena” da substituição de um investimento objetal por uma identificação, nem “quão comum e típico” é esse processo conformador do eu4.

A tristeza ou a depressão não são, portanto, quadros distintos de uma pretensa “normalidade” que se deva buscar restituir a todo custo. Elas podem ser o sinal de que um importante trabalho subjetivo está em marcha, operando a perda do objeto e implicando uma remodelagem do eu, à maneira do trabalho de luto. Esse é um ponto a ser sublinhado na atualidade, de modo a trazer modulações e nuances à crescente medicalização da tristeza, impulsionada pelo desenvolvimento dos antidepressivos nos últimos vinte e cinco anos e o interesse comercial dos laboratórios que os produzem.

O eu trata a si mesmo como um objeto, e é isso que lhe permite matar a si mesmo, fazendo talvez de todo suicídio um autoassassinato (Selbstmord, em alemão, traz esse significado literal). Na melancolia mostra-se em toda a sua radicalidade algo estrutural, mas habitualmente encoberto: o eu se toma como objeto de crítica e mortificação, graças a uma identificação com o objeto perdido, e assim, ao queixar-se de si mesmo, “dá queixa” do objeto (“queixar-se é dar queixa” (p. 59), na engenhosa tradução de Carone para o jogo de palavras freudiano “ihre Klage sind Anklagen“). Freud já havia, com o narcisismo, delimitado duas partições no campo do eu: um ideal, imagem de uma perfeição que lhe teria sido subtraída, e uma instância crítica que compararia constantemente o eu “real” a tal ideal, exigindo que ele deste se aproxime. Na atividade de tal instância crítica, a melancolia desenrola uma força destrutiva que, alguns anos mais tarde, Freud nomeará pulsão de morte. Em 1923, ela será ligada à crueldade da instância rebatizada como supereu (ou superego), e um ano mais tarde o psicanalista poderá rever sua concepção do masoquismo de modo a mostrar que o eu pode, sim, apresentar de saída impulsos destrutivos contra si mesmo, sem passar necessariamente pelo sadismo (dirigido ao objeto) como um estágio preliminar.

Na melancolia, o eu se revolta contra a perda, em vez de engatar um trabalho de luto através do qual possa a ela se con-formar, identifica-se maciçamente ao objeto perdido, a ponto de se deixar perder junto com ele. Tal rebelião é o cerne da melancolia e pode se instalar como uma “ferida aberta” (p. 71) que suga a libido e dolorosamente empobrece o eu. Se essa atitude se opõe ao trabalho de luto, ela não deixa, porém, de consistir também em um “trabalho” que “consome” o eu, nos termos de Freud (p. 53). A suspensão da perda por uma radical entrega do eu ao objeto também é uma tarefa psíquica dinâmica, e em consequência dela o quadro melancólico pode se reverter em um episódio de mania, caracterizado por exaltação e agitação extremas. Tal alternância, conhecida pela expressão psicose maníaco-depressiva – ou pelos termos, atualmente mais usados, distúrbio bipolar -, mostra que se pode passar de um estado no qual o eu está quase inteiramente subjugado pelo objeto para uma situação na qual o eu teria “superado a perda do objeto (ou o luto pela perda, ou talvez o próprio objeto)” (p. 77). Talvez o eu possa até, nesse momento, reconhecer-se como melhor, “como superior ao objeto”, diz Freud (p. 85).

PERDA E DELEITE

Seja como for, o menor contato com pacientes em quadro maníaco mostra-nos quão longe ele está de ser positivo e invejável. O triunfo maníaco tem, assim como a apatia melancólica, algo de mortífero e intratável. Ambos deixam a porta aberta ao gozo, tão bem expresso por Freud ao falar do “autotormento indubitavelmente deleitável” da melancolia (p. 67). Na tradução desta expressão-chave, Marilene declina toda a sua maestria. O termo usado pelo autor, Genuss, que pode ser traduzido como gozo na esteira da jouissance em Lacan, não indica propriamente “prazer”, mas algo que está além – ou aquém – da distinção entre prazer e desprazer, algo que, sendo um sofrimento, é ao mesmo tempo um deleite. As novas traduções de Paulo César de Souza (pela Companhia das Letras) e da equipe de Luiz Hanns (pela Imago) optam por “prazeroso” e com isso perdem a oportunidade de distinguir o termo de Lust, muito mais frequente no texto freudiano e claramente referenciado a Lustprinzip (princípio de prazer). Carone acerta em cheio ao se valer das nuances semânticas que fazem de deleite algo muito mais complexo, digamos, menos imediata e diretamente sentido como prazer, ao mesmo tempo em que dão à palavra uma conotação vagamente erótica. A etimologia confirma nossas suspeitas por uma via surpreendente, confirmando a sabedoria da língua: o termo latino delectare vem de lactare, “embalar, seduzir, induzir”, que por sua vez deriva de lacere, que significa “atrair, seduzir” e se relaciona com lax lacis: “astúcia, fraude, sedução” 5. O deleite de que se trata, e que a melancolia tão bem explicita, tem a ver com o momento em que o bebê é um objeto inteiramente submetido a quem dele cuida (embala, digamos), e assim se inscreve no campo conceitual que Freud desde o início aponta com a noção de trauma e de sedução: aquele da pulsão de morte.

A melancolia, portanto, muito além de um quadro clínico bem definido e a ser diferenciado dos episódios depressivos variados que dão notícias de nosso trabalho de luto cotidiano, é uma noção que traz à tona algo fundamental ao humano, às suas paixões. E à Cultura. Disso já dava notícias a concepção de melancolia surgida na Grécia antiga e suas derivações ao longo da história ocidental até as vésperas, digamos, do surgimento da psicanálise. Como apresenta Urania Tourinho Peres em seu posfácio, no Renascimento a melancolia começou a ser associada à criação artística. Freud também a associará com a arte em um pequeno texto escrito poucos meses depois de “Luto e melancolia” e que talvez seja seu mais belo ensaio: “Sobre a transitoriedade”. Em um passeio primaveril com Lou Andreas-Salomé e o jovem Rainer-Maria Rilke, Freud se espanta que o poeta esteja impedido de fruir a beleza da paisagem pelo melancólico pensamento de que tudo isso em breve seria destruído com a chegada do inverno. Ora, afirma o psicanalista, o fato de a beleza ser passageira só aumenta seu valor! O deleite que ela nos proporciona é mesclado de luto, de renúncia, da expectativa de uma perda iminente. “O doloroso também pode ser verdadeiro”, retruca Freud diante da revolta contra a perda6.

A arte não nos poupa as impressões mais dolorosas, e no entanto pode ser vivida como um deleite superior, como nota Freud falando especialmente da tragédia, em “Além do princípio de prazer”. Tal gozo talvez seja o sinal inconteste de que houve transmissão de algo tão doloroso quanto “verdadeiro”. Entre dor e deleite, de fato – entre luto e melancolia, se quisermos – se trama em nossa vida alguma “verdade” e alguma beleza.

Notas

1 CARONE, Marilene. “Freud em português: uma tradução selvagem”. Folha de S.Paulo, caderno “Folhetim”, 21/04/1985, p. 3-4. (Posteriormente reproduzido em Souza, Paulo César de (org.). Sigmund Freud e o gabinete do dr. Lacan. São Paulo: Brasiliense, 1989.)
2 SOUZA, Paulo César de. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo: Ática, 1999, p. 77.
3 FREUD, Sigmund. “O Ego e o Id”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
4 Ibidem, p. 41.
5 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
6 FREUD, Sigmund. “Vergänglichkeit”. Gesammelte Werke, p. 359.

Tania Rivera – Psicanalista, ensaísta e professora da Universidade Federal Fluminense.

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Capital and the debt trap: learning from cooperatives in the global crisis – SANCHEZ; ROELANTS (NE-C)

SANCHEZ, Claudia; ROELANTS, Bruno. Capital and the debt trap: learning from cooperatives in the global crisis. Hampshire: Palgrave Macmillan, 2011. Resenha de: SINGER, Paul. O capital e a armadilha da dívida. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.93, Jul, 2012.

Em Capital and the debt trap: learning from cooperatives in the global crisis, Claudia Sanchez e Bruno Roelants analisam a transformação que o capitalismo sofreu pela globalização da economia mundial que coincidiu com o triunfo da contrarrevolução neoliberal no chamado Mundo Livre, num momento em que a Guerra Fria se aproximava de seu auge e também do seu fim, no final dos anos 1970. Os autores também oferecem uma análise da presente crise econômica internacional à luz das mudanças trazidas pela Terceira Revolução Industrial – a da informática e da internet -, que tornaram possível a hegemonia do capital financeiro em plano mundial, matriz de crises sucessivas que lhe são inerentes. O que aparece às classes dominantes como “sociedade do conhecimento” se torna exclusão, principalmente pelo desemprego, para os trabalhadores.

Enquanto a série de crises iniciada em 2007 tem atraído todas as atenções, um capitalismo de novo tipo surge da penumbra, produto da desregulação do capital financeiro e de nova onda de privatização dos principais serviços públicos que, por sua essencialidade para a sobre vivência dos mais pobres, serviços sociais porque deveriam ser acessí veis a todos. A sua privatização, agora justamente nos países mais afetados pela crise e, portanto, pelo desemprego, exclui do uso desses serviços os menos aquinhoados, aprofundando a desigualdade e, por tanto, a injustiça social o que explica a expansão mundial dos “indignados”, em sua maioria jovens que percebem que o capital financeiro, simbolizado por Wall Street, e suas crises lhes roubam um futuro que as conquistas democráticas das gerações anteriores deve riam ter-lhes assegurado.

A redução dos controles nacionais das trocas comerciais e da movi mentação dos capitais especulativos entre os países afiliados à omc e ao fmi removeu os obstáculos à centralização global dos capitais. Atualmente, cadeias internacionais de produção e distribuição de bens e serviços, interligadas por conglomerados financeiros, dominam segmentos inteiros da economia mundial, o que explica a subserviência de governos nacionais democraticamente eleitos às exigências do capital financeiro global, representado por agências intergovernamentais como o fmi e o Banco Central Europeu.

O livro procura descrever a trajetória que está sendo construída pelas crises sucessivas, implicando maior destruição do que geração de riqueza. Essa trajetória é composta por três armadilhas que se fecham sequencialmente, aprisionando os que se endividaram porque acreditaram que a oferta de crédito pelos bancos jamais seria interrompida.

A primeira armadilha é a do consumo. Nos EUA, a renda da população trabalhadora estagnou, sem interrupção, no entanto, do crescimento do consumo. Entre 1992 e 2000, o crescimento do pib se baseou principalmente no aumento das compras a crédito de moradias e automóveis. Em 1990, a soma das dívidas das famílias nos EUA era igual a 85% de sua renda;dez anos depois a soma das dívidas já era igual a 101% de sua renda. Em 2007, quando estourou a crise, as dívidas das famílias comprometiam 139% de suas rendas. A desregulamentação financeira permitiu que o povo “prosperasse” enquanto o país se desindustrializava. Quando a demanda por imóveis e automóveis naturalmente se esgotou, a armadilha do consumo aprisionou milhões de famílias, muitas das quais foram duplamente punidas: perderam o trabalho e os bens adquiridos.

A segunda armadilha é a da liquidez. Quando a crise se desencadeia, os empréstimos cessam, inclusive entre os bancos, porque ninguém mais confia em que eles serão pagos no vencimento. A quase bancarrota dos maiores bancos acarreta a paralisação do crédito, ou seja, quase todas as compras têm de ser pagas imediatamente com dinheiro. Ora, como ninguém tem dinheiro porque a crise acarreta forte queda das atividades com as quais os consumidores ganham seu dinheiro, o volume de compras se contrai. Os que ainda ganham tratam de guardar o seu dinheiro em casa, embora lá ele não renda:o pânico sobrepuja a cobiça. O meio circulante é entesourado, portanto deixa de circular, exceto o pouco dinheiro gasto com compras de bens e serviços indispensáveis.

Os efeitos conjugados das armadilhas do consumo e da liquidez compõem a terceira armadilha: a da dívida. São suas vítimas não só os consumidores que se endividaram, mas todos os outros que tomaram empréstimos para investir. Nos EUA, a hegemonia financeira fez com que o recurso às dívidas se generalizasse:a informática tornou a participação nas operações da Bolsa muito fácil, de modo que a especulação financeira virou um esporte de massas. “Pela primeira vez na história da humanidade”, afirmam os autores, “a especulação é a principal fonte de geração de renda. As firmas de Wall Street haviam assumido dívidas num total equivalente a 32 vezes o seu capital próprio. ”

A financeirização (isto é, o crescimento não só do volume de dinheiro manipulado pelo setor financeiro como também da influência e, sobretudo, do poder econômico e político dos bancos e fundos de investimento) deslocou o controle das empresas dos diretamente interessados – acionistas, assalariados, gerentes, fornecedores e clientes – para os credores, que frequentemente assumem o papel de controladores do capital acionário da empresa. Os credores, no entanto, não participam diretamente da vida da firma e tampouco têm interesse em sua continuidade. Quando se tornam controladores, o seu único objetivo é recuperar o que emprestaram e o máximo de ganhos adicionais. Por causa disso, o controle de empresas da economia real – industriais, agropecuárias, comerciais e prestadoras de serviços à população – pelo capital financeiro acarreta muitas vezes o seu fechamento prematuro.

O processo se acentuou em 1992, quando o governo dos EUA pediu aos fundos de pensão (que estavam subcapitalizados) que tratassem de reestruturar e extrair o máximo de lucro de qualquer empresa no exterior em que haviam investido. A ocasião era propícia, pois a crise do endividamento externo nos países em desenvolvimento, particularmente nos da América Latina, os havia forçado a abrir suas economias e suas empresas recém-privatizadas à aquisição por estrangeiros. Os bancos da tríade EUA, Europa e Japão participaram ativamente dessa globalização, engajando-se em fusões e aquisições. Os bancos que não se lançaram nessas empreitadas logo foram adquiridos por outros1.

Criou-se assim uma nova contradição:a concentração do capital, frequentemente por iniciativa do capital financeiro, fez com que surgisse uma nova classe de firmas consideradas grandes demais para falir. São firmas de tal forma interligadas financeiramente que se alguma das maiores falir leva consigo todas as demais. Isso se verificou na prática em setembro de 2008: a quebra do banco Lehman Brothers contagiou os maiores bancos de investimento, fazendo com que a crise financeira, até aquele momento restrita aos EUA, se alastrasse pelo resto do mundo. A epidemia de falências só não ocorreu porque os governos nacionais injetaram trilhões de dólares nos bancos para salvá-los.

A submissão de uma parte cada vez maior das empresas a capitais financeiros, para os quais elas não passam de veículos para a obtenção de ganhos especulativos de curto prazo, as torna mais vulneráveis às crises produzidas pelo fechamento das armadilhas do endividamento. Para o bem comum, no entanto, toda empresa deveria ser controlada

por aqueles diretamente interessados em sua continuidade e em sua robustez produtiva, comercial e financeira. Um indício dessa mudança de opinião é a recente concessão do Prêmio Nobel de Economia a Elinor Ostrom, notória defensora da tese de que a administração dos recursos que são propriedades comuns da coletividade deve ser confiada a quem está realmente interessado em sua preservação, ou seja, à própria coletividade. Ela constata que “falta uma teoria adequadamente especificada da ação coletiva pela qual um grupo de interessados pode se organizar voluntariamente para reter os resultados de seus esforços”.

Sanchez e Roelants oferecem elementos para a construção dessa teoria mediante o estudo de quatro cooperativas, que são exemplos representativos de ações coletivas voluntariamente organizadas e que obtêm êxito em se resguardar das crises engendradas pelos excessos especulativos dos capitais financeiros. Embora distintos, os quatro casos são bastante representativos de diferentes facetas do cooperativismo contemporâneo.

O primeiro é o de uma cooperativa de mergulhadores e pescadores localizada em Natividad, uma pequena ilha na costa do México, em que moram cerca de oitenta famílias, que vivem da captura de abalones, um marisco muito raro e valioso. Criada em 1942, a cooperativa explora áreas marítimas por concessão do governo. Nos anos 1980, a corrente marítima El Niño aqueceu as águas nessas áreas, o que reduziu o estoque de mariscos, levando à superexploração das reservas de abalones tanto pela cooperativa como pela pesca ilegal de gente de fora. No fim da década a cooperativa conseguiu controlar as práticas predatórias e evitar se envolver numa corrida por ganhos em curto prazo. Adotou uma abordagem científica ambiental e contratou um biólogo. Durante a crise, a assembleia de sócios da cooperativa decidiu fechar uma zona marítima à pesca por quatro anos. Graças à cessação da pesca, os abalones se reproduziram. Quando a pesca nessa zona foi retomada, a cooperativa obteve mais benefícios do que havia sido esperado.

O biólogo da cooperativa propôs que ela investisse em reservas marítimas, tendo em vista assegurar que no futuro houvesse disponibilidade de abalones, pepinos-do-mar e caracóis marítimos. A proposta foi aprovada e a cessação da pesca em determinado espaço reduziu a receita anual da cooperativa em 300 mil dólares, mas os membros esperam que o sacrifício seja compensado no futuro. As concessões de pesca deverão ser renovadas em 2012, e os membros da cooperativa têm bons motivos para esperar que consigam a renovação, o que lhes permite planejar a longo prazo a preservação das áreas de pesca e o desenvolvimento da cooperativa.

O segundo caso estudado é o da Ceralep, uma empresa francesa de pequeno porte fundada em 1921 que produz isoladores de cerâmica. Em 1973 ela se fundiu com outro importante produtor e desde então se tornou a única companhia na França que produz isoladores cerâmicos muito grandes. Em 1989, a Ceralep foi adquirida pela firma suíça Laufen, que a revendeu em 1993 à austríaca Ceram. Essas transações sucessivas fizeram a Ceralep passar por três controladores de diferentes nacionalidades no espaço de vinte anos. Tanto os suíços como os austríacos tentaram debalde se apoderar da tecnologia dos isoladores cerâmicos.

Em 2001, a Ceralep passou a ser controlada pela firma estadunidense ppc Insulators, que começou a agir de forma estranha:demitiu o diretor, mas atendia sem hesitação os pedidos de aumentos salariais dos empregados. A produção caiu muito e os trabalhadores não tinham o que fazer, o que os envolveu num clima extremamente desmoralizante, que se agravou quando os empregados descobriram que a ppc Insulators planejava fechar a Ceralep. É preciso compreender que o fechamento de uma firma que funcionava com êxito há oitenta anos deve ter sido um evento trágico para seus empregados, muitos dos quais passaram grande parte de suas vidas nela e certamente não viam qualquer perspectiva de emprego em outra firma2.

Os operários decidiram resistir à liquidação da empresa. Impediram diversas tentativas de remoção de máquinas bloqueando a entrada de caminhões na fábrica. Estas ações impediram efetivamente os controladores de fechar a firma, levando-os a entregar, em 2003, uma petição de falência, o que possibilitou mais tarde a compra da massa falida pelos empregados. Estes imediatamente escreveram uma carta aberta ao promotor distrital, ao síndico da falência e ao prefeito do departamento de Drôme denunciando que a administração e os acionistas tencionavam quebrar a empresa e condenar os 150 operários e o tecido econômico e social do distrito de Saint-Vallier.

Começou então uma batalha para evitar a destruição da Ceralep. Os trabalhadores se mantiveram unidos e contaram com a ajuda da União Regional de Cooperativas Operárias e da gente simples da comunidade: 802 pessoas doaram um total de 50 mil euros para integrar o capital de giro da futura cooperativa; o fundo francês Socoden de solidariedade das cooperativas operárias emprestou 100 mil euros; o banco cooperativo Crédit Cooperatif também contribuiu até que o milhão e meio de euros necessário para estabelecer a cooperativa fosse reunido.

Os apoios obtidos que ajudaram a impedir o fechamento da Ceralep e asseguraram sua continuidade na forma de um empreendimento cooperativo autogestionário confirmam a veracidade das afirmações contidas na carta aberta dos trabalhadores: a ameaça do fechamento da Ceralep de fato condenaria não só os 150 operários da empresa como também o tecido econômico e social da região.

Todas as autoridades públicas da região, da municipalidade e a associação de municipalidades apoiaram o projeto dos operários, dando-lhe uma ajuda substancial. A racionalidade da Ceralep foi distorcida por investidores absenteístas em ininterrupta sucessão, que se tornaram controladores à distância e trataram a firma como uma ficha trocável numa cadeia global de suprimentos. Esta racionalidade levou a firma à bancarrota. Uma vez removida a causa, a companhia na forma de cooperativa está indo bem, pois o controle foi entregue aos diretamente interessados.

O terceiro caso estudado no livro em exame é o do Grupo de Cooperativas de Crédito Desjardins, que é a mais importante instituição financeira da província canadense de Québec e a sexta maior do Canadá. Com ativos no valor de us$ 155,5 bilhões, é um dos principais atores financeiros e econômicos da nona maior economia do mundo. Desjardins é também o maior empregador privado de Québec com 39 mil empregados e está entre os maiores empregadores do Canadá, com um total de 42 mil empregados no país. Apesar de todo esse poderio econômico, financeiro e empresarial, Desjardins não procura maximizar o retorno sobre o investimento dos acionistas, mas assegurar serviços satisfatórios para os seus 5,8 milhões de membros proprietários, dos quais 5,4 milhões em Québec, que constituem 70% da população da província.

O Grupo Cooperativo Desjardins, criado há 110 anos para atender às necessidades financeiras de pequenos agricultores, produtores e assalariados, é formado por 481 cooperativas de crédito locais autônomas, que em conjunto o possuem e controlam. Os autores se detêm na história do Grupo Desjardins porque se trata de um dos maiores conglomerados financeiros do mundo que, num período em que o capital financeiro se globaliza e conquista incontrastável hegemonia na economia capitalista mundial, se mantém fiel à sua missão cooperativa e a seus membros-clientes pertencentes às classes trabalhadoras, sem com isso perder a competitividade.

O Grupo Desjardins conseguiu democratizar e descentralizar os serviços financeiros, tornando-os acessíveis a todas as classes e os difundindo pelas comunidades locais de Québec. Fez com que várias gerações de quebequenses aprendessem a agir coletivamente para desenvolver suas economias locais e adquirissem através de suas caisses scolaires os conhecimentos básicos de como poupar. Atualmente, 6 258 presidentes e membros de diretorias das cooperativas de crédito locais aprenderam como um banco funciona e são responsáveis pela sua supervisão.

O grupo desenvolve uma oferta integrada de crédito a meio milhão de negócios, que são seus clientes. Para alcançar tais resultados, teve de construir delicado equilíbrio entre as imposições da concorrência financeira e os seus objetivos sociais e entre a segurança financeira de longo prazo de seus membros e as aspirações de curto prazo de seus membros dos mesmos. Ao fazer isso, Desjardins se opõe às armadilhas do consumo e da dívida analisadas acima. Na realidade, não gera risco sistêmico, mas apoia o desenvolvimento econômico e social de longo prazo e promove a igualdade e a confiança.

A estruturação das caisses num agrupamento horizontal desencadeou um forte potencial econômico e social; em vez de permanecerem estruturas isoladas, como eram no começo e poderiam ter permanecido, as cooperativas de crédito locais do Grupo Desjardins conseguiram criar um dos maiores grupos financeiros da América do Norte, sem perder sua capilaridade e continuando totalmente dedicadas à prestação de serviços ao cidadão local e aos negócios locais. A tendência a um excesso de fusões foi controlada, o perigo de que as subsidiárias – seguradoras, fundos de capitalização e fundos de investimentos regionais – pudessem aumentar sua influência em termos de gestão tecnocrática foi igualmente evitado por uma série de reformas de governança sucessivas que incrementou o controle sobre as subsidiárias.

Ao expandir a lógica cooperativa de priorizar a base das cooperativas locais para um sistema tão amplo como a província de Québec, com seus quase 8 milhões de habitantes, Desjardins foi o promotor de uma mesoeconomia, tendo sido por mais de um século um dos principais atores no desenvolvimento de comunidades locais em Québec, além de ter desempenhado um papel-chave na estabilidade financeira do Canadá. Além disso, contra as assimetrias de informação, que muitos interessados sofrem, como é o caso de clientes de grandes instituições financeiras, onde a confiança dos clientes está sendo superada por arranjos opacos e segmentados de contrapartes, Desjardins não apenas nutre a noção de um movimento de proprietários-clientes ao qual se dedica, mas fornece aos últimos informações sobre o grupo de negócios, textos de discussão para ajudá-los a formar opinião na tomada de decisões e lhes oferece treinamento para ajudá-los a administrar suas cooperativas locais. A história de Desjardins também demonstra que crises sucessivas, como a Grande Depressão de 1929, várias crises nos anos 1980 e 1990, e a atual crise global, em vez de ameaçar a existência do grupo de fato a reforçaram, além de lhe dar oportunidade de realizar inovações institucionais e melhorar sua missão fundamental: a de servir seus membros.

O quarto e último caso teve por objeto o Grupo Corporativo Mondragon. Trata-se de um grupo horizontalmente integrado por mais de 110 cooperativas industriais, de serviços, finanças, distribuição, educação e pesquisa, centrado na cidade de Mondragon, na região basca da Espanha. Em 2010, era um grande conglomerado produzindo eletrodomésticos, máquinas-ferramentas, componentes de computadores, mobília, instalações de escritório, materiais de construção, transformadores, componentes de automóveis, moldes para ferro fundido, sistemas de resfriamento, equipamento médico, alimentos e outras manufaturas. Desenvolve uma série de atividades de serviços como engenharia, urbanismo, pesquisas em setores industriais, nanotecnologia, e compreende uma grande cadeia de supermercados, um banco e uma universidade. É considerado o maior complexo cooperativo do mundo, sendo a maior organização empresarial do País Basco e a sétima da Espanha.

A criação do Grupo Corporativo Mondragon foi inspirada pelo padre José Maria Arizmendiarreta, que em 1941, aos 26 anos, tornou-se pároco de Mondragon, dois anos após a guerra civil que havia ensanguentado a Espanha, na qual combateu ao lado dos republicanos. A pobreza reinava em Mondragon, cuja única grande empresa era uma metalúrgica que oferecia uma escola profissional para os filhos de seus operários. O jovem pároco tentou convencer a família proprietária da empresa a abrir a escola aos demais jovens da cidade, mas não teve êxito. Partiu então para a fundação de outra escola profissional, aberta a todos os moradores de Mondragon. Para obter os recursos necessários o padre promoveu uma campanha bem-sucedida de contribuições entre a população, recebendo apoio de 15% de seus moradores.

A nova Escola Politécnica foi a matriz do complexo cooperativo: cinco ex-alunos adquiriram – também com a ajuda da população – uma empresa falida, que se tornou a cooperativa ulgor, fundada em 1956. O padre ajudou na empreitada e desde então passou a ser uma espécie de orientador espiritual da cooperativa. Um dos princípios adotados foi limitar o tamanho da cooperativa para que a autogestão da mesma pudesse contar com a participação consciente de todos os sócios. Quando a ulgor passou a crescer, estimulada pela demanda por seus produtos, partes dela se separaram e foram transformadas em novas cooperativas: a Arrasate, fundada em 1958, fabrica máquinas-ferramentas; fundadas em 1963, a Copreci produz componentes de fogões domésticos e industriais e a Ederlan produz peças fundidas. As três eram parte da ulgor e continuaram vendendo quase toda sua produção para esta última.

As cooperativas desmembradas foram unidas à cooperativa matriz, formando todas uma cooperativa de segundo grau; nesta os excedentes das cooperativas singulares são somados e redistribuídos por igual a cada uma, o que facilita a formação dos preços que as cooperativas fornecedoras cobram da cooperativa matriz pelos produtos que lhe fornecem. Quarenta e cinco por cento dos excedentes são colocados em um fundo de reserva destinado principalmente a financiar novos investimentos3.

Essas regras colocam os interesses da coletividade claramente acima dos interesses individuais, tanto das cooperativas singulares como dos sócios. A elas deve ser atribuída a notável coesão que permitiu ao grupo se desenvolver notavelmente ao longo dos últimos 55 anos. Com o aumento do número de cooperativas, o grupo criou instituições de apoio, na forma de cooperativas de segundo grau cujos sócios são as cooperativas singulares. Em 1959, por insistência do padre Arizmendi, foi criada a Caja Laboral Popular – uma cooperativa de crédito que hoje é o grande banco do grupo, cuja divisão empresarial incuba as novas cooperativas4.

Os órgãos de direção de cada cooperativa de segundo grau são formados por representantes dos trabalhadores da própria cooperativa e dos trabalhadores das cooperativas singulares, geralmente em proporções iguais. Em 1969, a Caja promoveu a fusão de nove pequenas cooperativas de consumo, dando origem à Eroski, hoje a maior empregadora do grupo e uma das maiores redes de supermercados da Espanha. Enquanto cooperativa de consumo, sua direção é partilhada por igual por representantes dos consumidores associados a ela e dos trabalhadores que nela atuam.

O tema central do estudo de Mondragon é o efeito das crises sobre o grupo cooperativo e de que modo este as enfrentou. Em 1986, a Espanha aderiu ao Mercado Comum Europeu, abrindo o seu mercado interno às importações dos outros integrantes do Mercado Comum. A entrada dessas mercadorias no país captou boa parte da clientela que antes comprava os produtos da indústria nacional, inclusive das cooperativas do grupo de Mondragon. A crise se manifestou na forma de aguda queda das vendas, obrigando as cooperativas atingidas a reduzir a produção, deixando parte dos seus sócios sem trabalho.

O grupo cooperativo enfrentou a crise priorizando a preservação dos empregos. O caso de cada cooperativa atingida pela crise era estudado pela Caja em conjunto com a Lagun Aro, a cujo cargo estava o pagamento de seguro-desemprego aos associados. O salvamento dessas cooperativas geralmente exigia mudanças da linha de produção ou da estrutura de marketing, corte dos salários e/ou reforço do capital da cooperativa mediante contribuições dos trabalhadores. Apenas em casos extremos exigia-se redução de postos de trabalho. As propostas de medidas para o enfrentamento da crise eram submetidas a extensas consultas aos membros das cooperativas ameaçadas e naturalmente surgiam contrapropostas, o que exigia votações sucessivas até a formação de um consenso.

O êxito econômico inegável de cooperativas de modestos ceramistas, como no caso da Ceralep, ou de não menos modestos pescadores e mergulhadores, como os da cooperativa de Natividad, combina perfeitamente com a pujança de extensos complexos ou corporações, como demonstram os casos de Desjardins e de Mondragon. Em pequena ou grande escala, as cooperativas são viáveis mesmo quando enfrentam circunstâncias inóspitas das crises provocadas pelo capital financeiro desregulado. Sua capacidade de resistir a quedas inesperadas da demanda é notável, resistência que é fruto sobretudo da solidariedade entre membros das cooperativas e das comunidades em que as cooperativas se localizam, como evidenciam os casos de Ceralep e Mondragon. É difícil exagerar a oportunidade e a importância desta obra. Ela merece a leitura atenta e o debate engajado de todos que se preocupam com os perigos e as oportunidades que a presente crise apresenta.

Notas

1 “Só em 1997 houve 599 fusões bancárias nos EUA, reduzindo o número total de bancos de cerca de 14000 para 9143.”
2 Um deles se suicidou na fábrica, deixando uma carta em que revelou que não suportava mais a pressão, muito provavelmente decorrente da espera inerte pelo fim de tudo que dava sentido a sua vida.
3 Esse fundo é indivisível, ou seja, jamais poderá ser dividido entre os sócios. Fundos indivisíveis são criados para garantir a sobrevivência da cooperativa, nos casos em que sócios resolvam se retirar dela. Estes têm direito a receber sua parte do patrimônio não indivisível. O dinheiro depositado no fundo indivisível continuará pertencendo aos sócios que permanecem na cooperativa. Os outros 55% dos excedentes são dos sócios, mas só lhes será entregue anos depois que deixar em a cooperativa.
4 Ainda em 1959, foi criada a Lagun Aro, a entidade de previdência do grupo. Na época as cooperativas estavam excluídas do sistema previdenciário oficial.

Paul Singer – Professor titular da fea-usp e titular da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES).

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Liberdade | Jonathan Franzen

Mesmo antes de sair nos EUA, em setembro de 2010, Liberdade já era objeto de atenção. O livro anterior de Franzen, As correções, de 2001, fizera bastante barulho: ganhou, entre outros, o National Book Award, principal prêmio literário do país, e transformou Franzen numa das promessas mais auspiciosas da literatura americana. Mal começaram a sair as primeiras resenhas elogiosas de Liberdade, Oprah Winfrey incluiu-o em seu clube de leitura, o Guardian pespegou-lhe o epíteto de “livro do século” e a revista Time estampou na capa uma foto do escritor acompanhada da legenda: “O grande romancista americano”.

Parte do frisson em torno de Franzen tem a ver com essa obsessão pelo “Grande Romance Americano”. É um fetiche entre os autores de lá e uma espécie de santo graal da literatura: o grande autor é aquele que consegue transferir para o romance os pontos nevrálgicos da experiência do país. A trinca sagrada da prosa americana da segunda metade do século fez isso: John Updike, Phillip Roth e Saul Bellow devem boa parte de sua reputação ao modo como plasmaram a experiência dos EUA num determinado recorte de sua obra. Em As aventuras de Augie March (1953), de Saul Bellow, por exemplo, lê-se na primeira linha: “Sou americano, nascido em Chicago…” .De saída estamos diante da tentativa de responder a essa pergunta:o que é ser americano?

Essa é uma tradição francesa do século XIX, a do homem de letras empenhado em responder às grandes perguntas do seu tempo. Com a transformação dos EUA em grande potência no século XX, a função se torna estratégica em face de uma experiência cuja ressonância assume escala mundial.

Franzen disputa o posto de herdeiro dessa tradição. O barulho da mídia é também reflexo da expectativa de que ele possa assumir o bastão dessa linhagem nobre em nome da nova geração. É importante lembrar que nessa transição ocorreram os atentados de 11 de Setembro.

Não é, portanto, apenas o lugar do novo grande romancista americano que está vago, mas o lugar do grande romancista capaz de dar sentido a uma experiência traumática. Em certa medida, um evento como esse contribui para injetar vitalidade à atividade de escritor, de pronto convocado ao papel de intérprete de seu tempo.

É uma ideia complicada. O que se pode esperar da literatura como forma capaz de plasmar essa experiência? Como a competição com as humanidades e a indústria do cinema, da internet e da televisão interfere na capacidade da literatura em dar sentido a esse debate? Esse livro aspira à condição de grande romance, mas o frisson em seu redor, para ser compreendido, deve ser visto ao lado do prestígio alcançado pelo romance no século XIX e início do XX e da nostalgia em relação à centralidade de que já desfrutou um dia.

É simples identificar o que em Liberdade permite situá-lo como herdeiro dessa tradição. São setecentas páginas que procuram tocar os nervos da experiência americana dos últimos trinta anos. Os governos Reagan, Clinton e Bush, o terrorismo, a questão palestina, o crescimento econômico desgovernado, o aquecimento global, o conflito entre gerações, a mercantilização da cultura, a explosão do mercado financeiro, o sistema de saúde, o politicamente correto nas universidades. O cardápio é tão variado que por vezes lembra uma lista de tarefas a cumprir.

O que o salva da condição de manual é a habilidade de Franzen em atar esses temas às funções que desempenham na trama, que é bem urdida e evolui com naturalidade.

O fio é a transformação do casal Walter e Patty Berglund em ruína sentimental e moral. Ela vem de uma família liberal endinheirada de Nova York em que jamais se integrou. Não se interessava por livros ou política:era jogadora de basquete e se dedicava com ardor a isso, apesar do desprezo da mãe. Foi por ser jogadora que obteve uma vaga numa faculdade de segunda linha, em Minnesota, no início dos anos 1980.

Walter, seu colega na faculdade, era filho de pai alcoólatra e mãe trabalhadora, dona de motel de beira de estrada numa cidade do interior. Mas era o esforçado da família, o primeiro a fazer curso superior, o moço abstêmio, inábil com as mulheres e não particularmente bonito. Mas ele vence pelo cansaço, e eles se casam no fim dos anos 1980, têm um casal de filhos e adotam uma vida de família burguesa em Minnesota.

O fator de tensão entre os dois, desde a faculdade, é Richard Katz. Richard era o melhor amigo de Walter e ao mesmo tempo seu antípoda. Era bonito, sexy e inconsequente. Walter, por outro lado, era um exemplo de lealdade e um esteio para o desregramento do colega. Desde aqueles anos, Patty cultivava uma paixão por Richard que não se concretizava em razão da lealdade entre os amigos. Resignada, Patty cedeu aos apelos de Walter menos por amor do que por falta de opção.

Ao longo de todo o livro, Richard permanece uma sombra para o casal. Muitos anos depois, numa casa de campo, Patty e Richard passam dois dias juntos e transam, por insistência de Patty. Um pouco depois, ao cabo de anos tocando para pouca gente e amargando fracasso atrás de fracasso, Richard grava um disco de sucesso e se torna uma figura hype no mundo da música.

Os dias que Patty passa com Richard e o sucesso dele mudam tudo na vida dos Berglund. Walter, com ciúme, torna-se competitivo. Ressentido com o silêncio do amigo, que parecia se afastar dele nesse período de bonança, muda de emprego e se aproxima de políticos de má índole. Patty, depois do caso com o amigo do marido, cai em depressão.

Há ainda a relação conturbada com os filhos. Joey, o mais velho, sai de casa na adolescência para morar com a namorada, a vizinha Connie Monaghan. Isso para desespero de Patty, que odeia a mãe de Connie e sobretudo o namorado dela. O sujeito é um machão truculento, vidrado em carros, armas, e simboliza o protótipo do americano tosco, da direita mais empedernida. É essa figura que vira influência para Joey: depois de dois anos na casa do vizinho, ele vai cursar economia, sonha trabalhar em Wall Street, resgata suas raízes judaicas e vira um republicano envolvido com interesses de Bush na invasão do Iraque.

O que prende a atenção é essa espiral em direção à desintegração, ao fracasso da relação, à sucessão de passos em falso em que a vida do casal vai se transformando. A estrutura romanesca é essa. E o que Franzen consegue construir em redor dela constitui o espírito de época que o romance, de modo mais abrangente, tenta capturar em sua busca pela vaga de herdeiro da linhagem mais nobre da tradição literária americana.

A parte mais substancial é dedicada à era Bush: são os dilemas pós-11 de Setembro que aparecem com mais força e que Franzen procura examinar de modo detido. A trajetória de Joey é exemplar disso: a descoberta do judaísmo e a vontade de explorar essa identidade vêm num contexto de reação ao terrorismo, num movimento que parece acompanhar o renascimento da direita conservadora americana logo após 2001. Sujeito oportunista, frio e incapaz de afetividade, Joey é um retrato pouco lisonjeiro dos quadros que a causa republicana é capaz de cativar.

Vale o mesmo para a onipresença do discurso ambientalista. O sarcasmo é grande e ocupa boa parte da trajetória de Walter Berglund. Desafiado pelo sucesso de Richard, Walter deixa o emprego numa unidade de conservação em Minnesota para encarar uma enrascada em Washington. Ele assume o Fundo de Conservação da Mariquita-Azul, na verdade uma grande piada. O fundo é invenção de um bilionário do Texas, amigo de Bush e Dick Cheney, interessado em vender reservas para empresas que exploram a extração de carvão, nocivas e poluentes. O tal fundo é uma cortina de fumaça, uma licença para destruir tendo como álibi a preservação da espécie. Ingênuo e bem-intencionado, Walter cai na arapuca – e é o nome dele que vai parar no New York Times quando fica claro o que está por trás do fundo da mariquita-azul.

Franzen é ornitólogo e adora observar pássaros, mas o ambientalismo do século XXI aparece em seu livro como tolice de gente bem-intencionada. Há acidez no modo como ele trata o discurso em defesa do controle de carbono, contra o aquecimento global e o crescimento demográfico. A crítica aos republicanos e à direita é evidente, mas também o discurso politicamente correto é alvo de sarcasmo.

A Nova York dos círculos letrados e progressistas que ele retrata, da mesma maneira, está longe de ser ambiente estimulante. Estão todos munidos de smartphones e ipods, prontos para consumir as novidades do mercado cultural sob a forma de “autenticidade” ou “atitude”. O personagem de Richard Katz é o veículo das críticas disparadas ao intelectualismo bem-intencionado e ao cinismo dos liberais endinheirados nos rooftops de Tribeca e do Chelsea. Não há autenticidade possível. A decisão de Katz de voltar a ser trabalhador braçal mesmo depois do sucesso de seu disco aponta nessa direção.

Nova York é também a síntese do que Patty odeia em sua família. Democratas, judeus heterodoxos e de cabeça aberta, seus pais aparecem, logo no início do livro, a cometer uma enormidade: adolescente, Patty foi estuprada numa festa por um colega de escola. Mas o garoto era filho de doadores importantes da campanha eleitoral de sua mãe, de modo que os pais se reconciliam com a família do agressor.

Liberdade ganhou pecha de ingênuo, como se a crítica aos republicanos fizesse de Franzen um autor a serviço do bom-mocismo da era Obama. O livro não pende para um lado só do espectro político nem faz proselitismo fácil, com uma ou outra exceção, como o modo esquemático com que retrata o sistema público de saúde, pauta evidente demais nos editoriais da imprensa democrata para não esbarrar no artificialismo. Mas não é ao acusar Franzen de esquerdista ingênuo que se fará boa crítica de seu trabalho.

O ponto em discussão diz respeito à forma do livro. Desse ponto de vista, é uma obra convencional. Da mesma maneira que a imagem de “homem de letras” em nome da qual a revista Time elogiava o autor é do século XIX, também do ponto de vista formal Franzen se movimenta num registro antigo. Ele dialoga pouco com a tradição do romance do século XX. Esse é um repertório que a ele não interessou incorporar e que pode ser visto como fraqueza de certo ponto de vista crítico. Está claro, contudo, que não teria obtido essa ressonância se fosse autor de um livro experimental, e aí pode haver boa dose de cálculo.

Há dois exemplos a esse propósito. Um é o primeiro parágrafo, cartão de visitas para qualquer obra de ficção. Outro é a maneira quase imperceptível com que tenta variar a voz narrativa em situações que a estrutura parece pedir isso. As primeiras linhas do livro dizem o seguinte:

A notícia sobre Walter Berglund não circulou localmente – ele e Patty tinham se mudado para Washington dois anos antes e já não significavam nada mais para St. Paul -, mas o povo de Ramsey Hill não era leal à sua cidade a ponto de deixar de ler o New York Times. […] Seus ex-vizinhos tiveram dificuldade em conciliar os adjetivos com que o Times o qualificava (“arrogante”, “presunçoso”, “eticamente comprometido”) com o vizinho generoso, sorridente e corado que viam pedalando até a condução para o trabalho todo dia […] Se bem que sempre tinha havido algo estranho na família Berglund.

Esse primeiro parágrafo é poderoso. Todas as setecentas páginas seguintes são dedicadas a mostrar como se deu essa queda que levou a família exemplar até as páginas de escândalo do Times, coisa que só acontece ao fim do livro, quando Walter atua como laranja dos republicanos interessados na extração de carvão. Mas é também um truque romanesco dos mais convencionais: o autor puxa um elemento decisivo do fim da história para as primeiras linhas, de modo a prender a atenção do leitor até que essa isca, lançada logo de início, se mostre em sua totalidade.

Vale comparar com uma abertura célebre, a de Anna Karenina, de Tolstói:

Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.

Na segunda linha, já se sabe que o narrador vai passar as páginas seguintes a contar uma desgraça familiar. Mais que isso:uma desgraça particular, que só poderia ter sido vivida daquela maneira.

Não é casual a comparação com Tolstói. Algumas páginas de Liberdade são dedicadas a paráfrases de Guerra e paz, que Patty lê em seu retiro na casa de campo. Como nos grandes livros de Tolstói, em Franzen o centro é também o drama familiar. Assim como na obra do escritor russo, há uma capacidade de conferir humanidade aos personagens que por vezes parece suspender a mediação do autor, como se a própria realidade se escrevesse de forma espontânea diante de nossos olhos.

As variações da voz narrativa são uma fragilidade mais evidente. Franzen sabe bem que o romance contemporâneo não pode prescindir de questionamento sobre a forma de narrar. Compõe seu livro, assim, a partir de dois narradores: um é onisciente, em terceira pessoa, bem aos moldes do romance do XIX. Outros trechos, contudo, são narrados por Patty Berglund. Por sugestão de seu terapeuta, ela escreve uma autobiografia, que faz as vezes de segundo capítulo e ocupa cento e tantas páginas.

É de estranhar a pequena variação entre os trechos do narrador convencional e aqueles narrados por Patty. Ela também escreve em terceira pessoa, com raras referências à “autobiógrafa”. E escreve com brilho, com passagens que funcionam nas mãos de um escritor de talento como Franzen, mas que não convencem quando se tem em mente que a voz é de uma dona de casa deprimida e ex-jogadora de basquete. Franzen tenta marcar a diferença: assim que acaba a autobiografia, entram parágrafos imensos, sem ponto final, como a indicar essa mudança. Mas são ocorrências episódicas, que não marcam o andamento do texto e deixam essa incompletude no ar.

Franzen não é um romancista acabado e é saudável desconfiar da histeria em torno de seu livro. Mas isso não é o mesmo que lhe negar os méritos. Há um lugar vago para o grande intérprete literário da alma americana pós-11 de Setembro. O escritor que der sentido a ela por meio de uma imagem forte como a da família Berglund terá decerto destaque merecido.

É cedo para dizer se Franzen é essa figura, mas está sem dúvida entre aqueles capazes de aspirar a essa condição. Suas ambições de ser o Tolstói do século XXI podem suscitar desconfiança quanto à capacidade de renovar a forma do romance e também sugerem pouca disposição para uma discussão necessária sobre o papel que cabe hoje à ficção literária. Mas a intensidade com que essas ambições são praticadas em seus livros é rara e digna de nota. E elas só podem fazer bem para a literatura num momento em que sua morte é decretada a cada dia.

Flavio Moura – sociólogo.


FRANZEN, Jonathan. Liberdade. Trad. Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Resenha de: MOURA, Flavio. Ambição e Nostalgia. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.93, Jul, 2012. Acessar publicação original

Nova História em Perspectiva – NOVAIS; SILVA (NE-C)

NOVAIS, Fernando A; SILVA, Rogerio Forastieri da (orgs.). Nova História em Perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011. Resenha de: FLORENTINO, Manolo. História, Sentido e Totalidade. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.91, Nov, 2011.

Certa vez, em meio a uma reunião científica, foi sugerida a um alto gestor público a extinção dos cursos de mestrado no Brasil. A ideia partiu de um colega da área tecnológica, físico ou químico, não recordo bem. “Para que mestrados? É pura perda de tempo! Deveríamos selecionar nossos alunos diretamente para o doutorado!”, argumentou incisivo o colega. A resposta não tardou. O alto funcionário contestou na lata que, com as devidas exceções, as graduações brasileiras são muito ruins. Ao que, acrescentou, as pós-graduações do país eram legalmente soberanas para tornar obrigatórios ou não os mestrados como etapas da formação de seus alunos.

Ponto para o burocrata!

Pois a verdade é que, ao menos para o caso de História, os mestrados representam momentos de intenso exercício prévio à obra que se supõe resultará do doutorado. O motivo? A mais antiga dentre as chamadas ciências sociais, a História é, sobretudo, uma disciplina argumentativa — aspecto em que se sobressai dentre a chamada área de humanidades —, mas fundada na correta escolha e utilização de fontes de tipos diversos. Mais que isso, sua abrangência é enorme, seu objeto é, ao fim e ao cabo, indelimitável, o que por certo lhe imprime um caráter altamente artesanal e subjetivo. Mais claramente: argumentação aplicada ao tempo, à mudança, a partir do manejo de corpos documentais cujo escopo vem aumentando nas últimas décadas em função da imensa diversidade temática que cada vez mais caracteriza o ofício de historiador. É, pois, saudável que, ao menos no campo do saber historiográfico, nossos alunos passem por essa etapa preparatória fundamental encarnada nos cursos de mestrado.

Quando menos por isso é de grande importância para estudantes e especialistas em teorias da História a publicação do primeiro tomo da antologia de fôlego (três volumes no projeto original) organizada pelos professores Fernando Antonio Novais e Rogério Forastieri da Silva. Trata-se de trabalho cujo objetivo explícito é inserir a chamada Nova História na história geral da historiografia, enquadrando-a analiticamente em um tempo, em uma conjuntura. Afinal, como alertam Novais e Forastieri na longa e densa introdução à antologia, lenta e imperceptivelmente também a Nova História vai se tornando história.

A estrutura do primeiro volume de Nova História em perspectiva está centrada na apresentação de propostas e desdobramentos. Por propostas entenda-se trazer ao público novas traduções dos manifestos axiais dos nomes mais importantes de cada uma das três fases dos Annales. Daí os textos clássicos de Lucien Febvre, expoente da primeira fase, caracterizada pelo diálogo mais intenso entre a História e, sobretudo, a Sociologia; de Fernand Braudel, catalisador da segunda etapa, quando a interação entre a História e a Economia predominava; e, por fim, os lineamentos apresentados por Jacques Le Goff e Pierre Nora, que na década de 1970 impuseram novos rumos, marcados sobretudo pela maior abertura dos historiadores à Antropologia (ou, como querem Novais e Forastieri, sobretudo com a Etnografia) — a fase da Nova História propriamente dita.

Seguem-se os desdobramentos da avassaladora velocidade com que a Nova História se impôs nos meios acadêmicos ocidentais, contemplados neste primeiro volume da antologia pelas análises de André Burguière, Carlo Ginzburg, Emmanuel Le Roy Ladurie, Hayden White, Joyce Appleby, Lynn Hunt, Margaret Jacob, Massimo Mastrogregori, Maurice Aymard, Michel Vovelle, Natalie Zemon Davis, Philippe Ariès, Pierre Chaunu e Stuart Clark. Fecha o volume o texto de James Harvey Robinson, verdadeiro achado arqueológico, publicado originalmente em 1912 sob o sugestivo e antecipatório título de “A nova história”.

O que está em jogo aqui é, a partir de textos seminais, contribuir para o entendimento de como, na perspectiva dos organizadores da antologia, em pouco mais de quatro décadas os sucessivos grupos de profissionais agregados ao redor dos Annales acabaram, não sem profundas descontinuidades, por contribuir para instaurar um cenário historiográfico marcado pela extrema pulverização temática e — com as devidas exceções — por uma “pobreza teórica verdadeiramente capuchinha”, nas palavras de Novais e Forastieri.

É evidente, pois, a natureza crítica da longa introdução escrita pelos organizadores à Nova História inaugurada por Le Goff e Nora a partir do lançamento dos três volumes do hoje clássico Faire de l’histoire1. Os argumentos apresentados são eruditos, elegantes e fundados em uma lógica ferrenha.

De início nos é mostrado didaticamente o que vem a ser o fundamento da história-discurso, que corresponde à necessidade da criação da memória social. É estabelecida então a diferença entre a narrativa mítica, própria da constituição da memória coletiva entre os primitivos, e a narrativa histórica propriamente dita, ancorada, ao contrário da primeira, na temporalidade. Como diria certo filósofo, a história-discurso da civilização funda-se na necessária simbolização do homem no tempo.

A anterioridade da História em relação às Ciências Sociais demanda, logicamente, levar em conta o impacto do surgimento destas últimas sobre a História, e não o contrário. Nesse sentido, o século xix é muito bem localizado pelos organizadores como representando o ponto de inflexão na história do discurso historiográfico, instaurando a forma propriamente moderna de fazer História a partir do diálogo com as Ciências Sociais nascentes. Com uma importante diferença: enquanto as Ciências Sociais sacrificam a totalidade pela conceitualização, a História faz o inverso, sacrifica a conceitualização pela totalidade. Pela simples razão de que o historiador visa explicar para reconstituir um passado necessariamente total — ainda que se foque tal ou qual de seus aspectos —, enquanto o cientista social visa reconstituir para explicar.

É a partir desses pressupostos que Novais e Forastieri se posicionam criticamente em relação à terceira fase dos Annales, a da chamada Nova História. Em primeiro lugar, reconhecem que ela conforma um desdobramento das fases anteriores, na medida em que mantém, em termos gerais, o princípio básico de interlocução com as Ciências Sociais. A ruptura, entretanto, a caracteriza quando se detecta a diminuição desse diálogo e a afirmação de certa tendência à desconceitualização — dialoga-se muito mais com a Etnologia do que com a Antropologia, segundo os organizadores. À desconceitualização sucede uma imensa pulverização temática (a “História em migalhas” da qual fala François Dosse) e, pior, a descaracterização da natureza necessariamente total da história, dado que nenhum acontecimento pertence exclusivamente a uma única esfera do existir. Detalhe, bem explicitado por Novais e Forastieri: não se deve confundir esferas da existência (economia, política etc.) com níveis de realidade (estrutura, conjuntura etc.) — toda esfera da existência comporta necessariamente os vários níveis de realidade.

Em termos gerais, estou de pleno acordo com os organizadores deste primeiro volume de Nova História em perspectiva. Observando melhor o perfil de grande parte da produção historiográfica recente, é fácil capturar nele uma enorme gama de ceticismo — corolário do relativismo —, e mesmo de cinismo e niilismo. Mas lembro aqui ser necessário nunca deixar de duvidar. Da importância política da dúvida e do ceticismo que sempre marcaram a civilização ocidental contemporânea discorrem muito bem Joyce Appleby, Lynn Hunt e Margareth Jacob, na “Introdução a Telling the Truth about History“, presente na antologia de Novais e Forastieri.

Mesmo reconhecendo os traços gerais desenhados por Novais e Forastieri, no entanto, insisto no que há de extremamente positivo na crítica ao consagrado, seja ele estabelecido pela tradição ou pelo mercado. No mínimo porque a iconoclastia ou o simples exercício legitimado do espírito de porco abrem campo para todas as formas de expressões artísticas, historiográficas ou teóricas possíveis, inclusive para a apaixonada defesa que Novais e Forastieri fazem do marxismo, na segunda parte de sua introdução. Da importância criadora dos momentos de maior peso do ceticismo na cultura ocidental falam, por exemplo, no campo da literatura, os grandes nomes da ficção norte-americana entre 1920 e 1945 — Scott Fitzgerald, John Dos Passos e Ernest Hemingway, apenas para ficar em alguns dos mais conhecidos.

Por que os cito em um contexto no qual a discussão sobre a natureza na Nova História é o centro? Pelo simples fato de que, com todos os seus problemas, consigo capturar nesse movimento historiográfico a expressão da radicalização do conflito entre a sociedade e o indivíduo, este definitivamente sufocado pelas teorias totalizantes em todos os campos das Humanidades até as décadas de 1970 e 1980 (a longa censura não declarada à obra de Norbert Elias é disso apenas um exemplo). Há no movimento, pois, mais do que desvios em relação às modernas regras que definem o ofício do historiador. Há nele um grito pela localização do sujeito individual na História e a firme decisão de resgatar a tolerância e a diversidade como traços constitutivos da moderna civilização.

Notas

[1Faire de l’histoire. Paris: Gallimard, 1974.         [ Links ]

Manolo Florentino – Professor do Instituto de História da UFRJ

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Autobiografia – KELSEN (NE-C)

KELSEN, Hans. Autobiografia. Tradução de Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. Resenha de: BATALHA, Carlos Eduardo. O jurista como verdadeiro teórico do Estado. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.91, Nov, 2011.

Não parece datada a afirmação de que “ocupa-se uma posição no espaço jurídico conforme se está mais perto ou mais longe de Hans Kelsen”1. Ainda hoje diversos juristas referem-se ao autor da Teoria pura do Direito como uma espécie de símbolo, ao mesmo tempo central e superior, para a compreensão do Direito.

Contemporâneo de uma geração de intelectuais austríacos que se destacaram para além do contexto europeu, Kelsen estudou e lecionou na Universidade de Viena no começo do século XX. Dirigiu-se à Alemanha em 1930, mas sua origem judaica e sua imagem pública como redator e guardião judicial da primeira Constituição democrática da Áustria o tornaram vulnerável à perseguição nazista. Após buscar refúgio em outros países, chegou aos Estados Unidos em 1940, onde se estabeleceu e se aposentou como professor da Universidade da Califórnia, vindo a falecer em 1973. No Brasil, sua obra tornou-se referência a partir da elaboração da Constituição de 19342, e, por volta de 1950, foi aqui consolidada no campo da Filosofia do Direito, ganhando lugar cativo em manuais e monografias dedicados às questões da justiça, da ciência do Direito e da estrutura do ordenamento jurídico3.

Tão ampla foi a recepção das concepções kelsenianas que ela própria acabou por se tornar objeto de discussão. Ao menos desde 1970, tanto herdeiros quanto críticos de Kelsen têm se preocupado com a reavaliação da apropriação de sua teoria. De modo geral, é possível dizer que esse reexame tem sido marcado por três atitudes distintas. Por um lado, tem-se a revisão dos fundamentos da Teoria pura do Direito, seja reconsiderando os vínculos de Kelsen com o neokantismo, seja promovendo sua aproximação com o neopositivismo lógico e a filosofia analítica. Por outro lado, há a atualização do horizonte de inserção da obra de Kelsen, na busca por sua integração ao debate contemporâneo sobre a jurisdição e o papel da interpretação na determinação do direito. Há também, por fim, a denúncia da trivialização do pensamento kelseniano, decorrente da simplificação e da distorção de suas ideias para fazê-las circular no dia a dia dos juristas como uma espécie de “senso comum teórico”4.

Como resultado desse reexame, várias sutilezas do pensamento de Kelsen obtiveram reconhecimento. Vê-se agora com maior clareza o equívoco de atribuir a ele “a redução do direito à lei”, “a existência de um direito sem moral”, “a desconsideração da dimensão humana e seus valores”, ou de acusá-lo de “ter colocado no mesmo nível as normas de um Estado totalitário e as de um Estado democrático”. Contudo, ainda há muitos outros aspectos de sua obra a serem revistos, atualizados e descobertos.

A recente publicação da tradução brasileira da autobiografia escrita por Kelsen em 1947 coloca em evidência alguns desses aspectos. Acompanhada de uma “autoapresentação” — elaborada em 1927 como explicação da gênese intelectual da Teoria pura do Direito —, a autobiografia ultrapassa tanto o testemunho pessoal quanto a condição de museu dos conceitos kelsenianos. Por meio de rigorosa seleção de episódios, Kelsen enfatiza elementos que o debate filosófico-jurídico no Brasil muitas vezes considerou secundários. Nesse sentido, ainda que por contraste, sua autobiografia nos auxilia a traçar os caminhos pelos quais sua teoria foi aqui incorporada à Filosofia do Direito. Ao mesmo tempo, ela também nos ajuda a entender melhor os limites de nossa apropriação da Teoria pura do Direito.

Como se sabe, o ambiente que recepcionou a obra de Kelsen no Brasil começou a se configurar antes mesmo da criação dos primeiros cursos jurídicos nacionais. Ao longo do século XVIII, um pequeno grupo da sociedade brasileira já se dirigia à metrópole portuguesa para realizar estudos superiores em Direito. E o debate intelectual que ali se encontrava não era exatamente o moderno confronto entre a tradição romano-canônica e a nova orientação do direito racional. Enquanto as concepções jusnaturalistas assumiram pela Europa uma função crítica e revolucionária, as reformas pombalinas incorporaram o discurso jusnaturalista para articular ortodoxia religiosa e manutenção do poder real em Portugal. Difundia-se um jusnaturalismo pela via do catolicismo, a serviço do Estado nacional, da centralização administrativa e das prerrogativas da monarquia. Essa perspectiva encontra-se claramente delineada no Tratado de Direito Natural escrito pelo futuro inconfidente Tomás Antônio Gonzaga5. Elaborado como tese para concurso na Faculdade de Leis de Coimbra, esse tratado examinava as concepções propostas por Grotius, Pufendorf e Thomasius para submetê-las à crítica, assentando, em primeiro lugar, a origem divina de imutáveis princípios necessários para o Direito natural e civil. Tal associação entre jusnaturalismo e filosofia católica nunca deixou de compor o quadro da Filosofia do Direito no Brasil, seja no século XIX, por meio de obras marcadas por certo ecletismo espiritualista, seja no século XX, com o empenho de diversos juristas na restauração da tradição escolástica6.

No entanto, com a criação dos cursos jurídicos em São Paulo e Olinda, após a Independência, surgiram condições para que trabalhos doutrinários introduzissem elementos característicos da modernidade na determinação do Direito. A defesa de limitações constitucionais ao poder governamental, assegurando áreas de autonomia à vida privada, fez com que instituições e princípios próprios do Estado liberal começassem a ser empregados na compreensão da estrutura legal do país. A divulgação do liberalismo veio acompanhada da importação de teorias ligadas ao iluminismo francês e ao idealismo alemão, com especial atenção para a filosofia de Immanuel Kant, lida por intermédio das obras de Karl Krause e Ludwig Noiré. O que se assimilou do kantismo, porém, não foi suficiente para apreender seu projeto de filosofia crítica. Fala-se em “filosofia transcendental”, “apriorismo” e “coisa em si mesma”, menciona-se a combinação de liberdade e coerção no domínio do Direito, mas o criticismo não é mais que um “ponto intermediário” entre as atitudes dogmáticas e céticas, de modo a conciliar a tradição escolástica com os valores emergentes das revoluções burguesas. Também havia dificuldades práticas para consolidar a compreensão liberal da ordem jurídica como um sistema impessoal, fundamentado em princípios gerais e aplicado segundo critérios objetivos. O aparato jurídico então existente não deixava de ser considerado, em sua aplicação, como um instrumento manipulável, a serviço de arranjos pessoais, trocas de favores e relações orientadas por critérios de lealdade. O que se desenvolve a partir da criação das academias de Direito é, portanto, a percepção da distância — quando não do desencontro e da contraposição — entre as “diretrizes básicas” da formação jurídica nacional e as “necessidades reais” da vida social, gerando um debate, que se torna recorrente no ensino jurídico do país, sobre a relação entre “as leis abstratas e formais” e “a prática concreta e material” do Direito7.

Nesse contexto, a referência a Kant acabou por adquirir novos contornos a partir da segunda metade do século XIX. Os ensaios e estudos do germanista Tobias Barreto articularam a inserção do Direito no âmbito da cultura e essa perspectiva o levou a negar a universalidade do fenômeno jurídico, em face da historicidade do ser humano. Influenciado pela obra de Rudolf von Ihering, Barreto acabou por atribuir maior peso às noções de finalidade e valor, como elementos definidores do próprio homem. Com isso, encaminhou-se para a substituição do jusnaturalismo por um humanismo (que depois repercutirá no culturalismo de Miguel Reale). Além disso, o que se destaca na filosofia do direito de Barreto é sua vinculação às teorias evolucionistas de Ernest Haeckel. Graças a essas teorias, sua recepção do pensamento de Kant e Ihering resultou em um naturalismo evolucionista, que não só abriu os estudos jurídicos brasileiros para o campo sociológico, como também propagou por aqui a definição do Direito em função da coação.

Esse naturalismo evolucionista ainda não correspondia, porém, à afirmação do método positivo como base para o conhecimento jurídico. Tobias Barreto chega a mencionar Augusto Comte em alguns ensaios, mas ao longo do século XIX as obras jurídicas nacionais ainda se inseriam no domínio das belles-lettres. O desenvolvimento dos estudos científicos no Brasil ocorreu inicialmente entre engenheiros, médicos e militares. E o movimento positivista obteve maior repercussão quando essas categorias profissionais alcançaram a posição de “nova burguesia” do país, a partir de 18708. Para os juristas, essa situação somente começou a se alterar com o debate entre Pedro Lessa (inclinado ao positivismo e ao naturalismo spenceriano) e João Mendes Júnior (herdeiro da tradição escolástica), que colocou a questão da Ciência no centro da Filosofia do Direito. Depois, já na primeira metade do século XX, o problema recebeu atenção particular (e orientação assumidamente positivista) de Pontes de Miranda, que manteve alguns elementos do pensamento de Ihering, mas os incorporou em uma concepção de ciência jurídica como ciência causal, não finalista, para assim aproximar o “processo de revelação científica da norma” à metodologia das ciências naturais e comprovar valores “com os números das estatísticas e com as realidades da vida”9. Foi nesse contexto que as diferentes linhas do debate filosófico-jurídico no Brasil acabaram por articular uma versão peculiar da contraposição entre compreensões jusnaturalistas (ainda orientadas pela tradição escolástica) e enfoques positivistas (aqui vinculados a um naturalismo evolucionista).

A recepção brasileira da teoria kelseniana ocorreu a partir dessa contraposição. Enquanto Kelsen era identificado como “niilista político” na edição de 1939 da Meyers Konversations-Lexikon, uma das principais enciclopédias alemãs (que expressava então o discurso nacional-socialista)10, sua obra era caracterizada entre nós como “apogeu da corrente do positivismo jurídico” e “ponto culminante da escola técnico-jurídica”11. A Teoria pura do Direito foi situada, antes de tudo, como oposição ao jusnaturalismo. Uma vez inserida na polêmica com a tradição do Direito natural, a preocupação kelseniana de delimitar, com exatidão, o objeto da ciência jurídica transformou-se em um programa de “reducionismo”. Devido à sua recusa sistemática a ultrapassar o Direito positivo na construção do conhecimento jurídico, Kelsen seria o mais típico defensor da redução simplificadora do Direito à norma jurídica, afirmando que “não há outro Direito além do Direito positivo” e que este “não é mais do que seriação gradativa de normas”12.

Na condição primordial de positivista reducionista, Kelsen não chega a ser igualado a outros teóricos então presentes no cenário nacional. Nota-se, por exemplo, que sua teoria diverge da proposta de Pontes de Miranda quanto à utilização da causalidade como nexo necessário para formulação da ciência jurídica. A importância atribuída à categoria da imputação nunca deixou de ser reconhecida. Contudo, a peculiaridade kelseniana que impressiona os juristas brasileiros de imediato parece ser a oposição entre ser e dever ser. Essa oposição os leva muitas vezes a entender que o estudo do Direito estaria todo no domínio do dever ser, “não existindo ponto de contato” com o “ser”. O neokantismo em Kelsen deixaria o jurista “desconectado do direito enquanto ser”, no plano da pura normatividade lógica, separando de modo tão radical realidade natural e norma jurídica que isso o levaria a “separar não menos radicalmente o social e o jurídico”. A identificação do elemento formal do Direito (sua normatividade) implicaria “sacrifício ou esquecimento” pelos juristas da própria realidade do Direito, deixada para o estudo exclusivo dos cientistas sociais. O positivismo reducionista seria, na verdade, puro normativismo.

O “purismo”, porém, não se esgota nesse “desligamento” da realidade. Ele também é entendido desde o início como “ausência de juízos de valor”, tendo em vista a criação de condições para descrição “objetiva” da realidade jurídica. Essa leitura da pureza metodológica de Kelsen pode ser vinculada ao célebre debate alemão, ocorrido no início do século XX, sobre a importância de distinguir conhecimento e valor no âmbito das ciências sociais13. Mas o que dela se retira na recepção brasileira é a defesa de uma completa subjetividade de todos os juízos de valor. Por meio de uma confusão entre “relativização dos conteúdos normativos”, “relativismo moral” e “ceticismo”, entende-se que Kelsen teria introduzido na ciência jurídica “o desprezo pela concepção do Direito como realização da ideia de justiça”, relegando a moral e a política ao “plano da ideologia”. Desse modo, o positivismo teria como fruto o relativismo dos valores, a começar pelo valor da justiça.

No lugar dos valores, o fundamento do fenômeno jurídico estaria deslocado na teoria de Kelsen para uma norma hipotética, de caráter lógico-transcendental e validade pressuposta, que obrigaria o pensador do Direito a tomar como o primeiro de uma série hierárquica um enunciado prescritivo posto, tornando possível pensar um conjunto de normas juridicamente válidas como um ordenamento (uma unidade sistêmica) sem recorrer a elementos “metajurídicos”, “extrapositivos” ou “não científicos”. Não é estranho, pois, que o debate em torno do positivismo de Kelsen sempre acabe por dedicar muitas páginas à teoria da norma fundamental. Também não deve espantar que, entre diversas questões levantadas por essa teoria, o problema da relação entre validade e eficácia receba grande destaque entre os juristas brasileiros. Trata-se, pois, de um recorte que assume o puro normativismo e o relativismo para colocar Kelsen em oposição direta ao discurso jusnaturalista, que, por meio de uma teoria da justiça, dedicava-se à identificação absoluta dos pressupostos éticos e políticos do Direito positivo.

A leitura das memórias de Kelsen nos permite, todavia, ir além dos limites desse recorte. A começar pela curiosa carência de menções aos temas mais discutidos entre nós. Não há nenhum destaque para a formulação da concepção de norma fundamental ou mesmo para a discussão da relação entre validade e eficácia. A respeito da discussão do papel dos juízos de valor ocorrida entre os sociólogos alemães, também não há indicação alguma. Kelsen apenas cita de passagem um contato tardio com Max Weber, reconhecendo que demorou a se familiarizar com seus escritos, pois, mesmo no período em que estudou em Heidelberg, não frequentou o círculo mais próximo do sociólogo14. Na autobiografia, o enfoque empírico-relativista surge tão somente como pressuposto da compreensão da contraposição entre formas autocráticas e democráticas de governo15. E a elaboração de uma teoria sistemática do positivismo jurídico, ligada à crítica do Direito natural, não aparece como ponto de partida. Tal teoria teve como marco a publicação de As bases filosóficas da doutrina do Direito natural e do positivismo jurídico em 1928 e somente foi desenvolvida após a mudança para a Alemanha em 193016. Foi nesse período que a preocupação com a ideia de justiça tornou-se parte das investigações científicas de Kelsen, que passou a se dedicar à redação de uma história da teoria do Direito natural sob a forma de uma “sociologia da crença na alma” como “crítica fundamental de toda a metafísica”17. Em seu autorretrato, Kelsen explicita que sua “estrela-guia desde o início” foi a filosofia de Kant18. Por isso, encontra-se já em suas primeiras obras o recurso à oposição entre ser e dever ser. A pureza não se reduz à defesa de um “puro normativismo”. Ela está ligada a outras questões.

Para que se tenha uma boa medida dessas questões, merece atenção a narrativa feita por Kelsen das dificuldades enfrentadas durante o período em que atuou na Corte Constitucional que ele mesmo projetara19. Ocupando mais de dez páginas no centro da autobiografia, essa narrativa jamais caracteriza a atividade de magistrado como simples função técnica. Diante das dúvidas interpretativas decorrentes de um Código Civil com princípios contraditórios sobre a possibilidade de dissolução do vínculo matrimonial20 e dos problemas sociais decorrentes dos tribunais que começaram a declarar de ofício a invalidade dos mesmos casamentos cuja celebração tinha sido autorizada por órgãos administrativos do Estado21, a atuação dos magistrados da Corte tinha em vista tanto a preservação do direito existente quanto a manutenção da autoridade do Estado baseada nesse direito. Sua decisão, assim, foi

determinada não apenas por sua prática em adotada em casos de conflito de competência, mas também pelo esforço de restaurar a autoridade do Estado ameaçada pelo conflito aberto entre os tribunais e as autoridades administrativas.22

Esse e outros episódios reforçam a percepção de que o significado da obra de Kelsen não se deixa apreender por meio da contraposição esquemática entre jusnaturalismo e positivismo jurídico. Por toda a autobiografia (e também na “autoapresentação”) parece claro que a reflexão kelseniana está enraizada em outro debate, relativo à unidade política e à crise da teoria geral do Estado23. Antes da Primeira Guerra Mundial, ela se dedica a ressaltar que a “vontade do Estado” não poderia ser uma entidade fisicamente real como a vontade dos indivíduos, mas apenas uma expressão antropomórfica do dever ser do ordenamento estatal24. De modo próximo a Windelband, que tomou a filosofia kantiana como base para atribuir aos valores uma existência própria, não psicológica, estruturada como a dimensão de “validade do dever ser”, Kelsen opera a transição da teoria geral do Estado para o plano da “validade objetiva”, apartado da esfera subjetivista do psicologismo. Com isso, alcança um duplo resultado: por um lado, identifica o significado não psicológico e exclusivamente normativo do conceito de vontade específico para a teoria do Direito; por outro lado, compreende que os problemas da teoria geral do Estado “mostravam ser problemas de validade e produção de um ordenamento normativo coercitivo”25. Formula, então, sua tese da identidade do Estado com o direito positivo, que é a verdadeira base tanto para a proposição da unidade entre Estado e Direito quanto para a defesa de que Direito é somente Direito positivo26. Em suas palavras,

A questão decisiva com relação à essência do Estado me parecia ser o que constitui a unidade na multiplicidade dos indivíduos que compõem essa comunidade. E não pude encontrar outra resposta cientificamente fundamentada a essa questão senão a de que é um ordenamento jurídico específico que constitui essa unidade, e de que todas as tentativas de fundamentar essa unidade de modo metajurídico, ou seja, sociológico, devem ser consideradas fracassadas.27

Após a Primeira Guerra, quando a crise prática e téorica da unidade política se agrava, a reflexão kelseniana encaminha-se para a discussão das tendências anarquistas da teoria marxista do Estado, a defesa do parlamentarismo ante quaisquer ditaduras e a compreensão da ideologia libertária da democracia por meio de um duplo contraste: por um lado, o confronto entre essa ideologia e a realidade social, entendida esta como o sentido efetivo dos ordenamentos jurídicos positivos tidos como democráticos; por outro lado, o confronto entre ideologia democrática e a situação psicológica dos indivíduos submetidos aos ordenamentos jurídico-democráticos28. Não abandona, porém, a tese fundamental de que o Estado, do ponto de vista de sua essência, é um ordenamento jurídico relativamente centralizado. Com essa tese, o poder deixa de ser um fenômeno quase natural para se tornar um fenômeno jurídico. A coerção jurídica é vista agora como um poder autorizado e as prescrições somente possuem significado jurídico se emanam de uma instância que foi autorizada dentro de uma ordem escalonada de normas produzidas juridicamente. A criação legislativa é aplicação do direito, da mesma forma que uma decisão judicial é continuação (ainda que formal) do processo jurídico de produção do direito. Isso permite a Kelsen algo mais do que se opor à tradição jusnaturalista: com a concepção de autorização, torna-se possível também rejeitar influentes teorias imperativistas do Direito (por exemplo, as teorias de Hobbes e Austin), que associavam o fenômeno jurídico aos comandos de um soberano juridicamente ilimitado29.

No que diz respeito ao “purismo” proposto por Kelsen, sua autobiografia deixa claro que essa proposta foi se constituindo aos poucos, por meio de diferentes atitudes metodológicas30. Inicialmente, a teoria pura se caracterizava pelo objetivo central de determinar a relação precisa (e não a desconexão) entre o dever ser (da norma jurídica) e o ser (da realidade natural) no conceito de Direito31. A purificação das doutrinas jurídicas correspondia basicamente à tarefa de encontrar, entre os dois extremos dessa relação, “o meio-termo correto”. Assim sendo, ela operava por meio da substituição de postulados metafísicos por categorias transcendentais como condições da experiência, acompanhada pela transformação das oposições entre direito objetivo/direito subjetivo, direito público/direito privado, Estado/Direito, antes consideradas absolutas (por serem “qualitativas e transistemáticas”), em diferenças relativas (de caráter “quantitativo e intrasistemático”). Somente mais tarde, Kelsen se dirigiu à crítica da tendência ideológica de dar aparência de justiça ao Direito positivo32. A pureza revelou-se então como exigência de despolitização33. Foi assim que a Teoria pura do Direito acabou por desenvolver seu caráter “radicalmente realista”, que se manifesta na recusa à valoração do Direito positivo34.

A autobiografia também indica que o projeto de purificação se adequa à preocupação de Kelsen com o desencontro entre conhecimento e ação, ou seja, com a difícil relação entre teoria e prática. Essa preocupação aparece em tantos momentos que se tem a impressão de que ela é a legítima constante de todas as fases da Teoria pura do Direito. Ela aparece, por exemplo, de modo discreto, na lembrança dos episódios ligados à questão do equilíbrio europeu. Ao final da Primeira Guerra, Kelsen se vê envolvido nas negociações entre o governo austríaco e o movimento nacionalista tcheco, quando ainda pretendia-se conciliar a formação de novos Estados nacionais, fundados no direito de autodeterminação dos povos, com a manutenção do bloco austro-húngaro no centro da Europa35. Em outro contexto, às vésperas da Segunda Guerra, acompanha a resistência do governo tchecoslovaco em admitir que os movimentos separatistas dos sudetos e dos eslovacos ampliavam suas forças em face do progressivo desmoronamento do sistema internacional estruturado em Versalhes. Kelsen foi consultado oficialmente em ambas as situações. E sugeriu diretamente aos dirigentes políticos que as dificuldades decorrentes das demandas por autonomia nacional fossem contornadas com a formação de um Estado federado. Suas propostas, porém, não tiveram condições de passar para o plano da ação: quando foram levadas em consideração, “era tarde demais” — repete o jurista — e acabaram por perecer diante de outros eventos históricos36.

Em outros momentos, a preocupação com a relação entre conhecimento e ação é enunciada diretamente. Na narrativa dos fatos que conduziram à sua nomeação para o cargo de professor ordinário em Viena37, bem como nos episódios da promoção de Leo Strisower à posição de professor catedrático38 e da aprovação da livre-docência do marxista Max Adler39, Kelsen expressa com clareza sua orientação geral de que o conhecimento científico deve permanecer independente da ação política. Por um lado, entende que “um professor e pesquisador não deve se filiar a partido nenhum”. Por outro lado, defende que a filiação a um partido político não poderia ser um motivo para excluir pessoas da carreira acadêmica, “à condição de que seus trabalhos tivessem a qualidade científica necessária”. A expressão dessas diretrizes é também a oportunidade para que Kelsen assinale:

pessoalmente, tenho toda simpatia por um partido socialista e ao mesmo tempo democrático, e nunca dissimulei essa simpatia. Porém, mais forte do que essa simpatia era e é minha necessidade de independência partidária na minha profissão. O que eu não concedo ao Estado — o direito de limitar a liberdade da pesquisa e da expressão do pensamento — eu não posso conceder a um partido político por meio da submissão voluntária à sua disciplina.40

Ao final de suas memórias, Kelsen retoma mais uma vez sua preocupação, ao registrar as peculiaridades da formação jurídica norte-americana. Nesse contexto, destaca que as faculdades de Direito estadunidenses, com seus cursos profissionalizantes, não apresentam interesse por uma teoria científica do Direito. Chega a pensar que talvez o Direito como objeto de conhecimento científico estaria mais bem localizado no âmbito de uma faculdade de Filosofia, História ou Ciências Sociais. Entretanto, também assinala que em Viena seus professores de Direito público (Edmund Bernatzik e Adolf Menzel) lhe pareciam pouco ou nada interessados em problemas téorico-jurídicos41. E afirma: durante todos os anos como professor no departamento de Ciência Política na Universidade da Califórnia, em Berkeley, não encontrou um único aluno que quisesse se especializar em teoria do Direito ou mesmo em Direito internacional42. Nesses termos, Kelsen parece concluir que no Direito não há interesse por Ciência, da mesma forma que na Ciência não há interesse por Direito.

Todas as preocupações, porém, não fazem com que a conclusão geral trazida por estas memórias seja qualquer espécie de “derradeira negativa”. Ainda que Kelsen tenha afirmado que “a relatividade dos valores experimentei em minha própria carne”43, sua autobiografia não se apresenta, ao final, como um conjunto de lições de relativismo. Se é certo que o lugar da justiça não é preenchido no interior da Teoria pura do Direito, não é adequado, porém, esquecer que seu autor aproveita todas as oportunidades para assumir e defender o valor da independência. Não apenas sob a forma de liberdade científica ou política, mas também, na autobiografia, como independência dos magistrados e das instituições jurídicas. O episódio que levou a seu afastamento da Corte Constitucional austríaca serve para registro e reafirmação da importância desse valor44. Relembrando situações nas quais o problema da relação entre teoria e prática se tornou evidente, Kelsen não se abstém de expressar sua convicção de que a verdade e as formas jurídicas constituem o campo apropriado para a construção de uma teoria do Estado. Em meio às artes de governar, o jurista é revelado como o mais apropriado teórico do Estado, não apenas por formular o discurso da soberania, mas principalmente por manifestá-lo como supremacia do ordenamento jurídico e, em especial, da Constituição. E, se o jurista é o verdadeiro teórico do Estado, seu positivismo jurídico transforma-se, socialmente, em um projeto de Estado de Direito. Conclusão menos niilista não poderia existir. Resta à Filosofia do Direito no Brasil dar a esse projeto a devida atenção.

Notas

1 Cf. REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito. 5. ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 118.         [ Links ] 2 Cf. ALENCAR, Ana Valderez A. N. “A competência do Senado Federal para suspender a execução dos atos declarados constitucionais”. Revista de Informação Legislativa, v. 15, n. 57, jan.-mar.1978, pp. 239-         [ Links ]43; Prutsch, Ursula. “Instrumentalisierung deutschsprachiger Wissenschafter zur Modernisierung Brasiliens in den dreißiger und vierziger Jahren”. In: Lechner, Manfred; Seiler, Dietmar (orgs.). Zeitgeschichte.at. 4. österreichischer Zeitgeschichtetag’ 99. Innsbruck: Studienverlag, 1999, pp. 361-         [ Links ]69.
3 Cf., em particular, ABREU, João Leitão de. A validade da ordem jurídica. Porto Alegre: Globo, 1964, pp. 49-71 e 125-         [ Links ]71.
4 Para a primeira atitude, temos como exemplo obras de Sônia Broglia Mendes, Fernando Pavan Baptista e Henrique Smidt Simon. Para a segunda atitude, consideramos os trabalhos de Gilmar Ferreira Mendes e Lenio Luiz Streck. Já a atitude de denúncia foi aqui caracterizada segundo a obra de Luís Alberto Warat.
5 Cf. MACHADO, Lourival Gomes. Tomás Antônio Gonzaga e o direito natural. Rio de Janeiro: mec,         [ Links ] 1953; Grinberg, Keila. “Interpretação e Direito natural”. In: Gonzaga, Tomás Antônio. Tratado de Direito natural. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. VII-         [ Links ]XXXV.
6 Cf. PAUPÉRIO, A. Machado. A Filosofia do Direito e do Estado e suas maiores correntes. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980, pp. 153-         [ Links ]6.
7 Cf. FERRAZ Jr., Tercio S. “A Filosofia do Direito no Brasil”. Revista Brasileira de Filosofia, v. 45, n. 197, 2000, pp. 14-         [ Links ]6.
8 Cf. COSTA, João CruzContribuição à história das ideias no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, pp. 138-         [ Links ]46.
9 Cf. FERRAZ Jr., “A Filosofia do Direito no Brasil”, op. cit., p. 24; NADEr, Paulo. Filosofia do Direito. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 278-         [ Links ]81.
10 ENGLARD, Izhak. “Nazi criticism against the normativist theory of Hans Kelsen: its intellectual basis and post-modern tendencies“. Israel Law Review, n. 32, 1998, p.         [ Links ] 183.
11 A expressão aparece na tese escrita por Miguel Reale entre 1939 e 1940, para concurso à cátedra da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Cf. Reale, Miguel. Fundamentos do Direito. 3. ed. fac-símile. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, pp. 151 e 157.         [ Links ] 12 A ênfase na caracterização de Kelsen como positivista estrito ou pleno pode ser encontrada em vários autores. Aqui tomamos por base, além da tese de Miguel Reale, obras de Alysson Leandro Mascaro, Aurélio Wander Bastos, Eduardo C. B. Bittar, Fábio Ulhoa Coelho, Paulo Dourado de Gusmão e Paulo Nader.
13 Cf. LOSANO, Mario. Introdução. In: KELSEN, Hans. O problema da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. x-         [ Links ]xv.
14 Idem, ibidem, p. 49.
15 Idem, ibidem, p. 32.
16 Kelsen, Hans. Autobiografia, p. 97.         [ Links ] 17 Idem, ibidem, p. 98.
18 Idem, ibidem, p. 25.
19 Idem, ibidem, pp. 81-93.
20 Idem, ibidem, p. 84.
21 Idem, ibidem, p. 87.
22 Idem, ibidem, p. 90.
23 BERCOVICI, Gilberto. “Carl Schmitt e a tentativa de uma revolução conservadora”. In: ALMEIDA, Jorge; Bader, Wolfgang. Pensamento alemão no século XX — Grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. Vol. I. São Paulo: Cosac Naify, 2009, pp. 69-         [ Links ]72. Nesse sentido, as origens da obra de Kelsen estão ligadas à sua crítica à teoria do Estado de Georg Jellinek. Cf. Dias, Gabriel Nogueira. Positivismo jurídico e Teoria geral do Direito na obra de Hans Kelsen. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pp. 116-23 e 137-         [ Links ]40.
24 Kelsen, Autobiografia, op. cit., p. 25.
25 Idem, ibidem, p. 31.
26 Idem, ibidem, p. 28.
27 Idem, ibidem, p. 72.
28 Idem, ibidem, pp. 32-33.
29 Cf. HÖFFE, Ofried. Justiça política — Fundamentação de uma filosofia crítica do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 127-         [ Links ]31.
30 KELSEN, Autobiografia, op. cit., p. 43.
31 Idem, ibidem, p. 29.
32 Idem, ibidem, p. 25.
33 Idem, ibidem, p. 27.
34 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1984, pp. 161 e 292;         [ Links ] Kelsen, Hans. O problema da justiça. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.         [ Links ] 70.
35 KELSEN, Autobiografia, op. cit., pp. 60-4.
36 Idem, ibidem, pp. 104-5.
37 Idem, ibidem, p. 69-70.
38 Idem, ibidem, p. 73.
39 Idem, ibidem, p. 74.
40 Idem, ibidem, p. 71.
41 Idem, ibidem, p. 51.
42 Idem, ibidem, p. 108.
43 Cf. KELSEN, Hans. Testimonio radiofônico — Radio Bremen, 1958. Revista de investigaciones juridicas, México, n. 27, 2003, p.         [ Links ] 142.
[44] KELSEN, Autobiografia, op. cit., p. 92.

 Carlos Eduardo Batalha – Professor titular de Filosofia Jurídica da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e membro do núcleo Direito e Democracia do Cebrap.

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A cidade nas fronteiras do legal e ilegal – TELLES (NE-C)

TELLES, Vera da Silva. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010. As dobraduras da cidade. Resenha de: LUCCA, Daniel de. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.90, Jul, 2011.

Em seus escritos sobre Michel Foucault e Gottfried Leibniz, Gilles Deleuze forjou e utilizou-se do conceito de dobra (plis)1. Segundo Deleuze, tudo no mundo existe dobrado. A vida, ela mesma, seria uma dobra aberta, permanentemente inacabada e cuja flexão ao fora e ao dentro remeteria a um tipo de movimento que implica e multiplica, conecta e separa, dividindo-se infinitesimalmente em outras dobras menores e maiores, mas conservando sempre uma coesão que é própria de sua articulação. De Leibniz, Deleuze também tira a metáfora da cidade como um labirinto do contínuo: passagens e bloqueios, pedaços daqui que se encontram acolá, contornamentos, reviravoltas, mil dobras. Se essa cidade-labirinto pode ser de fato imaginada como o evento do origami, cuja arte dobra, desdobra e redobra infinitamente a superfície de sua trama, então a São Paulo que emerge do trabalho de Vera da Silva Telles parece ser uma espécie de experimentação radical desse pensamento.

Resultado de dez anos de diálogos, reflexões e inflexões de pesquisa, A cidade nas fronteiras do legal e ilegal apresenta e descreve de perto uma São Paulo em certos aspectos inusitada. O mundo urbano aparece ali precisamente no cruzamento cerrado de inúmeros vetores de transformações: no mundo do trabalho e suas relações; nos novos circuitos da economia informal urbana; na globalização e no ultraliberalismo dos mercados metropolitanos; na reconfiguração do Estado e dos serviços públicos; na proliferação das ONGs, associações e outros dispositivos gestionários diante da “nova questão social”; no surgimento de micromecanismos de regulação local dos conflitos cotidianos e nas implicações e figurações do crime e da violência. A articulação entre os problemas empíricos, a multiplicidade de conceitos e referenciais teóricos e as inúmeras questões de ordem metodológica impressionam o leitor desavisado e traduzem a densidade e a pluralidade do pensamento de uma autora que tem sido referência obrigatória nos estudos sobre a dinâmica urbana paulistana.

O livro, produto de sua livre-docência defendida no departamento de sociologia da Universidade de São Paulo no final de 2010, é fruto de um intercâmbio mais amplo com pesquisadores estrangeiros e brasileiros, destacando-se aí o papel fundamental da equipe de jovens pesquisadores que, sob sua orientação, se voltaram para as diversas facetas na qual as mutações da cidade poderiam ser flagradas, descritas e analisadas. Dividida em duas partes, a organização da obra reflete um duplo momento de reflexão da pesquisa. A primeira parte, intitulada “Experimentações”, expressa uma fase inicial das investigações que contou com a parceria de Robert Cabanes e resultou na publicação, em 2006, de um livro organizado por ambos os autores2, a partir de um conjunto de pesquisas coletivas do qual originam os três primeiros capítulos da obra aqui discutida. Já a segunda parte, “Deslocando o ponto da crítica”, aponta para o esforço de colocar a situação urbana paulistana num jogo mais ampliado de referências, nacionais e internacionais, e para um aprofundamento maior das implicações empíricas, políticas e teóricas dos ilegalismos urbanos.

De fato, o trabalho enfrenta um dos maiores desafios colocados para os estudos urbanos hoje: articular coerentemente conceitos que capturem processos, mecanismos, agências e diversas mediações capazes de apreender a heterogeneidade, a fragmentação e a polarização social da metrópole contemporânea. Diferente dos estudos que tomam a cidade apenas como paisagem ou pano de fundo dos processos analisados, ou mesmo daquelas pesquisas que a focam como principal realidade a ser interrogada, há um empenho geral em cruzar diferentes instâncias de análise e distintos setores de atividade urbana em prol de um diagrama de inteligibilidade transversal, mas sempre situado no tempo e no espaço. Com isso, aquilo que é lançado ao primeiro plano é justamente o trabalho instersticial dos conectores, mediadores, tradutores, passadores, em suma, os operadores das dobras que permitem jogar com o mundo urbano e seus múltiplos campos de gravitação. Desse modo, a cidade e seus problemas, ou melhor, “a questão urbana”, não é tratada numa definição prévia e modelar, mas como diz Telles “é figurada no andamento mesmo das prospecções como questão (parcial) e interrogações (sempre reabertas)”3.

Se o conjunto da obra tem como principal eixo de articulação justamente esta transitividade entre diversos territórios, universos de códigos e circuitos de práticas, é nas fronteiras do legal e ilegal, como diz o título, que toda argumentação analítica e empírica centra fogo. A principal referência teórica aqui é Michel Foucault e seu conceito de “gestão diferencial dos ilegalismos”, conceito que diz respeito a um conjunto de práticas de diferenciação, tipificação e hierarquização ativadas por dispositivos que cristalizam, fixam suas formas e “tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral de sujeição”4. Longe de desconsiderar os efeitos materiais e políticos da lei, busca-se compreender que o exercício de sua letra, “a assinatura do Estado” como diz Veena Das5, instaura campos de força e de conflito, estabelecendo todo um jogo de posições “numa espécie de tabuleiro de xadrez, com casas controladas e casas livres, casas proibidas e casas toleradas, casas permitidas a uns, proibidas a outros”. Disso, conclui-se, “numa formulação bem brasileira”6, como lembra Angelina Peralva no prefácio do livro, que “a lei não é feita para impedir tal ou tal tipo de comportamento, mas para diferenciar as maneiras de burlar a própria lei”7.

A obra persegue, assim, esses “torneios da lei”, dobraduras que articulam não só o legal e o ilegal, mas também o lícito e o ilícito, o formal e o informal. O foco nos ilegalismos e nos jogos de poder disputados em suas fronteiras, como explica a autora, busca lançar luz sobre uma inquietante linha de sombra que perpassa a experiência metropolitana em suas dimensões mais cotidianas e corriqueiras. E aí reside uma poderosa hipótese: a de que a vida urbana é atravessada, e em boa medida estruturada, por uma crescente teia de ilegalismos – novos, velhos e redefinidos – dispersa nas práticas e nos fluxos urbanos, os mais variados, assim como os mais prosaicos.

Um caso analisado no capítulo 5 (“Nas dobras do legal e ilegal: ilegalismos e jogos de poder”) é ilustrativo. Doralice, 40 anos, moradora de um bairro da periferia paulistana, trabalha como diarista e também faz e vende pães e doces para complementar a renda de sua extensa família. Mulher batalhadora, Doralice “não hesita quando surge a oportunidade de montar uma banca de CDs piratas em um bairro próximo à sua casa”, acionando com isso uma cascata de relações com intermediários: os “garotos de uma favela ao lado chamados para garantir a venda durante o dia, enquanto ela sai para o trabalho de diarista”; o agenciador dos CDs e o laboratório em que os CDs são copiados e distribuídos; os fiscais e os policiais aos quais os vendedores de rua têm de pagar pela proteção, ou melhor, pela extorsão. Entre essas relações mobilizadas como forma de lidar com as necessidades da vida, Doralice também se enreda numa “espantosa rede que opera o mercado de receitas médicas fraudadas para conseguir o remédio de que depende a vida do marido”, e acaba transformando-se, vez ou outra, na própria intermediária desse mercado negro. Mais à frente, “Doralice não encontra nenhuma razão moral para recusar o ‘serviço’ que lhe é proposto por um conhecido próximo e de confiança, e colocar a encomenda de ‘farinha’ em sua bolsa, entrar no ônibus, atravessar a cidade e tranquilamente levar a mercadoria a seu destino, trazendo de volta um ganho modesto, mas que fará toda a diferença no orçamento doméstico”8. Nesse trânsito, essa personagem não se vê como alguém comprometido com o “mundo do crime” ou com práticas imorais, mas como alguém que está se virando do jeito que pode através de “bicos” aqui e acolá.

A história de Doralice não é excepcional, é uma entre outras, “a vida de uma mulher infame” diria Foucault9, uma história minúscula que permite entrever a complicada cadeia de mediações e relações de poder que conectam e situam os sujeitos na trama concreta de suas existências. São então os traçados dessas “mobilidades laterais”, como conceitua Telles, que permitem explorar essa zona cinzenta na qual a cidade cotidianamente é dobrada e virada pelo avesso em suas normas, códigos e regulamentações formais. A cuidadosa análise das trajetórias urbanas – resultado, entre outras coisas, da proximidade com o trabalho de Robert Cabanes e seus estudos sobre o método biográfico10 – emerge como perspectiva capaz de enfrentar e redesenhar as dicotomias e binaridades clássicas presentes em boa parte dos estudos sobre cidade e segregação urbana: trabalho e moradia; produção e reprodução social; exploração do trabalho e espoliação urbana; centro e periferia; riqueza e pobreza; e, como não poderia deixar de ser, a cidade legal e a cidade ilegal. No livro, esses pares conceituais não são propriamente abandonados, mas permanentemente problematizados, recolocados e dobrados uns nos outros, no movimento mesmo das descrições etnográficas que acompanham e fornecem o solo no qual a análise se desenrola.

Do ponto de vista metodológico, é de fato notável como o foco nas mobilidades e nos regimes de circulação, com seus bloqueios, desvios e formas de acesso contrapõe e desloca a imagem da cidade partida11 ou da cidade de muros12, para outra que reside nas tramas da cidade13 e que preenche justamente o “entre” dos espaços fronteiriços. Contudo, longe de negar a existência de dispositivos de controle, barragem ou mesmo contenção na cidade, a análise buscou atentar para o fato de que as fortificações e os cercos da vida urbana são, todos eles, muito mais prenhes de fissuras e porosidades do que se imagina. Não partindo das partes separadas e extremadas que supostamente comporiam uma cidade dual, mas voltando-se para a própria relação que instaura ou contesta o movimento da divisão, o livro de Telles problematiza o próprio trabalho de dobradura que a experiência urbana opera sobre si mesma, evidenciando no jogo dessas fronteiras as zonas de turbulência e de intensa negociação que ainda precisam ser mais bem entendidas, mas que da ótica de seus atravessadores e passadores ordinários não são tão excepcionais assim.

No entanto, o problema da mobilidade urbana não é novo. Influenciado pelos trabalhos de Georg Simmel e seu personagem conceitual do “estrangeiro” (stranger), como um ser ao mesmo tempo múltiplo e móvel, interno e externo aos agrupamentos, os estudos da Escola de Chicago inauguraram um novo modo de analisar a cidade. A cidade vista através do movimento de seus habitantes, através de seus conflitos, de seus deslocamentos e seus modos de territorialização14. Mas se na passagem para o século XX a experiência de pesquisa em Chicago sobre as histórias de vida, as trajetórias habitacionais e ocupacionais, associava diretamente entre si os fenômenos de migração, urbanização, industrialização e modernização, hoje, cem anos depois, as questões colocadas pelos estudos de mobilidade são de outra ordem e outra escala. Se os fenômenos de ecologia urbana eram montados com relação ao problema das nacionalidades e da integração nacional americana – assim como os estudos urbanos brasileiros dos anos 1970 e 1980 tinham como questão de fundo o processo de modernização (sempre incompleta) de nosso país -, após os anos 1990, com a abertura dos mercados aos capitais e demais fluxos transnacionais que pousam e decolam em velocidade nas grandes metrópoles, iria se tratar de uma análise ecológica muito mais ligada à globalização e seus territórios15.

Esse é outro importante eixo de inflexão do livro. Ao demonstrar como o crescimento do mercado informal está diretamente conectado aos circuitos de um novo capitalismo mundializado, opera-se aqui mais uma dobra, de modo que a reluzente e pujante economia global é colocada face a face com o mundo ordinário das reciprocidades populares, estendendo e complexificando mais ainda as relações entre riqueza e pobreza urbana. E as etnografias de sua equipe de pesquisadores flagram bem esse processo. Como revela o trabalho de Carlos Freire16 sobre os circuitos urbanos do comércio informal que mobilizam o “trabalho sem forma”, conectando contrabando e pirataria e estabelecendo poderosas articulações entre o informal e os circuitos ilegais das economias transnacionais. Aqui, as vagas migratórias também são outras, não mais aquelas que buscam necessariamente a instalação durável e a inserção permanente numa sociedade hospedeira. São trabalhadores muito mais flexíveis, conectados e circulantes, bolivianos operando na indústria de confecção paulistana, articulados e agenciados, por sua vez, pelos comerciantes coreanos que controlam o nicho do tecido sintético na cidade.

Como também mostra a pesquisa de Claudia Sciré17, a economia doméstica é toda redefinida em função das condições de acesso aos grandes equipamentos de consumo, shopping centers, Casas Bahia e feirinhas das mais variadas que, com uma literal “financeirização da pobreza” decorrente da explosão do consumo popular e a generalização dos cartões de crédito, alteram a organização familiar, as sociabilidades vicinais e as práticas de lazer locais. Nesses circuitos de troca e dádiva, entrecruzam-se, mais e mais, lógicas da dívida onde se compra hoje para se pagar apenas quando puder. Os contratos de troca extrapolam a palavra empenhada e se formalizam em documentos jurídicos implicados também em juros variáveis e variantes. São práticas de endividamento sucessivo que enredam parentes e amigos na financeirização do velho “fiado” e que, entre os empréstimos que vão para lá e para cá, prorrogam sempre mais o momento de pagamento, podendo levar a gestão da dívida, sua negociação, ao infinito.

O capítulo final do livro, o único totalmente inédito, toca no centro nervoso das discussões a respeito deste fantasma que ronda a metrópole e que é chamado, no singular, de “violência urbana”. Em torno da impressionante queda na taxa de homicídios que se deu em São Paulo a partir dos anos 2000, Telles mostra como se montou um verdadeiro campo de disputas e controvérsias no qual argumentos políticos, estatísticos, sociológicos e etnográficos se cruzam e se confrontam na busca pela explicação do acontecimento e na legitimação dos discursos em pauta. Entre as hipóteses dispostas nesse debate destaca-se aquela que, celebrada pelo próprio governo do estado de São Paulo, explica a baixa no índice dos assassinatos como resultado da eficiência das políticas de segurança pública. Também a “hipótese PCC” circula nessa discussão apoiada na ideia de que a hegemonia da facção no comércio das drogas teria contribuído para a “pacificação” de territórios conflagrados mediante expedientes como os “debates”. Chamados também de “forinhos”, os “debates” são uma espécie de tribunal em que as partes envolvidas são chamadas para dar sua palavra, com a participação dos patrões da biqueira e a intermediação de “irmãos” do “partido”, seja presencialmente ou através de celulares. Nas palavras da autora:

No início, mecanismos postos em prática na resolução das desavenças internas aos “negócios do crime” e às organizações criminosas. Surge, primeiro no universo carcerário e transborda, depois, para os bairros da periferia da cidade e, em pouco tempo, passa a ser acionado para a regulação de microconflitos cotidianos: de brigas de vizinhos a disputas em torno da distribuição de lotes em áreas de ocupação de terra, passando por problemas com adolescentes abusados, pequenos delitos locais, brigas de marido e mulher e miríades de situações próprias da vida nesses bairros18.

Com isso aprendemos que, entre a prisão e o bairro, não só pessoas e coisas circulam, mas também valores e modos de agir, procedimentos e “debates” fluem pelos inúmeros “vasos comunicantes” que conectam o dentro e o fora da cadeia19. Dialogando com estudos recentes e amparada por um trabalho de campo de longa duração com Daniel Hirata20 – pesquisador cuja interlocução nesse ponto é de fundamental importância na argumentação da autora -, Telles coloca em evidência as formas territorializadas de regulação extralegal da vida (e também da morte) e explora as continuidades e as descontinuidades desses diferentes mecanismos de gestão através da recuperação da história urbana local e seus principais personagens. Com isso, “justiceiros”, “matadores” e “traficantes” aparecem como marcadores temporais de diferentes regimes de poder numa cronologia da violência que se estende por trinta anos no passado. A variação de escala e a mudança de perspectiva, operada em prol das “histórias minúsculas” desses personagens, com efeito, dissolve o espectro monstruoso e abstrato da “violência urbana” e, entre outras coisas, revela como as “mortes matadas” ocorrem, também, por motivos os mais corriqueiros, comuns e demasiadamente humanos possíveis: traições, mal-entendidos, brigas, pendências, vinganças, acertos de conta.

O livro termina com este aprofundamento crítico a respeito dos jogos de vida e morte na cidade de São Paulo, seus jogadores, percursos e cenas de atuação, questões muito diferentes de suas pesquisas anteriores, que tematizavam centralmente a pobreza, a cidadania e suas relações21. A trajetória de pesquisa de Vera Telles desenha, de fato, um importante deslocamento nos campos de problematização que efetua e que pode ser parcialmente flagrado em seus aspectos teóricos no capítulo 4 do livro (“Tramas da cidade: fronteiras incertas do informal, ilegal, ilícito”), em que, num debate mais amplo travado com seus interlocutores do CENEDIC (Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania)22, interroga-se a respeito dos limites da linguagem dos direitos e da implosão de seu vocabulário conceitual: leis, cidadania, participação e espaço público.

Situado no meio do livro, o capítulo constitui uma espécie de dobradiça articulando as duas metades da obra e permite compreender melhor as reviravoltas de uma pesquisadora que, vinte anos atrás, tinha como principal referência Claude Lefort e Hannah Arendt (e os problemas da “invenção democrática” e da “revolução”), e hoje trabalha sob um diagrama de análise montado a partir de Michel Foucault e Giorgio Agamben (e a própria reconceituação da política referente ao “biopoder” e à “governamentalidade”, à “vida nua” e ao “estado de exceção”).

Perguntávamos, e era a pergunta que eu própria fazia quando lidava com essas realidades: quais as potências que permitem transformar o “pobre” (personagem) em “cidadão” (outro personagem)? Pois, agora, a pergunta é outra. A pergunta que esses personagens estão nos sugerindo é: como escapar da morte matada ou da infelicidade do pobre coitado?23

Mas a retórica do “desmanche” e da “era da indeterminação”, utilizada para caracterizar essa transformação da política em pura administração das urgências e gestão dos riscos, não funciona, tal qual se poderia imaginar, como um paralisante do pensamento e da ação. Muito pelo contrário, a incerteza de nossa atualidade emerge no livro como o principal propulsor do esforço em descrever este mundo em mudança. Não por acaso, todo o corpo da obra é organizado em função desta experimentação de forte teor etnográfico: “experimentação como prática de pesquisa, como forma de produção de conhecimento, também como experiência de pensamento” (p. 11).

Transversal às escolas e às tradições nacionais, seja na interlocução de longa data com a literatura sociológica brasileira (Lúcio Kowarick, Chico de Oliveira, Cibele Rizek) ou na problematização da cidade através de referenciais franceses ainda pouco conhecidos em nosso país (Marcel Roncayolo, Bernard Lepetit, Isaac Joseph, Yves Grafmeyer), destaca-se no trabalho um notável diálogo com o pensamento antropológico (Arjun Appadurai, Veena Das, George Marcus, Paul Rabinow, Bruno Latour, Ulf Hannerz, Michel Agier, Alain Tarrius, Alba Zaluar). Ainda que difuso, esse diálogo aparece aqui e ali em todo corpo da obra e ajuda a estabelecer o fio condutor no qual o parâmetro descritivo da pesquisa se desdobra no próprio parâmetro da crítica. Seja como for, talvez fosse interessante operar aí uma outra dobra, não destacada no livro e que seria ao mesmo tempo um aprofundamento desse diálogo com a antropologia. Uma dobra capaz de vergar a pesquisa sobre si mesma, fazendo-a refletir mais detidamente sobre as condições de investigação quando o campo é “minado” e marcado pela desconfiança e pelo medo. O que, por sua vez, permitiria introduzir a própria urgência no coração (não só da política, mas também) do trabalho etnográfico.

O leitor que se dedica a pesquisas em paisagens análogas definitivamente fica muito instigado em saber mais sobre a “cozinha” do trabalho de investigação: como se deu a entrada em campo, quais os parâmetros metodológicos que orientaram a seleção dos entrevistados, quais foram os contextos de enunciação das narrativas registradas; e também sobre a tessitura das relações estabelecidas entre os objetos e os sujeitos da investigação, especialmente quando esta, como é o caso, se desenrola num tempo de longa duração. Além destas, outras questões podem ser levantadas. O que significa, de fato, pesquisar em territórios de exceção? Quais condições de trabalho e de conhecimento se impõem ao pesquisador nessas zonas de turbulência e indeterminação? Como pensar sobre o conflito e a violência quando se está fazendo pesquisa no centro desses processos? Como teorizar sobre a localização desses saberes?

Essas e inúmeras outras perguntas afloram da leitura do vigoroso trabalho de Vera Telles. E é justamente pela multiplicidade de problemas abertos, conceitos apresentados, hipóteses levantadas, também pela impressionante quantidade e qualidade de informações sobre São Paulo, que A cidade nas fronteiras do legal e ilegal é uma formidável “caixa de ferramentas” para pesquisadores da área e um manancial de conhecimento para todos aqueles que se interessam em decifrar a cidade numa perspectiva que transcenda o já dito. Essa obra de fôlego, que nos apresenta uma São Paulo em processo e feitura, e por isso mesmo incerta e desconcertante, desenha uma paisagem urbana onde tudo pode se relacionar com tudo. Uma cidade feita de dobraduras na qual sempre existe uma dobra dentro da outra e na qual o maior perigo é perder-se na vertigem do embaralhamento promovido pelos inúmeros caminhos que a cidade-labirinto nos propõe.

Notas

1 DELEUZE, Gilles. A dobra: Liebniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991; [Links] Deleuze, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. [Links] 2 TELLES, V. da S. e CABANES, R. (orgs.). Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Humanitas, 2006. [Links] 3 TELLES, V. da S. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010, p. 26. [Links] 4 FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 226. [Links] 5 DAS, Veena. “The Signature of the State: The Paradox of Illegibility”. In: Life and Words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley/Los Angeles: University California Press, 2007. [Links] 6 TELLES, V. da S., op. cit., p. 10.
7 FOUCAULT, M. “Gerir os ilegalismos”. In: POL-DROIT, Roger (org.). Foucault entrevistas. São Paulo: Graal, 2006, pp. 50-51. [Links] 8 TELLES, V. da S., op. cit., pp. 173-75.
9 FOUCAULT, M. “A vida dos homens infames”. In: Ditos & Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. [Links] 10 CABANES, R. Travail, famille, mondialisation. Récits de la vie ouvrière. São Paulo: IRD/Karthala, 2002. [Links] 11 VENTURA, Zuenir. A cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. [Links] 12 CALDEIRA, Teresa. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 2003. [Links] 13 TELLES, V. da S. e Cabanes, R., op. cit.
14 GRAFMAYER, Yves e JOSEPH, Isaac (orgs.). L’Ecole de Chicago: Nassaince de l’ecologie urbaine. Paris: Aubier- Montaigne, 1994. [Links] 15 ALSAYYAD, Nezar e ROY, Ananya. “Modernidade medieval: cidadania e urbanismo na era global”. Novos estudos Cebrap, nº 85, 2009. [Links] 16 FREIRE, Carlos. Trabalho informal e redes de subcontratação. São Paulo: dissertação de mestrado, FFLCH- USP, 2008. [Links] 17 SCIRÉ, Claudia. Consumo popular, fluxos globais: práticas, articulações e artefatos na interface entre a pobreza e a riqueza. São Paulo: dissertação de mestrado, FFLCH-USP, 2009. [Links] 18 TELLES, V. da S., op. cit., p. 208.
19 GODOI, Rafael. “Prisão, periferia e seus vasos comunicantes em tempos de encarceramento em massa”. Texto apresentado no seminário Crime, violência e cidade. São Paulo: FFLCH-USP, 2009. [Links] 20 HIRATA, Daniel. Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida. São Paulo: tese de doutorado, FFLCH- USP, 2010. [Links] 21 TELLES, V. da S. Direitos sociais: afinal do que se trata? Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999; [Links] Telles, V. da S. Pobreza e cidadania. São Paulo: Editora 34, 2001. [Links] 22 OLIVEIRA, Francisco de e Rizek, Cibele Saliba (orgs.). A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007. [Links] 23 TELLES, V. da S., op. cit., p. 170.

Daniel de Lucca – Professor de Antropologia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e doutorando em Ciências Sociais na Unicamp.

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Facundo ou civilização e barbárie – SARMIENTO (NE-C)

SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo ou civilização e barbárie. Tradução e notas de Sérgio Alcides; prólogo de Ricardo Piglia; posfácio de Francisco Foot Hardman. São Paulo: Cosac & Naify, 2010. Resenha de: HOSIASSON, Laura Janina O prazer da leitura em Facundo. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.89, Mar, 2011.

Do tempo que é depois, antes, agora,
Sarmiento, o sonhador, continua nos sonhando.
Borges, “Sarmiento”, O outro o mesmo

A leitura deste livro – em tradução cuidadosa de Sérgio Alcides – confirma com espantosa evidência o fato de estarmos no século XXI ainda fincados de modo visceral no século XIX. Embora nossas convicções nacionalistas distem muito de ser as mesmas de Sarmiento e seus preconceitos raciais sejam intoleráveis para nós, ainda que seus prognósticos políticos soem ingênuos para o leitor latino-americano no presente, reconhecemos como nossas as contradições, os paradoxos, as ambivalências que marcam o discurso deste narrador que perscruta o mundo ao redor à procura do sentido de sua história. Sua perspectiva diante dos acontecimentos que narra nos atrai pela capacidade de enxergar a complexidade que há por trás do fato aparentemente simples. Para além de sua visão de mundo cindida em dois, um mundo que se debate entre as forças civilizadas vindas da Europa e a barbárie indígena e de lastro colonial, entre “os últimos progressos do espírito humano e os rudimentos da vida selvagem, entre as cidades populosas e as matas sombrias” (p. 53), apesar dessa visão tributária decerto do romantismo de sua época, reconhecemos a desenvoltura de sua prosa e a forma como ele liga coisas que pareciam distantes e as atrela ao núcleo principal de seu argumento.

É preciso destacar, nesse sentido, o prazer da leitura desde os primeiros parágrafos. Escrito “de uma sentada só”, em não mais de dois meses – entre maio e junho de 1845 -, para ser publicado como folhetim no jornal chileno El Progreso, sua prosa viva, ágil e imaginosa embala o leitor num ritmo que nunca esmorece. Para falar de contingências da política internacional, Sarmiento lança mão de símiles e perífrases que dariam água na boca a qualquer um de nossos comentaristas atuais. Na sua visão, o mundo possui convergências inusitadas e paralelismos que podem ligar as rotações dos astros no firmamento às reviravoltas dos regimes autoritários aqui na terra. Sua perspectiva global dos acontecimentos internacionais lhe permite aludir às vicissitudes, aos processos histórico-culturais, à política ou à economia da Itália, da Polônia ou do Paraguai para falar da Argentina. Por outro lado, sua concepção do mundo asiático e oriental, marcada pelo exotismo, parece saída dos livros de Marco Polo e são recorrentes as alusões a “lembranças imaginárias” desse mundo excêntrico, devasso, desorganizado, atrasado, bárbaro enfim, para se referir às mazelas da situação argentina.

Em primeiro lugar, e sem nunca sair do espectro de seu horizonte, está o “Eu”1 do exímio narrador, figura que se insinua e já se define nas cenas descritas na “Advertência do autor”, quando começa por nos alertar sobre os erros circunstanciais e as “inexatidões”, derivados da situação de exílio em que se encontrava2, obrigado a apelar para “as próprias reminiscências”. Exemplo emblemático é a célebre citação (“on ne tue point les idées”) que nessa mesma “Advertência”, ele atribui a Fortoul: Paul Groussac a remeteria ao conde Volney, mas críticos recentes afirmam ser invenção dele próprio e Ricardo Piglia (no prólogo a esta edição), de Diderot3! O mesmo ocorre com as epígrafes que inauguram cada capítulo, em sua maioria inexatas, incompletas e mal atribuídas. Mas isso está longe de significar motivo de preocupação para ele, que as assume como sinal de espontaneidade e de transparência, preferindo não retocar nada para não desaparecerem do livro “sua fisionomia primitiva e a audácia louçã e voluntariosa de sua concepção mal disciplinada”, como ele mesmo declara em carta a Valentín Alsina, no momento da segunda edição da obra em 18514. Nessa atitude já se mostra um tipo de narrador que se assume como leitor e intérprete ele também e que, adiantando-se em várias décadas, aponta para aquilo que Marcel Proust irá formular num pequeno e precioso texto “Sobre a leitura”: a relação livre que o escritor poderia estabelecer com os documentos e livros que cita e a partir dos quais constrói sua obra5. Podemos pensar também que aqui reside uma das matrizes da relação libérrima e lúdica que se estabelece nas narrativas de Jorge Luis Borges com as fontes e as citações bibliográficas. Borges fará disso um procedimento estético.

O narrador de Facundo sente-se duplamente livre: de um lado, num território neutro, como o que ele encontra no seu exílio chileno, para dizer e escrever o que pensa, sem risco de vida; e de outro, sente-se livre e já maduro para elaborar um estudo capaz de aglutinar de modo magistral um enorme leque de gêneros e estilos, através dos quais perambula com absoluta soltura.

Aos 34 anos, após uma formação praticamente de autodidata (Sarmiento só cursou de forma regular a escola primária) tornar-se-á grande educador, áspero polemista, político hábil e publicitário. Dominará a escrita e será capaz de compor descrições detalhadas da geografia do pampa argentino, com olhar detido em toda espécie de árvore, flor ou aroma; saberá elaborar uma tipologia social do gaúcho, de sua rotina no pampa, tão eficaz e pertinente, que o transformará de imediato e de maneira simultânea em referente para o pensamento histórico sobre o país e pedra de toque para a imaginação de toda uma linhagem literária argentina. Ainda no mesmo livro, interpreta a história do país desde sua independência em 1810 até 1845, período dentro do qual delineará a biografia circunstanciada do terrível caudilho Facundo Quiroga, salpicada de digressões, diatribes e ponderações e termina prognosticando um futuro argentino, uma vez superada a ditadura de Juan Manuel Rosas (o que só aconteceria em 1852). Tudo isso num livro só, pontuado ainda com iluminações de grande estrategista político, qualidade essa que levaria Sarmiento à presidência, em 1868.

O título bifronte –Facundo ou civilização e barbárie-, que alude, de um lado, à biografia do caudilho, e, de outro, à dialética entre o que se entende por mundo civilizado e o que se entende por barbárie, já aponta na direção de uma obra plural. Entre outras coisas, trata-se também de um panfleto político, na tradição da Brevíssima relação da destruição das Indias Ocidentais de Bartolomé de Las Casas6. Encontramos no texto de Sarmiento, como no de Las Casas, um esquematismo antitético, muitos exageros e fórmulas simplificadoras e caricaturais em que a história se coloca como campo de batalha entre forças antagônicas lutando entre si. Só que não estamos aqui em presença do maniqueísmo sistemático com que o frade dominicano reduzia o conflito entre indígenas e espanhóis no século XVI, posicionando frente a frente pobres carneirinhos e lobos famintos. Sarmiento propõe-se detratar e desmoralizar o ditador argentino, seu maior inimigo político: aquele que representa para ele a personificação do mal, do atraso, da impossibilidade do progresso e é signo da estagnação política. Só que para tanto idealiza um texto em que isso possa ser feito sem que as farpas sejam dirigidas de forma direta. A primeira biografia que escreveu, sobre o general Félix Aldao, poucos meses antes de começar a escrever Facundo, era já de certa forma germe deste livro e também do seu proceder: um meio lateral de apontar na direção de Rosas.

Mas a questão é que Rosas é muito interpelado, e ressurge o tempo todo ao longo das mais de quatrocentas páginas: como a sombra de tudo que se narra, é o alvo de tudo que se diz. Mediante um procedimento literário absolutamente magistral, a primeira frase do livro, “Sombra terrível de Facundo, vou evocar-te para que te ergas, sacudindo o pó ensanguentado que cobre tuas cinzas […]”, produz um duplo movimento: trazer das sombras da morte o caudilho da província de La Rioja para iluminar e vitalizar sua trajetória, e empurrar Juan Manuel Rosas para as sombras do texto, sem voz, mas sempre a “escutar”, como um interlocutor fantasma, tudo quanto for dito. A ele são atribuídos desde o começo e de forma direta os epítetos mais terríveis: “falso”, “coração gelado”, “espírito calculista”, “um Maquiavel”, “Tirano”, “monstro”, déspota”, “esfinge Argentina” (por covarde e sanguinário). A Rosas dirige-se também de forma direta o narrador no último capítulo (“Presente e porvir”), quando o “Eu” narrativo encara de modo frontal seu interlocutor mudo, invocando-o na segunda pessoa do singular: “Insensato! O que fizeste?” (p. 422). Um dos grandes prodígios do livro é justamente ter criado uma situação absolutamente fictícia, mas por isso mesmo de uma força real impressionante, na qual o “Tigre de los Llanos” Facundo Quiroga (exemplo máximo da barbárie provinciana), tendo ficado atrás, morto e enterrado, deixa agora eles dois – Rosas e Sarmiento a se verem finalmente um diante do outro, como num duelo de titãs. No Prólogo à edição aqui resenhada, Ricardo Piglia trabalha justamente essa ideia.

Nas páginas finais, através do olhar do estrategista, Sarmiento calcula o paradoxo segundo o qual, graças à política do terror praticada pela ditadura de Rosas, o país está já finalmente centralizado em Buenos Aires: “Porém não se creia que Rosas não conseguiu fazer progredir a República que está despedaçando […]. A ideia dos unitários está realizada; apenas o tirano está demais” (p. 418). O olhar do escritor que tudo sopesa permite-lhe capitalizar o período sinistro da ditadura como um tempo de aprendizado, de educação política e social para o povo argentino. Um desfecho otimista, esperançoso de quem, apesar da adversa realidade circundante, nunca esmoreceu nas suas convicções, de quem estava se armando para assumir um dia ele mesmo o poder político do país. Nesse momento final irá repetir doze vezes (!) sua arenga contra Rosas, agora usando a terceira pessoa do singular: “Porque ele, não tomou uma medida administrativa […]. Porque ele perseguiu o nome europeu […]. Porque ele destruiu os colégios […]” (pp. 427-430), e assim por diante.

A eficácia de todo esse esforço por desacreditar o inimigo ficaria provada pelas palavras que o mesmo Rosas teria declarado após a publicação do livro: “O livro do louco Sarmiento é o melhor que já se escreveu contra mim; é assim que se ataca, senhor; é assim que se ataca; o senhor verá que ninguém irá me defender tão bem”7.

Outra grande eficácia do livro reside na sua estrutura. Tendo sido expostas já na “Introdução” as diretrizes gerais que norteiam tanto o aparato ideológico de Sarmiento como seus pressupostos esquemáticos sobre os processos históricos, a obra poderia correr o sério risco de se tornar uma longa e árdua estrada de redundâncias e de desenvolvimentos previsíveis. Isso está longe de acontecer graças à estrutura completamente heterogênea de suas partes. É possível pensar o livro em três grandes blocos8, muito diversos em natureza e tratamento narrativo.

Um primeiro bloco que compreenderia os quatro capítulos iniciais, dedicado à descrição dos contextos físico, social, racial, econômico, cultural e histórico que determinariam a índole dos indivíduos que ali habitam; um segundo- o mais longo – que reúne os nove capítulos seguintes, em torno da “vida e obra” de Juan Facundo Quiroga; e os dois últimos capítulos, de teor mais político e panfletário. A repisada questão da multiplicidade de gêneros que residem nesta obra, já pulsa nesta divisão que supõe três viradas abruptas nos pressupostos narrativos e compositivos, assim como mudanças de tom, de perspectiva e de ritmo.

A descrição que Sarmiento é capaz de fazer da imensidão argentina, de seus pampas, desertos e planícies é digna de poeta. A poesia de suas frases, para além da descrição justa e pormenorizada, permite que a própria geografia penetre na linguagem e se faça expressão da vida natural. Ele cria cenas hipotéticas de viajantes, de encontros com animais selvagens, com a onça perigosa, com o passarinho silvestre; sua palheta harmoniza cores, esboça nuanças com a sensibilidade do grande artista. Sarmiento é um escritor nato9 num tempo feliz em que a escrita podia intervir no curso das coisas, e foi o que ele fez.

No primeiro capítulo, “Aspecto físico da República argentina e caracteres, hábitos e ideias que engendra”, destaca-se a comparação com aquilo que Sarmiento entende pelo “mundo árabe e asiático”, atrasado, violento, supersticioso. Isso funcionará quase como um motivo recorrente ao longo do livro porque lhe serve para definir o que seja o mundo bárbaro (comparado também ao mundo tártaro). Ora os luares na planície extensa do pampa argentino se lhe afiguram como um espetáculo com “certa tintura asiática” (p. 77), ora “o caudilho argentino é um Maomé” (p. 133), e assim por diante. Francisco Foot Hardman, no posfácio à edição que aqui resenhamos, aponta para as relações intertextuais mais profundas desses quatro primeiros capítulos com a obra explicitamente citada por Sarmiento, As Ruínas, ou meditações sobre as revoluções dos impérios (1721), do conde Volney. Muitas das alusões ao Oriente no deserto do pampa, a caracterização dos seus tipos, além da cena de abertura da Introdução, em que Sarmiento invoca a sombra de Facundo Quiroga, seriam empréstimos e colagens de Volney. Isso vem reafirmar a atitude geral do narrador em Sarmiento, leitor compulsivo, autodidata genial que aproveita materiais de fontes bibliográficas e testemunhais diversas para compor seus panoramas, cenas e tipos. De fato, e isto causa verdadeiro espanto, Sarmiento nunca tinha estado no pampa quando realizou essas descrições antológicas. Valeu-se de narrações de vaqueiros e de descrições feitas por combatentes da guerra civil. Ele só veio conhecer o espaço tão perfeitamente descrito sete anos depois, em 1852, redigindo boletins para o “Exército Grande” de Urquiza que derrubaria finalmente a ditadura de Rosas.

Com relação ao Oriente, seu conhecimento deve ter sido fruto de tudo que ele apanhava, no ar de seu tempo, da visão romântica e exótica, até as leituras explicitamente declaradas de Volney. A questão é que para ele, sem ter ainda estado no pampa e sem nunca ter ido ao Oriente, como afirma categoricamente e sem deixar que o leitor possa ter tempo de parar para duvidar, “há algo nas soledades argentinas que traz à memória as soledades asiáticas […]” (p. 77). Por outras palavras, para os propósitos de sua tese, é importante inventar esse mundo de barbárie (sedutor e abominável ao mesmo tempo) lançando mão de tudo que estiver disponível e, assim, poder construir a oposição com o mundo civilizado da cidade, de modos elegantes “à europeia”, instruído e trabalhador, que ele propõe para o futuro da pátria.

O determinismo oriundo da leitura de A democracia na América de Tocqueville (mais uma das referências citadas explicitamente por Sarmiento), entre outros, pairava sobre as concepções sarmientinas da formação do caráter dos povos. Somente por meio do contato direto com as ideias e a cultura europeias inculcadas nas escolas primárias é que o povo argentino poderia superar sua condição atávica de atraso que lhe chegava por duas vias: a indígena bárbara e a espanhola retrógrada (e, portanto, também bárbara).

Ao longo desses quatro capítulos iniciais aparecem alguns dos mitos que marcam de forma profunda e indelével a literatura argentina: a violência e galhardia gauchescas e a ociosidade anticapitalista do mundo da campanha, entre outros. Como não pensar em Borges quando lemos trechos como o seguinte:

[…] é preciso ver essas caras cobertas de barba, esses semblantes graves e sérios, como os dos árabes asiáticos, para julgar o compassivo desdém que lhes inspira a visão do homem sedentário das cidades, que pode ter lido muitos livros, mas que não sabe aterrorizar um touro bravio e darlhe morte; que não saberá proverse de cavalo em campo aberto, a pé e sem auxílio de ninguém; que nunca deteve um tigre, recebendoo com um punhal na mão e o poncho envolvido na outra para lhe meter na boca enquanto lhe traspassa o coração e o deixa estendido a seus pés (p. 92).

Também exercita Sarmiento seus dotes de crítico literário, incursionando na interface da ficção com o ensaio: analisa O último dos moicanos de Fenimore Cooper, aproximando-o de A cativa de Echeverría, dois antecedentes na ficcionalização do binômio civilização/barbárie. Arrola poemas de poetas cultos e o cancioneiro popular. Seu narrador está a esta altura, juntamente com o seu leitor, embevecido pelo encanto deste mito da vida do gaúcho, bárbara e desprezível – que ele retrata, lembra, inventa – repleta de força vital e literária.

Em “Originalidade e caracteres argentinos” e “Associação: a pulperia”, provavelmente as passagens mais romanescas do livro, elaboram-se os tipos e os temas gauchescos que se constituirão em mitos: o “rastreador”, o “baqueano”, o “gaucho mau”, o “cantor”, a faca e o cavalo. O narrador oscila, com a ambiguidade sedutora própria de todo grande narrador, entre a admiração e a indignação diante desse mundo, segundo ele “a cavalo” entre o século XII e o século XIX. O mistério do poder e da força que esses seres bárbaros possuem contradiz, o tempo todo, a proposta de crítica. O narrador cai na cilada do fascínio do enigma cifrado nesses gaúchos. São eles, seres que conhecem, que possuem um saber da realidade ao seu redor, o que os torna perfeitamente pertinentes dentro do contexto em que são concebidos: O rastreador, uma espécie de farejador de rastos e sinais, pela dignidade e o respeito que provoca a seu redor; o baqueano, pelos seus conhecimentos de topografia indispensáveis em qualquer façanha militar; o gaúcho mau, “sem que esse epíteto o desfavoreça de todo”, cujo mistério “voa por toda a vasta campanha”; e o cantor, que de certa forma, é uma soma dos demais e o poeta que os canta. Campo e cidade entram aqui num confronto complicado porque, para Sarmiento, a concepção de progresso (para ele a passagem do campo à cidade) passa fundamentalmente pela troca de hábitos culturais, sem que a base econômica da defasagem esteja colocada. Daí o andamento ambíguo, contraditório da escrita nessas passagens. Martín Fierro viria, décadas mais tarde, se erguer contra todo o preconceito com que Sarmiento imaginou esta tipologia popular, embora, lendo a contrapelo o poema de José Hernández, se revelem todos os débitos que ele tem com a sua matriz.

Outra das contradições interessantes nestes primeiros quatro capítulos é a concepção ambivalente que se tem da Espanha. Ora é a “renegada da Europa, posta entre o Mediterrâneo e o oceano, entre a idade Média e o século XIX”, cujo problema poderia ser compreendido por meio do “minucioso exame da Espanha americana, assim como as ideias e a moralidade dos pais podem ser rastreadas por meio da educação e dos hábitos dos filhos” (p. 53), Espanha essa que mais adiante é definida como a face europeia e culta da República argentina, em oposição à “bárbara, americana, quase indígena”, na hora de sua independência, em 1810 (p. 135). Essa “maleabilidade” dos conceitos utilizados pelo narrador neste livro fantástico repete-se em mais de uma oportunidade e pauta um estilo que vem a ser, por isso mesmo e antes de tudo, uma obra de ficção cujo protagonista principal não será nem Facundo nem Rosas, mas o próprio Sarmiento. O narrador é uma das caras deste personagem que avança no seu relato, refletindo sobre o próprio fazer a cada passo: “Dou tanta importância a esses pormenores porque eles servirão para explicar […]” (p. 134) ou mais à frente: “Precisei repassar todo o caminho até aqui percorrido a fim de chegar ao ponto no qual nosso drama começa” (p. 137), entre outros muitos exemplos ao longo da narrativa. Dessa forma nos envolve, sentimo-nos incorporados como escutas no processo desse “Eu” poderoso e envolvente que é o personagem-narrador10.

Os nove capítulos seguintes são dedicados à figura de Facundo, desde o nascimento até sua morte, assassinado a mando de Rosas, em Barranca Yaco. Fugindo da forma tradicional da biografia (proeza inusitada se lembrarmos, sobretudo, que Sarmiento escreve na primeira metade do século XIX), o narrador começa este esboço biográfico do caudilho e líder montonero11 narrando uma cena digna do melhor filme de faroeste12, na qual Facundo Quiroga se defronta com uma onça feroz. A ideia explicitada por Sarmiento é que as anedotas do personagem o revelam por inteiro. Essa é também uma teoria da composição que Borges desenvolveria depois. Toda a longa sequência do esboço da figura de Facundo é prova cabal da mão de mestre. A descrição física atravessada por digressões e conclusões deterministas e por comparações exóticas confirma o aspecto demoníaco da personalidade do feroz caudilho; a forma como o biógrafo continua fugindo do esquema tradicional de chave hegeliana leva-o a entremear os dados da vida do montonero com uma análise aguda da situação política de cada uma das províncias argentinas e de cada capital após a independência. Seu exercício é uma tentativa de compreensão do quadro geral que ali estava posto entre as províncias aliadas a Buenos Aires e as regiões em litígio, e dentro desse quadro (com direito a esquemas gráficos), ele irá acompanhar o desenvolvimento da “carreira” de batalhas e enfrentamentos de Facundo. A estratégia compositiva geral do livro repete-se aqui em cada caso particular, ou seja, o narrador leva seu leitor a sobrevoar pela geografia de cada localidade para ir adentrando em seus meandros e intrigas palacianas. De certa forma, sua tese, que concebe o campo e a cidade como compartimentos estanques, como dois polos antagônicos e em pugna, se desmancha pela própria mão de sua narrativa, que mostra as guerras intestinas que unitários e federalistas irão travar dentro e fora das cidades.

Os episódios mais macabros e cruéis das andanças de Facundo não serão poupados, mas pairará sempre sobre eles um tom de admiração diante de tamanha altivez e coragem. A cena de sua morte será descrita em minuciosos detalhes, enaltecendo-se essa coragem. Borges fará dela o seu poema “El general Quiroga va en coche al muere”13. Sarmiento também terminará seduzido pelo seu herói, “um homem superior […] de reputação misteriosa”, apesar do propósito central de demonstrar o seu caráter bárbaro e desgovernado.

Cabe destacar ainda nesta segunda parte a deliciosa e desvairada passagem em que Sarmiento se espraia sobre a importância das cores e do vestuário. Por mais descabido que possa parecer para o leitor de hoje, esses dois elementos passam a ser também mais uma arma com a qual Sarmiento arremete contra a barbárie e contra Rosas. “Sabeis o que é o tom colorado? Eu tampouco o sei; mas vou juntar algumas reminiscências”, diz ele. A cor vermelha, o colorado, símbolo dos rosistas, passará então a ser demonizada à custa de um fantástico elenco de exemplos oriundos dos mais diversos contextos em que o rubro se ligaria ao crime, aos selvagens, à barbárie, ao absolutismo europeu etc. Sua obsessão o leva até a improvável constatação de que nas bandeiras dos países europeus cultos jamais predomina o colorado, enquanto Argel, Tunis, Mongol, Turquia, Marrocos, Japão, Sião etc. fazem flamejar a cor do mal. Contra essa cor maligna, resplandece “o azul-celeste e o branco; o céu transparente de um dia sereno e a luz nítida do disco do sol: a paz e a justiça para todos” (p. 229). Já o vestuário, sua mobilidade, a moda, o uso do fraque, são privilégios de uma sociedade culta e civilizada, ao passo que “na Ásia, onde se vive sob governos como o de Rosas, desde Abraão o homem traja vestuário talar” (p. 232). Mais adiante, nos capítulos finais, denuncia a perseguição de Rosas ao fraque e “a todas as instituições que nos esforçamos por toda parte para copiar da Europa” (p. 396) e a substituição que o ditador impõe por pantalonas largas e soltas e todas as formas de trajes nacionais. A passagem da barbárie para a civilização é, de fato, cultural e comportamental na visão de Sarmiento, que chega até afirmar que “o elemento principal de ordem e moralização com que a República Argentina hoje conta é a imigração europeia” (p. 434).

Uma vez morto Facundo, resta um país unido em torno do ditador que ele concebe como o espelho de todas as características negativas do caudilho, esboçadas nos capítulos anteriores. O ataque torna-se mais direto nos últimos dois capítulos que são antecedidos por justificativas do narrador que intui que sua história deveria acabar onde acaba a vida de Facundo. Os dois capítulos finais precisam ser então justificados pelo narrador-personagem que, evidentemente, não consegue se deter sem antes arremeter contra quem na verdade havia precipitado a escrita do livro14. Ele explica então:”Como sua morte [a de Facundo] não põe fim à série de fatos que me propus coordenar, e para não deixá-la truncada e incompleta, preciso continuar um pouco mais adiante, no caminho que sigo […]” (p. 360), e antes do último capítulo, declara admitir que apesar de ter concluído seu ensaio sobre a vida do caudilho, precisa agora apreciar suas conseqüências e resultados “ora, favoráveis, ora adversos” (p. 398). Nessa última parte, portanto, além de desprestigiar o tirano, o narrador se lançará na proposta de um futuro programa de reestruturação nacional para quando o ditador for derrocado.

Este livro, que é muitos livros ao mesmo tempo, dá-nos a sensação de um mergulho profundo na mentalidade do século XIX que sentimos gravitar na raiz da nossa mentalidade em vários sentidos. Como afirma Foot Hardman nas palavras do posfácio, muitos dos processos aludidos por Sarmiento no seu Facundo têm se feito presentes na historia da América Latina contemporânea, ao longo das muitas décadas que nos separam das dele. Assim como encontramos também em escritores como Jorge Luis Borges, Ricardo Piglia, César Aira, Juan José Saer e Andrés Rivera (para citar apenas alguns) a reelaboração de seus personagens gaúchos, caudilhos, déspotas, intelectuais e escritores.

Para terminar estas notas, é preciso dizer que com a edição brasileira que ora temos em mãos estamos diante de um trabalho de tradução da mais alta qualidade que deve ser elogiado pela escolha do respeito à forma culta utilizada por Sarmiento neste livro, sem por isso ter se tornado esforço árduo para o leitor, muito pelo contrário. É interessante consignar a este respeito, que em carta dirigida por Sarmiento a Matías Calandrelli (autor de um dicionário etimológico da língua castelhana), em 1881, ele ratifica sua utilização de locuções antiquadas e castiças e invoca como razão principal o fato de ele ter sido criado, sem estudos regulares, em uma região afastada como era a província de San Juan, recebendo assim a língua dos conquistadores conservada sem alterações sensíveis. Mais uma contradição sarmientina, se pensarmos em seus abertos ataques às posturas conservadoras de Andrés Bello – travados no Chile por aqueles anos – com relação à grafia e à pronúncia da língua espanhola na América.

O critério do tradutor de conservar no original certas locuções platinas com o apoio de notas elucidativas é também muito feliz, já que permite ao leitor brasileiro adentrar de modo mais contundente o universo do pampa ali retratado. Também é necessário ressaltar que as notas que acompanham a leitura do texto refletem um esforço sério e exaustivo de pesquisa em fontes diversas e edições anotadas que resulta hoje indispensável para a completa compreensão do seu conteúdo histórico e contingente. A edição reproduz também um mapa de 1930 que permite acompanhar o traçado dos múltiplos caminhos percorridos pela trama através da geografia argentina. Só ficaria a sugestão de incluir numa próxima edição um subtítulo diferente para cada um dos quatro capítulos que levam aqui somente o nome de “Guerra Social”, já que cada um deles focaliza conflitos em lugares específicos: La Tablada, Oncativo, Chacón e Ciudadela, respectivamente.

Notas

1 Um “Eu” megalomaníaco e delirante que valeu a Sarmiento o apelido de “Dom Eu”.
2 Em 1840, Sarmiento tinha sido deportado para o Chile pelo então governador de San Juan e partidário de Rosas, Nazario Benavides.
3 PIGLIA fez do assunto matéria literária do seu primeiro romance, Respiração artificial (1980), no qual os personagens Renzi e Marconi discutem longamente sobre a citação apócrifa que abre Facundo.
4 Esta carta encontra-se no “Apêndice” da edição aqui resenhada.
5 PROUST, Marcel. Sobre a leitura [1905]. Trad. Carlos Vogt. Campinas, SP: Pontes, 1989. [Links] 6 LAS CASAS, Bartolomé de. Brevíssima relação da destruição das Indias Ocidentais [1552]. Trad. Heraldo Barbuy. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 1984.[Links] [7] Saldías, Adolfo. Historia de la confederación [1911]. Buenos Aires: Editora Universitaria, 1973, p. 193. Tradução livre. [Links] 8 Há edições do Facundo que de fato dividem o livro em três partes, como por exemplo, a edição espanhola organizada para a Editora Nacional de Madri, em 1975, por Luis Ortega Galindo.
9 PIGLIA o compara a Flaubert, no Prólogo à edição aqui resenhada (p. 38).
10 Ricardo Piglia explora de maneira engenhosa e fértil esse tema no Prólogo da edição aqui resenhada.
11 Montoneras eram unidades militares de extração rural, lideradas por caudilhos regionais que lutavam contra as milícias governamentais.
12 As ligações com o gênero norte-americano são evidentes na obra em mais de uma ocasião.
13 BORGES, Jorge Luis. Luna de enfrente [1925]. Em português em: Primeira poesia.Texto bilíngue. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras. 2007, pp. 112-113. [Links] 14 Rosas havia enviado uma comissão ao Chile, solicitando a extradição de Sarmiento para seu julgamento na Argentina. O presidente Montt denegou o pedido.

Laura Janina Hosiasson – Professora na área de Literatura Hispano-americana da Universidade de São Paulo.

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A invenção da cultura – WAGNER (NE-C)

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. Trad. Marcela Coelho de Souza; Alexandre Morales. São Paulo: Cosac Naify, 2010. Resenha de: GOLDMAN, Marcio. O fim da antropologia. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.89, Mar, 2011

Há três modos de abordar A invenção da cultura: enfatizar a originalidade quase absoluta do livro, seu caráter intempestivo; inventariar suas dívidas para com os autores a ele contemporâneos ou para com aqueles de um passado recente ou remoto; tentar, enfim, um equilíbrio judicioso entre a primeira e a segunda opções. Por diversas razões escolhi deliberadamente a primeira alternativa.

Deste ponto de vista, poderíamos observar inicialmente que a primeira edição de A invenção da cultura, em 1975, é quase simultânea a de dois outros livros de antropólogos norte-americanos que marcaram a antropologia contemporânea: A interpretação das culturas, de Clifford Geertz, e Cultura e razão prática, de Marshall Sahlins – publicados, respectivamente, em 1973 e 1976. O destino desses três livros, contudo, continua sendo muito diferente. Afinal, os dois últimos conheceram uma difusão e um sucesso que o primeiro mal começa a experimentar e que dificilmente terá em grau comparável. No Brasil, por exemplo, o livro de Geertz foi traduzido, ainda que parcialmente, em 1978, e o de Sahlins em 19791. E até hoje é raro encontrar um programa de curso de teoria antropológica que não os inclua na bibliografia.

A invenção da cultura, por outro lado, teve que esperar 35 anos para receber sua tradução, em ótima iniciativa da editora Cosac Naify e belo trabalho de tradução de Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales. Com efeito, é quase inevitável especular sobre qual teria sido o destino da antropologia brasileira se o livro de Wagner tivesse sido traduzido ainda na década de 1970 e os outros dois não. Talvez não estivéssemos ensinando uma antropologia tão afastada do que efetivamente se faz na disciplina hoje em dia; talvez tivéssemos resistido melhor ao imperialismo das análises construcionistas ou desconstrucionistas que apelam para o eterno poder e as inevitáveis manipulações ocultas atrás de qualquer situação; talvez nada tivesse acontecido… De toda forma, o que não é fácil imaginar é a tradução dos livros de Geertz e Sahlins 35 anos depois de terem sido originalmente publicados.

A “mensagem” desses livros parece tão adaptada ao momento em que foram escritos que é difícil concebê-los em outro contexto qualquer. Afinal, nos dois casos se tratava, em breves palavras, de salvar o culturalismo daquilo que sempre foi o que poderíamos chamar seu melhor inimigo, a saber, o reducionismo naturalista. Ou seja, aquilo sem o que a antropologia cultural simplesmente não pode funcionar, na medida em que lhe faltaria esse seu “outro”, aquele que define, equivocadamente sem dúvida, o que a cultura elabora, interpreta, simboliza ou transcende – a natureza.

Observemos também, ainda que de passagem, que esse naturalismo se apresentava, tanto a Geertz como a Sahlins, sob uma dupla forma. De um lado, as antropologias ditas ecológicas ou materialistas, que ambos simplesmente recusam; de outro, uma versão muito mais complicada, sofisticada e, talvez, inesperada, o estruturalismo levistraussiano. Afinal, apenas dois anos antes da publicação do livro de Geertz, Lévi-Strauss havia concluído sua mitológica tetralogia – em que a demonstração da incrível sofisticação de que era capaz o pensamento indígena parecia anular qualquer possibilidade de redução – com um livro significativamente intitulado O homem nu, que conclui com a peremptória afirmativa de que, no final das contas, tudo não passa do produto da atividade do cérebro humano, ele mesmo produto de um complexo processo de evolução natural: higher naturalism2, como definiu Sahlins; hypermodern intellectualism, nas palavras de Geertz3. Mas, se Geertz parece simplesmente recusar a alternativa levistraussiana buscando refúgio numa hermenêutica que invariavelmente funciona como saída sofisticada para os que não gostam da noção de estrutura, a reação de Sahlins é diferente. Oriundo, ele próprio, de uma tradição antropológica materialista e neoevolucionista, um estágio em Paris o fez imaginar a possibilidade de, por assim dizer, embutir o estruturalismo no culturalismo, fazendo das “estruturas da mente” os “instrumentos da cultura”, não sua “condição”4, e da própria estrutura apenas uma parte da cultura e da história.

O livro de Wagner segue um caminho bem diferente, seja em relação ao interpretativismo geertziano, seja em face do culturalismo estruturalizado de Sahlins. Tão diferente que podemos ter hoje a sensação de que não são apenas um ou dois anos para mais ou para menos que separam A invenção da cultura desses dois outros livros, mas algo como meio século! De fato, se A interpretação das culturas e Cultura e razão prática soam hoje como anúncio do fim (no duplo sentido de acabamento e de término) de uma antropologia fin de siècle (século XX), A Invenção da cultura parece anunciar o início de outra coisa, que poderíamos imaginar como uma das possibilidades abertas para a antropologia do século XXI.

A esse respeito, talvez valha a pena observar que os leitmotifs centrais das obras de Geertz e Sahlins – a interpretação e a simbolização, respectivamente – não deixam de ser evocados por Wagner, ainda que para preparar outras reflexões. Assim, desde o início do livro, a “interpretação” aparece na forma da “moderna cultura interpretativa americana” (p. 10), tema que será desenvolvido no item “A magia da propaganda” (pp. 107-19) do capítulo 3 de modo evidentemente bem distinto daquele de Geertz. Pois aquilo que este trata como um dispositivo metodológico que apenas prolonga e torna mais sofisticado um procedimento inerente a qualquer cultura humana (a “interpretação”, justamente) será analisado por Wagner como uma singularidade de uma cultura particular, a “norte-americana”. Em termos mais precisos, pode bem ser que a interpretação seja um modo universal de lidar com o mundo e com a sociedade, mas o problema é que essa generalidade não nos diz nada sobre seu funcionamento em situações concretas e específicas. Isso significa, claro, que ela pode perfeitamente operar de acordo com a mecânica básica dos dispositivos chamados etnocêntricos: implementar como universal aquilo que é uma característica particular da cultura do próprio antropólogo. Neste caso, como insiste Wagner, tentando tornar cada vez mais transparente o caráter convencional da cultura em que vivemos. Ou, o que dá no mesmo, fomentando o desejo de nos tornarmos autoconscientes daquilo que, não obstante, sustentamos que nos determina. Na antropologia, sabemos bem onde tudo isso foi parar, na nossa versão particular do “pós-modernismo”, e não é casual que tenham sido alunos ou discípulos infiéis de Geertz os que lançaram a moda entre nós5.

Antes de nos determos um pouco no chamado pós-modernismo antropológico, contudo, observemos que também a oposição entre “razão prática” e “razão cultural”, que estrutura o livro de Sahlins, é de algum modo retomada em A invenção da cultura. No entanto, ao contrário do estilo épico de Sahlins, que opõe as duas razões quase como o diabo ao bom deus, Wagner sublinha o fato de que as duas variedades de antropologia derivadas dessa oposição compartilham um mesmo solo ou, ao menos, uma necessidade comum. Pois se as antropologias naturalistas ou naturalizantes (analisadas no item “Controlando a cultura”, pp. 214-20, cap. 6) atribuem uma ordem tão determinada e tão determinante à natureza, o efeito (a “contra-invenção”) dessa atribuição é estabelecer um rigoroso controle sobre a cultura, eliminando tudo o que esta pode ter de criativo e indeterminado. Por outro lado (como exposto no item “Controlando a natureza”, pp. 221-29, cap. 6), mas de modo simétrico, as antropologias culturalistas (e nada impede que as duas variedades possam coexistir em doses variáveis) atribuirão todo ou quase todo poder de determinação à cultura, de tal forma que o controle incidirá agora do lado da natureza, cujo poder e indeterminação poderão aparecer doravante como meros limites da própria cultura.

Nem interpretação, nem simbolização, o conceito central do livro de Wagner, claro, é o de invenção. Mas neste ponto é preciso ter cautela. Como observa Martin Holbraad, na ótima “orelha” escrita para a edição brasileira, o termo “invenção” tem o mau hábito de despertar uma série de associações de ideias, todas igualmente inadequadas para a compreensão correta do sentido do conceito wagneriano. Grosso modo, podemos dizer que, ao ouvir a palavra “invenção”, somos quase invariável e inevitavelmente conduzidos a noções como a de “artifício”, no mau sentido da palavra, ou seja, como aquilo que é “artificial” e se opõe ao “real”. Na definição do dicionário Houaiss, “invenção” é “coisa imaginada que se dá como verdadeira; invencionice, fantasia”; “coisa imaginada de modo astucioso, frequentemente com objetivos escusos”; ou “o que não pertence ao mundo real; imaginação, fábula, ficção, engano”. Claro que também é “imaginação produtiva ou criadora, capacidade criativa; inventividade, inventiva”; e “faculdade de criar, de conceber algo novo ou de pôr em prática, de executar uma ideia, uma concepção; criação”.

Por razões que próprio Wagner esclarece, os antropólogos parecem preferir as definições negativas às positivas. Assim, quando se fala na “invenção das tradições”, imagina-se imediatamente que estas são “falsas”, no sentido de não corresponderem à história que contam de si mesmas, e que certamente foram engendradas por alguém com objetivos pouco confessáveis. Talvez seja por isso que no curto post scriptum que escreveu para a edição brasileira, Wagner observe, de forma curiosa, que “em certo sentido, a invenção não é absolutamente um processo inventivo, mas um processo de obviação” (p. 240). Pois se em 1975 ou 1981 não era possível imaginar a direção que a compreensão da noção de invenção tomaria, em 2010 sabemos exatamente como as coisas se passaram. E isso ainda que A invenção da cultura chame a atenção para o fato de que as “tradições são tão dependentes de contínua reinvenção quanto as idiossincrasias, detalhes e cacoetes” (p. 94). O que significa que “invenção” e “inovação” não são a mesma coisa (p. 77) que toda tradição é inventada e que, em uma expressão como “invenção das tradições”, o primeiro termo (processo de invenção) deveria ser muito mais importante do que o segundo (o que acabou sendo inventado).

Adiante veremos como liberar a noção de invenção de seu estatuto crítico. Mas, antes, se vale a pena distinguir com clareza o pensamento de Roy Wagner daquele dos mais importantes antropólogos norte-americanos mais ou menos a ele contemporâneos6, isso também é verdade em relação àquilo que se seguiu à publicação de A invenção da cultura na antropologia norte-americana. Como se sabe, esta tem a fama de ter passado por uma profunda revolução a partir de meados da década de 1980, quando a publicação de Writing culture anunciou o advento do pós-modernismo na antropologia. Salvo engano, A invenção da cultura é citado apenas uma vez nesse livro, logo na “Introdução”, de James Clifford7. E o é justamente, e apenas, para opor a noção de “invenção” à de “representação” – ou seja, para ilustrar o ponto central de Writing culture, o de que as etnografias que os antropólogos escrevem são obras de ficção, não representações da realidade. É o sentido crítico da noção de invenção que opera, só que agora dotado de uma aparente positividade que não possuía.

De todo modo, não se trata aqui de tentar ressuscitar os mortos, nem o pós-modernismo antropológico, nem as críticas tradicionais que a ele foram dirigidas. Um quarto de século depois, creio que o melhor que se pode dizer dos chamados pós-modernos é que foram capazes de levantar algumas questões realmente importantes, ainda que não tenham oferecido respostas interessantes para nenhuma delas! Isso provavelmente porque seus objetivos nunca foram os de responder ao que quer que fosse, mas, como se dizia, de adotar uma postura “irônica”, quer dizer, a daqueles que ao menos sabem que nada sabem ou podem saber com certeza. Postura responsável, talvez, pela incapacidade última de transformar a “crítica da representação” e o anúncio do caráter inevitavelmente ficcional da etnografia em um novo começo para a antropologia. Afinal, como escreveu o autor nigeriano Chinua Achebe, embora toda “ficção seja indubitavelmente fictícia, ela também pode ser verdadeira ou falsa, não com a verdade ou a falsidade de um noticiário, mas em relação a sua imparcialidade, intenção, integridade”8.

Esse novo começo exigia reunir de forma mais consistente a crítica da representação como forma de conhecimento e forma de poder. Ou seja, exigia renunciar à representação não porque é falsa ou ficcional, nem mesmo porque é sempre uma relação de poder que concede a alguém o direito de representar outrem, mas sim porque a representação faz parte do conjunto de prolongamentos das relações de poder que o Ocidente capitalista estabeleceu dentro do texto antropológico com as demais sociedades do planeta9. É justamente o reconhecimento do caráter imanente das relações estabelecidas pelo poder com o texto antropológico que teria podido abrir linhas de fuga para o antropólogo escritor, uma vez que ele estaria às voltas com as relações de poder no espaço parcialmente sob seu controle, o próprio texto antropológico. Nesse sentido, teria sido possível levantar uma questão ao mesmo tempo epistemológica, ética e política: como proceder de modo a não reproduzir, no plano da produção de conhecimento antropológico, as relações de dominação a que os grupos com quem os antropólogos trabalham se acham submetidos?

Para isso, não era necessário ter ido muito longe. Bastaria ter conectado a crítica da antropologia enquanto representação com aquela, pouco mais antiga, que criticava o saber antropológico expondo suas relações de dependência para com o empreendimento colonialista. Não no sentido megalomaníaco que faria da antropologia um saber fundamental para o colonialismo, mas, como sustentou Talal Asad10, no sentido em que o colonialismo é importante demais para a antropologia, obrigando-a, consequentemente, a buscar romper essa dependência política, ética e epistemológica:

A antropologia histórica espelhava a ideologia dos impérios coloniais e supraétnicos tardios da GrãBretanha, da França, de países da Europa Central e outros (esses impérios quase que literalmente “fizeram” a evolução e a difusão Culturais como política pública). A antropologia sistêmica refletia a urgência racional da mobilização de guerra e o Estadonação econômico (p. 231, grifos meus).

Mas se a atenção a esta relação entre escolas e conceitos antropológicos com os empreendimentos colonialistas e imperialistas (estabelecida aqui de uma forma que poderíamos qualificar de imanente ou intrínseca) demonstra, creio, o interesse de Wagner na questão levantada por Asad, o trecho que se segue mostra que a linha de fuga por ele traçada segue uma trajetória bem diferente daquela esboçada na coletânea organizada pelo segundo11:

A curiosa “evolução” através da qual cada um dos sucessivos episódios paradigmáticos conduziu a si mesmo no sentido da obviação e contradição de seus pressupostos originais fornece a evidência mais convincente da natureza da antropologia como disciplina acadêmica. Tratase de uma ação de contenção contra a relatividade, uma espécie de fixativo teórico que erige insight introspectivo em teoria culturalmente corroborativa (pp. 231232).

Wagner aposta, pois, na radicalização do poder subversivo da prática etnográfica da antropologia – e não na análise das próprias relações entre a antropologia e o colonialismo ou o imperialismo – como meio capaz de romper com a dependência da primeira em face dos segundos.

Nesse sentido, o problema central do pós-modernismo antropológico, como Wagner mostrou em uma resenha pouco conhecida que escreveu sobre Writing culture12, é a pretensão de “fazer com a etnografia o que uma antropologia mais segura de si e menos cínica (a ‘Grande Teoria’, como se diz) fez com a teoria – desenvolver poderosos e decisivos cânones de compreensão”. Ou seja, introjetar na própria etnografia os mecanismos de controle em geral empregados pela teoria. Assim, se o antropólogo tradicional opera como uma espécie de crítico do fato – no sentido do crítico de arte que tenta mostrar que, por maior que seja a novidade aparente do que está sendo apresentado, “tudo já foi dito antes” (p. 235) e na verdade não está acontecendo nada -, o antropólogo pós-moderno pode ser entendido como o crítico de um “teatro do fato”, utilizado a “autoridade” (“a peça dentro da peça”, como a define Wagner) como meio de controle adicional. Nem as ideias, nem os fatos devem ter o poder de espantar ninguém!

Para traçar essa linha de fuga, Wagner foi obrigado, em primeiro lugar, a redefinir, ou a redirecionar, tanto a noção de invenção como a de cultura. É por isso que cada palavra do título deste livro – incluindo o artigo e a preposição – são fundamentais e devem ser bem compreendidas. Para começar, o que significa “invenção” em A invenção da cultura?

No início de O que é a filosofia, Deleuze e Guattari13, após definirem provisoriamente essa atividade como “a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos”, e de argumentarem que os conceitos, na verdade, “não são necessariamente formas, achados ou produtos”, concluem que “a filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos”. Eu arriscaria dizer que no livro de Wagner a noção de invenção deve ser entendida rigorosamente no sentido estabelecido por Deleuze e Guattari para a noção de criação14.

Isso significa que a “invenção” de Wagner não consiste nem na imposição de uma forma ativa externa a uma matéria inerte, nem da descoberta de uma pura novidade, nem na fabricação de um produto final a partir de uma matéria-prima qualquer. Isso a afasta dos modelos mais recorrentes utilizados no Ocidente para pensar o ato de criação: o modelo hilemórfico grego15, o judaico-cristão da criação ex nihilo, o modelo capitalista de produção e da propriedade16. A invenção wagneriana é, antes, da ordem da metamorfose contínua, como acontece na imensa maioria das cosmogonias estudadas pelos antropólogos, em que as forças, o mundo e os seres são sempre criados e recriados a partir de algo preexistente. Ponto que acarreta uma série de consequências.

A primeira é o fato de que esse conceito de invenção-criação tem mais a ver com arte do que com ciência e técnicas. Não é por acaso que a pintura de Bruegel, Rembrandt, Rubens e Vermeer, a poesia de Morgenstern e Rilke, a música de Beethoven, Haydn, Mozart e o jazz aparecem ao longo do livro como meios de explicação da atividade do antropólogo. Pois esta atividade é definida justamente em termos de sua criatividade, termo que gera o título do segundo capítulo (“A cultura como criatividade”) e que aparece, direta ou correlatamente, mais de cem vezes ao longo do texto. A particularidade da antropologia é que a criatividade do antropólogo depende de outra (e de outrem): aquela das pessoas com quem escolheu conviver durante um período de sua vida. Aqui tocamos num ponto fundamental, pois o reconhecimento da criatividade daqueles que “estudam” é, para Wagner, condição de possibilidade da prática antropológica. Mais do que isso, o antropólogo deve estar preparado e disposto a assumir duas premissas: reconhecer naqueles que estuda o mesmo nível de criatividade que crê possuir; não assimilar a forma, ou o “estilo”, de criatividade que encontra no campo com aquele com o qual está acostumado e que ele próprio pratica.

Wagner é, assim, o primeiro a propor um verdadeiro construtivismo para a antropologia. Ou, pelo menos, a elaborar o acabamento daquele há muito estabelecido por Malinowski ao anunciar o trabalho de campo como o único procedimento adequado para a antropologia então “moderna”. Foi ainda em 1935 que ele sustentou que esse trabalho de campo seria, sobretudo, uma atividade construtiva ou criativa, uma vez que os fatos etnográficos “não existem”, sendo preciso, portanto, um “método para a descoberta de fatos invisíveis por meio da inferência construtiva”17 – posição que, infelizmente, não parece ter tido muito eco ao longo da história da disciplina.

A esse respeito, mais uma vez, é preciso atenção. O construtivismo wagneriano (e já o malinowskiano) tem pouco ou nada a ver com a ladainha pseudo politizadora do famigerado construcionismo social. Este, como se sabe, dedica-se a afirmar o caráter “socialmente construído” do que quer que seja (das relações de parentesco aos genes e planetas), mas concede um estranho direito de exceção a seus próprios procedimentos, bem como àquilo a que atribui o papel de grande arquiteto, a saber, as relações sociais e políticas que apenas o analista tem a miraculosa capacidade de enxergar. Assim, não pode haver dúvidas de que os agentes sociais passam todo seu tempo construindo, mas, infelizmente, não são capazes de perceber que estão construindo, “naturalizando” e “essencializando”, como se diz, tudo o que pensam encontrar pelo caminho, mas que, na verdade, foram eles mesmos que fizeram. Cabe ao analista, então, “desconstruir” essas ilusões, o que faz com que, estranhamente, construcionismo social e desconstrucionismo queiram dizer exatamente a mesma coisa. Durkheim ao menos sabia o que é essa “sociedade” que tudo cria mas que é, ela própria, incriada: Deus – e nada poderia ser mais diferente da ideia de uma invenção criativa da cultura. É por isso, aliás, que “trabalho de campo é trabalho no campo” (p. 49).

No entanto, há os que pensam que a posição de Wagner coincide com esse fetichismo generalizado do qual apenas o antropólogo está isento, essa espécie de “criacionismo de pobre”, como o definiu Latour18. O problema é que quando se supõe que a cultura a ser estudada pelo antropólogo é “socialmente construída”, não apenas “a invenção da cultura” se torna uma “invencionice” como, por vezes, os próprios nativos passam por ter sido “socialmente construídos” por um antropólogo interesseiro19. Para isso, claro, é preciso imaginar um “nativo-em-si” (por exemplo, os Daribi das Terras Altas da Papua Nova Guiné, que Wagner estudou, ou os Bororo do Brasil Central) absolutamente impenetrável para a nossa compreensão a qual, não obstante, se torna surpreendentemente poderosa e clarividente quando se trata de determinar os verdadeiros motivos e causas sociais e políticas que levaram o antropólogo a “construir” os nativos desta ou daquela forma.

Wagner, no entanto, jamais afirma que o antropólogo inventa a cultura, porque não há nada para ver ou porque é incapaz de compreender o que pensa que vê. O problema é outro, é que há coisas demais para serem vistas, ideias demais para serem compreendidas e muito pouco tempo para fazê-lo. O antropólogo faz o que pode, inventando a cultura para tentar conferir um mínimo de ordem e inteligibilidade lá onde a plenitude da vida as dispensa completamente. Nesse sentido, Wagner é provavelmente o primeiro antropólogo a fazer da vida (e não da evolução, história, função, estrutura, cognição…) o referente último do trabalho antropológico. Além de fundar o construtivismo em antropologia, ele também funda uma espécie de vitalismo antropológico20.

O construtivismo, no entanto, só pode funcionar se for completo e generalizado, e a obrigação do antropólogo é que sua criação faça aparecer a criatividade da qual ela mesma depende (a sua própria) e, principalmente, a das pessoas com quem trabalha. Ele se assemelha, assim, a um desses demiurgos das mitologias que estuda, aqueles que criam um mundo lá onde outro mundo já existia e sempre existiu. Nesse processo, há duas tentações às quais deve resistir: imaginar que está apenas “representando” o que existe em si e por si mesmo; pretender estar criando a partir do nada.

Em ambos os casos a criatividade daqueles que estudamos é recusada. No primeiro – que corresponde, grosso modo, às antropologias que Wagner designa como “diacrônica” ou “histórica” e “sincrônicas” ou “sistêmicas” (p. 230) -, essa recusa se disfarça sob uma aparente afirmação. Afinal, se os antropólogos nada fazem além de representar as outras culturas, apenas as pessoas que aí vivem podem ser as responsáveis por elas. O problema é que essas antropologias só afirmam tal criatividade para negá-la, ao atribuírem papel determinante a forças que as pessoas não conhecem e não controlam: evolução, ordem, função, sentido, inconsciente ou o que quer que seja. No segundo caso que corresponde mais ou menos aos pós-modernismos, construcionismos e desconstrucionismos dos últimos anos -, estaríamos às voltas com uma recusa ainda mais absoluta: a criatividade nativa é vista como uma espécie de quimera à qual simplesmente não podemos ter acesso. Inconscientes num caso, incognoscíveis no outro, o papel dos nativos é servir de modelo para um academicismo21 da representação ou de pretexto para um pessimismo da ficção. Ambos nos livram de todos os riscos, nos deixam intactos e incólumes, mas, ao mesmo tempo, incapazes de sermos afetados, modificados, ou seja, impossibilitados de pensar:

O passo crucial que é simultaneamente ético e teórico consiste em permanecer fiel às implicações de nossa pressuposição da cultura. Se nossa cultura é criativa, então as “culturas” que estudamos, assim como outros casos desse fenômeno, também têm de sêlo. Pois toda vez que fazemos com que outros se tornem parte de uma “realidade” que inventamos sozinhos, negandolhes sua criatividade ao usurpar seu direito de criar, usamos essas pessoas e seu modo de vida e as tornamos subservientes a nós (p. 46).

Se a criatividade é um fenômenos geral, ainda que se manifeste sempre sob determinados estilos, o antropólogo lida com um tipo particular de invenção, a “da cultura”. Em 1975, não seria difícil dizer da cultura o que Descartes dizia do bom senso: que é a coisa mais bem dividida do mundo22. A invenção, por outro lado, parecia privilégio de poucos (nós mesmos, na verdade). Trinta e cinco anos depois, as coisas parecem ter se modificado. A invenção, no mau sentido da palavra, claro, parece estar em toda parte, e a cultura (ou a tradição) só existe porque é uma invenção de nativos e/ou de antropólogos defendendo seus próprios interesses.

De certo modo, Wagner já havia invertido o quadro. É a invenção, no bom sentido de criatividade, que constitui o plano de consistência de todos os humanos (e talvez não só deles); a invenção da cultura, por outro lado, corresponde a um episódio histórico (cultural) muito específico, ocorrido em certo momento da história do mundo ocidental. É nesse sentido que poderíamos dizer que Wagner elabora uma noção de cultura propriamente cultural, ao estabelecer que dela faz parte intrínseca e constitutiva a explicitação de que a noção de cultura é ela mesma um artefato cultural, ou seja, produto de um ponto de vista cultural específico – o nosso.

O ponto fundamental, contudo, é que a origem “ocidental” da noção não é um atestado de impotência ou malignidade, mas apenas o signo de um trabalho a ser continuamente realizado. Assim, que nossa noção de cultura derive da de “cultivo” e que, mais tarde, tenha recebido seu sentido “sala de ópera” (pp. 53-4), só se torna um problema quando interrompemos o processo de derivação ou “metaforização” (p. 54), literalizando um sentido que é sempre local, transitório e instável. Cada um pensa e fala com as palavras e as categorias de que dispõe, e a grande questão é como proceder de modo que elas sejam capazes de dizer mais, ou outra coisa, do que o de costume, mantendo, não obstante, sua inteligibilidade23.

Aqui devemos retroceder um pouco. O brevíssimo quadro da moderna antropologia culturalista norte-americana esboçado no início desta resenha deixou intencionalmente de fora aquele que é certamente a mais importante “influência” sobre Wagner, seu orientador no doutorado David Schneider, a quem A invenção da cultura é dedicado. Ao lado de Geertz e Sahlins, Schneider completa a trinca de autores que de algum modo acabam (no duplo sentido da palavra) o culturalismo antropológico. Ora, o ponto fundamental do principal trabalho de Schneider24– e nisso reside, creio, sua originalidade em relação a todos os demais culturalistas – consiste em sustentar que ainda que seja inevitável investigar outras culturas a partir de categorias da nossa (o parentesco, no caso), isso não pode nos fazer imaginar que nossas categorias sejam universais. Assim, e ao contrário do que muitos imaginam, não creio que o livro de Schneider simplesmente condene o estudo antropológico do parentesco por ser este, afinal, uma “categoria ocidental” (qual não seria?). Trata-se, antes, de utilizar o parentesco de um modo que Wagner designará por “analógico” (ver, por exemplo, pp. 41-45). É nesse sentido que A invenção da cultura pode ser lido como uma extensão da proposta de Schneider: por que nos determos no parentesco uma vez que a própria noção de cultura também é exclusivamente “nossa”?

Mais uma vez, isso não significa condenar a antropologia por ser um empreendimento ocidental. Ela certamente o é, mas a questão é o que se pode fazer a partir dessa constatação. Assim, vimos que a noção de cultura como cultivo foi analogicamente estendida à de cultura “sala de ópera”, o que permite imaginar que a noção antropológica de cultura consiste numa nova extensão analógica:

O uso antropológico de “cultura” constitui uma metaforização ulterior, se não uma democratização, dessa acepção essencialmente elitista e aristocrática. Ele equivale a uma extensão abstrata da noção de domesticação e refinamento humanos do indivíduo para o coletivo, de modo que podemos falar de cultura como controle, refinamento e aperfeiçoamento gerais do homem por ele mesmo, em lugar da conspicuidade de um só homem nesse aspecto (p. 54).

Um dos argumentos centrais subjacentes em A invenção da cultura é que tanto as mudanças históricas (como as que os críticos da antropologia colonial enfatizavam) como as teóricas (de que tanto gostavam os pós-modernos) exigem uma nova extensão do conceito de cultura, extensão que seja capaz de conectá-lo com o de invenção-criação, reconhecendo assim nas “culturas” uma criatividade cuja universalidade, no entanto, não possa apagar as singularidades dos estilos locais.

Esse mecanismo de extensão do significado é o que Wagner denomina metáfora, alegoria ou, mais usualmente, analogia, e corresponde, também, à “diferenciação”. O procedimento analógico deve obedecer a três princípios fundamentais. Primeiro, só pode operar num campo de diferenças, o que significa que, evidentemente, só precisamos de analogias quando nos defrontamos com situações à primeira vista irredutíveis às que nos são habituais – ou seja, analogia não é sinônimo de semelhança. Em segundo lugar, nenhum dos dois termos colocados em relação pela analogia deve estar situado em um plano superior ao outro, como se o primeiro fosse capaz de revelar a verdade oculta do segundo – analogia não significa explicação. Por fim, os dois termos devem ser afetados pelo processo, de tal modo que o conceito ocidental de cultura, por exemplo, tem que ser ao menos ligeiramente subvertido quando serve de analogia para a vida nativa – o que significa que a analogia é da ordem da relação: “a ideia de ‘relação’ é importante aqui pois é mais apropriada à conciliação de duas entidades ou pontos de vista equivalentes do que noções como ‘análise’ ou ‘exame’, com suas pretensões de objetividade absoluta” (p. 29).

É nesse sentido que a cultura só pode ser inventada em situações de “choque cultural” (p. 34), choque que, paradoxalmente, preexiste à própria cultura; e é por isso, também, que “todo ser humano é um ‘antropólogo’, um inventor de cultura” (p. 76) em situações de ininteligibilidade primeira. Isso significa, ao mesmo tempo – ponto importante a fim de evitar a tradicional húbris antropológica -, que todo antropólogo é apenas um ser humano, operando em condições mais ou menos especiais. Ao contrário da nossa tradicional pretensão, o máximo a que o podemos almejar é viver em dois (ou mais) mundos ou modos de vida diferentes, mas não entre as culturas, como se fôssemos capazes de transcendê-las:

Assim é que gradualmente, no curso do trabalho de campo, ele próprio se torna o elo entre culturas por força de sua vivência em ambas; e é esse “conhecimento” e essa competência que ele mobiliza ao descrever e explicar a cultura estudada. “Cultura”, nesse sentido, traça um sinal de igualdade invisível entre o conhecedor (que vem a conhecer a si próprio) e o conhecido (que constitui uma comunidade de conhecedores) (p. 30).

É por isso, enfim, que o estatuto da noção de cultura ao longo de

A invenção da cultura é muito complexo, uma vez que Wagner parece defini-lo de diferentes modos ou, para ser mais preciso, encará-lo de diferentes ângulos. Ele aparece ora em sentido forte, ora em sentido fraco, o que não significa, de modo algum, que o primeiro seja melhor que o segundo. A “cultura” começa sendo definida como o que todo mundo tem; depois, como o que só nós temos e que os outros só têm porque nós a colocamos lá; mais tarde como aquilo que ninguém tem; e, por fim, como aquilo que todo mundo tem porque a cria em situações relacionais específicas. Nos termos do próprio Wagner, a cultura começa como dada e passa para a ordem do feito – primeiro como falsa invenção e depois, enfim, como invenção-criação.

Passemos, então, ao “da”, que separa “invenção” e “cultura”. Nossos hábitos acadêmicos são tão arraigados que podem nos fazer imaginar que esse partícula poderia significar apenas que é a cultura que é inventada. Se isso fosse verdade, contudo, todo o livro perderia o sentido, pois seu ponto central é justamente mostrar que a invenção da cultura é inseparável daquilo que a cultura inventa. A cultura “inventada” corresponde, basicamente, ao que Wagner denomina “convenção”; a cultura “inventante” ao que ele chama de “diferenciação” – talvez os conceitos centrais do livro.

Convenção e diferenciação constituem, em primeiro lugar, os dois mecanismos básicos da semiótica particular adotada por Wagner. Nesse sentido, ponto crucial, não constituem dois “tipos” de coisas, mas as duas faces da mesma realidade (ver p. 88). Simbolizar é sempre utilizar de forma “diferenciada” símbolos que fazem parte de uma “convenção”, e é apenas o peso respectivo de cada procedimento em cada ato simbólico que varia. É por isso que “a distinção [é] mais complicada do que dicotomias simplistas do tipo ‘progressista-conservador’, apropriadamente parodiadas por Marshall Sahlins na expressão ‘the West and the Rest’” (p. 16).

Por outro lado, quando nós confrontamos nossa própria cultura ou, para ser mais preciso, a “moderna cultura interpretativa norte-americana”, com os Daribi – ou com qualquer conjunto que Wagner designa alternadamente com combinações dos substantivos classes, grupos, povos, sociedades, tradições, e dos adjetivos camponeses, trabalhadoras, étnicas, não racionalistas, religiosos, tribais -,nós temos a sensação que o investimento no convencional e no diferenciante muda de lugar. Assim, tendemos a imaginar que nossas regras são puramente convencionais, aquilo que fazemos e, consequentemente, o domínio que está sob nossa responsabilidade (p. 19) e onde investiremos nossa criatividade. Mas os Daribi e muitos outros parecem imaginar o contrário, a saber, que este reino, para nós convencional e feito, é da ordem do dado. Até aí, convenhamos, não há muita novidade: a imagem de primitivos vivendo sob o império de uma tradição que consideram transcendente é muito antiga. O que faz de Roy Wagner o mais original dos antropólogos desde Lévi-Strauss é ter colocado a questão que faltava: onde, então, esses “primitivos” investem sua criatividade? Num enorme esforço para se singularizar diante de uma convenção dada, é a resposta.

Isso traz enormes consequências. Enquanto o Ocidente foi construindo, ao longo dos séculos, a hipótese (que toma como dado) de uma natureza “lá fora” e, no entanto, controlável (p. 225), os Daribi, os Bororo e outros parecem preferir o “‘mundo como hipótese’, que nunca se submete às exigências rigorosas da ‘prova’ ou legitimação final, um mundo não científico” (p. 171). Mas, de novo, não há necessidade de querer enxergar aqui mais um grande divisor:

O homem é tantas coisas que se fica tentado a apresentálo em trajes particularmente bizarros, só para mostrar o que ele é capaz de fazer […]. E no entanto tudo o que ele é ele também não é, pois sua mais constante natureza não é a de ser, mas a de devir (pp. 2123).

Tudo isso pode parecer meio estranho, mas é, na verdade, bem simples. A “improvisação”, define o Dictionnaire encyclopédique de la musique25, é a “execução musical criada na medida em que é tocada”, ou “a composição ou performance livre inesperada de uma passagem musical, em geral de acordo com certas normas estilísticas mas livre das características prescritivas de um texto musical específico”, como prefere a Britannica. Se nós, “de forma consciente e intencional, ‘fazemos’ a distinção entre o que é inato e o que é artificial ao articular os controles de uma Cultura coletiva, convencional”, “o que dizer daqueles povos que convencionalmente ‘fazem’ o particular e o incidental, cujas vidas parecem ser uma espécie de improvisação contínua?” (pp. 142-3), e onde os controles

[…] não são Cultura; não são pensados para serem “executados” ou seguidos como um “código”, mas para serem usados como a base da improvisação inventiva […]. Os controles são temas para interpretação e variação um pouco ao modo do jazz, que vive da constante improvisação de seu tema (pp. 1445).

A aproximação com a música permite levantar, ainda, três pontos complementares. Primeiro, nem tudo é permitido, e as improvisações têm que ser levadas a sério pelos outros, ou seja, não podem perder suas relações com a convenção. Pois elas também podem se tornar, como exclamou o grande pianista de jazz Thelonius Monk ao interromper uma sessão de improvisação, wrong mistakes (ver p. 139, para os “erros necessários” para a invenção da personalidade). Segundo, o fato de que tanto a noção de estilo como a de interpretação devem ser entendidas, em Wagner, mais no sentido musical do que culturalista ou hermenêutico dos termos. Um bom músico é capaz de tocar em mais de um estilo e de “interpretar” uma obra de diferentes maneiras. A “oposição” entre culturas convencionais e diferenciantes, ou entre os norte-americanos e os daribi, serve apenas para estabilizar provisoriamente a tensão dialética existente em todo processo de simbolização, e só deve ser sustentada enquanto rende alguma coisa. Mas ela também pode ser estabilizada no interior de uma cultura, de um indivíduo ou de um ato simbólico singular se isso for interessante26.

Por fim, é curioso que, em inglês, improvisation também se diga extemporization, que, em português, nos leva a “extemporâneo” e “intempestivo”, quer dizer, a Nietzsche. Não é à toa que as últimas palavras de A invenção a cultura– “demasiado humana” – sejam deste autor, citado apenas mais uma vez no livro (pp. 141). Há alguma coisa no pensamento de Nietzsche sobre a cultura como máquina de repressão da vida, e sobre a criatividade como única forma de escapar disso, que ecoa no livro de Wagner. Claro que este, antropólogo, adverte para o fato de que é a antropologia que pode funcionar como máquina de repressão na medida em que converte a vida em cultura. Se essa conversão é inevitável – uma vez que o antropólogo precisa dela para tornar a vida que escolheu viver entre outras pessoas vivível, e, depois, inteligível -, cabe a ele inventar uma noção de cultura que combata ativamente sua pulsão repressora. Questão que não pode ser resolvida de uma vez por todas e que, por isso, nos obriga a estarmos sempre às voltas com ela. Nesse sentido, o livro poderia se chamar “Diferenciação da convencionalização” – ou vice-versa!

Para terminar com o título, resta o pequeno artigo definido “a” – mas mesmo ele é fundamental. Na sua ausência, o título poderia sugerir uma generalidade do processo de invenção que Wagner pretende a todo custo evitar. O “a” responde justamente pelo caráter abstrato do conceito de invenção da cultura, mas abstrato no sentido preciso de que apenas assinala uma condição que pode ser preenchida de diferentes maneiras, uma vez que cada invenção é sempre efetuada de acordo com um estilo particular:

E porque a percepção e a compreensão dos outros só podem proceder mediante uma espécie de analogia, conhecendoos por meio de uma extensão do familiar, cada estilo de criatividade é também um estilo de entendimento (p. 61).

É nessa chave que deve ser entendido o capital trecho acerca do que Wagner denomina “antropologia reversa” (pp. 67-72), que ele ilustra com o exemplo do culto da carga melanésio. Trata-se, de um lado, de imaginar simetricamente a literalização das “metáforas da civilização industrial moderna do ponto de vista das sociedades tribais” (p. 69); e, de outro, de entender esse “gênero pragmático de antropologia” (p. 71) – uma vez que ele evidentemente não assumirá a forma de uma disciplina acadêmica, constituindo, antes, um análogo desta – no sentido em que se fala de “engenharia reversa”. Ou seja, da desmontagem de uma caixa-preta (no caso, a própria antropologia que praticamos) não apenas no intuito de desvendar seus mecanismos de funcionamento, mas, principalmente, de se tornar capaz de reconstituí-los. Em suma, a antropologia reversa praticada por outras sociedades explicita para nós os mecanismos que empregamos de forma implícita e, às vezes, inconfessável27.

Para concluir, poderíamos dizer que A invenção da cultura segue seus próprios pressupostos em um grau muito superior à maioria das obras. O livro é percorrido por uma série de contrastes dialéticos que o autor tem o cuidado de definir como parte de uma dialética que não almeja qualquer síntese (p. 96): contraste entre concepções de cultura (cap. 2), modos de simbolização (cap. 3), formas de subjetividade (cap. 4), estilos de socialidade (cap. 5), teorias antropológicas (cap. 6), entre outros. A ideia de síntese parece ser uma das grandes ameaças ao pensamento isoladas por Wagner. Afinal, a pretensão às grandes sínteses – ou a denúncia das falsas, tanto faz – é apenas uma “estratégia de ‘proteger

a antropologia de si mesma'” (p. 227), defendendo-a da relatividade que ela mesmo revela quando é capaz de “analisar a motivação humana em um nível radical” (p. 13). O primeiro capítulo do livro elabora justamente essa distância que separa a relatividade ameaçadora que a antropologia revela do “relativismo” que professa, relativismo que é a primeira forma de controle da própria relatividade, uma vez que, como escreveu Roland Barthes, “logo se detém no coração inalterável das coisas: é uma segurança, não uma perturbação”28. Para um espírito mais sisudo, “o fim da antropologia sintética” (p. 229), ou do “sintesismo” (234), com que Wagner encerra o livro, bem poderia ser entendido como o fim da própria antropologia. Mas, como a A invenção da cultura não se cansa de demonstrar, todo fim é a ocasião da invenção de um novo começo. Creio que nisso consiste a aposta de Roy Wagner.

Espero que o Wagner que inventei seja suficientemente flexível para escapar de uma convencionalização demasiado rápida. Porque ninguém precisa se iludir: mesmo autores tão criativos quando ele não deixam de ser incessantemente “contrainventados” na forma convencional de algo como um neo-Durkheim, cujos conceitos e ideias seriam capazes de dar conta do que quer que seja e a quem devemos devoção respeitosa. Antes de “aplicá-lo” ali e acolá, convém meditar sobre a nova forma de conexão entre fatos e teorias que pensamentos como o de Wagner nos convidam a imaginar. Certamente, coisas e ideias não são nem a mesma coisa – nem a mesma ideia. Mas isso não significa que as relações entre elas sejam da ordem da hierarquia vertical, com umas, não importa quais, sendo mais importantes do que as outras. Sua relação, como diria Guattari, é transversal; para um antropólogo, a questão é como traçar transversalmente as relações entre o que aprendeu na academia e aquilo que viu e que seus amigos lhe ensinaram no campo. Só assim, creio, poderemos responder com um “não” definitivo quando nossos amigos levantarem a questão que os daribi propuseram a Wagner: “vocês antropólogos, podem se casar com gente do governo e com missionários?”.

Notas

1 A interpretação das culturas foi traduzido para cerca de vinte línguas; Cultura e razão prática foi traduzido ao menos para o alemão, espanhol, francês, italiano e português. Mas A invenção da cultura é a primeira tradução do livro de Wagner. Além disso, o livro praticamente não foi resenhado ao ser publicado. Duas exceções – cuja incompreensão e má vontade para com o autor fazem beirar o ridículo – são: BEATTIE. J. “Roy Wagner: the invention of culture”.Rain, vol. 13, 1976, p. 10;[Links] e Blacking, J. “Wagner, Roy. The invention of culture”. Man, vol. 11, nº. 4, New Series, 1976, pp. 607-8. [Links] 2 SAHLINS, M. Culture and practical reason. Chicago: The University of Chicago Press, 1976, p. 121.  [Links] 3 GEERTZ, C.The interpretation of cultures. Nova York: Basic Books, 1973, p. 359. [Links] 4 SAHLINS, op. cit., pp. 122-3.
5 Como escreveu com humor James Wafer, podemos ter saudades “do paraíso perdido da antropologia, quando era possível distinguir um tique de uma piscadela, e piscadelas reais daquelas de brincadeira” (The taste of blood: spirit possession in Brazilian candomblé. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1991, p. 117). [Links] 6 Na verdade, tanto Geertz (nascido em 1926 e falecido em 2006) como Sahlins (nascido em 1930) são seniores em relação a Wagner, que nasceu em 1938.
7 CLIFFORD, James e MARCUS, George (orgs.). Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986, p. 2. [Links] 8 ACHEBE, Chinua. Home and exile. Nova York, Anchor Books, 2000, p. 33. [Links] 9 Como escreveu Michel Foucault, “a antropologia se enraíza, com efeito, numa possibilidade que pertence exclusivamente à história de nossa cultura, mais ainda, a sua relação fundamental com toda a história, e que lhe permite ligar-se às outras sociedades sob o modo da pura teoria” (Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris: PUF, 1966, p. 388).
10 ASAD, Talal. “From the history of colonial anthropology to the anthropology of western hegemony”. In: STOCKING Jr., GEORGE W. (org.). Post-Colonial situations: essays in the contextualization of ethnographic knowledge. Madison: University of Wisconsin Press, pp. 314-24, p. 315. [Links] 11 Idem (org.).Anthropology and the colonial encounter. Nova York: Humanities, 1973. [Links] 12 WAGNER, R. “The theater of fact and its critics”.Anthropological Quarterly, vol. 59, nº 2, 1986, pp. 97-9, p. 99.[Links] 13 DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Minuit , 1991, pp. 8-10. [Links] 14 Para um cuidadoso estudo sobre as possíveis relações entre os pensamentos de Wagner (além de Marilyn Strathern e Bruno Latour), de um lado, Deleuze e Guattari, de outro, ver Viveiros de Castro, E. “Filiação intensiva e aliança demoníaca”. Novos Estudos Cebrap, vol. 77, 2007, pp. 91-126. [Links] 15 DELEUZE e GUATTARI. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980, p. 457. [Links] 16 STRATHERN, M. The gender of the gift: problems with women and problems with society in Melanesia. Berkeley: University of California Press, 1988, pp. 18-19, passim. [Links] 17 MALINOWSKI, B. Coral gardens and their magic. Londres: George Allen & Unwin, 1935, vol. 1, p. 317. [Links] 18 LATOUR, B. Petite réflexion sur le culte moderne des dieux faitiches. Paris: Synthélabo, 1996, p. 101. [Links] 19 Como escreveu Marilyn Strathern, “etnografias são construções analíticas de acadêmicos; os povos que eles estudam não. Faz parte do exercício antropológico reconhecer que a criatividade desses povos é maior do que o que pode ser compreendido por qualquer análise” (op. cit., p. XII).
20 “A monotonia que encontramos em escolas de missão, em campos de refugiados e às vezes em aldeias ‘aculturadas’ é sintomática não da ausência de ‘Cultura’, mas da ausência de sua própria antítese – aquela ‘magia’, aquela imagem insolente de ousadia e invenção que faz cultura, precipitando suas regularidades na medida em que falha em superá-las por completo” (p. 146). Ou seja, o que falta nesses lugares é vida, e o antropólogo deveria falar em desvitalização no lugar de aculturação.
21 Que, como se sabe, corresponde a um estilo pautado unicamente pelo esforço de manter com rigor intransigente as regras e as técnicas das academias de formação. Qualquer semelhança com a antropologia contemporânea não é mera coincidência (ver p. 228).
22 Ver STRATHERN, “The nice thing about culture is that everyone has it”. In: Shifting contexts: transformations in anthropological knowledge. Londres, Routledge, pp. 153-76, 1995. [Links] 23 A alternativa seria o silêncio ou a autocontemplação. Como escreveu Strathern, “o fato de não existir lugar fora de uma cultura exceto em outras culturas” levanta um problema “técnico: como criar uma consciência de mundos sociais diferentes quando tudo o que se tem à disposição são termos que pertencem ao nosso mundo” (“Out of context: the persuasive fictions of anthropology”.Current Anthropology, vol. 28, nº 3, 1987, pp. 251-281, p. 256). [Links] 24 SCHNEIDER, D. American kinship: a cultural account. New Jersey: Prentice-Hall, 1968.[Links] 25 P. Griffiths. “Improvisation”. In: D. Arnold, Dictionnaire encyclopédique de la musique. Paris: Robert Lafont, 1988. [Links] 26 Como escreveu Strathern, “a interpretação deve manter estáveis os objetos de reflexão pelo tempo suficiente para que possam ser úteis” (“Cutting the network”.Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 2, nº 3, 1996, pp. 517-35, p. 522).
27 “Nessa situação, a antropologia não pode permitir-se o papel de Grande Inquisidor” (p. 236).
28 BARTHES, R. “De um lado e do outro”. In: Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 1970 [1961], pp. 139-47, pp. 139-40. [Links]

Marcio Goldman – Professor Associado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do CNPq e da Faperj.

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A Construção da Sociedade do Trabalho no Brasil: Uma Investigação sobre a Persistência – CARDOSO (NE-C)

CARDOSO, Adalberto Moreira. A Construção da Sociedade do Trabalho no Brasil: Uma Investigação sobre a Persistência Secular das Desigualdades. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. Resenha de: LIMA, Jacob Carlos. O trabalho e a utopia da igualdade social. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.89, Mar, 2011.

Nas últimas décadas, a sociologia tem questionado e debatido o trabalho como categoria explicativa estruturante das sociabilidades nas sociedades contemporâneas, tendo como pano de fundo as transformações econômicas e políticas do final do século XX. O fim das experiências socialistas, a crise do Estado de bem-estar social, a reestruturação da produção e a revolução tecnológica informacional reconfiguraram as relações capital-trabalho e o papel do Estado como mediador dos conflitos e regulador dessas relações. Isso não significou o fim desse papel, mas seu questionamento permanente em nome da redução dos custos da força de trabalho, da competitividade internacional etc. De forma aparentemente paradoxal, o trabalho assalariado percebido nos primórdios do capitalismo como a nova escravidão a ser combatida, foi ressignificado a partir da incorporação progressiva de direitos sociais aos contratos de trabalho. A relação de assalariamento, regulada por ganhos, jornada de trabalho, direito à saúde, educação, previdência, constituiu o bem-estar social das sociedades capitalistas avançadas como um ideal a ser alcançado de maior igualdade política, social e econômica.

A proposta de revolução operária, de uma sociedade gerida pelos trabalhadores, deu lugar ao avanço contínuo das conquistas sociais, num viés socialdemocrata, da busca da utopia da igualdade e justiça social, sem rupturas revolucionárias. Assim, conceitos como sociedade do trabalho, sociedade dos direitos, sociedade salarial, cidadania social tornaram-se explicativos de um período específico do desenvolvimento capitalista1, no qual a luta de classes assumiu novas características e a mudança social significou a incorporação crescente dos trabalhadores na ordem capitalista por meio da regulação das formas de produção e reprodução social. Trabalho e cidadania – entendidos como direitos sociais, políticos e econômicos – tornaram-se sinônimos, em certa medida. O conceito de trabalho, constituía-se em instrumento fundamental na compreensão e na explicação da organização da vida social de forma geral, das questões do cotidiano, à construção de identidades sociais, e dos movimentos de transformação da sociedade.

No Brasil, a sociedade do trabalho nunca se efetivou no sentido de que a maioria dos trabalhadores sempre esteve fora da cidadania regulada pelo trabalho. Como afirma Oliveira2, mais que Estado do bem-estar social, no Brasil, sempre houve um Estado de mal-estar social representado pela inclusão de parcelas minoritárias dos trabalhadores aos direitos sociais propiciados pelo trabalho formal. Entretanto, a partir da década de 1930, no governo Getúlio Vargas, a regulação das relações capital-trabalho, ainda que restrita, construiu uma expectativa de direitos sociais que marca a sociedade brasileira até hoje.

A proposta do livro de Cardoso é recuperar a construção dessa inconclusa sociedade do trabalho no Brasil, desde os momentos iniciais do Estado brasileiro até os mecanismos excludentes que o constituíram e o mantêm ainda hoje como um dos países campeões mundiais da desigualdade social. A persistência das desigualdades sociais se dá pelos padrões de incorporação dos trabalhadores ainda na nascente ordem capitalista, e se perenizam na construção das relações sociais posteriores, marcada pela fragilidade estatal, pela violência contra o trabalho organizado, pelas formas desorganizadas de inserção dos trabalhadores migrantes no mercado de trabalho urbano e pela insensibilidade das elites dominantes em relação aos “de baixo”. A herança escravista de dominação e descaso com os trabalhadores persiste na nova ordem republicana que se inicia.

Esse conjunto de fatores Cardoso defende serem responsáveis por e estruturantes de uma sociedade caracterizada pela grande inércia que resulta na reprodução geracional de pobreza e desigualdades. Para ele, “o Brasil construiu seu estado de bem estar social como estado redistributivo, mas a redistribuição jamais se universalizou nem foi capaz de reduzir a pobreza a patamares socialmente aceitáveis. Não levou a uma turbulência social-revolucionária, mas uma violência circunscrita a pequenos grupos em momentos específicos da história” (p.17).

O livro apresenta um conjunto de hipóteses instigantes, visando lançar novo olhar às interpretações sobre a nossa “questão social”. A proposta é ambiciosa e divide-se em duas partes recortadas temporalmente: do Império à República Velha na constituição do que seria a construção da sociabilidade capitalista e sua inércia estrutural para a mudança social; e, a partir de 1940, a construção da sociedade do trabalho na ordem social instituída por Vargas que representou uma ruptura nessa dinâmica inercial oriunda da ordem escravista, renovando as estruturas estatais sem mexer, contudo, nas relações de trabalho no campo. Isto resultou em mudanças lentas e graduais mantendo as desigualdades. A persistência dos padrões de desigualdade social é o fio condutor que dá unidade ao livro, cujas partes podem ser lidas autonomamente.

A primeira parte, organicamente estruturada, recupera as contribuições das pesquisas da história social e do trabalho das últimas décadas, confrontando com as interpretações consolidadas. O autor ressalva, entretanto, que sua preocupação não é historiográfica e sim sociológica, analisando as contribuições recentes da pesquisa histórica sob o olhar da sociologia, o que lhe permitiu formular novas hipóteses. Entre estas podemos destacar a relação entre a escravidão e a “construção de uma ética do trabalho degradada, uma imagem depreciativa do povo, uma indiferença moral das elites em relação às carências da maioria e uma rígida hierarquia social marcada por grandes desigualdades” (p. 49). Fundamentando essa hipótese, Cardoso recorre a uma releitura distinta da visão clássica ou o que chama de “são Paulo centrica”, discutindo os diversos regimes de escravidão e contrapondo-se à interpretação da plantation e da escravaria a ela ligada. Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo e região Sul tinham situações diferentes; a plantation era restrita a algumas regiões. A imigração não seria, dessa forma, a substituição dos escravos, que em sua maioria já estavam liberados para atender as necessidades dessa mesma plantation, e de outras atividades econômicas constituindo uma massa diversificada de mestiços, dispersos e nômades. A libertação dos escravos não alterou as formas de controle social representada pelas milícias privadas nas mãos dos senhores locais com implicações políticas durante todo o período.

A coexistência do um trabalho livre e o controle social privado favoreceu o surgimento de um “Estado antissocial” marcado pela descentralização do poder controlado das oligarquias locais e regionais, inexistência de qualquer legislação voltada para a questão social. Aliás, tal questão, para as elites, “não existia”, tudo o que se referia aos pobres era uma questão de polícia. A federação constituiu-se no instrumento dessas oligarquias que viviam brigando entre si, mas que se juntavam contra escravos e pobres sempre que se sentiam ameaçadas. Os interesses públicos não excediam os interesses privados, o que se manteve no início da industrialização, quando as elites industriais respondiam com repressão a qualquer ameaça grevista beneficiada com o “estado de sítio permanente que vigorou nos centros industriais mais importantes a partir de 1922, por causa das revoltas militares” (p. 133).

A massa de desocupados e subocupados nas cidades favoreceu o desenvolvimento de relações de trabalho com condições precárias e baixos salários. Inicia-se a segregação espacial das cidades, a violência e a repressão estatal à desordem, o povo sendo culpado pela própria miséria na visão das elites. Dessa forma, constrói-se um mercado de trabalho que tem como característica estruturante a precariedade das condições de inserção, permanência e mobilidade, situação que, em grande medida, ainda se mantém.

A hipótese discutida por Cardoso de que a imigração não seria a mera substituição dos escravos, que os imigrantes ocuparam os espaços do mercado e, portanto, os capitalistas urbanos não precisaram recorrer ao disciplinamento do cotidiano para a implementação de uma educação para o trabalho é instigante e ao mesmo tempo polêmica. É possível sustentar que a situação de São Paulo foi distinta por conta do boom da cafeicultura e que os proprietários privadamente organizavam a vinda de imigrantes e os submetiam a condições de trabalho similares à da escravidão. Sem dúvida isto pode colocar em xeque a ideia da busca de trabalhadores habituados ao assalariamento e ao trabalho livre, coisa que os próprios fazendeiros não estavam. Mas ao sair de São Paulo (e mesmo em São Paulo), tendo em mente o trabalho industrial, a implementação de uma educação para o trabalho talvez não tenha sido tão irrelevante.

Basta lembrar que nesse período numerosas fábricas surgiram nas diversas regiões do país; vilas e cidades operárias foram construídas como forma de disciplinarização e imobilização de uma força de trabalho desacostumada aos ritmos e às exigências do trabalho industrial. Excluindo São Paulo e o Sul do país, o empresariado utilizou basicamente o elemento nacional, com exceção de profissionais qualificados e cargos gerenciais em alguns casos. Leite Lopes3 (1988), em sua pesquisa sobre a fábrica Paulista no município do mesmo nome em Pernambuco, no que hoje constitui a Região Metropolitana do Recife, demonstrou o papel disciplinador e educativo pretendido pelo empresário na constituição de sua força de trabalho. Os trabalhadores eram aliciados no sertão nordestino, uma vez que já havia a preocupação (na primeira década do século xx) com trabalhadores contaminados por ideologias subversivas nas fábricas do Recife, que então se constituía em importante centro industrial têxtil. O trabalho etnográfico de Lopes demonstra a construção de uma cultura operaria mediada por empresários, no sentido de uma “correta” educação operária, com igrejas e lazer programado numa versão tupiniquim das company towns norte-americanas e inglesas. Pesquisas sobre Rio Tinto na Paraíba4, outras ainda em Pernambuco5, Minas Gerais6 e São Paulo7 apontam no mesmo sentido. Essa preocupação empresarial não invalida a hipótese de Cardoso da privatização das relações capital e trabalho, mas matiza o descaso empresarial com a construção de uma disciplina do trabalho e com a degenerescência moral dos trabalhadores nativos, uma vez que estaria relacionada com a crescente ameaça política representada pela organização do operariado fabril nas cidades.

O ensaio finaliza apontando a revolução de 1930 e o início da construção da utopia representada pela proteção estatal presente na legislação social e trabalhista. Entretanto, a debilidade do Estado restringiu sua abrangência, o que excluiu os trabalhadores rurais, até a década de 1980, de qualquer proteção social, mas criou a expectativa de integração social de massas de migrantes que passaram a buscar as cidades como forma de melhoria de vida. Isto resultou no crescimento da população urbana e num mercado de trabalho fortemente marcado pela informalidade, ilegalidades diversas e violência que configuraram os cenários urbanos das grandes e médias cidades brasileiras.

Independentemente dos limites e de seu alcance, a legislação trabalhista varguista “instaurou um campo legítimo de disputa, cuja legitimação era o próprio Estado”, a cidadania regulada, utilizando o conceito de Santos8, com a promessa de integração social. Esta cidadania torna-se então a forma institucional da luta de classes, com o trabalhador em busca legítima por seus direitos. Inicia-se, pois, o processo civilizatório do capital, inexistente até então na construção de um Estado marcadamente antissocial. A CLT torna-se símbolo identitário. Ser trabalhador pressupõe ter carteira de trabalho, e esta simboliza acesso a direitos.

Na segunda parte do livro, o argumento da persistência das desigualdades e sua legitimação é discutido com a utilização de dados de censos demográficos, PNADs e pesquisas realizadas no âmbito do Iuperj, em 2001. São três capítulos que podem ser lidos como artigos independentes, pois trabalham com recortes específicos e utilizam metodologias distintas. O ponto central é como o mercado de trabalho urbano absorveu a massa de migrantes que correram para as cidades e em que medida essa mobilidade espacial resultou em mobilidade social atendendo as aspirações, os projetos de vida e as concepções de justiça desses trabalhadores.

No primeiro capítulo da segunda parte, são discutidas mudanças estruturais do período de 1940 a 2000 tendo como recorte a urbanização acelerada, o aumento da escolaridade e a entrada no mercado de trabalho dos jovens saídos da escola. Demonstra, nesse período, a permanência de mercados de trabalho estruturalmente precários, a manutenção de condições de trabalho e vida que indicam pouca mobilidade social, em que pese a universalização crescente do acesso ao ensino básico e mesmo a expansão do ensino superior. A hipótese defendida é que a educação teve pouca importância para esse mercado de trabalho, frustrando a expectativa da escolarização como condição de mobilidade. Nesse argumento, o autor destaca a decepção com uma escolaridade que não propiciou qualificação para o mercado, marcado pelo emprego mal remunerado, de baixa qualidade e instável, seja pela informalidade, pela rotatividade utilizada pelas empresas como forma de rebaixamento da remuneração, seja pelos tipos de ocupação disponíveis etc.

A urbanização e a maior escolarização melhorou a chance de ocupação e mesmo de mobilidade para os mais escolarizados, mas a maioria deles ficou de fora, num lento processo de mobilidade em comparação com as gerações anteriores. Tal lentidão foi agravada pela reestruturação econômica dos anos posteriores, que aumentou as exigências de escolaridade sem a equivalente melhoria da qualidade do emprego. A maior escolarização teve, assim, um resultado paradoxal: a piora das condições de entrada dos jovens no mercado de trabalho, independentemente de seu perfil educacional. As afirmações baseiam-se em dados quantitativos que estabelecem tendências. É possível discuti-las, na medida em que a urbanização, mesmo que precária, significou em grande medida acesso à escolarização e mesmo certa melhoria comparativa com a estagnação do meio rural, dos trabalhadores mais pobres no que diz respeito ao acesso a bens materiais e simbólicos. Também deve ser considerado que a modernização da agricultura teve resultados não apenas na expulsão do homem do campo, mas produziu um relativo aumento de ocupações qualificadas, significando mudanças lentas em termos de mobilidades para os trabalhadores. Todavia, isso não modifica as tendências apontadas pelos dados apresentados por Cardoso em seu recorte analítico.

Suavizando a aridez dos dados quantitativos apresentados na perspectiva da estrutura de oportunidades de inserção no mercado, o capítulo seguinte busca demonstrar a fluidez existente nas trajetórias individuais nessa estrutura que, no conjunto, é pouco dinâmica. Utilizando perspectiva similar à adotada por Lahire9 em seus retratos sociológicos nos quais recupera as disposições dos indivíduos e a realidade por eles reconstruídas, Cardoso recorre, com base em depoimentos, interpretação de comportamentos, práticas, opiniões e trajetórias, a dois casos exemplares de trabalhadores que “escaparam” de uma estrutura social que não favoreceria a mobilidade social.

Com Marlene, do interior de Minas, e Marcos, do interior do Ceará, Cardoso reconstrói as histórias de mobilidade. A primeira, como costureira, e o segundo, na construção civil, viraram empreendedores, por necessidade ou acaso, e conseguiram melhorar suas condições de vida e trabalho; possibilitaram a escolarização superior dos filhos e construíram um patrimônio num contexto de instabilidade econômica e política, altos índices inflacionários e desastrosos pacotes econômicos. As histórias permitem visualizar, segundo o autor, uma estrutura social relativamente aberta em baixo e mais fechada no topo. Os dois casos seriam representativos dos caminhos seguidos no processo de mobilidade. Situações diversificadas, em que capital social e acaso se juntam eliminando qualquer determinismo estrutural na análise. Para Cardoso o capital social e a estrutura de oportunidade, embora socialmente configurados, não são estanques, modificando-se contextualmente a partir de mudanças econômicas, políticas e sociais.

Situação análoga foi estudada entre operários fabris na Bahia por Guimarães10, que apontava a existência de “atalhos” utilizados por trabalhadores pouco escolarizados e qualificados na direção de melhores posições. Em algumas situações, a fábrica significou esse atalho. Nesses casos, a mobilidade geralmente era apenas horizontal, mantendo a condição “operária”, mas possibilitava adquirir habilidades úteis no meio urbano e resultar em certa ascensão com melhoria nas condições de vida. Processo similar pode ser percebido na construção civil, em que a experiência vai se constituindo em qualificação. Mesmo com a maior procura dos trabalhadores que se especializaram nos canteiros de obras, a informalidade e os contratos temporários marcam as condições de trabalho, bem como a instabilidade permanente, o que compromete a mobilidade11. Em outras palavras, a fluidez da mobilidade é mediada por um mercado no qual formalidade e informalidade se imbricam estruturalmente, e os trabalhadores circulam entre eles o tempo todo, mesmo em ocupações mais qualificadas, autônomas ou “empreendedoras”, perenizando a instabilidade como condição.

Por fim, o terceiro capítulo discute as concepções de justiça, da percepção da desigualdade e legitimação da ordem. Com base em dados provenientes de um survey de 2001 e em depoimentos, Cardoso conclui que a imensa maioria, principalmente dos pobres, percebe a desigualdade como uma injustiça, mas a considera legítima. De qualquer maneira, a maioria da população possui grandes expectativas de melhoria, o que aponta para a utopia brasileira de mobilidade permanente como percepção dominante.

O Estado continua sendo percebido como o grande agente da resolução da desse problema social. O acesso aos direitos teria garantias e a inserção seria uma possibilidade permanente. Não ter êxito é considerado questão pessoal, falta de sorte ou desígnio divino. Aqui os dados apontam que estudos sobretudo qualitativos podem aprofundar a análise de que exista uma correlação positiva na qual o Estado é percebido como instrumento para maior acesso à igualdade e à justiça.

Se é possível uma síntese, A construção da sociedade do trabalho no Brasil elenca numerosas hipóteses, análises e provocações, difíceis de discorrer no âmbito restrito desta resenha. O extenso período e as diversas proposições sugeridas oferecem, entretanto, numerosos insights para a análise da estrutura da sociedade brasileira, propondo novas pautas de pesquisa.

Dados recentes sobre mobilidade social desta última década, com o crescimento e a estabilidade econômica, o aumento progressivo do salário mínimo e a implementação de políticas sociais compensatórias, trazem para primeiro plano a necessidade de mais estudos sobre as mudanças em nossa estrutura social com a diminuição, pela primeira vez em décadas, da pobreza absoluta. Nesse sentido, o livro é instrumento importante para a análise da mobilidade social e contribui significativamente para o debate a cada dia com maior visibilidade.

Lentamente a população brasileira move-se para patamares acima da pobreza absoluta e se depara com uma cidadania “regulada” mais pelo consumo do que pelos direitos. Cresce o número de empregos formais, e há maior distribuição territorial desses empregos. Discutir sua qualidade exigiria uma análise mais ampla sobre o trabalho no capitalismo contemporâneo. A informalidade, embora tendencialmente em queda, ainda representa cerca de 50% do mercado de trabalho, sendo que a circulação dos trabalhadores entre formal e informal constituem-se em característica, digamos, estrutural. O trabalho informal também tem sido ressignificado como trabalho autônomo e empreendedor, mas aí adentramos em uma outra discussão.

A defesa dos direitos sociais vinculados ao trabalho pressupõe forte presença estatal na regulação capital de trabalho, o que decorre, em grande medida, de mobilização social e política. Mobilização complexa num quadro de flexibilização das relações de trabalho no qual os direitos sociais são percebidos como custos que comprometem a competitividade empresarial e as políticas sociais, percebidas financeiramente como ameaça ao fechamento das contas públicas.

As mudanças políticas desta década têm reforçado o papel do Estado na implementação de políticas sociais, na recuperação do salário mínimo e em outras medidas fundamentais para o maior atendimento das demandas sociais das populações mais pobres e diminuição da desigualdade social. Nossa sociedade do trabalho continua em construção e, para o bem ou para o mal, a utopia social brasileira continua passando pelo Estado. O livro de Cardoso é uma contribuição significativa para esse debate.

Notas

1 Período que podemos situar historicamente com as propostas keneysianas a partir da década de 1930 nos Estados Unidos, e os anos pós-Segunda Guerra Mundial na Europa Ocidental até a crise da década de 1970 e a reestruturação econômica de corte neoliberal.
2 OLIVEIRA, Francisco de. “A metamorfose da arribaçã”. Novos Estudos Cebrap, nº 27, jul. 1990, pp. 67-92. [Links] 3 LEITE LOPES, José Sérgio. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés. São Paulo/Brasília: Marco Zero/CNPq, 1988. [Links] 4 VALE, Eltern Campina. Tecendo fios, fazendo história: a atuação operária na cidade-fábrica Rio Tinto (Paraíba, 1959-1964). Fortaleza: dissertação de mestrado, Sociologia, PPGHS, 2008. [Links] 5 LIMA, Jacob Carlos. Trabalho e formação de classe: um estudo sobre operários fabris em Pernambuco. João Pessoa: Editora da UFPB, 1996; [Links] Egler, Tamara Cohen. O chão de nossa casa: a produção da habitação em Recife. São Paulo: tese de doutorado, Sociologia, PPGHS/USP, 1987. [Links] 6 BRANDÃO LOPES, Juarez R. Crise do Brasil arcaico. São Paulo: Difel, 1967. [Links] 7 BLAY, Eva Alterman. Eu não tenho onde morar: vilas operárias na cidade de São Paulo. São Paulo: Nobel, 1985. [Links] 8 SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro: Campus, 1979. [Links] 9 LAHIRE, Bernard. Retratos sociológicos: disposições e variações individuais. Porto Alegre: Artmed, 2004. [Links] 10 GUIMARÃES, Antonio Sérgio A. “A ilusão do atalho: a experiência operária da pequena burguesia em descenso”. In: GUIMARÃES A. S., AGIER, Michel e CASTRO, Nadya Araújo (orgs.). Imagens e identidades do trabalho. São Paulo: Hucitec, 1995. [Links] 11 COCKELL, Fernanda Flávia. Da enxada à pá de pedreiro: trajetórias de vulnerabil

Jacob Carlos Lima – Professor titular do Departamento de Sociologia da UFSCar.

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Keynes: The return of the master – SKIDELSKY (NE-C)

SKIDELSKY, Robert. Keynes: The return of the master. Londres: Penguin Books, 2009. Resenha de:  FRACALANZA, Paulo Sérgio. As lições de Keynes. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.88, dez, 2010.

O título é auspicioso: o retorno do Mestre. O Mestre é John Maynard Keynes e Lord Skidelsky não oculta seu otimismo: para compreendermos as razões da grave crise econômica atual e, quem sabe, evitar uma sucessão de novas débâcles, é necessário reabilitar Keynes.

Muitos economistas não abraçarão o título provocativo, mas por diferentes razões. Alguns pretenderão, a exemplo de Gregory Mankiw, com indisfarçável temor, negar que o debate realmente importe. Talvez concedam em dizer que Keynes foi um atento observador dos eventos econômicos de seu tempo, mas pouco ou nada mais do que isso1. Outros, na trilha de Joseph Stiglitz, arvorandose como fiéis discípulos de Keynes, dirão sem pudores que ele pouco teria a dizer sobre a crise atual, uma vez que sua compreensão dos mercados financeiros era rudimentar2. Outros talvez, como Paul Krugman, mesmo admitindo alguma simpatia à recuperação das ideias de Keynes, tomarão precauções em rechaçar a apreciação inconveniente de Skidelsky de que a reflexão econômica tenha seguido um rumo absolutamente desacertado3.

Mas seguramente haverá economistas que se jubilarão com Skidelsky. Talvez se perguntem o porquê do retornode Keynes, uma vez que creem nunca ter abandonado seus ensinamentos. A questão é : quantos de nós estariam realmente dispostos a abraçar, para além dos estreitos limites das fronteiras do pensamento que a Economia se impôs, as perguntas que Keynes ousou fazer?

A provocação é bem vinda. RobertS kidelsky, nascido em 1939 em Harbin, na China, de pais súditos britânicos com ascendência russa, é um dos mais eminentes historiadores econômicos em atividade, atuando como professor emérito de Economia Política da Universidade de Warwick, na Inglaterra. Autor da mais prestigiosa biografia sobre Keynes, escrita em três caudalosos volumes, é referência incontornável para aqueles interessados no estudo do pensamento do grande economista de Cambridge4.

Em sua obra mais influente, A teoria geral do emprego, do juro e da moeda, de 1936, Keynes lamentava que a Economia ocupasse papel de tamanha importância na organização da vida social. Ansiava pelo dia em que ela ocuparia seu devido lugar – no banco de trás – e não mais estivesse, como então sucedia, a guiar a carruagem da História. Para ele, mesmo os homens de negócios, que em sua empáfia se criam livres de qualquer influência intelectual, eram escravos de algum economista morto5.

A Teoria Geral marca o nascimento da macroeconomia, campo de especulação científica dedicado a interpretar as relações de agregados estatísticos como, entre outros, o volume de emprego, a composição da demanda efetiva e a taxa de juros, na tentativa de compreender o (mau) funcionamento do sistema econômico. Keynes pretendia tornar inteligíveis – no contexto da crise de 1929 e na contramão da doutrina hegemônica à época – as razões para o desemprego da força de trabalho e os remédios para debelar esse flagelo.

Naquele período, os alarmantes níveis de desemprego que se verificavam nos Estados Unidos e na Europa seguiamse a uma profunda crise creditícia e de desorganização da produção que combalira a confiança dos capitalistas. Assim como Karl Marx, Keynes compreendera que as assimetrias de poder eram constitutivas das relações sociais sob a égide do capital. Em face de conjunturas nada alentadoras e prognósticos sombrios, os detentores do capital simplesmente não desejavam contratar mais trabalhadores, por mais que houvesse muitos dispostos a oferecer seu trabalho por salários irrisórios. A natureza do desemprego era involuntária, clamava Keynes. Mais do que isso, Keynes asseverava que, a depender dos mecanismos de mercado, a economia poderia permanecer indefinidamente numa situação de desemprego de sua força de trabalho.

O termo involuntário não fora escolhido ao acaso: ao referirse assim ao fenômeno do desemprego, Keynes forçava a comparação com o desemprego voluntário da tradição dominante que o concebia como fruto de uma escolha racional – e maximizadora – de alguns trabalhadores que, em virtude de suas preferências individuais, se recusavam a aceitar os empregos disponíveis ao cotejar os salários que se ofereciam com o penoso esforço requerido no consumo de sua força de trabalho.

É possível imaginar o assombro daqueles familiarizados com as lidas do pensamento então hegemônico ao tomarem contato pela primeira vez com A Teoria Geral. Keynes planejara seu ataque em múltiplas frentes. Insistia sobre a importância de se compreender a economia como uma economia monetária da produção, na qual a moeda desempenha papel de suma importância e não apenas por consubstanciar a forma mais geral da riqueza, conferindo a seu detentor a possibilidade de comando sobre o trabalho alheio, mas fundamentalmente por representar em simultâneo os papéis – somente em aparência contraditórios – de refúgio contra a incerteza e de objeto de desejo compelindo à valorização do capital. Insistia sobre a importância das intervenções estatais a sustentar a demanda efetiva sempre que as decisões privadas de gasto se mostrassem insuficientes. Insistia sobre o vazio das proposições que prometiam a redenção no porvir, pois, segundo seu célebre adágio, “no longo prazo, todos estaremos mortos”. As heresias eram tantas e tão agudas que admitilas significaria comprometer irremediavelmente as fundações da tradição dominante.

Mas se esses fatos são bem conhecidos e se a importância de Keynes ao longo do século XX é incontroversa, também não é nada difícil imaginar o assombro daqueles não familiarizados com as práticas rudes de nossa lúgubre ciência ao tomarem contato com a moderna macroeconomia ensinada nas melhores escolas. E aqui nos referimos apenas à tradição dominante, ao assim intitulado mainstream.

Skidelsky, sem dispensar uma pitada de fina ironia, faz, no segundo e quinto capítulos de seu livro, uma competente descrição da história do pensamento e do estado atual da tradição dominante da macroeconomia. Com linguagem clara e acessível, convidanos a uma visita guiada aos principais conceitos da macroeconomia contemporânea e organiza uma clara demarcação entre o pensamento original de Keynes e as versões mais recentes da tradição dominante.

Como recurso, o autor retoma o debate sobre a posição dos economistas norteamericanos divididos entre freshwaters e saltwaters (literalmente, “de água doce” e “de água salgada”), respectivamente, os economistas das universidades da região dos Grandes Lagos (Chicago, entre outras) e os economistas das costas leste e oeste dos Estados Unidos (Berkeley, Harvard, MIT, entre outras).

De forma um pouco esquemática, os primeiros, que comporiam o grupo dos assim denominados economistas Novos Clássicos, atribuiriam as flutuações econômicas a mudanças no lado da oferta (choques tecnológicos, aumento do capital humano etc.) e afirmariam que o governo seria incapaz de alterar o nível de atividade econômica. Já os economistas saltwaters, representados pelos economistas Novos Keynesianos, dariam relevo ao papel da demanda na explicação do ritmo da atividade econômica e concederiam, não sem reticências, que o governo poderia ter um papel na atenuação dos ciclos de atividade6.

Independentemente das considerações que se possa fazer sobre a justeza dessa distinção, importa mesmo assinalar a apreciação mais geral de Skidelsky sobre o panorama atual da macroeconomia. Para ele, entre as posições de Novos Clássicos e Novos Keynesianos, de um ponto de vista essencialmente keynesiano, há muito mais semelhanças a unilas do que diferenças a separálas. Nesse sentido, ao esboçar em poucas linhas o recente programa de pesquisa da Nova Síntese Neoclássica, a reunir os esforços e os métodos de Novos Clássicos e Novos Keynesianos, Skidelsky sugere uma manifestação concreta dessa sua correta apreciação.

Contudo, ele talvez devesse ter poupado o leitor de alguns dispensáveis desvios no caminho que convida a percorrer: para os economistas a trilha é bem conhecida, mas muitos a considerarão rasa demais; para os não iniciados o percurso é pedregoso e não se chega a ver a paisagem. O risco, creio, é desorientar o leitor e induzilo a imaginar que a grave deficiência da macroeconomia moderna repousa na escolha equivocada das hipóteses e dos métodos de trabalho.

Melhor seria reforçar o que permanece o mais das vezes apenas subentendido: os autores do mainstream, Novos Clássicos ou Novos Keynesianos, compartilham de uma mesma visão de mundo. E essa visão diz respeito a uma crença particular na natureza do funcionamento do sistema capitalista. Creem que existem forças automáticas que (se destravadas) conduziriam a economia a uma situação de pleno emprego dos recursos. Acreditam que ofertantes e demandantes de mercadorias, inclusive da força de trabalho, se defrontariam no mercado como iguais. Compreendem a economia capitalista como uma economia de trocas (barter economy), em que ofertantes de variadas mercadorias se relacionam para a satisfação das necessidades de consumo. Nessa senda, encontramonos no paraíso hedonista.

Para melhor sugerir a influência das ideias de Keynes em seu tempo, Skidelsly procura então comparar os resultados econômicos de dois grandes períodos da história recente, mormente para os países desenvolvidos: aquele que se iniciou ao final da Segunda Grande Guerra e findou no início dos anos de 1970, conhecido como a golden age, e o período imediatamente subsequente que tem início com a referida crise e se encaminha até os dias de hoje. A estratégia consistiria em evidenciar que os melhores frutos colhidos nos anos dourados, quando comparados aos do período mais recente, se devem ao triunfo das políticas keynesianas no primeiro vis-à-vis a hegemonia das doutrinas neoliberais e não intervencionistas no segundo. No entanto, uma abordagem mais histórica teria sido mais convincente do que a ampla utilização de dados a que procedeu o autor. Ademais, a tarefa teria sido menos exigente, visto que os argumentos já estão todos lá perfilados: a ordem de Bretton Woods, a hegemonia benigna exercida pelos Estados Unidos, o objetivo do pleno emprego e a forte participação do Estado nos anos dourados. Em contraponto, a reafirmação da supremacia norteamericana, o desmonte da ordem internacional, o acirramento da concorrência com a emergência de novas potências, as políticas de desregulamentação dos mercados financeiros e as reformas liberalizantes nos anos do triunfo do Consenso de Washington.

Mas, sem dúvida, o grande trunfo de Skidelsky encontrase no interessante painel da vida e do pensamento de Keynes organizado ao longo dos capítulos 3 a 8. Como são várias as ideias instigantes – algumas incômodas, outras engenhosas, muitas provocativas e poucas absolutamente dispensáveis -, resgato algumas mais importantes.

Keynes beneficiouse dos estímulos e da imensa riqueza intelectual do meio em que vivia. A relação comunal com seus diletos amigos de Bloomsbury7, a intensa vida universitária em Cambridge, o contato com grandes pensadores de seu tempo – a exemplo de G. E. Moore e Sigmund Freud -, seu genuíno interesse pelas artes, suas habilidades como financista, sua crença na humanidade e em sua capacidade de persuasão, sua confiança de que as ideias corretas poderiam mudar o mundo e seu posicionamento apaixonado em todas as questões importantes de seu tempo ajudamnos a compreender a originalidade e as múltiplas facetas de seu pensamento. Nesse particular, Skidelsky esmerase, e seu texto é fluente e seguro.

Revisitando a vida de Keynes e a ousadia de seu pensamento não convencional, Skidelsky confessa uma mudança de sua perspectiva em relação a Keynes tal como se encontrava em sua aclamada biografia: “Eu o chamei de ‘economista pouco convencional’ . Mas ele não era, absolutamente, um economista”8.

Keynes formulara uma pergunta hoje completamente estranha à moderna reflexão econômica: afinal, qual o objetivo do capitalismo, essa forma de organização social evidentemente imperfeita?

Para o autor, o progresso tecnológico (e o crescimento econômico) não poderia ser considerado um fim em si mesmo. Recusava se a admitir que as realizações humanas pudessem se reduzir à métrica da acumulação de riquezas. Na sociedade que almejava, quando o problema econômico houvesse sido definitivamente superado, o “amor ao dinheiro” seria considerado uma patologia social e os acometidos dessa neurose, objetos de piedosa comiseração, deveriam ser recomendados aos especialistas de doenças mentais. Mas afinal qual era o problema econômico a ser superado? Em Possibilidades econômicas para nossos netos, de1930, Keynes esboçara os traços de seu projeto utópico. Em mais cem anos, caso se lograsse produzir uma expansão da atividade econômica às taxas que até então se verificavam, seriam reunidas, pela primeira vez, ascondições efetivas para que a humanidade pudesse superar o problema econômico, ou seja, libertarse da necessidade imperiosa do trabalho. No entanto, os obstáculos não eram de pequena monta: as guerras e a instabilidade social deveriam ser evitadas, o crescimento populacional necessitaria ser contido e a ciência precisaria ser dirigida para a finalidade do progresso social. Mas até que esse estado de coisas fosse alcançado os homens deveriam fingir acreditar que “fair is foul, and foul is fair”9 e muitos ainda deveriam se sacrificar no estouvado propósito de acumular riquezas.

Porém, como Skidelsky de forma arguta adverte, Keynes não ignorava outros óbices ainda maiores. A libertação do fardo do trabalho compulsório e a promessa de uma vida plena, sábia e boa exigiria que o “império da ganância” fosse rechaçado, uma vez que seus préstimos para alcançar a abundância não fossem mais necessários. No mesmo sentido, as necessidades dos homens pelos bens materiais não poderiam ser reconhecidas como ilimitadas e teriam de ser pautadas por uma concepção de suficiência para a vida boa.

Creio que essa advertência é mais do que atual e urge retomála. A Economia há tempos enveredou, e nesse particular comungam os economistas do mainstream e grande parte dos heterodoxos, numa linha irrefletida de que se há uma variável síntese que permite avaliar o sucesso ou insucesso de uma determinada sociedade, essa é o crescimento econômico. Retomamos, portanto, a questão formulada há pouco: se o crescimento é o meio para alcançar um determinado fim, que fim é esse?

Alguns bens treinados num utilitarismo vulgar poderão se contentar em responder que a satisfação das necessidades humanas é o objetivo da produção material, e quanto mais e melhores bens, maior o bemestar social e, em conseqüência, não custará muito acrescentar, maior a felicidade humana. Contra a objeção de que um sistema assim animado não conhecerá um fim, dirão que a natureza humana é feita desse material, que os homens são alimentados por necessidades ilimitadas e que se encontram permanentemente insatisfeitos e que não é por outra razão que o progresso nunca cessará.

Mas para Keynes a resposta era outra. Asseverara que o objetivo da vida humana apontava para a Ética. Nesse domínio bebera da fonte de G. E. Moore, que em 1902 publicara Principia Ethica, obra que exerceu um verdadeiro fascínio sobre Keynes. Moore identificava como questão ética primordial “o que é bom?” e sustentava que apenas com o concurso da resposta a essa questão, a dimensão moral que indagava sobre “como devemos nos comportar” poderia ser adequadamente respondida.

As coisas “boas em si mesmas” e que deveríamos procurar atingir são os estados da mente elevados. Estes poderiam ser alcançados no enlevo amoroso, na criação, na contemplação de obras artísticas e – uma adição pessoal de Keynes à lista de Moore – na busca do conhecimento. A associação entre o bem (goodness) e o prazer não poderia, porém, ser facilmente estabelecida, uma vez que estados d’alma elevados, a exemplo do arrebatamento amoroso, seriam simultaneamente fonte de prazer e dor.

Keynes não ignorava a miséria de muitos e a enorme injustiça do desemprego, reconhecendo que as condições para a consecução de seu ideal de vida plena só seriam alcançadas quando os requisitos de conforto material, de uma certa estabilidade política e da liberdade intelectual fossem contemplados. Mas se recusava a imaginar que a vida humana poderia se consumir de forma irrefletida e que os homens poderiam consagrar suas melhores energias e talentos na adoração do bezerro de ouro.

Nos dias de hoje, é cada vez mais aguda a consciência de que o sistema de relações sociais que forjamos e os impulsos de morte que ele abriga poderão comprometer irremediavelmente a possibilidade de nossos netos em herdarem uma Terra que lhes permita viver com dignidade. Sobejam razões para crermos que nunca, em termos de progresso material, estivemos tão perto da utopia keynesiana da abolição do fardo do trabalho. Contudo, em termos das aspirações dos homens, empenhados numa luta sem trégua em distinguirse de seus semelhantes com os signos conspícuos do consumo ostentatório, nunca estivemos dela tão longe. Tal contradição sugere que, antes do ponto final neste texto, se dê lugar a uma pergunta crucial: Não seria bem o caso de, pelas razões que realmente importam, retornar aos ensinamentos do Mestre?

Notas

1 MANKIW, Gregory, “Back in demand”. Wall Street Journal, 21/9/2010, em <http://online.wsj.com/article/NA_WSJ_PUB:SB10001424052970204518504574417810281734756.html> [Links].
2 STIGLITZ, Joseph. “The non-existent hand”. London Review of Books, 22/4/2010, em <http://www.lrb.co.uk/v32/n08/joseph-stiglitz/the-non-existent-hand> [Links].
3 KRUGMAN, Paul. “Keynes: The Return of the Master, by Robert Skidelsky”.The Observer, 30/8/2009, em <http://www.guardian.co.uk/books/2009/aug/30/keynes-return-master-robert-skidelsky> [Links].
4 SKIDELSKY, Robert. Keynes. Nova York: Penguin Books, 1994, 3 vols. (Vol. 1: Hopes betrayed: 1883-1920; Vol. 2: The economist as saviour: 1920-1937; Vol. 3: Fighting for Britain: 1937-1946). [Links] 5 KEYNES, J. M. A teoria geral do em prego, do juro e da moeda. São Paulo: Nova Cultural, 1985 [1936]. [Links] 6 Skidelsky omite o esclarecimento, talvez por recear controvérsias evitáveis, que esses termos haviam sido cunhados em 1976, por Robert Hall. Uma versão em pdf desse texto original mimeografado pode ser encontrada em <http://www.stanford.edu/~rehall/Notes%20Current%20State%20Empirical%201976.pdf>. Hall admitia que se a clivagem era bastante ilustrativa das posições do debate no campo da macroeconomia, na realidade havia um espectro mais contínuo de salinidade a separar os economistas.
7 Grupo de artistas, escritores e intelectuais britânicos do começo do século XX, que incluía, entre outros, os escritores Virginia Woolf e Lytton Strachey, o pintor e crítico de arte Roger Fry e o próprio Keynes.
8 SKIDELSKY, R. Keynes: the return of the master, op. cit., p. 59. [Links] 9 KEYNES, J. M. “Economic possibilities for our grandchildren”. In: Essays in persuasion. Nova York: Classic House Books, 2009 [1930]. [Links]

Paulo Sérgio Fracalanza – Professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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Contextos da justiça: Filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo – FORS (NC-C)

FORST, Rainer. Contextos da justiça: Filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo. Trad. Denilson Luis Werle. São Paulo: Boitempo, 2010. Resenha de: MELO, Rúrion. Automonia, justiça e democracia. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.88, Dez, 2010.

Um dos traços mais característicos da “renovação” da teoria crítica hoje é o enfrentamento dessa tradição de pensamento com o problema da legitimidade e da dimensão normativa das instituições políticas1. Cada vez menos os temas considerados pelas teorias críticas da sociedade permitem que se conclua pela “impossibilidade da democracia”2, levando antes à formulação de novos diagnósticos vinculados a uma concepção de crítica social mais radicalmente política e pluralista. Quando Seyla Benhabib alerta que “a negligência quanto a uma tal teoria política e democrática é um dos principais pontos cegos da teoria crítica da Escola de Frankfurt”3 e Jean Cohen e Andrew Arato chamam atenção insistentemente para o fato de que “a teoria crítica não pode mais manter seus propósitos práticos sem uma teoria política”, uma vez que “a crítica da razão funcionalista precisa ser complementada por uma teoria da democracia”4, esses autores sintetizam uma mudança fundamental na relação entre teoria social e filosofia política partilhada por diversos autores explicitamente filiados à tradição de pensamento que, desde Theodor Adorno e Max Horkheimer, se tornou conhecida como teoria crítica da sociedade5. Essa mudança teórica no projeto original esteve orientada, em linhas gerais, à investigação das “bases normativas da teoria crítica”6, ao vínculo entre o “potencial radical da democracia” e o “legado da Escola de Frankfurt”7, à retradução do núcleo crítico-emancipatório no interior da “programática democrática”8.

Para entendermos melhor o que estaria em jogo nessa mudança de projeto teórico, podemos recorrer brevemente à caracterização do que Axel Honneth chamou de “fraqueza teórica” da primeira geração da teoria crítica, ou seja, àquela formulação ligada principalmente aos nomes de Horkheimer e Adorno. Embora ambos tivessem recusado a referência de Marx à categoria do “trabalho” como conceito determinante da análise crítica da sociedade e da respectiva orientação emancipatória, os principais representantes da primeira geração permaneceram fechados diante de “todas as tentativas de considerar o processo histórico de um ponto de vista outro que não o do desenvolvimento do trabalho social”9. Esse fechamento acabou levando à desconsideração da dimensão da ação social, na qual convicções morais e intuições político-normativas se constituem independentemente, e priorizou, na interpretação dos processos sociais, as funções de expansão e reprodução do trabalho social. Em suma, subsistiria um “reducionismo funcionalista”, já presente em Marx, responsável por restringir a história humana a uma concepção instrumental de ação. A segunda geração começou a questionar decisivamente os déficits teóricos nos fundamentos normativos da primeira teoria crítica, lançando mão, sobretudo, de outro tipo de ação social que pudesse ao menos ser concebido ao lado do trabalho, e assim abrir caminho à análise da integração social e da dimensão normativa da interação social.

Jürgen Habermas foi o autor dessa tradição que primeiro trouxe à consciência teórica o diagnóstico de que “se esgotou a utopia da sociedade do trabalho”10 e pensou explicitamente o projeto futuro da teoria crítica segundo a necessidade de “superar o paradigma produtivista, sem abrir mão das intenções do marxismo ocidental”11. Representante mais importante da segunda geração da teoria crítica, Habermas desenvolveu diagnósticos significativos sobre a esfera pública e temas da moral, do direito e da democracia, buscando eliminar o que entendeu ser o déficit nos fundamentos normativos da crítica social. Também Axel Honneth, não obstante procurasse superar vários aspectos da teoria habermasiana, seguiu explicitamente a crítica ao paradigma produtivista, estabelecendo, agora na terceira geração, uma rica articulação entre crítica e filosofia social. Sua teoria do reconhecimento pretende compreender as formas de reivindicação política assim como a natureza específica dos conflitos e das lutas existentes nas sociedades contemporâneas. Uma das preocupações centrais de seu principal livro,Luta por reconhecimento, consistiu em investigar a lógica dos conflitos sociais, insistindo na necessidade de apresentar a dinâmica de tais conflitos a partir de sua gramática moral implícita12.

A renovação representada pelas segunda e terceira gerações da teoria crítica implicou, portanto, a inclusão de categorias que permitissem explicar mais adequadamente as novas formas de luta política e de mobilização cultural que ampliaram os sentidos da emancipação e configuraram atualmente os dilemas e os desafios da democracia contemporânea. Abandonaram-se necessariamente as orientações emancipatórias presas ao paradigma produtivista e se estabeleceu um rico diálogo entre a crítica da sociedade e concepções normativas preocupadas com questões de justiça política e social, com a dinâmica política de esferas públicas autônomas, com a participação da sociedade civil e com as lutas por reconhecimento (em que estão envolvidos os dilemas criados por diferenças culturais, orientação sexual, gênero, raça etc.) , ou seja, âmbitos de conflitos sociais que requerem uma reflexão renovada sobre a moral, a política e o direito.

Essa rápida e esquemática referência à história da teoria crítica tem o intuito de posicionar o livro de Rainer Forst, Contextos da justiça, no interior dessa mesma tradição teórica. Podendo ser considerado membro de uma “quarta geração” da teoria crítica, Forst voltou-se essencialmente para as questões do pensamento político contemporâneo e foi responsável por uma rigorosa reconstrução de um dos mais importantes debates filosóficos da atualidade no campo das teorias normativas. Suas preocupações teóricas giram em torno da articulação entre crítica social e filosofia normativa, da reconstrução dos temas clássicos do pensamento político moderno e do enfrentamento dos dilemas contemporâneos ligados às questões de justiça, tolerância, cidadania e direitos humanos13. Esse rico estoque de problemas indica de certo modo que aquele ponto cego denunciado por muitos autores entre a filosofia política e a tradição da teoria crítica vem sendo superado desde a segunda geração14. O passo inicial mais significativo de Forst resultou no exaustivo estudo sobre a justiça política e social a partir de uma visão sistemática e crítica do conhecido debate entre liberais e comunitaristas.

Contextos da justiça, que acabada de ser publicado no Brasil em rigorosa tradução de Denilson Luis Werle, procura analisar criticamente as respostas oferecidas à questão da justificação das normas que tornam legítimas relações jurídicas, políticas e sociais no interior de uma comunidade política. Além de contribuir para o esclarecimento dos conceitos fundamentais das teorias da justiça, Forst pretende também superar a oposição consolidada entre liberalismo e comunitarismo, apresentando uma proposta de solução conceitual própria. Seguindo uma rígida oposição entre os dois polos que compõem o debate analisado, os liberais procuraram fundamentar moralmente uma teoria da justiça abstraindo os contextos sociais concretos e priorizando as liberdades individuais em face de concepções substantivas do bem. Os comunitaristas, por sua vez, criticaram essa tese liberal da prioridade do justo perante o bem e enfatizaram o enraizamento da justificação normativa de concepções de justiça em autocompreensões e tradições constitutivas das comunidades políticas, de modo que só poderiam ser considerados justos aqueles princípios que resultam de um determinado contexto comunitário, e somente ali podem pretender validade. Todas as teorias que sublinham a prioridade do justo diante do bem acabam se mostrando “indiferentes ao contexto”, ao passo que a teoria comunitarista reforça uma posição “obcecada pelo contexto” (p. 11). Forst, indo além dessa oposição, acredita ser necessário formular uma teoria crítica da justiça capaz de justificar o ancoramento dos princípios normativos nos valores, nas práticas e nas instituições da comunidade política, compatibilizando dessa maneira os aspectos universalistas com a reivindicação de validade daqueles princípios para a autocompreensão e instituições sociais específicas.

A solução conceitual de Forst para os dilemas criados no interior do debate sobre a justiça leva em consideração quatro “contextos de problemas teóricos” em que aspectos da justificação normativa oferecidos por liberais ou comunitaristas podem se mostrar mais ou menos adequados. O próprio conteúdo do livro, portanto, divide-se nesses quatro planos conceituais críticos. Primeiramente, abordam-se criticamente a constituição do self e os pressupostos de uma concepção atomista de pessoa, típicos da formulação liberal; em segundo lugar, Forst critica a neutralidade do direito diante de visões de mundo e concepções sobre a vida boa que caracteriza a tese liberal da prioridade do justo sobre o bem; em seguida, o texto apresenta uma análise crítica da aposta comunitarista na força eticamente integradora da comunidade política; em quarto lugar, por fim, analisa criticamente a teoria moral universalista e seu vínculo a contextos concretos de justificação. Em cada um desses planos se esclarecem as posições antagônicas de justificação da justiça, as quais permaneceriam, numa “perspectiva horizontal”, meramente excludentes.

Forst pretende mostrar a possibilidade de “superar” tais oposições tradicionais segundo uma “perspectiva vertical” a partir de sua tese dos “contextos da justiça”. Uma teoria crítica da justiça precisa antes considerar as necessidades que podem surgir no contexto de socialização dos indivíduos e serem justificadas publicamente em dimensões ao mesmo tempo diferenciadas e interrelacionadas. Argumentos universalistas, pretensões de neutralidade jurídica e dimensões axiológicas compõem os contextos de reconhecimento e de justificação pública nos âmbitos da moral, do direito, da ética e da política. “Eles formam”, comenta Forst,

[…] quatro “contextos” de reconhecimento recíproco – como pessoa ética, pessoa do direito, cidadão(ã ) com plenos direitos, pessoa moral – que correspondem a diferentes modos de justificação normativa de valores e de normas em diferentes “comunidades de justificação”. A análise do debate entre teorias deontológico-liberais “que se esquecem dos contextos” e teorias comunitaristas “obcecadas pelo contexto” levou, com isso, a uma diferenciação de quatro contextos normativos nos quais as pessoas estão “situadas” (p. 275).

Desse modo, aquelas clássicas oposições entre “eticidade” e “moralidade”, bem e justiça, são vinculadas a processos de justificação da normatividade em que formas de vida culturais e políticas e determinações substantivas da justiça encontram-se atreladas a direitos e procedimentos imparciais. “Portanto”, segue o autor, “princípios de justiça são aqueles que são justificados de modo universal e imparcial na medida em que correspondem, de maneira apropriada, aos interesses, necessidades e valores concretos daqueles atingidos por eles” (p. 276). Pretende-se assim evitar uma “cegueira” em face dos contextos, bem como apontar os limites das orientações contextualistas que desconhecem o núcleo universalista das reivindicações por justiça. A harmonização desses diferentes contextos requer uma teoria da justiça que possa reuni-los de um modo mais adequado.

A reconstrução do debate entre liberais e comunitaristas apresentada no livro evita, por conseguinte, a mera defesa de uma ou outra posição, privilegiando avaliá -los como abordagens parciais para o problema da justiça. Para que seja suficientemente abstrata e concreta ao mesmo tempo, uma teoria crítica da justiça assume o vínculo essencial entre pessoas e comunidades e parte do ancoramento dos princípios de justiça a toda comunidade política. A oposição normativa entre universalismo e contextualismo só pode ser superada se trouxermos para o centro da discussão a questão de quais conceitos de pessoa e comunidade estão em jogo. A solução conceitual de Forst complementa criticamente as proposições globais tradicionais ao distinguir quatro conceitos de pessoa (pessoa ética, pessoa de direito, cidadão e pessoa moral) e de comunidade (ética, jurídica, política e moral) que correspondem a quatro contextos normativos diferentes e entrelaçados de modo complexo:

A identidade ética das pessoas é reconhecida e protegida juridicamente numa sociedade e, na verdade, por meio do direito estatuído de modo político autônomo no interior de uma comunidade política de membros com plenos direitos – direito esse que possui um conteúdo moral em seu cerne, que respeita a integridade de pessoas morais (p. 276).

O propósito crítico da diferenciação e da articulação dos diversos contextos consiste menos na separação entre o plano ético, jurídico, político e moral, do que na possibilidade de “comprovar a compatibilidade dos direitos individuais com o bem da comunidade, da universalidade política com a diferença ética, do universalismo moral com o contextualismo”, permitindo desse modo “evitar oposições falsas” (p. 13).

Podemos chegar às diferenciações internas que compõem os contextos aludidos considerando as relações entre pessoa e comunidade. A teoria liberal tendeu a desvincular o indivíduo de seus contextos de socialização ao priorizar uma concepção abstrata de pessoa como portadora de direitos ou como pessoa moral. As críticas republicanas e comunitaristas mostraram, ao contrário, que toda pessoa se individualiza nas comunidades em que são integradas. Porém, não sabemos ainda a quais comunidades pertencem as pessoas e quais são as normas e os valores que as integram. Se para o liberal a justiça está fundada num conceito abstrato de pessoa de direito – como portadora de direitos subjetivos e como sujeito de direito -, para o defensor do contextualismo toda pessoa está integrada eticamente a uma determinada comunidade de valores. Embora Forst também não acredite ser necessário reduzir um âmbito ao outro, “verticalmente” é possível justapô -los de acordo com contextos de justificação diferentes e igualmente legítimos: enquanto considero a comunidade político-jurídica e sua integração normativa segundo uma concepção política e pública de justiça, compreendo os indivíduos como pessoas que portam direitos; já as comunidades éticas se integram por diferentes tipos de concepções do bem – e não com base na imagem abstrata e universal da pessoa de direito -, de modo que a pessoa ética se torna, dessa perspectiva, membro de determinadas comunidades com as quais a identidade do self está vinculada. As relações éticas (constituídas por visões de mundo e concepções de bem ) não substituem relações jurídicas (em que se trata de atentar para direitos e deveres que formam a estrutura de relações reguladas juridicamente). Como diz Forst, “uma coisa é reconhecer uma pessoa como igual portador de direitos; outra coisa é reconhecê -la em todas as suas qualidades” (p. 40). O direito igual justifica-se segundo normas e princípios que pretendem ser universalmente válidos sem que recorramos a concepções de bem e valores particulares. Não importa quais concepções éticas e valores estão em jogo, normas jurídicas (bem como normas morais) têm de valer “para todos”: no caso do direito, as normas jurídicas valem para todos os parceiros do direito considerados membros de uma comunidade jurídica; normas morais, por sua vez, valem para todas as pessoas morais consideradas membros da comunidade dos seres humanos. A validade de normas éticas, contudo, depende da identificação dos indivíduos com determinados valores que formam suas identidades do ponto de vista de sua história de vida.

Um dos principais conceitos utilizados por Forst nas quatro dimensões como mediação para redefinir os conceitos de pessoa de direito, cidadania ou de uma moral universalista em contextos intersubjetivos diferenciados é o de autonomia. “Segundo esse conceito”, afirma Forst,

[…] as pessoas como agentes são, no sentido prático, seres “autônomos” autodeterminantes quando agem de forma consciente e fundamentada. Como tais são responsáveis por suas ações: podem ser questionadas acerca das razões pelas quais agiram. Como pessoas responsáveis, são aquelas “que se justificam” e esperamos que tenham considerado suas razões para agir, sendo capazes de justificá -las. Nesse sentido, as pessoas autônomas são razoáveis em termos de razão prática: possuem razões para agir que podem ser justificadas para elas mesmas e comunicadas e defendidas diante de outras, de modo que essas razões […] possam ser compartilhadas (p. 305).

Contudo, também uma diferenciação nos “contextos da autonomia” poderá nos mostrar quais questões práticas e quais respostas autônomas podem se apoiar em razões capazes de ser publicamente reconhecidas. A “autonomia ética” está ligada à validade de valores éticos e à autorealização da pessoa; a “autonomia jurídica” é característica de pessoas de direito e é assegurada a todos os destinatários do direito; a “autonomia política” é exercida pelo cidadão considerado autor dos direitos; e a “autonomia moral” é pressuposta nas pessoas como autoras e destinatárias de normas morais. A justificação normativa exercida nos distintos contextos pode validar argumentos e princípios de justiça em referência à autorealização ética, à liberdade pessoal de ação, à autolegislação política ou à autodeterminação moral. Em tais contextos novamente a própria constituição do self (em que a pessoa ética é considerada membro de uma comunidade constitutiva da identidade) pode se distinguir da pessoa de direito (membro de uma comunidade de direito), bem como o cidadão (que pertence à comunidade política) desempenha um papel diferente daquele da pessoa moral (pertencente à comunidade moral de agentes moralmente autônomos). Liberais e comunitaristas não compreenderam justamente que nenhuma dessas concepções de autonomia pode pretender ser a única válida como base da justiça. Por essa razão, a tarefa da análise crítica é saber como integrá-las, compatibilizá-las e perceber quando entram em conflito “de modo que uma dimensão não seja sacrificada em nome das outras” (p. 306).

O livro não se limita à analise crítica dos argumentos normativos sobre a justiça. Há também um importante balanço sobre os princípios de legitimação do poder político em sociedades complexas e pluralistas. Forst amplia o quadro de discussão analisando princípios de justificação pública ao debater com as correntes deliberativas da democracia, com a crítica feminista do liberalismo, dilemas multiculturais e com a literatura sobre a sociedade civil. Sua intenção é pensar criticamente os pressupostos socioculturais das sociedades democráticas, ou seja, entender como os cidadãos se compreendem como membros de uma comunidade política e sob quais condições justificam publicamente normas que retiram sua legitimidade de discursos democráticos. A crítica de Forst implica pensar a relação entre cidadania e justiça social a partir de um ethos democrático constitutivo das práticas de justificação da normatividade sem cair, contudo, na oposição liberal/comunitarista. Mesmo que os próprios cidadãos precisem se compreender como participantes e responsáveis na regulação e na ação políticas, não são os valores éticos compartilhados que orientam legitimamente suas pretensões por reconhecimento e realização de direitos. Orientam-se antes pelo ideal de cidadania ativa, de modo que ethos da democracia não consiste senão na realização das dimensões da própria autonomia do cidadão.

Forst mantém, assim, uma atitude crítica diante das teorias normativas existentes. Na verdade, Contextos da justiça não pretende ir além dessa análise exaustiva das justificações normativas contidas nos discursos teóricos que compõem o amplo debate entre liberais e comunitaristas, ficando para seu outro livro a tarefa de compatibilizar uma reconstrução teórica com a dimensão histórica, como no caso, por exemplo, dos fenômenos da tolerância15. De todo modo, não há teoria crítica sem que se enfrente as teorias capazes de representar da melhor maneira os problemas de nossa época. Assim como fez Marx em seu tempo ao empreender uma “crítica da economia política”, a tarefa atual implica necessariamente uma crítica das mais importantes correntes teóricas vigentes – embora não mais da economia política, mas sim da filosofia política contemporânea com sua pauta de problemas e desafios ligados à moral, ao direito e à democracia.16 E para tanto, a análise crítica não oferece uma “nova” teoria da justiça, apenas acusa a parcialidade das oposições vigentes, reconstruindo seu sentido. Nessa relação com a filosofia política, a teoria crítica também não precisa abrir mão dos fundamentos normativos em que se apoiam tais teorias, bastando justificá -los de forma mais adequada em face dos complexos contextos da justiça.

Notas

1 Cf. NOBRE, M. “Teoria crítica hoje”. In: KEINERT, M. e outros (orgs.). Tensões e passagens: filosofia crítica e modernidade. São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008, pp. 265-83.
2 AVRITZER, L. “Teoria crítica e teoria democrática”. Novos Estudos Cebrap, nº 53, 1999, pp. 167-188. [Links] 3 BENHABIB, S. Critique, norm, and utopia: a study of the foundations of critical theory. Nova York: Columbia University Press, 1986, p. 347. [Links] 4 ARATO, A. eCohen, J. “Politicsand the reconstruction of the concept of civil society”. In: HONNETH, A. e outros (orgs.) .Zwischenbetrachtungen: Im Prozess der Aufklärung. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1989, p. 493. [Links] 5 Cf. HONNETH, A. “Teoria crítica”. In: GIDDENS, A. e TURNER, J. (orgs.) . Teoria social hoje. São Paulo: Editora da Unesp, 1999, pp. 503-52. Ver também Nobre, M. A teoria crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
6 BENHABIB, op. cit., p. ix. [Links] Ver também BAYNES, K.The normative grounds of social criticism: Kant, Rawls, Habermas. Nova York: Albany, 1991. [Links] 7 BOHMAN, J. Public deliberation: pluralism, complexity, and democracy. Massachussetts: MIT, 1996, p. 20. [Links] 8 WELLMER, A. “Bedeutet das Ende des’realenSozialismus’auchdasEnde des Marxschen Humanismus?”. In: Endspiele: Die unversöhnliche Moderne. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1993, p. 91. [Links] 9 HONNETH, op. cit., p. 517. [Links] 10 Cf. HABERMAS, J. “Volkssouveränität als Verfahren”. In:Faktizität und Geltung. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1998, p. 602.
[11] Ibidem. “Ein Interview mit der New Left Review“. In: Die Neue Unübersichtlichkeit. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1985, p. 217.
12 Cf. HONNETH. A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003.
13 Cf. FORST, R. Toleranz im Konflikt. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2003; Ibidem. “Os limites da tolerância”. Trad. Mauro Soares. Novos Estudos Cebrap, nº 84, 2009, pp. 15-29; Ibidem. Das Recht auf Rechtfertigung. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2007; Forst e outros (org). Sozialphilosophie und Kritik. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2009. Ver também seu programa de pesquisa social desenvolvido ao lado de Klaus Günther, “Innenansichten: Über die Dynamik normativer Konflikte”. In: Forschung Frankfurt 2/2009. O subtítulo de seu próximo livro (no prelo) remete a uma junção explícita entre filosofia política e teoria crítica, a saber, “perspectivas de uma teoria crítica da política”. Cf. Forst. Kritik der Rechtfertigungsverhältnisse: Perspektiven einer kritischen Theorie der Politik. Frankfurt/M: Suhrkamp (no prelo).
14 Os limites existentes nessa “virada normativa” não foram desconsiderados mesmo por aqueles que se preocupam com uma renovação da tradição da teoria crítica. Cf. Honneth. “Das Gewebe der Gerechtigkeit. Über die Grenzen des zeitgenössischen Prozeduralismus”. In: Das Ich im Wir: Studien zur Anerkennungstheorie. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2010, pp. 51-77.
15 Cf. FORST, R. Toleranz im Konflikt, op. cit.
16 Cf. o programa de pesquisa apresentado em Forst e Günther, op. cit.

Rúrion Melo – Professor de Teoria Política do Departamento de Ciências Sociais da Unifesp e pesquisador do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap.

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Participatory Institutions in Democratic Brazil – AVRITZER (NE-C)

AVRITZER, Leonardo. Participatory Institutions in Democratic Brazil Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2009. Resenha de: ROMÃO, Wagner de Melo. Entre a Sociedade Civil e a Sociedade Política. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.87, Jul, 2010.

Participatory institutions in democratic Brazil é a obra mais importante de Leonardo Avritzer desde a publicação de Democracy and the public space in Latin America1. O autor rediscute e amplia a análise sobre experiências de orçamento participativo (OP) nas cidades de Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo e também apresenta estudos sobre mais duas “instituições participativas” — os conselhos de saúde e os processos de formulação dos planos diretores urbanísticos nestas cidades, e também em Salvador.

Avritzer reelabora o que tem sido seu principal desafio teórico desde os anos de 1990: as aproximações entre sociedade civil e sociedade política, e a incorporação de práticas originárias da sociedade civil pelas instituições políticas, em novos “desenhos institucionais” participativos com poder de deliberação sobre políticas públicas. O autor propõe-se a desenvolver uma “teoria das instituições participativas” (p. 4) e reconhece que “os partidos políticos e a sociedade política permanecem pouco teorizados na maior parte da literatura sobre participação, por causa do caráter elitista da literatura ou das concepções anti-sistêmicas da teoria dos movimentos sociais”2. Isto seria uma lacuna na literatura, sobretudo no contexto brasileiro, “em que o Partido dos Trabalhadores (PT) mostrou o caminho ao introduzir arranjos participativos, a conexão entre partidos políticos e sociedade civil na implementação de modelos de participação vem a ser uma variável-chave — mas que não é esclarecida pela teoria” (p. 7). Assim, a principal diferença deste livro para seus trabalhos anteriores é a incorporação da dimensão político-partidária à análise.

Avritzer busca formular sua teoria sobre as instituições participativas relacionando-a com três elementos principais: a sociedade civil, a sociedade política e o desenho institucional3. Inicialmente, o autor retoma a tese já presente em seus trabalhos anteriores: as mudanças na sociedade civil brasileira — explicadas, sobretudo, pelo avanço do associativismo em grandes cidades como Porto Alegre, São Paulo e Belo Horizonte a partir de meados dos anos de 1970 — teriam atuado fortemente para a democratização do país, em uma perspectiva autonomista ante o Estado autoritário, distinta de uma cultura política anterior, centrada na aproximação clientelista e subalterna ao aparelho estatal. Entretanto, o autor identifica algumas peculiaridades locais. Em Belo Horizonte e, principalmente, em Porto Alegre, indica maior autonomia em face do Estado e dos partidos políticos, na comparação com São Paulo e Salvador. Além disso, os movimentos sociais de Belo Horizonte e Porto Alegre seriam mais “generalistas” no que diz respeito ao acesso a bens públicos, enquanto os de São Paulo e Salvador teriam objetivos mais localizados — em torno da saúde e educação, em São Paulo, e do movimento cultural, em Salvador. Tais diferenças seriam fatores de maior ou menor sucesso na incorporação das “instituições participativas” ao sistema político formal.

Em seguida, o autor direciona suas observações às mudanças ocorridas na sociedade política brasileira e latino-americana nos anos de 1980 e 1990. É então que começa a ser incorporada à análise a dimensão partidária, pouco explorada nos textos anteriores em virtude da avaliação sobre a centralidade da sociedade civil nos processos de democratização no Brasil e na América Latina, e também pela visão de que o Estado seria refratário aos impulsos democratizantes advindos da esfera societária. Neste livro, ao contrário, Avritzer enfatiza o modo como a sociedade política, os partidos políticos de esquerda e, especificamente, o Partido dos Trabalhadores teriam atuado para a formalização do que chama de “instituições participativas”, incorporando demandas sobre participação presentes em suas origens “externas” às instituições políticas formais:

A sociedade política, no interior das instituições participativas, relaciona concepções de participação originárias dos atores da sociedade civil. Nesse sentido, reforça concepções gerais de participação que estão na raiz da formação dos partidos políticos de massas e de esquerda. […] O PT, no Brasil, desempenha exatamente este papel de relacionar ideias de participação presentes em suas origens com atores da sociedade civil que demandam participação. Na maior parte dos casos de participação analisados neste livro, a iniciativa foi tomada por atores da sociedade política (p. 10).

Esta nova demarcação teórica, dada pela incorporação dos partidos políticos à análise, dá-se de modo bastante específico:

Afirmo que a distinção entre partidos de massa e partidos eleitorais ainda é válida. Além disso, argumento que o lado identitário da formação do partido continua a ser relevante no debate sobre partidos políticos de massa. Demonstro que um partido de massas com ligações externas ao sistema político é o veículo ideal para trazer demandas participativas ao Estado (p. 13).

Assim, o modo pelo qual Avritzer incorpora a sociedade política na análise se dá pelo viés da sociedade civil, uma vez que o PT é visto como um partido de origem nela e portador de suas demandas participativas. As mudanças na sociedade política — em suma, o aparecimento do PT — são derivadas das mudanças ocorridas na sociedade civil: o PT, herdeiro direto do associativismo revigorado nos anos de 1970 e 1980, teria atuado como cabeça de ponte da participação popular no sistema político, facilitando a inserção de práticas democratizantes da sociedade civil no Estado.

Dessa forma, assim como no caso da sociedade civil, a caracterização do PT elaborada por Avritzer se dá na chave da autonomia: “o projeto político do PT nasce das demandas por autonomia em relação ao Estado feitas pelo novo sindicalismo e pela Igreja Católica” (p. 47). No caso do “novo sindicalismo”, tratar-se-ia de autonomia diante da tutela do controle do Estado sobre as organizações sindicais. No caso da Igreja Católica, Avritzer indica que “autonomia significou a habilidade dos atores sociais de demandar bens públicos — terra, serviços sociais, saúde, ou melhorias urbanas, como pavimentação ou saneamento — independentemente do Estado” (p. 47)4. Ao “novo sindicalismo” e à Igreja Católica, o autor agrega o que chama de new left, parcela da esquerda que critica os comunistas, sem que se demore em investigar suas características e o modo como teria se agregado às duas outras “forças de coalizão”.

Além disso, também como um componente identitário do PT, figuram a crítica ao clientelismo e a adoção da democracia participativa. Estes fatores teriam contribuído para que o PT tivesse inovado institucionalmente ao introduzir formas de participação no orçamento, na saúde e na política urbana.

É a partir desta caracterização do papel do PT na sustentação das “instituições participativas” que o autor introduz o que parece ser o principal — embora modesto — ganho analítico de Participatory institutions in democratic Brazil. Avritzer argumenta que, para que sejam investigadas as causas dos sucessos e dos fracassos das políticas participativas das diversas administrações petistas, devem ser conhecidas as seções locais do PT, sobretudo, quanto à relação entre identidade e estratégia no nível local. E avalia que o PT, como todo partido político de esquerda e de massas de perfil social-democrata, teria passado pelo dilema de manter sua identidade sociopolítica, construída sobre o princípio da autonomia dos movimentos sociais dos quais seria originário, e ao mesmo tempo tornar-se competitivo no sistema político — a dimensão estratégica. As variações desses dois pólos (identidade e estratégia) deveriam ser consideradas no âmbito local (municipal e/ou estadual). Deste conjunto de fatores originou-se maior ou menor “vontade política” da seção local do PT e de seus governos municipais para com as “instituições participativas” (p. 50ss).

Cabe no momento indicar o terceiro elemento analítico utilizado por Avritzer no livro. Ele propõe um olhar sobre as “mudanças no desenho institucional” (pp. 62-80), apresentando um “modelo dinâmico e interativo de desenho participativo”:

O modelo dinâmico e interativo também compreende que o sucesso do desenho participativo não é causado pelo desenho em si; antes, cada sucesso é o resultado não antecipado de interações entre atores da sociedade política e da sociedade civil que levam ao desmantelamento das velhas regras e fixam as novas (p. 64).

Este é fundamento do movimento teórico pelo qual o autor incorpora a sociedade política como um ator propositivo de instituições participativas, e não apenas resistente a elas. A partir da premissa do “desenho institucional e interativo”, são apresentadas três possibilidades de instituições participativas — o orçamento participativo, os conselhos de saúde e os processos de aprovação dos planos diretores municipais. Com base nelas, o autor constrói tipos ideais de desenho institucional, respectivamente os chamados bottom-up designs (desenhos “de baixo para cima”), os power-sharing designs (desenhos de compartilhamento de poder) e os ratification designs (desenhos de ratificação). Esses modelos terão maior ou menor possibilidade de sucesso de acordo com o modo em que se dá o encontro entre sociedade civil e sociedade política no contexto local. Assim, por meio da análise sobre como se comporta cada design em cada uma das quatro cidades estudadas, o autor pretende construir quadros comparativos que o levem a uma “teoria das instituições participativas”.

O livro denota um relativo deslocamento nas teses anteriores de Avritzer, sobretudo quanto ao orçamento participativo. De fato, era insustentável a pouca importância teórica dada ao contexto político-partidário das localidades, sobretudo aquele relativo aos posicionamentos do PT local e mesmo às disputas no interior do partido. Embora o tema não estivesse totalmente ausente em seus textos anteriores, o autor não havia ainda tratado do papel central dos governos — e dos partidos que os sustentam — na proposição e no controle dos processos de orçamento participativo. Ou seja, não havia ainda estabelecido como preocupação teórica a natureza das relações entre os partidos políticos e a sociedade civil que ajudam a explicar a configuração das instâncias participativas, considerando a propensão do PT local a estimular e fortalecer as instituições participativas. Avritzer pouco se debruçara sobre o problema dos padrões de comportamento e composição local dos partidos que ajudam a explicar as variações de “vontade política” nas várias experiências de orçamento participativo nos governos petistas ou não-petistas.

Este passo analítico teve que ser dado principalmente pelo relativo fracasso da experiência do OP de São Paulo. Anteriormente saudado como “potencializador da dinâmica participativa na cidade”5— a postura adotada pelo autor com relação a esse caso se torna mais crítica neste livro. Assim, a incorporação de São Paulo ao seu rol de cidades estudadas (em textos anteriores ele se respaldava nas experiências “positivas” de Porto Alegre e Belo Horizonte6) — traz a necessidade de explicar por que, em uma cidade com movimentos sociais tradicionalmente vigorosos, a experiência de OP não teria sido satisfatória na capital paulista.

Os oito anos de malufismo (1992-2000) entre a primeira e a segunda administração petista em São Paulo são indicados como perniciosos para a estruturação de instituições participativas na cidade. Isto teria se dado não só em relação ao OP, mas também aos conselhos de saúde e à elaboração de seu plano diretor urbanístico. Entretanto, o que é central como opção analítica é a verificação das divisões internas no PT paulistano sobre as prioridades dadas à participação popular, já presentes no governo de Luiza Erundina e acentuadas no governo de Marta Suplicy.

É fundamental ao argumento de Avritzer indicar o PT como um partido pró-participação. Os casos em que isso não se configura são ora explicados pelas fissuras internas ao partido — entre setores mais ou menos afeitos às instituições participativas —, ora indicados como “concessões” ao sistema político formal para que o partido não “perca votos”, como na justificativa pela “opção” do governo de Marta Suplicy em não privilegiar o OP como política de gestão, pela necessidade eleitoral que o teria levado a realizar acordos com a direita malufista na Câmara de Vereadores (p. 113).

Para Avritzer, quando há harmonia intrapartidária nas seções locais do PT, as chances de que o OP vingue são maiores. Este argumento vale tanto para o caso negativo — São Paulo —, em que não teria havido acordo no interior do partido sobre a dimensão a ser dada às políticas participativas, como para o caso positivo — Porto Alegre —, em que teria havido um “pacto” entre as principais facções para que as disputas internas não atrapalhassem o projeto político maior na cidade:

Em Porto Alegre, Olívio Dutra tomou posse com o apoio de todos os grupos internos ao PT, liderando um pacto segundo o qual cada facção local do PT iria indicar o prefeito nas eleições subsequentes. Tarso Genro seguiu Dutra, e Pont seguiu Genro, mostrando como este pacto no âmbito das lideranças produziu uma durável hegemonia do PT na cidade (p. 58).

Afirmações de tal natureza indicam os limites da análise de Avritzer e demonstram as insuficiências da compreensão apresentada pelo autor quanto aos padrões internos da competição político-partidária. É sabido que as disputas entre as forças políticas internas do PT de Porto Alegre — e gaúcho de maneira geral — nos anos de 1990 talvez tenham sido ainda mais conflagradas do que as do PT paulistano. Segundo Filomena7, de 1993 a 1999, estabeleceu-se uma aliança entre as tendências Articulação de Esquerda e Democracia Socialista (DS), adversárias do PT Amplo (grupo liderado por Tarso Genro). Tanto é que, ao contrário do que aponta Avritzer, em 1996 houve prévias entre Raul Pont (DS) e José Fortunati (PT Amplo) para a escolha do candidato a prefeito, vencidas pelo primeiro. Fortunati, então, torna-se vice de Pont. Já em 2000, mesmo com a vigência da possibilidade da reeleição, as novas prévias envolvem Pont, Fortunati e Genro, que as venceu. Estas situações e os muitos casos de desfiliações de figuras locais proeminentes — como o próprio Fortunati e, antes dele, Antonio Hohlfeldt, que fora o primeiro vereador do partido em Porto Alegre, eleito em 19828— indicam que o ambiente interno do PT gaúcho pouco diferia do habitual em outras seções do partido. Ou seja, as disputas por indicações a cargos majoritários deram-se em geral na base do voto e da quantidade de delegados que cada candidato ou facção conseguia arregimentar. Tal aritmética, da mesma forma, era a base para a nomeação de mais ou menos correligionários aos cargos no governo ou no partido9. O prestigiado OP porto-alegrense, sem dúvida, tornou-se também um anexo a esta disputa, pois se tornou um espaço político estratégico de fortalecimento dos grupos internos10.

É também interessante verificar como Avritzer trata de um caso negativo de orçamento participativo, o de São Paulo na gestão de Marta Suplicy (PT). Para o autor, a explicação para o fracasso se deve aos seguintes fatores, combinados: 1) o núcleo de assessores mais próximos de Suplicy seria cético em relação à participação, e teria deixado o comando do OP aos setores esquerdistas do PT na capital paulista, com pouco poder político no interior do partido e da gestão; 2) a opção de governabilidade executada pelo governo fora a incorporação de setores conservadores e malufistas à maioria governista, sobretudo por meio das nomeações de subprefeitos. Isto teria dificultado o OP em subprefeituras dominadas por membros de partidos não comprometidos com a participação.

Embora certamente tais fatores possam explicar parcialmente a pouca relevância do OP na elaboração do orçamento e na priorização de políticas públicas na cidade de São Paulo, não explicam o fato de o OP de São Paulo ter apresentado, nos quatro anos em que esteve em vigor, um crescente aumento na participação, que variou crescentemente de 34 mil a 82 mil pessoas, entre 2001 e 2004 (p. 101).

Em outros trabalhos, relativos aos casos de Porto Alegre e Belo Horizonte, Avritzer vinculou a participação à credibilidade do processo perante a população. Em suma, as regras do orçamento participativo seriam efetivas e as deliberações quanto à priorização de obras e serviços seriam cumpridas pelos governos11. No caso de Porto Alegre, o autor liga a baixa participação em algumas regiões com “menor tradição associativa” a dúvidas sobre a capacidade do processo em promover a execução de obras públicas. Sugere, então, que a existência anterior de práticas de participação da sociedade civil predetermina a efetividade do orçamento participativo. No caso de Belo Horizonte, os altos e baixos níveis de participação que se apresentam ano após ano são ligados também a dúvidas dos participantes quanto à efetividade e à continuidade do orçamento participativo. Em seu estudo sobre esta cidade, o autor relaciona tais dúvidas com a incerteza sobre se o candidato do PT ganharia as eleições em 1996 e se, depois, o prefeito do PSB daria a mesma prioridade ao OP12. Todas essas elucubrações, de fraca consistência empírica, servem ao autor para o reforço de suas premissas sobre a capacidade da população em participar de “modo racional”.

Em São Paulo, mesmo considerando que o OP “sempre levantou fortes dúvidas sobre o quão deliberativas seriam suas decisões” (p. 100), os números oficiais utilizados pelo autor demonstram que houve sempre um acréscimo dos níveis de participação, mesmo considerando que o OP paulistano teria privilegiado os setores mais organizados da população13 (p. 102), em tese, os mais esclarecidos sobre eventuais manipulações da prefeitura e/ou sua incapacidade em entregar as obras prometidas.

Tais inconsistências analíticas sobre a participação no OP e a limitação em se considerar os partidos políticos e governos apenas com relação à “vontade política” para se implementar ou não propostas participativas fazem com que o livro pouco avance na análise sobre o que realmente pauta a dinâmica política das experiências de OP e, de resto, das “instituições participativas”. A incorporação da sociedade política em sua argumentação é restringida por seu arcabouço teórico anterior, vinculado ao protagonismo da sociedade civil na proposição de processos participativos. Esta visão permanece em Participatory institutions in democratic Brazil, impedindo-o de avançar significativamente na incorporação à análise das dinâmicas próprias da sociedade política.

Artigos e livros publicados ao longo desta década14 têm contribuído para que se forme a seguinte tese: as “instituições participativas” são freqüentadas principalmente por agentes (indivíduos e grupos) situados nas franjas da “sociedade política”, em torno (ou mesmo no interior) dos partidos políticos. Esta visão é reforçada à medida que se sobe na escala de proximidade com a sociedade política, ou seja, no caso das experiências de orçamento participativo, de maneira crescente desde as reuniões de bairro até os “conselhos do orçamento participativo”, que deliberam sobre a proposta orçamentária a ser apresentada à Câmara de Vereadores e têm maior capacidade institucional de interagir com o poder municipal. A proximidade com as esferas estatais invariavelmente é utilizada pelos conselheiros para um melhor posicionamento pessoal (ou de grupo) no interior da dinâmica político-partidária-eleitoral de cada bairro e da cidade.

Diante disso, é preciso que o referencial analítico sobre os processos participativos induzidos pelos poderes públicos seja remodelado. Deve-se caracterizar, afinal, quem acorre aos conselhos e, mais do que qualificar e mensurar a relação dos conselheiros com organizações da sociedade civil, verificar qual o nível de relação destes com a sociedade política, tanto nas instituições (governos, partidos), como nos processos típicos das disputas realizadas na sociedade política, sobretudo as campanhas eleitorais. Afinal, quem é a “sociedade civil” que participa dessas experiências? E em que medida seus “representantes” podem ser considerados como tal, uma vez que, numa visão mais acurada, mantêm vínculos tão fortes com a sociedade política?

Este veio de análise não poderia ser trilhado por Avritzer, pois põe à prova suas teses originais sobre uma “sociedade civil” que demandaria espaços de participação e atuaria neles de maneira autônoma pela democratização do Estado. O argumento do livro, de que “o elemento analítico relevante é como sociedade civil e sociedade política interagem” (p. 165), mantém intacto o espírito de seus textos desde A moralidade da democracia15. É notável como, em Participatory institutions in democratic Brazil— embora avance na observação do contexto local das relações internas dos governos e partidos —, sociedade civil e sociedade política permanecem como elementos estanques. Pouco se diz sobre o quanto a dimensão substantiva da sociedade civil — tal como conceituada por Avritzer —, em vez de se afirmar, pode ser diminuída nos orçamentos participativos e nas outras instituições políticas.

Notas

1 Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2002. [Links] 2 Todas as passagens do livro citadas foram traduzidas pelo autor.
3 Provavelmente, esta incorporação da sociedade política como um componente analítico no mesmo nível da sociedade civil tenha se devido, de um lado, a outros trabalhos sobre o OP que enfatizaram a centralidade das iniciativas partidárias para o sucesso (ou fracasso) de inúmeras experiências. De outro lado, Avritzer passa a reconhecer a multiplicidade de situações relativas à “vontade política” com relação ao OP no interior mesmo do Partido dos Trabalhadores e outros partidos de esquerda.
4 É interessante perceber como o autor, assim, vincula diretamente os movimentos sociais que demandam políticas públicas de todas as ordens à ação estrita da Igreja Católica.
5 AVRITZER, Leonardo, RECAMÁN, Marisol e Venturi, Gustavo. “O associativismo na cidade de São Paulo”. In: AVRITZER, L. (org.). A participação em São Paulo. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, pp. 11-57. [Links] 6 AVRITZER. “O orçamento participativo: as experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte”. In: DAGNINO, Evelina (org.).Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, pp. 17-45; [Links] Ibidem, “O orçamento participativo e a teoria democrática: um balanço crítico”. In: AVRITZER e NAVARRO, Z. (orgs.). A inovação democrática no Brasil: o orçamento participativo. São Paulo: Cortez, 2003, pp. 13-60. [Links] 7 FILOMENA, César L. O agonismo nas relações sociais do partido, dos espaços públicos da sociedade civil e do sistema administrativo estatal: a experiência da Administração Popular em Porto Alegre. Porto Alegre: dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-RS, 2006. [Links] 8 Antonio Hohlfeldt retira-se do PT em 1993, filiando-se ao PSDB, e José Fortunati, em 2001, filiando-se ao PDT. Ambos continuaram como figuras de proa na política no Rio Grande do Sul, sendo que Hohlfeldt foi vice-governador do estado (no governo de Germano Rigotto — PMDB) e José Fortunati é, atualmente, o prefeito de Porto Alegre (beneficiado pela renúncia de José Fogaça — PMDB).
9 O que não quer dizer que tenha sido o único critério para nomeações.
[10] BAIERLE, Sergio. “OP ao termidor?”. In: VERLE, João e BRUNET, Luciano (orgs.). Construindo um mundo novo: avaliação da experiência do orçamento participativo em Porto Alegre — Brasil. Porto Alegre: Guayí, 2002, p. 132-64. [Links] Cf. Filomena, op. cit.
11 Cf. AVRITZER, Democracy and the public space in Latin America, op. cit.; “O orçamento participativo: as experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte”, op. cit.; “O orçamento participativo e a teoria democrática: um balanço crítico”, op. cit.
12 AVRITZER, Democracy and the public space in Latin America, op. cit., pp. 152-3.
13 Segundo survey utilizado como referência por Avritzer, em 2003, 69% dos participantes do OP de São Paulo pertenceriam a associações voluntárias.
14 NAVARRO, Zander. “Orçamento participativo de Porto Alegre (1989-2002): um conciso comentário crítico”. In: AVRITZER e NAVARRO op. cit., pp. 89-128; [Links] Wampler, Brian. “Instituições, associações e interesses no orçamento participativo de São Paulo”. In: AVRITZER (org.). A participação em São Paulo, op. cit., pp. 371-407; [Links] GURZA LAVALLE, Adrian, Houtzager, Peter e Achrya, Arnab. “Lugares e atores da democracia: arranjos institucionais participativos e sociedade civil em São Paulo”. In: COELHO, Vera Schattan e NOBRE, Marcos (orgs.). Participação e deliberação: teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora 34, 2004, pp. 343-67; [Links] Baiocchi, Gianpaolo. Militants and citizens: the politics of participatory democracy in Porto Alegre. Stanford-CA: Stanford University Press, 2005; [Links] COELHO, Vera Schattan e FAVARETO, Arilson. “Dilemas da participação e desenvolvimento territorial”. In: Democracia, sociedade civil e participação. Chapecó: Argos, 2007, pp. 97-126; [Links] WAMPLER, Brian. Participatory budgeting in Brazil: contestation, cooperation, and accountability. University Park, PA: The Pennsylvania State University Press, 2007. [Links] 15 AVRITZER. A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática. São Paulo/Belo Horizonte: Perspectiva/Editora da UFMG, 1996. [Links]

Wagner de Melo Romão – Doutorando no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo.

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Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil – KOWARICK (NE-C)

KOWARICK, Lúcio. Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. São Paulo: Editora 34, 2009. Resenha de: MOYA,Maria Encarnación. Trajetórias e transições da questão social no brasil urbano. Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.86, Mar 2010.

Na esteira da crise dos Estados de Bem-estar Social que seguiu às transformações econômicas orientadas pelo paradigma do neoliberalismo, a problemática da pobreza e das desigualdades ressurgiu como questão central em diversos países, com destaque para sua produção e reprodução no mundo urbano. Desemprego e precarização do trabalho, concentração espacial da pobreza, além da violência presente nesses espaços passaram a ocupar lugar central na agenda de governos, nas ações de organizações civis e, inevitavelmente, no campo de investigação das ciências sociais.

Em face das vertiginosas mudanças sociais, econômicas e político-institucionais em curso, e tendo por cenário dessas mudanças a cidade de São Paulo, Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil, do sociólogo e cientista político Lúcio Kowarick revela-se uma obra ímpar ao situar o leitor nas trajetórias e transições da problemática da pobreza e das desigualdades no Brasil urbano. Ou, nos termos do próprio autor, nos debates e embates em torno da questão socialque se configura em nossa atualidade urbana e que denomina vulnerabilidade socioeconômica e civil. Afilia-se, assim, à acepção conferida pelo sociólogo francês Robert Castel, para quem:

A “questão social” é uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. É um desafio que interroga, põe em questão a capacidade de uma sociedade (o que em termos políticos se chama nação, para existir como um conjunto ligado por relações de interdependência1.

Integrando história, sociologia e etnografia, Viver em risco oferece ao leitor uma profunda interpretação dos desafios enfrentados pela cidadania na sociedade brasileira. Desafios que dizem respeito às dificuldades históricas de expansão dos direitos, mas que hoje também se associam a restrições e a processos de destituição, particularmente dos direitos civis e sociais, no bojo das transformações em curso. Se na concepção moderna da cidadania, direitos civis, políticos e sociais são prerrogativas básicas para garantir a integração e a participação plenas numa comunidade nacional, promovendo em alguma medida maior eqüidade, Kowarick questiona a própria capacidade do Estado brasileiro de garantir a integridade física dos cidadãos, sobretudo daqueles que habitam os lugares onde se concentra a pobreza. O livro é resultado de ampla investigação que contou com a participação de graduandos e pós-graduandos da Universidade de São Paulo.

Desde os anos de 1970, Lúcio Kowarick é um dos mais reconhecidos especialistas nos estudos urbanos no Brasil e uma referência central no debate sobre pauperismo e desigualdades nas sociedades do “capitalismo periférico”. Em livros já clássicos como Capitalismo e marginalidade na América Latina (1975), Crescimento e pobreza (1975),A espoliação urbana(1979) , Kowarick desenvolveu conceitos influentes, como espoliação urbana, no interior de um quadro interpretativo que explicava o pauperismo e as desigualdades no mundo urbano como a “somatória de extorsões” resultante de processos econômicos e políticos. Essa noção, e o quadro interpretativo correspondente, foram revistos e atualizados ante as mudanças na realidade social, política e econômica brasileira,a emergência de novos atores e as próprias transformações no campo teórico e analítico das ciências sociais2.

A noção de vulnerabilidade socioeconômica e civil insere-se nesse contínuo processo de reatualização do pensamento do autor, construída a partir do diálogo com a literatura nacional e internacional, mas sobretudo a partir da análise de múltiplos dados quantitativos e do material qualitativo proveniente de pesquisa em profundidade realizada em bairros populares da cidade de São Paulo. O ensaio fotográfico de Antonio Saggese leva o leitor a um encontro sensível com as formas de moradia tipicamente associadas à pobreza, como também, hoje, à violência – cortiços das áreas centrais, loteamentos nas periferias e favelas -, revelando a precariedade que caracteriza para muitos o viver na cidade.

Viver em risco não se confunde com o “estado da arte” das discussões sobre pobreza e desigualdades em diversos países ou mesmo no Brasil, mas traz uma construção conceitual e interpretativa na qual, mediante a estratégia analítica dos “olhares cruzados”, o autor contrapõe lugares, instituições, representações e conflitos, de modo a indagar e delinear os contornos de nossa questão social. O leitor é agraciado com um relato histórico, sempre politicamente posicionado, de representações e práticas acerca da pobreza e das desigualdades, num momento em que essa problemática volta a ser central.

O livro é estruturado em duas partes. A primeira, “Olhares cruzados: Estados Unidos, França e Brasil”, é eminentemente teórica e inicia o percurso do autor no “campo teórico de investigação que diz respeito à vulnerabilidade socioeconômica” (p. 19), expondo em um primeiro momento as formas em que a questão social aparece nas sociedades norte-americana e francesa (cap. 1), para a seguir reconstruir essa problemática à luz da especificidade das questões que afligem a sociedade brasileira (cap. 2). Na segunda parte, “Sobre a vulnerabilidade em bairros populares: sociologia, história e etnografia”, o foco recai sobre os lugares e modos de morar e viver dos mais pobres na cidade de São Paulo e na violência que, nas últimas décadas, se concentrou nesses locais. O autor realiza uma reconstrução histórica e uma descrição detalhada dos três padrões que são tradicionalmente as alternativas de moradia dos mais pobres: o cortiço (cap. 3), a casa própria autoconstruída em loteamentos na periferia (cap. 4) e a favela (cap. 5). Os temas da habitação e da violência se entrecruzam ao final (cap. 6) com o objetivo de sintetizar a hipótese anunciada ao início do livro e que se afigura como a questão social enfrentada hoje pela sociedade brasileira:

[…] a violência, nos anos recentes, e de forma crescente, tornou-se um elemento estruturador da vida das pessoas,pois,não raras vezes, constitui fator de migração de um local para outro na escolha do local de moradia, além do cuidado em tomar medidas de segurança que minimizem os riscos de sofrer atos violentos (p. 20).

A questão social não se dissocia das formas históricas que a cidadania adquiriu em distintos contextos nacionais. Por essa razão, o papel desempenhado pelo Estado é central. Esse é o fulcro do capítulo 1, “A Questão da pobreza e da marginalização na sociedade americana e francesa”, no qual o autor contrapõe as trajetórias da questão social e seus dilemas nos Estados Unidos e na França. Como mostra, ao sofrerem os recentes impactos das transformações econômicas globais, ambos os países desenvolveram diferentes respostas político-institucionais, “em função das especificidades próprias de cada ambiente sócio-político nacional” (p. 29).

No caso estadunidense, a herança do racismo e a situação dos afro-americanos sempre ocuparam lugar central no debate público, nas ações governamentais e nas organizações civis, assim como na agenda da investigação das ciências sociais. Nos anos de 1960,no bojo das lutas anti-raciais, o dilema norte-americano desembocaria na lei dos direitos civis (1964) e em medidas de políticas de proteção social, no âmbito da hegemonia da visão liberal – o que significa uma visão progressista naquele país – num momento em que a presença do Estado e de políticas públicas que combatam a pobreza eram valorizadas e implementadas no interior da chamada War on Poverty. Na esteira da crise econômica que caracteriza os anos de 1970, o foco da atenção pública recai sobre os comportamentos “desviantes” da população afrodescendente empobrecida e concentrada nos guetos, designada como underclass [subclasse]. É o momento em que a balança política começa a pender para a direita.

Na obra que será referencial para o pensamento conservador, Losing ground, de Charles Murray, as políticas públicas de proteção social alavancadas e ampliadas nos anos de 1960, em especial o Aid to Families with Dependent Children (AFDC), são atacadas como causa de uma “cultura da dependência” – comportamentos opostos ao da sociedade mainstream, orientada pelos valores individualistas do “trabalho árduo, honestidade e responsabilidade pessoal”3. Kowarick lembra que apesar da dinamização do debate público e acadêmico a partir da publicação de The truly disadvantaged, obra do sociólogo William Julius Wilson que focaliza as conseqüências das mudanças macroeconômicas responsáveis pela maior concentração do desemprego entre os moradores dos guetos, a trajetória das políticas de proteção social nos Estados Unidos torna-se mais conservadora.

Com a substituição do AFDC pelo Personal Responsability and Work Opportunity Reconciliation Act (Prowora), o acesso ao benefício assistencial torna-se mais restrito e condicionado a contrapartidas por parte do indivíduo, como ter um trabalho. O objetivo, de matiz conservador, é combater o que se designa então como welfare dependency, isto é, tornar-se dependente dos serviços sociais. O autor conclui, assim, que a essência do debate nos Estados Unidos é “culpar ou não culpar a vítima” no interior de um processo de destituição progressiva de direitos sociais.

Na França, inversamente, a tradição republicana e jacobina que impregna as instituições francesas confere centralidade à ação do Estado no combate à pobreza e às desigualdades, independentemente da posição ocupada pelos diversos atores no espectro político. Kowarick retoma os percursos da questão social nesse país desde o pós-guerra, e principalmente as respostas institucionais aos efeitos da precarização econômica e social que, na década de 1980, atingem, sobretudo, os trabalhadores com baixas qualificações (franceses ou imigrantes) e os jovens das banlieues– termo próximo a “periferias” -, e, nos anos de 1990, também os trabalhadores mais qualificados. Os “bairros difíceis”, onde se concentram desemprego e atos violentos,tornam-se foco de diversas políticas públicas. Ao longo desses anos, multiplicam-se as ações governamentais e são criadas instituições como o Ministère de La Ville (1989), que coordena ações e reformas em âmbitos como educação, emprego e melhorias urbanas. Em 1991, o termo “exclusão social” aparece no interior do aparelho de Estado, e a “coesão social” é erigida como meta a ser atingida. Na França, não é a responsabilização do indivíduo que está em jogo,e o retrato francês parece menos desesperador quando comparado à situação estadunidense.

No campo das ciências sociais na França são múltiplas as noções desenvolvidas para apreender os processos de destituição em cur-so: “desqualificação social” (Serge Paugam), “desinserção” (Gaujelac), “desfiliação” (Castel). Lúcio Kowarick, no entanto, detém-se no conceito de desfiliação de Robert Castel ao considerar a obra deste autor como a de”maiorenvergadura histórica e teórica” (p.56):”Desfiliaçãosignifica perda de raízes sociais e econômicas e situa-se no universo semântico dos que foram desligados, desatados, desamarrados, transformados em sobrantes, em inúteis, desabilitados socialmente” (p.57).

O modelo formal desenvolvido por Castel é constituído por dois eixos – um econômico e outro social -,onde ganham centralidade os processos que levam à destituição do trabalho seguro e da participação em relações sólidas, que podem levar o indivíduo a transitar por quatro “zonas”: integração, vulnerabilidade social, assistência e desfiliação.

O contraste entre a forma como se configura a questão social nos dois países dá ensejo a uma observação crucial do autor:a questão social da atualidade nos países centrais pode ser balizada por processos mais ou menos intensos de desenraizamento que se associam ao papel do Estado na garantia de direitos de cidadania, o que se configura historicamente no interior de tensões e conflitos, segundo as especificidades políticas de cada contexto nacional.

No capítulo 2, “Sobre a vulnerabilidade no Brasil urbano”, o autor problematiza o caso brasileiro a partir de um denso ensaio acerca dos dilemas e dos bloqueios envolvidos na expansão dos direitos de cidadania no país, o que a seu ver representa o âmago de nossa questão social hoje. Se ao longo dos anos de 1980 e 1990 Kowarick avalia que houve a consolidação do sistema político democrático, isso teria ocorrido paralelamente à manutenção de um déficit em relação aos direitos sociais, econômicos e civis. O país viu crescer nas últimas décadas a vulnerabilidade socioeconômica em virtude do crescimento do desemprego e da expansão de formas precárias de trabalho, somados a um sistema público de proteção desde sempre restrito e incompleto. A vulnerabilidade civil perpetua-se graças à crescente incapacidade do Estado de controlar a violência da polícia e dos bandidos, que afeta, principalmente, os moradores dos bairros populares mais pobres.

Kowarick introduz a discussão do conceito de desfiliação à luz dessa problemática, mas não sem antes revisitar o que talvez possa ser considerado a mais importante tradição teórica e política desenvolvida no âmbito latino-americano: as teorias da dependência – elaboradas no marco da teoria marxista das classes sociais -, desenvolvidas num intenso debate intelectual-acadêmico acerca das possibilidades ou não de desenvolvimento das sociedades no interior do capitalismo.

De forma similar aos debates que hoje se centram na exclusão social, a noção de marginalidade social foi utilizada nesse âmbito para problematizar os processos de (des)inserção econômica dos contingentes populacionais de origem rural que, nos anos de 1960 e 1970, migravam para as cidades. Definida por Kowarick à época como formas de inserção marginal e intermitente no mundo do trabalho urbano, baseada na (super) exploração (Marginalidade na América Latina, 1975), a este processo o autor associou o que denominou como espoliação urbana: “ausência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que,conjuntamente com o acesso à terra,se mostram socialmente necessários à reprodução dos trabalhadores”4.

Não por acaso, o autor sugere paralelos entre a lógica do mercado de trabalho explicitada naquele contexto e as formas que este assume hoje, desta vez associadas à reestruturação econômica que deu origem a múltiplas formas de trabalho precário – em alguns casos conectadas a cadeias produtivas dinamizadas por alta tecnologia. Por outro lado, em se tratando do acesso à terra e à moradia na cidade, o autor destaca o crescimento das formas precárias de moradia, especialmente as favelas.

Tais questões são analisadas no livro por meio do conceito de desfiliação. Kowarick adverte, porém, que o uso dessa noção para problematizar a questão social brasileira contemporânea não diz respeito à crise da sociedade salarial, como na França, mas a “um vasto processo de desenraizamento do mundo do trabalho formal,na medida em que para muitos ele tornou-se informal, instável e aleatório” (p. 86). Não obstante, Kowarick considera o conceito mais adequado para pensar as conjunturas presentes, marcadas por processos de destituição de direitos sociais, do que para explicar conjunturas passadas, quando trabalho e moradia ainda representavam “vigorosas alavancas integrativas”, associadas ao acesso a serviços públicos na cidade – ou pelo menos à expectativa de sua chegada. Nas conjunturas mais recentes, para muitos a trajetória na cidade seria, antes, marcada por experiências de perdas e mesmo um processo de descenso social caracterizado pela impossibilidade de conquistar a casa própria ou mesmo a perda da condição de proprietário para morar em favelas, em razão do desemprego e do empobrecimento.

Por outro lado, a idéia de exclusão não é abandonada, mas passa a ser traduzida como a possível emergência de um princípio de exclusão social, instituído num conjunto de falas e de práticas calcadas em um imaginário social que associaria, hoje, a pobreza à delinqüência, estruturando “múltiplas práticas sociais de caráter defensivo, repulsivo ou repressivo” (p. 92).

Essa hipótese, delineada no início da obra, é desenvolvida ao longo da segunda parte, “Sobre a vulnerabilidade em bairros populares: sociologia, história e etnografia”, baseada em múltiplos indicadores quantitativos e na pesquisa em profundidade realizada junto a moradores de dois cortiços no Centro, dois loteamentos na periferia e numa favela da cidade de São Paulo. Os três primeiros capítulos que compõem essa parte do livro são preciosos por oferecerem ao leitor uma reconstrução histórica das três modalidades de moradia que se constituíram como alternativas possíveis para boa parte dos trabalhadores na cidade ao longo do século XX, em virtude dos baixos salários e da quase inexistência de políticas de habitação voltadas para as camadas populares.

Essas alternativas são hoje designadas pelo autor como “modalidades de viver em risco na cidade” em virtude da onipresença da violência nesses espaços, perpetrada por bandidos e pela polícia, mas também pelas condições insatisfatórias, desgastantes e por vezes humilhantes com as quais os moradores se deparam. Cada um dos capítulos dedica um item ao relato etnográfico que revela o cotidiano dos lugares pesquisados e a percepção de seus moradores, considerados personagens desses diferentes cenários urbanos. As falas revelam, segundo as perspectivas dos moradores, as vantagens e as desvantagens de se morar nessas diferentes condições, assim como as desvantagens que sempre envolvem os “outros” lugares, associados à violência, à discriminação e à desordem.

No capítulo 3, “As áreas centrais e seus cortiços: dinamismos, pobreza e políticas”, destacam-se as origens e os percursos da moradia popular no Centro de São Paulo. No início do século XX, o cortiço é praticamente a única alternativa de moradia para os trabalhadores pobres; mas hoje ainda continua como uma modalidade de moradia dos mais empobrecidos.,tendo-se espalhado mesmo nas periferias.

No caso das áreas centrais, a perda de sua primazia para outras localizações da cidade a partir dos anos de 1960 e 1970 foi acompanhada de esvaziamento populacional, com a saída dos mais ricos e o abandono de casas e edifícios. Isso estimulou seu uso para um negócio que se revelou muito lucrativo: a habitação coletiva de aluguel, atraindo uma população mais empobrecida. Apesar da precariedade das condições de vida nesse tipo de moradia (que envolve problemas de higiene, uso coletivo de banheiros, cozinha e outros equipamentos, além da prevalência de espaços exíguos nos quais o acúmulo de moradores e a proximidade tendem a gerar conflitos, nas falas de seus moradores), “o Centro é perto de tudo”. Trata-se da grande vantagem de morar em cortiço na área central – ou “pensão”,termo mais usado:a concentração e a proximidade das oportunidades de trabalho, de serviços e de opções de lazer, apesar da desvantagem dos aluguéis abusivos. Mas suas falas também são atravessadas por visões valorativas acerca da moradia em outros locais, que procuram evitar: favelas são em geral referidas como lugar da criminalidade, e a periferia, ou “vila”, distante de tudo, é também o local onde impera a violência. Tais relatos, no entanto,contradizem por vezes a realidade exposta em outras passagens, em que violência e assassinatos também estão presentes.

Apesar da deterioração que caracteriza parte das áreas centrais, Kowarick lembra que o Centro vem sendo objeto de investimentos públicos e privados, por meio de programas que envolvem conjuntamente associações – menção especial à Associação Viva o Centro – e órgãos públicos. Como afirma o autor, “são vastas as potencialidades sociais e econômicas do Centro e os recursos públicos nele alocados para os próximos anos não são em nada desprezíveis” (p.160).Daí ser lugar de disputas e lutas pela apropriação do espaço, em que o poder público, municipal e estadual, têm papel chave para canalizar recursos e influir no mercado imobiliário. Nesse sentido, ganha significação a orientação política de cada gestão em termos dos interesses que nela se expressam.

A esse respeito, há um posicionamento claro de Kowarick, que critica as ações coletivas e públicas orientadas por uma visão higienista e segregacionista de recuperação do Centro. Ante estas políticas, a ação dos movimentos sociais e das assessorias técnicas que as apóiam orientam-se muito mais pela ampliação dos direitos de cidadania, ao lutar pelo acesso à moradia no Centro para as camadas populares. Kowarick também avalia as gestões de diferentes partidos que estiveram à frente da administração da cidade, considerando que nos governos do PT predominaria um estilo de gestão que denomina “Republicanismo de participação”,enquanto o PSDB se orientaria pelo “Republicanismo delegativo”. Cada estilo comporta seus riscos:

O risco do modo petista de governar reside em retardar as decisões, acabando por tornar a participação ineficaz ao gerar um conselhismo ratificador das iniciativas do poder executivo. O risco da concepção baseada na representação, em uma sociedade extremamente hierárquica e excludente como a brasileira, reside em exacerbar posicionamentos tecnocráticos que acabam por reproduzir o elitismo que está na raiz da segregação de nossas cidades (p. 160).

A segunda “modalidade de viver em risco” é retratada historicamente e em sua atualidade no capítulo 4, “Autoconstrução de moradias em áreas periféricas: os significados da casa própria”. A autoconstrução da casa própria insere-se no conhecido padrão periférico de expansão urbana que teve papel central na produção do espaço da cidade, no que o autor classifica como verdadeiro laissez-faire urbano, que dominou a cidade de São Paulo desde os anos de 1940. Nesse capítulo, é retomado o processo tradicional de autoconstrução da casa própria nas periferias da cidade, modelo que continua a reproduzir-se em locais cada vez mais distantes da cidade.

A autoconstrução da casa própria em loteamentos de periferias distantes comporta muitos sacrifícios, que envolvem não só reunir recursos para seu empreendimento, mas também a distância do trabalho, implicando longas horas em transporte público. Mas os que se dirigiram a esta alternativa encontram nela vantagens significativas: um abrigo mais seguro não só em função da liberação do aluguel, mas também porque a casa é propriedade privada, bem que se valoriza com a chegada de infra-estrutura, serviços públicos e outras amenidades. O autor sugere que melhorias ocorreram, e muitas, renovando desigualdades que contribuem para reproduzir, nas diversas periferias, um tecido urbano muito heterogêneo – mesmo nas áreas que concentram pobreza.

Mas se esse processo de autoconstrução da casa própria continua expressivo,é porque se efetiva em locais cada vez mais distantes – nas franjas da cidade, nos “bairros-dormitório” de outros municípios da Grande São Paulo -, pois o preço da terra em localidades mais bem servidas tornou-se proibitivo para os que foram afetados pelo desemprego prolongado e pela precarização do trabalho, associada a rendimentos baixos e instáveis. Junto a outros fatores, esse processo assumiu também caráter predatório ao ocuparem-se densamente as áreas de mananciais, comportando um risco para a cidade como um todo.

Nas falas das personagens desse cenário de moradia, a casa própria aparece como uma conquista, que, a depender da experiência, envolveu lutas baseadas na organização local, no apoio e na assessoria de entidades de direitos humanos para a obtenção de serviços básicos e regularização da propriedade; ou, simplesmente, o investimento do grupo familiar-doméstico, com a ajuda de outros familiares, vizinhos ou amigos, e cada vez mais com a presença de pagamento a terceiros: com o desemprego e a precarização, a mão-de-obra “ociosa” tornou-se volumosa e mais barata. Em qualquer caso, é uma trajetória habitacional marcada por um início de muitas carências e sacrifícios, a casa sempre “por acabar”.

A violência aparece como algo onipresente, pois mesmo quando negada ou remetida para o passado por alguns, mostra-se parte do cotidiano nas falas, especialmente pelo medo dos assaltos e de sair para trabalhar de madrugada, quando ainda está escuro, assim como pela referência à ação violenta de traficantes e às rivalidades entre estes, aos homicídios, à “desova” de corpos nas proximidades e mesmo à experiência pessoal de alguém próximo e querido que foi vítima de assassinato.

Como mostra Kowarick, um dado interessante é o de que a autoconstrução da casa própria cresceu mesmo em conjunturas desfavoráveis, como os anos de 1990, substituindo em grande parte o viver de aluguel. Não obstante, o que mais cresceu em termos relativos na cidade foram as favelas. A questão das favelas é problematizada no capítulo 5, “Favelas: olhares internos e externos”.

Favelas não são mais ocupações totalmente ilegais, tampouco totalmente desprovidas de infra-estrutura e serviços.Nos anos de 1980, políticas de urbanização alcançaram esses espaços e teve início o processo de regularização da moradia. Isso ajudou a consolidar a favela como alternativa de moradia na cidade para os mais pobres e, como no caso dos loteamentos,deu origem a um mercado imobiliário informal ativo.Essa seria uma das razões por que,segundo o autor, já não representam lugar de moradia provisória, um “trampolim” para situações melhores. Mas seu crescimento seria também evidência de processos de mobilidade descendente, pois muitos chegam em virtude da perda da capacidade de pagar aluguel, ou mesmo porque forçados a vender a casa própria.

As favelas multiplicaram-se, mas são muito diversas, não só entre si, como internamente. Isso tem sido cada vez mais evidenciado, na última década, por estudos que contemplam a expansão das melhorias tanto em termos de infra-estrutura e serviços,como das características socioeconômicas de seus moradores5.

Nos relatos das personagens desse cenário, morar em favela representa vantagens específicas. Entre elas ,a ausência de taxas normais ou de impostos,e a possibilidade de reverter isso em economias para realizar melhorias na moradia que, apesar disso, não oferece a segurança da casa própria. Além disso, tanto a favela como seus moradores são alvo de profunda discriminação, ponto destacado por Lúcio Kowarick. Não é necessariamente nas favelas que se concentram os índices de criminalidade; apesar disso, mais do que em qualquer outro lugar, é nesse espaço que os olhares externos tendem a associar pobreza e criminalidade. Nas falas, no entanto, a criminalidade está presente, e os conflitos entre traficantes são um medo e uma ameaça constantes para os moradores; uma convivência inevitável, que estabelece a “lei do silêncio” e a desconfiança entre vizinhos. Além disso, há o desrespeito e a violência por parte da polícia, vista de forma ambivalente.Por essas razões, muitos querem sair da favela.

Nas “Considerações finais” (“Vulnerabilidade socioeconômica e civil em bairros populares”), Kowarick retoma os vários argumentos e evidências apresentados nos três capítulos anteriores, juntamente com falas (desta vez, despersonificadas) que contrastam as vantagens e as desvantagens de cada modalidade de “viver em risco”. No item final,”Violência e Medo”,o autor reforça a hipótese de que a violência é atualmente um elemento estruturador do modo de vida nos diferentes espaços: “Assim, a violência passou a ser um elemento que também estrutura o cotidiano das pessoas,demarcando espaços,selecionando horários e forjando atitudes e comportamentos defensivos que visam diminuir os riscos” (p. 299).

A partir das experiências de se “viver em risco” Lúcio Kowarick vincula a vulnerabilidade socioeconômica ao que denomina experiências do desrespeito: “um reconhecimento social denegado, baseado em formas sistemáticas de violação de direitos básicos de cidadania” (p. 301).

O livro de Lúcio Kowarick oferece ao leitor a oportunidade de refletir de modo abrangente acerca das continuidades e descontinuidades de nossa questão social nas últimas décadas, e que tornaram São Paulo um cenário urbano bastante diferente do que fora entre os anos de 1950 e 1970. Não obstante as mudanças positivas em alguns aspectos, o percurso da cidadania no Brasil é pontuado por contradições e descompassos, e as trajetórias e transições descritas trazem para o centro da problematização os atuais impasses à sua expansão:a violência e o medo disseminado, as restrições à capacidade do Estado em atuar como agente garantidor de segurança física e proteção social.

Notas

1 CASTEL, Robert. “Introdução”. In: As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Trad. Iraci D. Pole-ti. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes, 1998, p. 20. [Links] 2 Essa trajetória é explicitada em KOWARICK,Lúcio.Escritos urbanos.São Paulo: Editora 34, 2000.[Links] 3 MURRAY, apud KOWARICK, Viver em risco, op. cit., p. 38.
4 Kowarick. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.[Links] 5 A esse respeito, ver SARAIVA, Camila e MARQUES Eduardo.”A dinâmica social das favelas na Região Metropolitana de São Paulo”. In: MARQUES, Eduardo e TORRES,Haroldo.São Paulo: segregação, pobreza e desigualdades sociais. São Paulo: Senac, 2005. [Links]

Maria Encarnación Moya– doutoranda no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap).

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A Cultura do Romance – MORETTI (NE-C)

MORETTI, Franco. A Cultura do Romance. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Resenha de: VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. O romance como gênero planetário: a cultura do romance. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.86, Mar. 2010.

Ao percorrer as páginas de A cultura do romance, primeiro dos cinco volumes da série O romance, organizada por Franco Moretti, o leitor logo notará que se encontra diante de uma obra singular, pois ali se narra uma história do gênero que, não raro, transgride fronteiras nacionais, abole limites espaço temporais e segue uma orientação comparatista e internacionalista, certamente inspirada na conhecida posição de seu organizador sobre a literatura mundial. Com efeito, em ensaio publicado em 2000, Franco Moretti retomava o conceito proposto por Goethe, no final do século XVIII, e defendia o retorno à antiga ambição da Weltliteratur, a partir da constatação de que”afinal, a literatura a nossa volta é inequivocamente um sistema planetário”1.

Mescla de história e crítica literárias, esta coletânea reúne um respeitável time de especialistas e põe em funcionamento outro princípio que tem norteado o trabalho de seu organizador:o de que uma história do romance,fundamentalmente pelo caráter transnacional do gênero, teria de ser escrita a partir de um esforço coletivo, por meio do qual as diferentes especialidades contribuiriam para repensar o modo como tratamos a historiografia literária, reinscrevendo o romance não mais no espaço demarcado pelas linhas divisórias das nações, mas em um mundo cujas fronteiras se alargaram e no qual o romance viaja e viceja como forma verdadeiramente livre na sua tradutibilidade2.

O romance como um sistema planetário: eis o espírito que parece animar esse conjunto diversificado de ensaios que,recobrindo um largo espectro temático e um amplo arco temporal,abarca uma multiplicidade de pontos de vista e tradições, combina traços específicos e particulares a questões de ordem geral e redesenha o mapa da história desse gênero onívoro e inclusivo, dessa forma permanentemente a se fazer e se renovar3, cuja natureza de inacabamento se comprova fartamente aqui.

Graças à sua”capacidade de mudar sem transformar-se em outra coisa”,4 o romance desafia e desestabiliza convenções, alia continuidades e descontinuidades, reinventa-se e franqueia ao romancista liberdade de imaginação, de recriação das formas e de proposição de novos caminhos.Seu modo de ser protéico e camaleônico fica patente na pletora de temas, procedimentos, técnicas e soluções que vemos mobilizados nas obras que são discutidas e comentadas nos ensaios do volume. A dinâmica da forma-romance emerge, assim, nas suas mais variadas vertentes, como narrativas de fundação, relatos da vida cotidiana, histórias de sondagem da interioridade, da experiência urbana, dos embates entre o indivíduo e a sociedade, do sobrenatural, dos recônditos da alma humana – apenas alguns exemplos das potencialidades quase ilimitadas do gênero desde sua invenção. Do mesmo modo, pelas suas próprias características e desapego às convenções, o romance convida à aproximação com outros campos e artes, como a história, a historiografia, a sociologia, a política, o cinema, a linguagem, a psicanálise, a pintura, numa teia de relações que põe em destaque sua abertura para as mais diferentes esferas da experiência humana. Esses diálogos e intersecções também vemos em ação aqui.

Os dois ensaios que, respectivamente, abrem e encerram o volume, com seus títulos especulares não só estabelecem de pronto um vínculo estreito e indiscutível entre o romance e o mundo moderno, como também pontuam alguns dos temas que iremos acompanhar com interesse no percurso dessa”primeira forma simbólica verdadeiramente mundial”5. Assim, enquanto Mario Vargas Llosa encarece a importância da leitura e explora os sentidos da literatura, enfatizando seu papel na formação do cidadão e da linguagem, seu teor de conhecimento e sua vocação para despertar um”sentimento de pertencimento à coletividade humana através do tempo e do espaço”6, ele igualmente lembra a capacidade de insubmissão e transgressão dos bons romances e, num exercício de ficcionista, imagina o quê ou como seria um mundo sem romances. Claudio Magris, por sua vez, retoma e discute com maestria outro problema que, ao leitor mais atento, não deve ter passado despercebido ao final da leitura. Ao longo de todo o volume, vamos topando freqüentemente com certa variação dos modos de se referir ao romance: ora romance mesmo, ora”romance”, romance, novel, novelas ou ainda romanesco. Além disso, muitas vezes o vocábulo romance se faz acompanhar de um adjetivo. A lista não é muito extensa, mas intriga: moderno, medieval, antigo, de corte, de cavalaria. Para os leitores menos familiarizados com as questões mais técnicas, é bom esclarecer que na tradição inglesa romance e novel designam de fato modalidades narrativas distintas, e passaram a fazer parte do vocabulário crítico no século XVIII como efeito da percepção de que ocorrera uma importante mudança histórica, com reflexos indiscutíveis na prosa de ficção. Por isso, na maioria das vezes dispensam adjetivos. A inexistência dessa diferenciação em outras línguas européias e a subsunção de romance e novel num mesmo termo genérico (cf. romance, romanz, roman, romanzo) põem em menor evidência,nessas outras tradições, a noção de ruptura que norteou a adoção dos dois vocábulos em língua inglesa.

Que conseqüências tirar dessa instabilidade, então, e desse uso reiterado dos qualificativos para melhor definir e precisar aquilo de que se fala? A resposta já ficara delineada por Catherine Gallagher7, que expõe com clareza a questão e mapeia, com bom fôlego teórico, as diferenças entre romance e novel, entre o gênero pré-moderno, precursor imediato do romance, e esse outro, encarnação da modernidade. O ensaio de Magris volta ao assunto, com uma reflexão que incorpora algumas das mais iluminadoras discussões sobre o gênero, para não apenas ressaltar a sua modernidade radical, mas sobretudo para pensar essa”epopéia do desencanto”, nos termos propostos por Hegel e Lukács,como objetivação da cisão entre o eu e o mundo. Essa”por vezes degradada mas aventurosa e radicalmente nova odisseia”8 é, entre todos os gêneros, aquele que faz do mundo, enquanto história, seu objeto, em que o caráter temporal e histórico da ação dos homens é problema sempre crucial e sempre presente para o romancista. Ao afirmar que”o romance é o mundo moderno”, Magris, além de o alinhar aos desenvolvimentos da era que se inaugura por sobre os escombros da ordem feudal, sugere que nele podemos reconhecer a experiência que nos determina e constitui. Reaparece assim,nesse remate,a relação problemática entre romance e realidade que já viera pontuando várias das outras intervenções no debate que pudemos ir acompanhando até esse final.

Essa moldura enquadra, dessa maneira, um verdadeiro mosaico de leituras que nos deslocam no tempo e no espaço e nos confrontam com um rol de questões que rondam o romance desde seu surgimento. De dentro da diversidade de abordagens, ângulos e perspectivas que os autores dos ensaios escolheram para ler seus objetos, vemos surgir alguns temas recorrentes, que atravessam o volume como um todo e remetem às escaramuças que o romance teve de enfrentar no seu longo processo de ascensão e consolidação. Um deles diz respeito à tensão entre veracidade e ficcionalidade (ou verdade e mentira, verdadeiro e falso,fato e ficção),que desde sempre esteve no centro da discussão sobre as relações entre o romance e a representação do real. Não é muito difícil compreender por que essa tem sido uma preocupação constante por parte de teóricos e críticos: afinal, o romance tem suas raízes firmemente fincadas no tempo histórico e em contextos socioculturais específicos e, mesmo nos altos vôos da fantasia, tem um conteúdo de verdade e um notável poder de revelação, de “descoberta e interpretação da realidade” (a expressão é de Antonio Candido). É essa capacidade de escavar a superfície e penetrar nas correntes subterrâneas de uma vida, de uma comunidade, de uma experiência, que lhe confere a prerrogativa de produzir uma impressão de verdade, a qual nasce da arte do romancista de absorver na estrutura narrativa, para além dos detalhes e fragmentos do real, para além dos dados externos, certos princípios constitutivos da sociedade. Basta acompanhar o que fizeram os diversos romancistas dos mais diferentes quadrantes que são motivo de comentários nas leituras críticas que compõem o mosaico e estão distribuídas ao longo do volume.

O contrato com o leitor, a “plausibilidade fictícia”9, o jogo ficcional – tudo contribui para a suspensão da descrença e carrega o leitor para um mundo que parece verdadeiro,quando é apenas crível, verossímil. A verossimilhança, entretanto, não explica esse sentimento de verdade de que somos possuídos quando um romancista” toma a si o encargo de imaginar e compor o movimento da sociedade”10. Sem dúvida, foram os nexos que estabelece com a vida real, somados à sua inegável faculdade de estimular a imaginação,que lhe valeram a pecha de influência perniciosa e prejudicial e fizeram dele alvo de censura e condenação, inclusive judicial, por meio de processos que levaram às barras dos tribunais romances e romancistas. A história literária está repleta de exemplos, e eles não se limitam aos tempos em que um controle mais rígido e rigoroso sobre a moral esteve vigente. Alguns deles são lembrados aqui e dão notícia dos obstáculos que o gênero enfrentou para ganhar dignidade e reconhecimento. Um verdadeiro dossiê reúne vários documentos que registram a história dessa batalha, cujo último capítulo não está tão distante assim e envolveu a fatwa contra os Versos satânicos de Salman Rushdie. Mas as imputações não se restringiram ao terreno da religião,da política ou da moralidade, como foi o caso de Madame Bovary ou de O amante de Lady Chatterley.Para além das acusações de sedição, blasfêmia, obscenidade ou difamação que fustigaram o romance em diferentes momentos da sua história, esse”vão caudal de tinta sobre papel esfarrapado”11 teve ainda de se haver com aqueles que o consideravam apenas um gênero bastardo, destituído de tradição e da nobreza do teatro e da poesia. Um parvenu da República das Letras, o romance não mereceria senão desprezo e desconfiança, e o establishment literário não perdeu as oportunidades de golpeá-lo,como o fizeram Pierre Nicole ou Gotthard Heidegger12. Como outros, antes e depois, eles esgrimiram argumentos éticos e estéticos para desaprovar o gênero. Na Itália, ainda no século XIX, prevalecia”a aversão da escola com relação ao romance” e se assistia” à luta destemida do padre Antonio Bresciani […]” e de seu aliado Cesare Cantú”contra a podridão proveniente das cloacas francesas”, isto é, contra o romance-folhetim13. Na mesma Itália, em 1956, Pier Paolo Pasolini foi chamado a defender seu Ragazzi di vita diante de um tribunal, que exigiu dele”justificar a sua obra no plano moral [e] esclarecer [seu] significado artístico e literário”14, enquanto em Moscou, dez anos mais tarde, os autos contra Juli Daniel e Andrei Siniavski acusavam Govorit Moskva de instigar”um acerto de contas com os dirigentes do partido e do governo”15.

Havia ainda outro motivo para a condenação da ficção. Desde seu surgimento, o romance esteve bastante próximo do universo feminino. As mulheres foram, desde o início, suas protagonistas e seu público. Por isso, muitos dos ataques ao romance foram provocados pelo medo da imitação.A oposição à fantasia e a suspeita de que a liberdade de imaginação podia levar à ação foram argumentos recorrentes nas discussões sobre os efeitos deletérios da leitura de romances principalmente sobre os jovens e as mulheres.Julgava-se que o poder corruptor dos romances, esse passatempo de ociosos, podia influenciar condutas e pôr em risco a virtude feminina, inspirando a desobediência ou a transgressão de normas de comportamento consideradas essenciais para a reputação das mulheres. Havia também um temor generalizado da identificação do leitor com as personagens ficcionais, pois ela poderia provocar emoções e sentimentos e mobilizar sua sensibilidade, fazendo aflorar uma série de reações físicas que se acreditava serem evidências da comoção produzida pela leitura. As mulheres pareciam especialmente suscetíveis a essas alterações emocionais,que se traduziam em afecções do corpo, como testemunha essa leitora de Samuel Richardson, em carta ao romancista:

Se me tivesses visto, tenho certeza de que teria despertado vossa piedade. Quando só, em agonia eu punha o livro de lado, o retomava novamente, andava pela sala, derramava um rio de lágrimas, enxugava os olhos, lia novamente, talvez nem três linhas, jogava longe o livro, bradando, desculpai-me, bom Sr. Richardson, não consigo continuar; é vossaculpa- fizestes mais do que consigo suportar; jogava-me sobre o sofá para me recompor, recordando minha promessa (que mil vezes desejei não tivesse sido feita); de novo lia, de novo agia exatamente igual: às vezes agradavelmente interrompida por meu querido esposo, que estava naquele momento avançando com dificuldade ao longo do 6volume, com um coração capaz de impressões como o meu […].

Vendo-me tão comovida, ele implorou, pelo amor de Deus, que eu não lesse mais; bondosamente ameaçou tomar-me o livro, mas, diante da minha promessa, permitiu-me continuar. Aquela promessa agora está cumprida e estou grata que a pesada tarefa tenha acabado, embora os efeitos não. Tivesse ela sido conduzida como eu desejava, em vez de ficar impaciente para terminar a triste história, como eu teria me demorado, com prazer, em cada linha, e me sentido relutante em chegar à conclusão.

Meu ânimo foi estranhamente afetado; meu sono está perturbado, despertando durante a noite, tenho ataques de choro; isso aconteceu no desjejum, essa manhã, e agora, de novo. Deus, seja misericordioso – o que isso pode significar? Talvez, Senhor, atribuais isso a paixões violentas, mas, de fato, se conheço a mim mesma, não sou acometida delas. É tudo fragilidade, inequívoca fragilidade tola. Eu vos asseguro, não exacerbo o desassossego que me aflige, não, nem comunico o pior [Lady Bradshaigh, 6 de janeiro de 1748].

Esse depoimento de leitura é um dos exemplos daquilo que Stefano Calabrese chama de”patologias da leitura romanesca”, tais como a Wertherfieber e o bovarismo16, as quais pareciam acometer principalmente as mulheres e fazer delas suas vítimas potenciais, aumentando o preconceito e as restrições ao gênero. Apesar disso,o romance foi um dos principais instrumentos do acesso delas à esfera pública.

O século XVIII marcou em definitivo a entrada das mulheres no mundo da escrita, não mais apenas na condição de leitoras. E os romances desempenharam um papel fundamental nisso,porque,sendo um gênero sem leis nem regras e tratando de assuntos da vida cotidiana numa linguagem acessível a todos, eles se constituíram como um espaço no qual elas, como escritoras, podiam exercitar seus talentos e tratar de temas que as tocavam de perto, e, como leitoras, se reconhecer como partícipes de uma comunidade de interesses e de destino, que lhes permitia partilhar,mesmo que vicariamente,experiências comuns. O âmbito doméstico e o viés sentimental das narrativas, assim como o recurso à vivência pessoal de suas autoras,elas mesmas envolvidas e empenhadas em uma luta pela afirmação de suas aspirações, facilitavam esse reconhecimento. O romance tornou-se, para muitas delas, meio de expressão, de denúncia, de revolta e de recusa das limitações e dos constrangimentos sociais a que estavam submetidas.Um passo que Virginia Woolf reconheceria como um feito histórico, em Um teto todo seu (1929):

Assim, para o término do século XVIII promoveu-se uma mudança que, se eu estivesse reescrevendo a história,descreveria mais integralmente e consideraria de maior importância do que as Cruzadas ou as Guerras das Rosas. A mulher da classe média começou a escrever17.

Inaugurava-se, assim, uma linhagem, com uma participação cada vez maior e mais ativa das mulheres na cena literária.Mesmo em culturas muito diversas da européia, como é o caso da japonesa, a presença feminina foi central para o florescimento da prosa, por meio de cartas e narrativas escritas pelas damas da corte, com as quais elas, se utilizando da língua coloquial, própria da esfera privada, contribuíram para a busca e a formação de uma nova linguagem literária e para o desenvolvimento do romance18.A tradição da escrita feminina tem ainda desdobramentos trazidos à tona por Christa Bürger19, que, numa visada diacrônica,percorre os modos como o tema do amor assumiu diferentes formas e ajudou a inscrever algumas mulheres na história do romance. Esse quadro se completa com as leituras críticas que tratam de outras romancistas que representaram uma enorme contribuição ao gênero, como George Eliot e a própria Virginia Woolf.

Na sua longa trajetória, alguns romances foram esquecidos e condenados”à morte pelo tribunal da posteridade”20, mesmo que tenham sido populares à sua época e caros aos seus leitores; porém, a grande maioria deles passou a fazer parte do nosso acervo comum, fornecendo um repertório de imagens, temas, personagens e enredos que se incorporaram à nossa experiência e às nossas maneiras de explicar e compreender o mundo.Por quase três séculos,o romance tem sido expressão artística de um espírito democrático21, e espaço onde questões cruciais são objeto de configuração estética. Trata-se de um gênero inquieto, que continua”inacabado”, com uma”ossatura […] ainda […] longe de ser consolidada”, tornando impossível”prever todas as suas possibilidades plásticas”22.

Por essa razão, o romancista está permanentemente diante de desafios formais, sempre repostos. Se no romance oitocentista o indivíduo burguês se constituiu como uma subjetividade que se reconhecia como sujeito da história, a progressiva perda dos vínculos do homem consigo próprio e com a comunidade acentuou-se cada vez mais no mundo administrado da sociedade industrial.A partir de meados do século XIX,assistimos à desagregação desse indivíduo e sua diluição na massa, no caos urbano. Desde suas origens, o romance instaurou a fratura entre o eu e o mundo,encenando a jornada do homem solitário, que já não se sente em casa em lugar algum. O esforço de recriação da totalidade preside o gesto do romancista,cuja tarefa é construir o sentido de uma vida e de um mundo que perdeu o sentido,por meio de uma forma que é a”tentativa,na época moderna,de recuperar algo da qualidade da narração épica como uma reconciliação entre matéria e espírito, entre vida e essência’23. Essa empreitada foi se mostrando cada vez mais difícil. Matéria primordial do gênero, o eu fraturado, numa sociedade fraturada, configura-se como o tema por excelência principalmente do romance modernista, com conseqüências para a forma romanesca, que também se estilhaça e se refrata na perda da onisciência ou na multiplicação da voz narrativa, na interiorização dos conflitos e na quebra do encadeamento causal no âmbito do enredo. A crise da experiência e do indivíduo contemporâneo encontra rebatimento numa forma também em crise, obrigando o romancista a re-configurar seus materiais e técnicas para dar conta de novos conteúdos,a aventurar-se em novos experimentos formais, como os que vemos comentados no último conjunto de leituras críticas, quase ao final do volume24.

Cobrindo o período de 1900 a 1950, e portanto dos movimentos de vanguarda que mudaram o panorama das artes no século XX, esse instantâneo dos múltiplos caminhos abertos aos romancistas pela consciência das transformações cruciais que sofria o mundo naquela quadra histórica flagra algumas das respostas possíveis para o desafio de dar uma nova conformação narrativa ao real.Não se trata apenas da dissolução da forma-romance tradicional,mas também de enfrentar a”questão do sujeito e de sua representação,sua ausência ou desagregação”25. Uma observação de Virginia Woolf, em ensaio de 1924, cristaliza essa percepção numa tirada lapidar:”em ou por volta de dezembro de 1910, o caráter humano mudou”. Woolf parece se reportar aqui a alguns dos acontecimentos, entre eles a exposição do Pós-Impressionismo naquele ano,que marcaram o fim de uma época de estabilidade e, na sua visão, praticamente obrigaram os artistas a repensar o modo como o caráter humano era moldado e compreendido. Essa mudança é o que ela vai buscar representar literariamente em seu romance Mrs. Dalloway (1925), como concretização de uma nova concepção do personagem de ficção e das novas maneiras de captar o fluxo incessante e caótico da vida, tanto no plano exterior como interior26.

De Rainer Maria Rilke a Mikhail Bulgakov, passando por Luigi Pirandello, Louis Aragon, Mário de Andrade e Vladislav Vanura, vemos como diferentes autores, de origens e tradições diversas, fizeram implodir a estrutura narrativa que o romance realista do século XIX havia erigido em modelo. Por meio de soluções inovadoras para o tratamento do tempo e do ponto de vista, do recurso à livre associação de idéias, ao monólogo interior e ao fluxo da consciência, entre outras providências,eles puseram em xeque as próprias fundações do gênero, possibilitando, com isso, sua renovação. Os romances que esses escritores nos legaram são exemplos do esgarçamento da experiência e da “fratura do senso de continuidade”, de que fala Enrico Testa a respeito de Pirandello27, e, no seu desassossego, são a materialização de experimentos formais que configuram algo que está para além de meros procedimentos técnicos. Na sua discussão sobre o romance moderno, Anatol Rosenfeld argumenta que a arte do século XX se caracteriza por um fenômeno que ele chama de”desrealização”, para se referir ao abandono da mimese, pela arte, e à recusa da”função de reproduzir ou copiar a realidade empírica, sensível”28. O realismo forte nunca se contentou com a mera reprodução ou cópia da realidade, contudo. O que os romances modernistas impõem, ao contrário, é a necessidade de ampliação do conceito de realismo para compreendê-lo na sua dimensão plural e histórica. Se aceitarmos que a”matéria do artista [não é] informe: é historicamente formada,e registra de algum modo o processo social a que deve a sua existência”29, é possível perceber nesses autores o esforço que empreenderam de ir além da superfície e ler cada obra como”a historiografia inconsciente de si mesma da sua época”30.

Podemos concluir, assim, que A cultura do romance constitui seu objeto como um campo de tensões e de negociação, e, à sua maneira, narra a história da ascensão, do apogeu e da crise do romance, na qual se inscreve a história do indivíduo, cuja trajetória o gênero formaliza em seus impasses, conflitos e contradições. Os autores aqui reunidos aceitam e cumprem à risca o desafio proposto por Franco Moretti de conferir aos seus ensaios”aquele tom antropológico – história da literatura como história da cultura – que é a aposta desse volume”31.

Notas

1 Idem.”Conjeturas sobre a literatura mundial”.Novos Estudos Cebrap, 2000, nº 58, pp.173-181, p.174 “Conjectures on world literature”.New Left Review, 2000, nº 1, pp. 54-68.
2 Idem. Atlas of the European novel 1800-1900. Londres: Verso, 1997 [ed. bras.: Atlas do romance europeu 1800-1900. Trad. SANDRA Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2003].
3 BAKHTIN, Mikhail.”Epic and novel”. In:The dialogic imagination. Austin: University of Texas Press, 1986, pp.3-40 [Ed.bras.: “Epos e romance”. In: Questões de literatura e estética.2 ed. Trad. Aurora F. Bernardini e outros. São Paulo: Hucitec, 1990].
4 MCKEON, Michael. “Introduction”. In: Theory of the novel: a historical approach. Baltimore/Londres: The Johns Hopkins University Press, 2000, p. xiv. Tradução minha.[Links] 5 MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 11.
6 LLOSA, Mario Vargas.”É possível pensar o mundo moderno sem o romance?”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 22. [Links] 7 GALLAGHER, Catharine.”Ficção”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 629-58. [Links] 8 MAGRIS, Claudio.”O romance é concebível sem o mundo moderno?”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 1016. [Links] 9 GALLAGHER, op. cit., p. 638.
10 SCHWARZ, Roberto.”Outra Capitu”. In: Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 104. [Links] 11 HEIDEGGER, Gottard.”Mitoscopia romântica: ou discurso sobre o chamado romance”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., 202. [Links] 12 Ver NICOLE, Pierre.”Sobre a comédia”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 200-201; Heidegger, op. cit., pp. 201-203.
13 FAETI, Antonio.”Um negócio obscuro: escola e romance na Itália”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 147. [Links] 14 SITI, Walter.”O romance sob acusação: aparato crítico”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 227. [Links] 15 Ibidem, p. 233.
16 CALABRESE, Stephano.”Wertherfieber, bovarismo e outras patologias da leitura romanesca”. In: MORETTI (org.),A cultura do romance, op. cit., pp. 697-732. [Links] 17 WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 86. [Links] 18 ORSI, Maria Teresa.”A padronização da linguagem: o caso japonês”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 425-58. [Links] 19 Ver BÜRGER, Christa.”O sistema do amor: gênese e desenvolvimento da escrita feminina”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 595-627. [Links] 20 LUZZATTO, Sergio, em”Leituras: bestsellers perdidos”, pp. 735-819. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 787 (sobre O ano 2440, de Louis Sébastien Mercier). [Links] 21“O romance nasce ao mesmo tempo que o espírito de revolta e traduz, no plano estético, a mesma ambição” (Camus, Albert. L’homme révolté. Paris: Gallimard, 1951, p. 320, trad. minha).
22 BAKHTIN, op. cit., p. 397.
23 JAMESON, Fredric. “Georg Lukács”. In: Marxism and form. Princeton: Princeton University Press, 1974, pp. 171-172. [Links] 24 Ver “Leituras: experimentos com a forma (1900-1950)”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 951-1012. [Links] 25 TESTA, Enrico, em “Leituras: experimentos com a forma (1900-1950)”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p.972 (sobre Um, nenhum e cem mil, de Luigi Pirandello). [Links] 26 Ver BANFIELD, Ann, em”Leituras: experimentos com a forma (1900-1950)”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 961-70 (sobre Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf ). [Links] 27 TESTA, op. cit., p. 971.
28 ROSENFELD, Anatol. “Reflexões sobre o romance moderno”. In: Texto/ Contexto. São Paulo/Brasília: Perspectiva/INL, 1973, pp. 75-97, p. 76. [Links] 29 SCHWARZ. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 25. [Links] 30 ADORNO, Theodor W. Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 1970, p. 207. [Links] 31 MORETTI.”O século sério”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 823. [Links]

Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos – Professora do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP.

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Emoções ocultas e estratégias eleitorais – LAVAREDA (NE-C)

LAVAREDA, Antonio. Emoções ocultas e estratégias eleitorais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. Resenha de: MESQUITA, Laura. O marketing e a ciência política emoções ocultas e estratégias eleitorais. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo n.86, Marc., 2010.

Publicado em 2009, o livro Emoções ocultas e estratégias eleitorais de Antonio Lavareda promete ser um best-seller entre políticos,assessores e estrategistas de campanha. De fato, é uma grande contribuição para quem transita no mundo da política. É revelador entender a lógica das campanhas, os mecanismos utilizados pelos coordenadores e a gama de ferramentas que podem ser mobilizadas numa disputa eleitoral, incluindo emoções e sentimentos dos eleitores, alguns arraigados desde a infância, outros construídos a partir das experiências vividas no campo da política. Como o próprio autor anuncia, trata-se menos de uma obra acadêmica e mais de um livro sobre marketing político. Ainda assim, a obra não deixa de levantar questões importantes, que deveriam ser mais bem exploradas pelos cientistas políticos, e propor uma nova agenda de pesquisa para a área, na fronteira com o marketing e a psicologia: o uso das emoções na política.

O livro pode ser dividido em três partes. A primeira trata mais especificamente do contexto político das eleições e aborda temas clássicos da ciência política (partidos na disputa, coligações, vantagem dos incumbentes, carreira/trajetória política, preferência partidária). A segunda parte é mais próxima de um manual: ali o autor ensina, a quem tem interesse em trabalhar com campanhas, quais são os recursos disponíveis, como e quando podem ser mobilizados (se antes da campanha propriamente dita ou durante), e apresenta a sua vasta experiência no campo. A terceira parte, que é o coração do livro, versa sobre a importância das emoções e dos sentimentos. Mobilizar uma dada emoção auxilia na transmissão e na fixação da mensagem que se quer passar, assim como na construção das fidelidades político-partidárias.

Ao fim da leitura o leitor encontra-se absolutamente convencido da importância das campanhas, de se traçar uma estratégia de comunicação clara que mobilize de forma eficaz recursos neurológicos disponíveis a fim de garantir que a mensagem seja apreendida de maneira satisfatória.Também não restam dúvidas quanto à centralidade das pesquisas quantitativas e qualitativas, não só durante a campanha (para se mensurar o desempenho do candidato, o potencial e o impacto das peças publicitárias, e conhecer o público com quem se vai falar, além de definir quais são os seguimentos sociais mais favoráveis e os que representam maior obstáculo ao competidor), mas também,e talvez principalmente, antes do início da disputa, para que se tenha tempo de preparar o concorrente, corrigir seus pontos fracos e destacar os fortes, garantir que o plano de governo e o conteúdo das mensagens que se pretende transmitir respondam às principais preocupações e demandas dos eleitores, e conhecer bem os adversários, para com isso minimizar os ataques e evitar o desgaste do candidato.

Apesar de afirmar que não se trata de um trabalho acadêmico, Lavareda faz uso de uma série de conceitos e índices tradicionais da ciência política, nem sempre apresentados com o rigor necessário. No entanto, o autor acaba chegando a conclusões duvidosas, que reforçam o senso comum segundo o qual o sistema eleitoral brasileiro é resultado de uma combinação esdrúxula de representação proporcional e lista aberta, com a possibilidade de coligações. Essa combinação é freqüentemente apontada pela mídia – e por alguns analistas – como inibidora do desenvolvimento dos partidos,o que teria conseqüências para a qualidade da democracia brasileira. A falta de rigor pode ser verificada, por exemplo, quando o autor discute a importância dos partidos.

Como mostra Lavareda, a característica mais evidente que define a importância dos partidos refere-se ao monopólio das candidaturas. No Brasil não é permitido que indivíduos que não estejam associados a alguma das legendas registradas nos tribunais eleitorais concorram a cargos eletivos. Lavareda elenca também outras três características freqüentemente apontadas pela literatura como responsáveis por inflar a importância dos partidos, a saber: (1) o número de partidos que efetivamente competem. “O número de concorrentes hierarquiza o grau de dificuldade de acesso dos postulantes a cada categoria de disputa – teoricamente maior quanto mais concentrado for o sistema – e gradua, no sentido inverso, a dificuldade de elaboração da estratégia eleitoral: disputas com três ou quatro candidatos competitivos são o terror de qualquer planejamento estratégico de campanha” (p.29);(2) a distribuição das preferências partidárias (quanto maior a identificação dos eleitores com um partido, maior o “potencial de largada” dos candidatos associados a essa legenda);(3) o tempo disponível na propaganda eleitoral gratuita, que é distribuído de acordo com o tamanho das bancadas na Câmara dos Deputados.

É justamente quando apresenta essas três características, e o impacto delas sobre o sistema político e eleitoral brasileiro, que o autor falta com o rigor necessário. O primeiro equívoco ocorre na mensuração da quantidade de partidos que de fato participam das disputas, mediante o calculo do Número Efetivo de Partidos (NEP); o segundo, quando trabalha com a idéia de identificação partidária; e o terceiro deslize diz respeito à crítica superficial feita às coligações eleitorais.

Com o intuito de identificar a quantidade de partidos que competem, com reais chances de vitória, em uma eleição, Lavareda faz uso de um índice muito conhecido na ciência política: o Número Efetivo de Partidos1, que pode ser interpretado como o peso relativo dos partidos em uma dada população (eleitorado). É com base na análise dos resultados do NEP que o autor chega a duas conclusões:existiria, no sistema brasileiro, um processo de descolamento das disputas proporcionais e majoritárias, a primeira em processo de fragmentação e a segunda em processo de polarização (p.33); e o sistema estaria “progressivamente, se fragmentando na base” (p. 34), pois Lavareda julga encontrar, nas eleições municipais, tanto na disputa majoritária como na proporcional, um maior número de partidos competindo efetivamente.

O autor apresenta uma tabela com os valores calculados do NEP para as eleições de 2006 e 2008, para todos os cargos disputados:presidente, governador, senador, deputado federal e estadual na primeira peleja e prefeito e vereador na segunda. Com base nessa tabela,verifica que o NEP é muito distinto entre os cargos majoritários e proporcionais, aumentando à medida que se aproxima da base (a média nacional para a presidência e senado é 2,4, para governador, 2,5, enquanto para as prefeituras é de 7,0).

Todavia, o cálculo de NEP para as eleições municipais de 2008 merece ser revisto. Segundo o autor, o índice foi calculado considerando-se os estados. Ou seja, para calcular o índice, somaram-se os votos que os partidos obtiveram na disputa municipal nos diversos municípios de cada estado. Essa decisão inflou o resultado do índice. Isso porque os partidos não lançam candidatos em todos os municípios e também não têm desempenho uniforme entre os municípios, e a fórmula do NEP leva em conta o peso eleitoral dos partidos. Da forma como foi calculado, o que o índice permite afirmar é que, em média, em cada estado oito partidos concorrem nas disputas municipais com chances reais. Mas não diz nada sobre a disputa nos municípios, ou seja, se esse número é o mesmo em todas as cidades ou se é resultado de um contexto em que poucos partidos disputam com chances de vitória em cada cidade apesar de serem distintas as legendas entre as cidades.

Recalculei o NEP para as eleições de 2008 utilizando como unidade os votos dos partidos nos municípios, e não somando os votos por estado, como fez Lavareda. Como esperava, baseada nos resultados encontrados nas demais disputas majoritárias, e em conformidade com a literatura sobre os efeitos da legislação eleitoral sobre a competição partidária2 resumida na regra do “M+1” (a magnitude – M, que significa o número de cadeiras em disputa – acrescido de 1), a média do NEP para o país foi de 2,1, como mostra o quadro a seguir.

 

 

Um NEP próximo ou igual a dois,como encontrado para os cargos executivos, não significa que são os mesmos dois partidos que competem em cada uma das localidades. À exceção da eleição presidencial, na qual é evidente haver duas forças que polarizam a disputa, e que são as mesmas desde 1994, não é possível fazer essa afirmação. Ou seja, verifica-se, no geral, uma tendência de bipolarização nas eleições executivas em cada localidade (cada município e estado), o que é diferente de afirmar (e que, aliás, desautoriza a afirmação) que o sistema caminhe para o bipartidarismo. Para que essa afirmação seja consistente, é necessário uma análise de quais são os partidos que participam das disputas, pois as combinações de dois partidos verificadas podem, e provavelmente são (como aponta o cálculo apresentado por Lavareda), diversas em cada caso.

A segunda observação diz respeito ao cálculo do NEP para as eleições proporcionais. A mesma crítica feita ao cálculo do NEP para a disputa das prefeituras vale para o cálculo do índice para o cargo de vereadores. Cabe ainda um questionamento: por que seria desejável um índice próximo ao encontrado para os cargos majoritários, se o número de cadeiras em disputa é muito maior? A resposta corrente, e também a do autor, diz que é desejável um pequeno número de partidos na esfera proporcional para se garantir a governabilidade. A fragmentação do legislativo (cuja culpa é atribuída às regras eleitorais em vigência no país) é, com freqüência, apontada como um empecilho à governabilidade, forçando a necessidade de amplas coalizões de governo para garantir maioria no congresso. Nesse caso, o NEP não deveria ser calculado com base nas votações dos partidos nas eleições, mas sim com base nas cadeiras conseguidas: seria o número efetivo de partidos com representação no parlamento. Ou seja, o número de partidos com uma quantidade relevante de cadeiras no legislativo. Um exercício mais simples ainda mostra que o cenário não é tão dramático como o sugerido por Lavareda.

Como mostra o quadro a seguir, as câmaras municipais brasileiras, terminadas as eleições de 2008, seriam compostas, em média, por representantes de 5,6 partidos distintos. Número bem inferior ao NEP calculado pelo autor (média nacional de 13,5).

 

 

Esses simples exercícios parecem demonstrar que conclusão do autor de que a eleição é fragmentada na base, ou seja,que há um maior número de partidos competindo nas eleições municipais, a menor unidade federativa em que se realizam eleições, não se sustenta. Mais do que isso, torna evidente a necessidade de uma análise mais apurada para que se possa afirmar que há um descolamento entre as disputas proporcionais e majoritárias.

Ainda falando sobre a importância dos partidos,Lavareda apresenta uma série de dados sobre a identificação partidária. É forte e procedente a afirmação do autor de que a identificação com os partidos é o que garante a viabilidade eleitoral dos seus candidatos, ou seja, o que garante que eles entrem no jogo eleitoral com chances reais de vitória. Segundo os dados que o autor apresenta,o maior índice de identificação verifica-se com o PT (29%, contra 8% do PSDB). Ele sugere que essa identificação está fortemente associada à boa avaliação do governo Lula e que a identificação com o partido do presidente é responsável pelos níveis de identificação partidária verificados no país (em torno de 55%), uma vez que a queda de identificação partidária verificada recentemente coincide com a crise moral que o partido enfrentou no ano de 2005,e sua recuperação coincide com o momento em que melhora a avaliação do governo, após a eleição de 2006.

Uma maneira fácil de controlar se a identificação com o Partido dos Trabalhadores está de fato associada à boa avaliação de sua gestão na presidência seria verificar os índices auferidos antes de 2002. Os achados de Luciana Fernandes Veiga, no artigo “Os partidos brasileiros na perspectiva dos eleitores: mudanças e continuidades na identificação partidária e na avaliação das principais legendas após 2002”3, reforçam a suspeita de que a identificações dos eleitores com o PT esteja dissociada da boa avaliação do governo Lula. A autora aponta que, na eleição de 2002, os eleitores que declaram se identificar com os partidos somam 39%.Desse total, 23% declaram identificar-se com o PT (contra 4% com o PSDB).

Antonio Lavareda aponta ainda que a exígua identificação entre eleitores e o Partido da Social Democracia Brasileira merece um estudo mais detido. Acredito que o primeiro passo deveria ser a revisão de como as pesquisas que mensuram a identificação partidária são realizadas. Quais perguntas, além da indagação direta pela simpatia ou predileção pelos partidos, são feitas? Um bom exercício de mensuração das identificações políticas seria inferir para quais partidos cada eleitor deu seus votos nas últimas eleições. A um eleitor que vem votando sistematicamente em um dado partido para governador ou presidente nos últimos anos,pode seratribuída uma identificaçãocom essepartido,mesmo que ele não afirme explicitamente essa identificação.

Ainda no que diz respeito à identificação partidária, o autor sugere que o processo de refundação do antigo Partido da Frente Liberal (ex-PFL) que culminou na sua renomeação (renomeado,com base em pesquisa coordenada pelo próprio Lavareda, Democratas – DEM) e a renovação do quadro dirigente teriam sido bem-sucedidos em reverter o processo e recuperar a identificação dos eleitores com a legenda. Além de,nesse caso,Lavareda se referir à identificação considerando o critério de votos recebidos4 em uma eleição, a de 2008, e deixando de lado pesquisas do mesmo tipo das que referenciaram a análise sobre a identificação com o PT e o PSDB, o autor não poderia chegar a essa conclusão com base nos resultados eleitorais, conforme mostram os dados levantados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), apresentados no quadro a seguir.

 

 

Na eleição de 2004, quando já estava fora do governo federal e fazendo oposição do governo Lula (2002-2010), ainda sob a sigla PFL, o partido obteve mais de 11 milhões de votos na eleição para prefeito e saiu vitorioso em nada menos que 789 municípios, entre eles o Rio de Janeiro.Em 2008,no entanto, o partido, já rebatizado, conquistou apenas 494 prefeituras – o que corresponde a apenas 63% das prefeituras conquistadas em 2004. E, a despeito da vitória na cidade de São Paulo, o maior colégio eleitoral do país, o DEM viu sua votação minguar para cerca de 9 milhões de votos, 83% do que conquistara quatro anos antes. A esse propósito, cabe uma ressalva: a eleição de Gilberto Kassab, o candidato Democrata em São Paulo, está menos associada à imagem do partido do que à continuação da gestão de José Serra,de quem o primeiro era vice e do qual herdou a prefeitura com a renúncia do segundo para concorrer ao governo estadual em 2006.O apoio do governador foi fundamental nesse processo, inclusive se abstendo de participar da campanha do candidato de seu partido durante o primeiro turno para não prejudicar a associação feita entre ele e o prefeito em exercício, e seu antigo vice, Gilberto Kassab.

Em ambos os exemplos mobilizados por Lavareda a identificação partidária aparece como menos enraizada do que usualmente é afirmado nos trabalhos sobre o tema. Afinal, em um intervalo de cerca de dois anos os partidos vivenciam flutuações expressivas nos seus índices de identificação.

Para encerrar o tema da importância dos partidos, Lavareda fala da distribuição do tempo no horário político gratuito eleitoral (HPGE). A distribuição é definida com base na bancada dos partidos na Câmara Federal, e seria a principal responsável pelas coligações proporcionais, necessárias para maximizar o tempo de TV dos candidatos a cargos executivos. As coligações seriam nocivas ao sistema político brasileiro por permitirem a representação aos pequenos partidos, que não conquistariam uma cadeira por si sós. Isso não só aumentaria a fragmentação do sistema como também daria assento aos partidos nanicos que seriam, em sua maioria, legendas de aluguel e com menor coerência ideológica. Ao associar a possibilidade das coligações à fórmula de distribuição das sobras (as cadeiras não preenchidas automaticamente quando se divide o total de votos recebido por um partido ou coligação pelo quociente eleitoral – o mínimo de votos necessários para se conquistar uma cadeira), o sistema eleitoral brasileiro produziria ainda mais uma aberração, que é a possibilidade de que candidatos que receberam votação ínfima garantissem um assento no parlamen-to.Um bom exemplo de casos como esse é a eleição de 2002,quando o candidato a deputado federal pelo Prona, Éneas Carneiro, obteve uma votação estrondosa e com isso garantiu a vaga de um correligionário que obteve menos de 1.000 votos.

A suposta distorção provocada pelas coligações proporcionais foi tema de um estudo recente feito por Freitas e Mesquita5. As autoras mostram que a abolição das coligações nas eleições brasileiras, ou a distribuição das cadeiras no interior das coligações de forma proporcional à contribuição de cada partido, não alteraria de modo significativo a composição da Câmara dos Deputados. Não seriam os partidos chamados de “pequenos” os que mais perderiam com as coligações. Pelo contrário,o mecanismo das coligações parece ser peça fundamental para garantir representação às principais legendas em um número maior de estados, pois mesmo elas são “nanicas” em alguns estados e se beneficiam enormemente desse mecanismo.

Apesar de as críticas aqui apresentadas terem como foco fatores relativamente secundários da obra de Lavareda, elas se referem a limitações não desprezíveis. A falta de rigor no uso dos conceitos e nos testes apresentados apenas ajudam a sedimentar, na sociedade e entre os políticos, público-alvo do livro, a falsa impressão de que, se não todas, pelo menos parte importante das mazelas vivenciadas pela política brasileira tem origem nas regras que regem as eleições. Elas seriam responsáveis pela suposta fraqueza dos partidos, pelo personalismo na política, pela disputa intrapartidária e pela fragmentação da representação, que culminaria no alto custo para formar maioria nos legislativos. Um a um, esses mitos têm sido desmontados pelos cientistas políticos nos últimos anos. Esse falso juízo apenas contribui para engrossar o caldo de afirmações sem embasamento cientifico que desqualificam o sistema brasileiro, reafirmam sua anormalidade, reforçando a idéia de que uma reforma política, além de urgente, seria capaz de resolver, se não todos, pelo menos grande parte dos problemas da vida política nacional, o que não necessariamente é correto. Isto porque, além da incerteza de um novo quadro institucional, ao que parece, as soluções recorrentemente propostas seriam um tratamento ineficiente para um diagnóstico equivocado.

Notas

1 Ver LAAKSO, Markku e TAAGEPERA, Rein. “The ‘effective’ number of parties: a measure with applications West Europe”. Comparative Political Studies, 1973, vol.12, nº 1. A fórmula de cálculo é onde pi significa a proporção dos votos do partido i. [Links] 2 DUVERGER, Mauricio. Os partidos políticos. Rio de Janeiro: Zahar, 1951. E também COX, Gary. Making votes count: strategic coordination world’s electoral systems.Nova York: Cambridge University Press, 1997.
3 Opinião Pública, 2007, vol. 13, nº 2, p 340-65.
4 Se o critério de mensuração de identificação fosse o desempenho eleitoral, como o sugerido (mesmo que indiretamente) por Lavareda com essa análise,poderíamos afirmar que a identificação com o PSDB é bastante significativa.
5 FREITAS, Andrea M. e MESQUITA, Lara.”Coligações em eleições proporcionais: Quem ganha com isso?”. Revista Eletrônica da Fundação Liberdade e Cidadania, 2010, ano II, nº 7. [Links]

Lara Mesquita – Doutoranda em Ciência Política pelo Iuperj e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap).

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Dialética negativa – ADORNO (NE-C)

ADORNO, W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Resenha de: GATTI, Luciano. Exercícios do pensamento. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.85, 2009.

A fama de certos livros costuma induzir o leitor a enganos. A Dialética negativa, publicada originalmente em 1966, poderia ser muito bem recebida no Brasil como a consumação da obra filosófica de Theodor W. Adorno. A aura de obra difícil, reforçada por décadas de inacessibilidade em língua portuguesa, seria uma preparação condizente com o posto de obra-prima. Tal fetiche poderia naturalmente justificar-se em diversos elementos que, de fato, se encontram no livro. Os leitores familiarizados com outros textos do autor não terão dificuldade em encontrá-los, embora alguma suspeita não faça mal a quem folheia o livro pela primeira vez. Os interessados, por exemplo, na gênese das idéias de Adorno saberão rastrear temas que remontam àquelas primeiras conferências do início da década de 1930, sobre “A atualidade da filosofia” e sobre a “Idéia de história natural”. Nestes trabalhos programáticos, com as quais um jovem e pretensioso filósofo estreava na cena universitária alemã, delineava-se o confronto do panorama da filosofia contemporânea, herdeira, segundo Adorno, do idealismo alemão, com uma noção ainda bastante vaga de filosofia materialista, inspirada nos escritos de juventude de Walter Benjamin. Essa intenção de realizar uma crítica imanente da filosofia idealista alemã, avaliando-a pelas suas próprias pretensões, de modo a extrair, nesta crítica, uma concepção bastante singular de materialismo, certamente pode ser reencontrada na Dialética negativa.

Os leitores da Dialética do esclarecimento, por sua vez, reconhecerão elementos da caracterização do estágio mais avançado do capitalismo como um sistema de dominação social que teria colocado fora de campo as esperanças marxistas de realização da filosofia numa sociedade justa. A Dialética negativa poderia ser considerada, então, um aproveitamento desse diagnóstico de época para um minucioso acerto de contas com a tradição filosófica. Um rápido percurso pelo sumário do livro indica ao leitor o confronto de Adorno com disciplinas da tradição – filosofia prática, filosofia da história e metafísica – e com a ontologia heideggeriana. Do ponto de vista da impossibilidade de uma sociedade justa, as ambiciosas construções do pensamento idealista são desmascaradas como falsas. Segundo esse diagnóstico emprestado da Dialética do esclarecimento, a história da filosofia se reverteria, por fim, em uma história de ideologias.

Os interessados nos trabalhos materiais de Adorno, ou seja, naqueles inúmeros ensaios em que trabalhou a especificidade dos objetos mais diversos, da crítica musical à sociologia empírica, talvez busquem na Dialética negativa uma espécie de fundamentação filosófica do ensaísmo adorniano, fazendo eco à idéia corrente de que a filosofia teria alguma prioridade epistemológica perante a crítica de arte ou as ciências humanas. No Prefácio ao livro, Adorno, contudo, adverte contra este posicionamento da Dialética negativa em relação a seus trabalhos materiais. Nada seria mais estranho a uma filosofia materialista do que tal hierarquia entre pensamento e material histórico ou empírico.

As circunstâncias de elaboração do livro fornecem outros indícios contra supostas continuidades entre este livro e o restante da produção intelectual de seu autor. Escrito a partir de conferências apresentadas no Collège de France no início da década de 1960, cada uma das partes do livro foi apresentada e discutida em cursos ministrados por Adorno na Universidade de Frankfurt, ao longo dos anos de 1960, em auditórios ocupados por centenas de pessoas. Seu autor não era apenas um professor universitário, mas também uma personalidade pública no cenário da reconstrução alemã do pós-guerra. A expressiva audiência de seus cursos não era indício apenas da penetração da teoria crítica entre os estudantes, em particular no movimento estudantil alemão, mas também da permeabilidade do pensamento de Adorno à discussão pública das questões que estavam na ordem do dia. A Dialética negativa surge então como documento de um exercício intelectual único, construído no confronto reiterado com as exigências do tempo presente. Lê-lo a partir de teses formuladas em circunstâncias históricas diversas trairia o esforço da teoria crítica em compreender seu próprio tempo. O confronto com a tradição filosófica levado a cabo por Adorno, ausente em sua obra de juventude, também não pode estar vinculado de antemão às teses sombrias da Dialética do esclarecimento, mas deve abrir-se à experiência intelectual a qual ele convida.

O livro que finalmente chega às mãos do leitor brasileiro no aniversário de quarenta anos da morte de seu autor, com tradução cuidadosa de Marco Antônio Casanova e revisão técnica de Eduardo Soares Neves Silva, possui uma posição própria, sem prejuízo da reelaboração de questões que percorrem uma vida de trabalho intelectual. A ocasião deve ser saudada como a possibilidade de transformação da recepção de Adorno no Brasil, ainda fortemente marcada pela Dialética do esclarecimento. Muitos dos ensaios traduzidos por aqui costumam ser lidos e interpretados na chave deste livro. Esta tradução da Dialética negativa, por sua vez, tem o potencial de alterar tal situação, ensejando uma redescoberta de seu autor. Em relação ao livro de 1947, escrito em parceria com Max Horkheimer durante os anos de exílio nos Estados Unidos, o título da Dialética negativa, já indica algo novo. O “negativo” da dialética é inseparável da questão da sobrevivência da filosofia, com a qual Adorno abre a introdução: “A filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu seu instante de realização” (p. 11). Esta tese deve ser entendida como a formulação de um diagnóstico de época que não apenas possibilita, mas também exige este exercício do pensamento configurado historicamente no embate da Dialética negativa com a tradição filosófica.

A diferença em relação à Dialética do esclarecimento é grande. Neste livro, a tese da autodestruição do esclarecimento, levada a cabo por um desenvolvimento histórico que conduzira a humanidade a um estado de barbárie, colocava o pensamento crítico diante de uma aporia, pois o conluio de pensamento e dominação social minava a possibilidade da crítica, a qual, contudo, era exercida conscientemente por seus autores. O Prefácio de 1969 para a reedição do livro adverte para a suspensão (mas não interrupção) daquele diagnóstico de época, segundo o qual o capitalismo tardio caminhava para um sistema integrado de dominação. A compreensão do mundo atual nos países avançados como uma trama de dominação formada por mercado, Estado, burocracia e meios de comunicação de massa, que impede o colapso do sistema e sua superação em uma sociedade justa, mantém-se atual no pós-guerra. A guerra do Vietnã, o macarthismo e a corrida armamentista comprovariam essa atualidade. A diferença em relação ao livro da década de 1940 está em que tal diagnóstico não implica a desconsideração da possibilidade de consciência crítica, nem de participação política no contexto das democracias do pós-guerra, como evidencia o posicionamento ativo de Adorno em diversos debates na esfera pública alemã. A questão da possibilidade da emancipação não poderia ser colocada sem esses novos desdobramentos históricos. Em relação à Dialética do esclarecimento, a diferença do diagnóstico de época subjacente à Dialética negativa está em conseguir detectar na história recente elementos singulares de experiência crítica não subsumida à totalidade social. Por este motivo, a possibilidade mesma de composição da experiência torna-se a questão-chave de uma dialética negativa, configurando-a como um exercício de crítica da história do pensamento à luz de um diagnóstico de época. A idéia de experiência como um exercício do pensamento circunscreve o esforço de negação empreendido pela teoria crítica adorniana em função da convergência histórica entre a tradição filosófica e a lógica da dominação social. O esforço de escapar dessa aporia no capitalismo tardio é o que teria exigido esta forma de crítica da filosofia caracterizada por seu autor com a expressão “dialética negativa”.

O recurso do pensamento à tradição filosófica, indicado em tal expressão, exige, portanto, a subversão dessa mesma tradição. Em sua reconstituição por Adorno, o pensamento da negação sempre procurou estabelecer algo positivo. A dialética negativa volta-se contra essa positividade e suas inúmeras formas, particularmente contra a pretensão da dialética idealista de esquadrinhar a totalidade da experiência a partir de princípios subjetivos. Mas não só: ela também se contrapõe à pretensão malograda da dialética materialista de realizar na história a identidade entre sujeito e objeto. Diante do fracasso da emancipação como revolução social, a sobrevivência do pensamento dependeria do esforço de alcançar seus objetos em sua singularidade por meio da auto-reflexão crítica dessa pretensão. Com isso, a idéia de sobrevivência da filosofia só é possível como uma crítica do idealismo que leva em consideração a esperança não realizada de sua realização na história.

Nesta constelação histórico-filosófica desenhada pela Dialética negativa, Adorno busca conferir uma tarefa para a filosofia no presente a partir do destino de um projeto específico: a realização da filosofia por Marx e pelo hegelianismo de esquerda. Como evidencia a caracterização do capitalismo tardio, a pergunta pela possibilidade da emancipação não passa apenas pela consideração do fracasso das esperanças depositadas numa revolução social ou da reversão do caráter autoritário do socialismo real, mas exige também questionar a perpetuação de um estado de não-emancipação no capitalismo mais avançado. Ainda assim, é o fracasso de tal projeto filosófico que constitui a perspectiva para o exame da possibilidade da filosofia contemporânea, a qual é examinada do ponto de vista da “crise do idealismo”. Adorno sabia muito bem que nem todas as filosofias do presente-as quais, segundo ele, disputam um lugar no mercado da teoria – têm esse projeto como referência primordial. Por que então submeter todas a esse crivo? Sua justificativa não passa apenas pela conclusão de que o vínculo entre pensamento e emancipação tem sua referência maior nas pretensões emancipatórias desse projeto, mas também pela convicção de que a história da filosofia foi marcada pela pretensão de conferir um sentido à totalidade da experiência por meio de sua apreensão conceitual. Diante disso, o sistema hegeliano marcaria o apogeu dessa história, assim como o maior fracasso da pretensão de submeter a realidade ao movimento do conceito. E mais: a história recente, bem distante da força emancipatória que o idealismo representou na consolidação da sociedade burguesa, também poderia ser interpretada como a realização nefasta do idealismo. O capitalismo contemporâneo seria a realização perversa do sistema hegeliano, na medida em que todo singular é subsumido à sua lógica de funcionamento. Com isso, na Dialética negativa, a crítica da filosofia é indissociável da crítica social.

O diagnóstico adorniano da filosofia contemporânea – Bergson, Husserl, Sartre, Heidegger – evidencia esta pretensão de conferir sentido à realidade por meio de sua antecipação em categorias subjetivas. Em outras palavras, a filosofia contemporânea resolve a dialética de sujeito e objeto no sujeito. Um diagnóstico análogo conduz também a uma interpretação singular do idealismo alemão, segundo a qual a força da mediação subjetiva da objetividade teria impedido a formulação de qualquer ontologia neste período da história da filosofia. Na filosofia moderna, a ontologia seria índice da impotência do sujeito em satisfazer a pretensão de conferir sentido à objetividade. O projeto da Dialética negativa não é, contudo, negar legitimidade a tal pretensão, descartando-a como mera ideologia, para então instaurar uma nova maneira de pensar para além das aporias da tradição. Tal pretensão constituiu o pensamento na sua história e permanece constituindo-o no presente, na medida em que tal pensamento representa também a história da sociedade atual. Mas retomá-la simplesmente seria ideologia; negá-la, por outro lado, seria ignorar a própria historicidade do pensamento como algo formado nessa tradição. A auto-reflexão do pensamento proposta pela Dialética negativa se traduz então no confronto dessa pretensão com a impossibilidade atual de sua realização.

A organização do livro é um registro de tal confronto. Ele ocorre, primeiramente, na crítica à ontologia heideggeriana, como o projeto de satisfazer uma carência ontológica que, em princípio, é uma manifestação legítima da fraqueza do sujeito contemporâneo em realizar o que ainda parecia possível na época do idealismo alemão. Na seqüência, por meio do confronto reiterado com Kant e Hegel, Adorno apresenta os três modelos de pensamento nos quais a Dialética negativa enfrenta as pretensões de verdade da filosofia prática, da filosofia da história e da metafísica. Como Adorno expõe neste último modelo, teses metafísicas segundo as quais o verdadeiro é o eterno e a realidade é dotada de sentido são desmentidas por catástrofes como Auschwitz e a perpetuação do sofrimento físico. A própria idéia de verdade não é pensável, contudo, caso esvaziada de toda pretensão metafísica. Um momento especulativoéimprescindível ao pensamento insatisfeito com a ordem vigente das coisas. Embora Adorno se recuse a legitimar a metafísica como um modo de apresentar questões últimas como as de verdade e sentido, ele também não nega sua imprescindibilidade ao pensamento por meio da inauguração de um pensamento pretensamente pós-metafísico. No interior da Dialética negativa, ambas as alternativas recairiam em idealismo, pois passariam ao largo da própria configuração histórica do pensamento como algo que veio a ser sob certas circunstâncias. A dialética só poderia ser considerada materialista caso fosse capaz de, paradoxalmente, salvar a pretensão de verdade da metafísica ao confrontá-la com sua caducidade. Somente ao pensamento que reflete criticamente sobre esta pretensão, avaliando-a tanto pela sua imprescindibilidade como pela sua insuficiência, seria reservada a possibilidade de expor o que escapa à identidade do conceito.

Com isto, chega-se ao cerne da crítica de Adorno à filosofia idealista: a caracterização do conceito como produção de identidade. Pensar é identificar, diz Adorno, referindo-se à tendência do pensamento a ser um com o pensado. Esta identidade é uma posição de princípio para a dialética idealista. Para que a negação da negação produza uma posição ela já tem que pressupor essa posição desde o início. Em outras palavras, para que o pensamento possa organizar-se na forma da contradição, ele precisa pressupor a verdade de uma totalidade subjetivamente instaurada, a qual subsume todo particular, falso em sua limitação e imediatidade. Desta descrição da dialética idealista, Adorno apresenta uma tarefa para a dialética negativa. Ela se volta contra a identidade entre o pensamento e o pensado. Ela não visa à identidade, pressuposta desde o início na totalidade, mas à não-identidade entre coisa e pensamento. Dialética significa, antes de tudo, que a coisa não é idêntica ao seu conceito. A inscrição histórica do potencial crítico desta concepção de dialética está na configuração da identidade como a forma atual da ideologia, exigindo uma transformação da noção mesma de crítica da ideologia: não mais apontar a diferença entre realidade e conceito em vista da realização futura deste, mas expor a diferença entre coisa e conceito diante de sua identidade social aparente. A dialética torna-se materialista quando adquire consciência desta não-identidade entre coisa e pensamento. Sua tarefa seria assim alcançar o não-idêntico por meio da lógica da identidade do pensamento ou, na formulação famosa, ir além do conceito por meio do conceito.

Esse lema da Dialética negativa indica que o esforço em expor o não-idêntico não se efetiva na elaboração de um conceito de não-identidade. Na medida em que o que importa a Adorno é evidenciar o laço entre conceito e identidade, alcançar o não-idêntico pela formulação de um conceito de não-idêntico seria absorvê-lo no pensamento da identidade, liquidando a dialética entre identidade e não-identidade. Pelo mesmo motivo, o não-idêntico não é apreensível por meio da intuição ou de alguma outra forma de intelecção não-conceitual, pois isto conduziria a dialética negativa às fronteiras de uma mística negativa. Não é nem pelo pensamento não-conceitual, nem por um conceito de não-identidade, que o pensamento alcança o não-conceitual, mas por uma auto-reflexão do procedimento conceitual a respeito dos elementos não-conceituais necessários à configuração do pensamento como linguagem. Segundo Adorno, os conceitos já estão implicitamente concretizados pela linguagem em que se encontram. A Dialética negativa toma essas significações como ponto de partida para a auto-reflexão do conceito. Tal questão não se traduz, contudo, na elaboração de uma filosofia da linguagem, mas na atenção às convenções e aos elementos retóricos, literários e estilísticos necessários à escrita filosófica. Não se trata aqui, porém, de reverter uma oposição entre lógica e retórica que caracterizaria a história da filosofia, mas de permanecer no médium conceitual, reconhecendo que o pensamento só se configura quando apresentado na materialidade da linguagem escrita.

É possível dizer então que a relação entre exposição e conceito torna possível a Dialética negativa. Conseqüentemente, a exposição adorniana é necessariamente muito distinta da forma de exposição das dialéticas idealista e materialista. Ela não é o encadeamento da figuras do desdobramento imanente da consciência, nem o encadeamento lógico das categorias que organizam o material histórico. Em ambas, haveria a precedência da totalidade guiando a explicitação dos elementos constituintes de um ponto de partida sistemático. A forma de exposição da Dialética negativa, ao contrário, prescinde da idéia de totalidade. Nesse sentido, ela poderia ser caracterizada, antes de tudo, como uma justaposição de elementos materiais e conceituais na composição do texto filosófico. A linguagem não é um instrumento neutro ou transparente para a organização e para a expressão do pensamento, mas o próprio meio no qual a filosofia se configurou historicamente em uma tradição fundada na elaboração e no comentário de textos. Exercitar-se no pensamento implica entrar em contato com os textos legados pela tradição, não só procurando refazer suas operações lógicas e argumentativas, mas também notando a dimensão histórica e estilística de sua configuração literária.

Esse relevo dado à relação do pensamento com a linguagem, com a qual Adorno encaminha a dialética entre conceito e exposição, possui tanto um nome como uma forma literária: constelação e ensaio. Adorno considerou sua reflexão sobre esta forma –O ensaio como forma –uma espécie de programa para sua filosofia tardia, formulada a partir da história sedimentada nessa forma de exposição. O ensaio, diz ele, não constrói seus conceitos a partir de um princípio primeiro, nem reenvia seus objetos, por mediações sistemáticas, a uma totalidade anterior, mas os aborda em seu aqui e agora, como algo culturalmente pré-formado. Tomando de empréstimo um termo de Benjamin, o ensaio é a forma que apresenta a constelação em que o objeto se encontra. “Perceber a constelação na qual a coisa se encontra significa o mesmo que decifrar aquilo que ele [o objeto] porta em si enquanto algo que veio a ser”, diz Adorno na Dialética negativa (p. 141). O termo “constelação” indica, em primeiro lugar, essa inscrição histórica do objeto. Cada objeto traz em si, tal como uma mônada, sua história sedimentada como a cifra do processo pelo qual ele veio a ser. O ensaio é uma exposição dessa constelação histórica. Mas “constelação” caracteriza também esta forma de exposição. Não se trata simplesmente de uma cadeia argumentativa ou da dedução conceitual do objeto, nem de proposição e comprovação de teses, mas de uma disposição de conceitos no texto com o intuito de iluminar a especificidade do objeto. Daí a dificuldade em tratar a idéia mesma de constelação como uma nova categoria filosófica, pois ela desapareceria caso abstraída dos elementos organizados por ela. Pela maneira como dispõem conceitos em torno de um objeto, a constelação mostra como eles são imprescindíveis ao pensamento, mas também como são insuficientes para iluminar um objeto em sua singularidade. Ela apresenta a tendência do conceito a identificar-se com seu objeto e, nesta apresentação, mostra sua insuficiência para alcançar a especificidade do objeto em causa. A constelação se vale assim dos conceitos tanto para denunciar sua lógica de identidade como para iluminar o que escapa a esta lógica. Com isso, ela também busca atender à intenção dos conceitos, mas não pelo processo de identificação, segundo o qual o conceito se sobrepõe a seu outro, e sim pela maneira como os justapõem a fim de iluminar a coisa.

Tal como um ensaio, a Dialética negativa investiga a constelação em que se encontra seu objeto por excelência-o pensamento conceitual cristalizado nos textos da tradição -, o qual ela apresenta por meio da dialética de identidade e não-identidade. Essa peculiar forma de exposição é uma das responsáveis pela dificuldade imposta à leitura do livro. A dialética não se expõe sistematicamente, mas por meio de tópicos curtos, organizados sem continuidade em torno de um problema maior, iluminado e retomado de diferentes ângulos. Talvez a única falha séria da edição brasileira (da Jorge Zahar) seja a supressão dos títulos desses tópicos na parte superior das páginas ímpares. Na edição alemã (da Surhkamp), tais títulos realçam a semelhança de cada trecho a um microensaio, iluminando o caráter descontínuo da exposição, próxima, em sua forma de organização, à justaposição das peças de um mosaico. Longe de ser um elemento preciosístico e sem importância, este cuidado na justaposição de parágrafos e títulos salienta a disposição gráfica do pensamento no formato de livro e, conseqüentemente, seu caráter de objeto cristalizado em texto. Tal materialidade da exposição evidencia que o pensamento não é apenas sujeito em busca de um sentido para a experiência, mas também objeto constituído na densidade material da escrita. A tese do primado do objeto, que marca, para Adorno, a distinção entre filosofia idealista e filosofia materialista, mostra-se nesta auto-reflexão do pensamento como objeto culturalmente pré-formado, cujo sentido se constitui no instante em que é decifrado pelo momento histórico atual. Nesta dialética de sujeito e objeto, a filosofia se assemelha a uma arte de interpretação de textos, ainda que crítica dos pressupostos metafísicos da hermenêutica. Não há nenhum sentido prévio a ser encontrado pela interpretação, mas somente um sentido reelaborado em cada leitura da tradição à luz de um diagnóstico do tempo presente. Como diz Adorno, a dialética busca o que poderia ser verdadeiro ali onde pensamento crítico seculariza um modelo originário irrecuperável de comentário aos textos sagrados.

Esta relação entre sujeito e objeto caracteriza a concepção de experiência própria à Dialética negativa. O romance de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, cuja noção de experiência é retomada por Adorno, pode ser entendido como um modelo dessa relação. A reconstituição da biografia de um indivíduo pela atividade rememorativa não se reduz à expressão subjetiva de uma vivência de mundo. Na medida em que o trabalho de recordação só é levado a termo pela mediação daescrita, opassado individualseobjetiva num processo de apropriação da linguagem e de convenções literárias historicamente configuradas. Quando as leis da memória se entrelaçam com as da escrita na composição da experiência literária, os anos vividos escapam ao domínio exclusivo daquele que os viveu e transformam-se em material infiel às intenções de um autor. No texto, a recordação segue caminhos próprios, os quais, entretanto, são também os caminhos daquele que os recorda. O resultado da recordação não é a vida tal como foi uma vez vivida, mas o passado reconstituído à luz do esforço atual de recordá-lo. Neste entrelaçamento de recordação e escrita, a experiência individual conquista a atualidade objetiva que, segundo Adorno, é o índice de sua verdade.

Tal afinidade da Dialética negativa com a experiência proustiana não é sinal de dissolução de fronteiras entre arte e filosofia, muito menos de projeção na arte de esperanças formuladas no âmbito da filosofia. Ela é mais um índice de que a verdade e a objetividade da experiência não estão em sua ordenação segundo a totalidade que lhe confere sentido, mas no respeito à lógica própria de composição do singular. Num momento histórico de constante ameaça de integração do indivíduo ao sistema social, a não-reconciliação entre indivíduo e totalidade e a irredutibilidade de um singular a universalidades heterônomas são vistas por Adorno como exercícios de negação e resistência articulados em processos de composição da experiência humana individual. Esta referência à experiência literária permite delinear não exatamente um conceito de experiência na Dialética negativa, mas o percurso de uma experiência efetivamente realizada como exercício singular de leitura da tradição filosófica à luz de um diagnóstico de época. Os diversos desenvolvimentos apresentados até aqui poderiam ser reunidos nesta concepção de experiência como exercício do pensamento. A Dialética negativa, contudo, não pretende estabelecer as condições de realização de tal forma de experiência no presente. Sua inscrição histórica, ou ainda, a objetividade de sua pretensão de verdade, não se origina de um ponto de vista universal ou universalizante da teoria que fala do mundo – ela reconhece a fraqueza da teoria em desvendar o funcionamento real da sociedade -, mas do entrelaçamento de condições materiais e históricas na composição da experiência individual de um intelectual do pós-guerra alemão.

Uma vez que esta dialética entre individual e universal deve apresentar-se somente num processo histórico em aberto de constituição da experiência individual, não há propriamente uma fundamentação prévia para a idéia de crítica praticada pela Dialética negativa. Do mesmo modo, também não se extrai daqui nenhuma receita política, como exigiu o movimento estudantil alemão no final dos anos de 1960. Avessa à formação de escolas ou seguidores, tal experiência fornece, contudo, material para se pensar uma noção radical de autonomia individual que poderia ser rica em conseqüências para a participação política. O que a Dialética negativa apresenta é o esforço de constituição da experiência individual diante de forças que buscam identificá-la a falsos universais. Contra toda fundamentação prévia, tal experiência é um exercício do pensamento que testa sua possibilidade à medida que é realizado. Foi durante este exercício que Adorno chegou à formulação de que o pensamento também é uma forma de práxis. Como um esforço sujeito ao fracasso, a Dialética negativa não é uma fundamentação filosófica da teoria crítica adorniana, nem uma teoria geral do funcionamento da sociedade no capitalismo tardio, mas o documento exemplar de um exercício de experiência intelectual.

Luciano Gatti – Doutor em filosofia pela Unicamp. Realiza pesquisa de pós-doutorado em filosofia na PUC/SP com bolsa da Fapesp.

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Dialética Negativa – ADORNO (NE-C)

ADORNO, W. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Resenha de: GATTI, Luciano. Exercícios do pensamento. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.85, 2009

A fama de certos livros costuma induzir o leitor a enganos. A Dialética negativa, publicada originalmente em 1966, poderia ser muito bem recebida no Brasil como a consumação da obra filosófica de Theodor W. Adorno. A aura de obra difícil, reforçada por décadas de inacessibilidade em língua portuguesa, seria uma preparação condizente com o posto de obra-prima. Tal fetiche poderia naturalmente justificar-se em diversos elementos que, de fato, se encontram no livro. Os leitores familiarizados com outros textos do autor não terão dificuldade em encontrá-los, embora alguma suspeita não faça mal a quem folheia o livro pela primeira vez. Os interessados, por exemplo, na gênese das idéias de Adorno saberão rastrear temas que remontam àquelas primeiras conferências do início da década de 1930, sobre “A atualidade da filosofia” e sobre a “Idéia de história natural”. Nestes trabalhos programáticos, com as quais um jovem e pretensioso filósofo estreava na cena universitária alemã, delineava-se o confronto do panorama da filosofia contemporânea, herdeira, segundo Adorno, do idealismo alemão, com uma noção ainda bastante vaga de filosofia materialista, inspirada nos escritos de juventude de Walter Benjamin. Essa intenção de realizar uma crítica imanente da filosofia idealista alemã, avaliando-a pelas suas próprias pretensões, de modo a extrair, nesta crítica, uma concepção bastante singular de materialismo, certamente pode ser reencontrada na Dialética negativa.

Os leitores da Dialética do esclarecimento, por sua vez, reconhecerão elementos da caracterização do estágio mais avançado do capitalismo como um sistema de dominação social que teria colocado fora de campo as esperanças marxistas de realização da filosofia numa sociedade justa. A Dialética negativa poderia ser considerada, então, um aproveitamento desse diagnóstico de época para um minucioso acerto de contas com a tradição filosófica. Um rápido percurso pelo sumário do livro indica ao leitor o confronto de Adorno com disciplinas da tradição – filosofia prática, filosofia da história e metafísica – e com a ontologia heideggeriana. Do ponto de vista da impossibilidade de uma sociedade justa, as ambiciosas construções do pensamento idealista são desmascaradas como falsas. Segundo esse diagnóstico emprestado da Dialética do esclarecimento, a história da filosofia se reverteria, por fim, em uma história de ideologias.

Os interessados nos trabalhos materiais de Adorno, ou seja, naqueles inúmeros ensaios em que trabalhou a especificidade dos objetos mais diversos, da crítica musical à sociologia empírica, talvez busquem na Dialética negativa uma espécie de fundamentação filosófica do ensaísmo adorniano, fazendo eco à idéia corrente de que a filosofia teria alguma prioridade epistemológica perante a crítica de arte ou as ciências humanas. No Prefácio ao livro, Adorno, contudo, adverte contra este posicionamento da Dialética negativa em relação a seus trabalhos materiais. Nada seria mais estranho a uma filosofia materialista do que tal hierarquia entre pensamento e material histórico ou empírico.

As circunstâncias de elaboração do livro fornecem outros indícios contra supostas continuidades entre este livro e o restante da produção intelectual de seu autor. Escrito a partir de conferências apresentadas no Collège de France no início da década de 1960, cada uma das partes do livro foi apresentada e discutida em cursos ministrados por Adorno na Universidade de Frankfurt, ao longo dos anos de 1960, em auditórios ocupados por centenas de pessoas. Seu autor não era apenas um professor universitário, mas também uma personalidade pública no cenário da reconstrução alemã do pós-guerra. A expressiva audiência de seus cursos não era indício apenas da penetração da teoria crítica entre os estudantes, em particular no movimento estudantil alemão, mas também da permeabilidade do pensamento de Adorno à discussão pública das questões que estavam na ordem do dia. A Dialética negativa surge então como documento de um exercício intelectual único, construído no confronto reiterado com as exigências do tempo presente. Lê-lo a partir de teses formuladas em circunstâncias históricas diversas trairia o esforço da teoria crítica em compreender seu próprio tempo. O confronto com a tradição filosófica levado a cabo por Adorno, ausente em sua obra de juventude, também não pode estar vinculado de antemão às teses sombrias da Dialética do esclarecimento, mas deve abrir-se à experiência intelectual a qual ele convida.

O livro que finalmente chega às mãos do leitor brasileiro no aniversário de quarenta anos da morte de seu autor, com tradução cuidadosa de Marco Antônio Casanova e revisão técnica de Eduardo Soares Neves Silva, possui uma posição própria, sem prejuízo da reelaboração de questões que percorrem uma vida de trabalho intelectual. A ocasião deve ser saudada como a possibilidade de transformação da recepção de Adorno no Brasil, ainda fortemente marcada pela Dialética do esclarecimento. Muitos dos ensaios traduzidos por aqui costumam ser lidos e interpretados na chave deste livro. Esta tradução da Dialética negativa, por sua vez, tem o potencial de alterar tal situação, ensejando uma redescoberta de seu autor. Em relação ao livro de 1947, escrito em parceria com Max Horkheimer durante os anos de exílio nos Estados Unidos, o título da Dialética negativa, já indica algo novo. O “negativo” da dialética é inseparável da questão da sobrevivência da filosofia, com a qual Adorno abre a introdução: “A filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu seu instante de realização” (p. 11). Esta tese deve ser entendida como a formulação de um diagnóstico de época que não apenas possibilita, mas também exige este exercício do pensamento configurado historicamente no embate da Dialética negativa com a tradição filosófica.

A diferença em relação à Dialética do esclarecimento é grande. Neste livro, a tese da autodestruição do esclarecimento, levada a cabo por um desenvolvimento histórico que conduzira a humanidade a um estado de barbárie, colocava o pensamento crítico diante de uma aporia, pois o conluio de pensamento e dominação social minava a possibilidade da crítica, a qual, contudo, era exercida conscientemente por seus autores. O Prefácio de 1969 para a reedição do livro adverte para a suspensão (mas não interrupção) daquele diagnóstico de época, segundo o qual o capitalismo tardio caminhava para um sistema integrado de dominação. A compreensão do mundo atual nos países avançados como uma trama de dominação formada por mercado, Estado, burocracia e meios de comunicação de massa, que impede o colapso do sistema e sua superação em uma sociedade justa, mantém-se atual no pós-guerra. A guerra do Vietnã, o macarthismo e a corrida armamentista comprovariam essa atualidade. A diferença em relação ao livro da década de 1940 está em que tal diagnóstico não implica a desconsideração da possibilidade de consciência crítica, nem de participação política no contexto das democracias do pós-guerra, como evidencia o posicionamento ativo de Adorno em diversos debates na esfera pública alemã. A questão da possibilidade da emancipação não poderia ser colocada sem esses novos desdobramentos históricos. Em relação à Dialética do esclarecimento, a diferença do diagnóstico de época subjacente à Dialética negativa está em conseguir detectar na história recente elementos singulares de experiência crítica não subsumida à totalidade social. Por este motivo, a possibilidade mesma de composição da experiência torna-se a questão-chave de uma dialética negativa, configurando-a como um exercício de crítica da história do pensamento à luz de um diagnóstico de época. A idéia de experiência como um exercício do pensamento circunscreve o esforço de negação empreendido pela teoria crítica adorniana em função da convergência histórica entre a tradição filosófica e a lógica da dominação social. O esforço de escapar dessa aporia no capitalismo tardio é o que teria exigido esta forma de crítica da filosofia caracterizada por seu autor com a expressão “dialética negativa”.

O recurso do pensamento à tradição filosófica, indicado em tal expressão, exige, portanto, a subversão dessa mesma tradição. Em sua reconstituição por Adorno, o pensamento da negação sempre procurou estabelecer algo positivo. A dialética negativa volta-se contra essa positividade e suas inúmeras formas, particularmente contra a pretensão da dialética idealista de esquadrinhar a totalidade da experiência a partir de princípios subjetivos. Mas não só: ela também se contrapõe à pretensão malograda da dialética materialista de realizar na história a identidade entre sujeito e objeto. Diante do fracasso da emancipação como revolução social, a sobrevivência do pensamento dependeria do esforço de alcançar seus objetos em sua singularidade por meio da auto-reflexão crítica dessa pretensão. Com isso, a idéia de sobrevivência da filosofia só é possível como uma crítica do idealismo que leva em consideração a esperança não realizada de sua realização na história.

Nesta constelação histórico-filosófica desenhada pela Dialética negativa, Adorno busca conferir uma tarefa para a filosofia no presente a partir do destino de um projeto específico: a realização da filosofia por Marx e pelo hegelianismo de esquerda. Como evidencia a caracterização do capitalismo tardio, a pergunta pela possibilidade da emancipação não passa apenas pela consideração do fracasso das esperanças depositadas numa revolução social ou da reversão do caráter autoritário do socialismo real, mas exige também questionar a perpetuação de um estado de não-emancipação no capitalismo mais avançado. Ainda assim, é o fracasso de tal projeto filosófico que constitui a perspectiva para o exame da possibilidade da filosofia contemporânea, a qual é examinada do ponto de vista da “crise do idealismo”. Adorno sabia muito bem que nem todas as filosofias do presente-as quais, segundo ele, disputam um lugar no mercado da teoria – têm esse projeto como referência primordial. Por que então submeter todas a esse crivo? Sua justificativa não passa apenas pela conclusão de que o vínculo entre pensamento e emancipação tem sua referência maior nas pretensões emancipatórias desse projeto, mas também pela convicção de que a história da filosofia foi marcada pela pretensão de conferir um sentido à totalidade da experiência por meio de sua apreensão conceitual. Diante disso, o sistema hegeliano marcaria o apogeu dessa história, assim como o maior fracasso da pretensão de submeter a realidade ao movimento do conceito. E mais: a história recente, bem distante da força emancipatória que o idealismo representou na consolidação da sociedade burguesa, também poderia ser interpretada como a realização nefasta do idealismo. O capitalismo contemporâneo seria a realização perversa do sistema hegeliano, na medida em que todo singular é subsumido à sua lógica de funcionamento. Com isso, na Dialética negativa, a crítica da filosofia é indissociável da crítica social.

O diagnóstico adorniano da filosofia contemporânea – Bergson, Husserl, Sartre, Heidegger – evidencia esta pretensão de conferir sentido à realidade por meio de sua antecipação em categorias subjetivas. Em outras palavras, a filosofia contemporânea resolve a dialética de sujeito e objeto no sujeito. Um diagnóstico análogo conduz também a uma interpretação singular do idealismo alemão, segundo a qual a força da mediação subjetiva da objetividade teria impedido a formulação de qualquer ontologia neste período da história da filosofia. Na filosofia moderna, a ontologia seria índice da impotência do sujeito em satisfazer a pretensão de conferir sentido à objetividade. O projeto da Dialética negativa não é, contudo, negar legitimidade a tal pretensão, descartando-a como mera ideologia, para então instaurar uma nova maneira de pensar para além das aporias da tradição. Tal pretensão constituiu o pensamento na sua história e permanece constituindo-o no presente, na medida em que tal pensamento representa também a história da sociedade atual. Mas retomá-la simplesmente seria ideologia; negá-la, por outro lado, seria ignorar a própria historicidade do pensamento como algo formado nessa tradição. A auto-reflexão do pensamento proposta pela Dialética negativa se traduz então no confronto dessa pretensão com a impossibilidade atual de sua realização.

A organização do livro é um registro de tal confronto. Ele ocorre, primeiramente, na crítica à ontologia heideggeriana, como o projeto de satisfazer uma carência ontológica que, em princípio, é uma manifestação legítima da fraqueza do sujeito contemporâneo em realizar o que ainda parecia possível na época do idealismo alemão. Na seqüência, por meio do confronto reiterado com Kant e Hegel, Adorno apresenta os três modelos de pensamento nos quais a Dialética negativa enfrenta as pretensões de verdade da filosofia prática, da filosofia da história e da metafísica. Como Adorno expõe neste último modelo, teses metafísicas segundo as quais o verdadeiro é o eterno e a realidade é dotada de sentido são desmentidas por catástrofes como Auschwitz e a perpetuação do sofrimento físico. A própria idéia de verdade não é pensável, contudo, caso esvaziada de toda pretensão metafísica. Um momento especulativoéimprescindível ao pensamento insatisfeito com a ordem vigente das coisas. Embora Adorno se recuse a legitimar a metafísica como um modo de apresentar questões últimas como as de verdade e sentido, ele também não nega sua imprescindibilidade ao pensamento por meio da inauguração de um pensamento pretensamente pós-metafísico. No interior da Dialética negativa, ambas as alternativas recairiam em idealismo, pois passariam ao largo da própria configuração histórica do pensamento como algo que veio a ser sob certas circunstâncias. A dialética só poderia ser considerada materialista caso fosse capaz de, paradoxalmente, salvar a pretensão de verdade da metafísica ao confrontá-la com sua caducidade. Somente ao pensamento que reflete criticamente sobre esta pretensão, avaliando-a tanto pela sua imprescindibilidade como pela sua insuficiência, seria reservada a possibilidade de expor o que escapa à identidade do conceito.

Com isto, chega-se ao cerne da crítica de Adorno à filosofia idealista: a caracterização do conceito como produção de identidade. Pensar é identificar, diz Adorno, referindo-se à tendência do pensamento a ser um com o pensado. Esta identidade é uma posição de princípio para a dialética idealista. Para que a negação da negação produza uma posição ela já tem que pressupor essa posição desde o início. Em outras palavras, para que o pensamento possa organizar-se na forma da contradição, ele precisa pressupor a verdade de uma totalidade subjetivamente instaurada, a qual subsume todo particular, falso em sua limitação e imediatidade. Desta descrição da dialética idealista, Adorno apresenta uma tarefa para a dialética negativa. Ela se volta contra a identidade entre o pensamento e o pensado. Ela não visa à identidade, pressuposta desde o início na totalidade, mas à não-identidade entre coisa e pensamento. Dialética significa, antes de tudo, que a coisa não é idêntica ao seu conceito. A inscrição histórica do potencial crítico desta concepção de dialética está na configuração da identidade como a forma atual da ideologia, exigindo uma transformação da noção mesma de crítica da ideologia: não mais apontar a diferença entre realidade e conceito em vista da realização futura deste, mas expor a diferença entre coisa e conceito diante de sua identidade social aparente. A dialética torna-se materialista quando adquire consciência desta não-identidade entre coisa e pensamento. Sua tarefa seria assim alcançar o não-idêntico por meio da lógica da identidade do pensamento ou, na formulação famosa, ir além do conceito por meio do conceito.

Esse lema da Dialética negativa indica que o esforço em expor o não-idêntico não se efetiva na elaboração de um conceito de não-identidade. Na medida em que o que importa a Adorno é evidenciar o laço entre conceito e identidade, alcançar o não-idêntico pela formulação de um conceito de não-idêntico seria absorvê-lo no pensamento da identidade, liquidando a dialética entre identidade e não-identidade. Pelo mesmo motivo, o não-idêntico não é apreensível por meio da intuição ou de alguma outra forma de intelecção não-conceitual, pois isto conduziria a dialética negativa às fronteiras de uma mística negativa. Não é nem pelo pensamento não-conceitual, nem por um conceito de não-identidade, que o pensamento alcança o não-conceitual, mas por uma auto-reflexão do procedimento conceitual a respeito dos elementos não-conceituais necessários à configuração do pensamento como linguagem. Segundo Adorno, os conceitos já estão implicitamente concretizados pela linguagem em que se encontram. A Dialética negativa toma essas significações como ponto de partida para a auto-reflexão do conceito. Tal questão não se traduz, contudo, na elaboração de uma filosofia da linguagem, mas na atenção às convenções e aos elementos retóricos, literários e estilísticos necessários à escrita filosófica. Não se trata aqui, porém, de reverter uma oposição entre lógica e retórica que caracterizaria a história da filosofia, mas de permanecer no médium conceitual, reconhecendo que o pensamento só se configura quando apresentado na materialidade da linguagem escrita.

É possível dizer então que a relação entre exposição e conceito torna possível a Dialética negativa. Conseqüentemente, a exposição adorniana é necessariamente muito distinta da forma de exposição das dialéticas idealista e materialista. Ela não é o encadeamento da figuras do desdobramento imanente da consciência, nem o encadeamento lógico das categorias que organizam o material histórico. Em ambas, haveria a precedência da totalidade guiando a explicitação dos elementos constituintes de um ponto de partida sistemático. A forma de exposição da Dialética negativa, ao contrário, prescinde da idéia de totalidade. Nesse sentido, ela poderia ser caracterizada, antes de tudo, como uma justaposição de elementos materiais e conceituais na composição do texto filosófico. A linguagem não é um instrumento neutro ou transparente para a organização e para a expressão do pensamento, mas o próprio meio no qual a filosofia se configurou historicamente em uma tradição fundada na elaboração e no comentário de textos. Exercitar-se no pensamento implica entrar em contato com os textos legados pela tradição, não só procurando refazer suas operações lógicas e argumentativas, mas também notando a dimensão histórica e estilística de sua configuração literária.

Esse relevo dado à relação do pensamento com a linguagem, com a qual Adorno encaminha a dialética entre conceito e exposição, possui tanto um nome como uma forma literária: constelação e ensaio. Adorno considerou sua reflexão sobre esta forma –O ensaio como forma –uma espécie de programa para sua filosofia tardia, formulada a partir da história sedimentada nessa forma de exposição. O ensaio, diz ele, não constrói seus conceitos a partir de um princípio primeiro, nem reenvia seus objetos, por mediações sistemáticas, a uma totalidade anterior, mas os aborda em seu aqui e agora, como algo culturalmente pré-formado. Tomando de empréstimo um termo de Benjamin, o ensaio é a forma que apresenta a constelação em que o objeto se encontra. “Perceber a constelação na qual a coisa se encontra significa o mesmo que decifrar aquilo que ele [o objeto] porta em si enquanto algo que veio a ser”, diz Adorno na Dialética negativa (p. 141). O termo “constelação” indica, em primeiro lugar, essa inscrição histórica do objeto. Cada objeto traz em si, tal como uma mônada, sua história sedimentada como a cifra do processo pelo qual ele veio a ser. O ensaio é uma exposição dessa constelação histórica. Mas “constelação” caracteriza também esta forma de exposição. Não se trata simplesmente de uma cadeia argumentativa ou da dedução conceitual do objeto, nem de proposição e comprovação de teses, mas de uma disposição de conceitos no texto com o intuito de iluminar a especificidade do objeto. Daí a dificuldade em tratar a idéia mesma de constelação como uma nova categoria filosófica, pois ela desapareceria caso abstraída dos elementos organizados por ela. Pela maneira como dispõem conceitos em torno de um objeto, a constelação mostra como eles são imprescindíveis ao pensamento, mas também como são insuficientes para iluminar um objeto em sua singularidade. Ela apresenta a tendência do conceito a identificar-se com seu objeto e, nesta apresentação, mostra sua insuficiência para alcançar a especificidade do objeto em causa. A constelação se vale assim dos conceitos tanto para denunciar sua lógica de identidade como para iluminar o que escapa a esta lógica. Com isso, ela também busca atender à intenção dos conceitos, mas não pelo processo de identificação, segundo o qual o conceito se sobrepõe a seu outro, e sim pela maneira como os justapõem a fim de iluminar a coisa.

Tal como um ensaio, a Dialética negativa investiga a constelação em que se encontra seu objeto por excelência-o pensamento conceitual cristalizado nos textos da tradição -, o qual ela apresenta por meio da dialética de identidade e não-identidade. Essa peculiar forma de exposição é uma das responsáveis pela dificuldade imposta à leitura do livro. A dialética não se expõe sistematicamente, mas por meio de tópicos curtos, organizados sem continuidade em torno de um problema maior, iluminado e retomado de diferentes ângulos. Talvez a única falha séria da edição brasileira (da Jorge Zahar) seja a supressão dos títulos desses tópicos na parte superior das páginas ímpares. Na edição alemã (da Surhkamp), tais títulos realçam a semelhança de cada trecho a um microensaio, iluminando o caráter descontínuo da exposição, próxima, em sua forma de organização, à justaposição das peças de um mosaico. Longe de ser um elemento preciosístico e sem importância, este cuidado na justaposição de parágrafos e títulos salienta a disposição gráfica do pensamento no formato de livro e, conseqüentemente, seu caráter de objeto cristalizado em texto. Tal materialidade da exposição evidencia que o pensamento não é apenas sujeito em busca de um sentido para a experiência, mas também objeto constituído na densidade material da escrita. A tese do primado do objeto, que marca, para Adorno, a distinção entre filosofia idealista e filosofia materialista, mostra-se nesta auto-reflexão do pensamento como objeto culturalmente pré-formado, cujo sentido se constitui no instante em que é decifrado pelo momento histórico atual. Nesta dialética de sujeito e objeto, a filosofia se assemelha a uma arte de interpretação de textos, ainda que crítica dos pressupostos metafísicos da hermenêutica. Não há nenhum sentido prévio a ser encontrado pela interpretação, mas somente um sentido reelaborado em cada leitura da tradição à luz de um diagnóstico do tempo presente. Como diz Adorno, a dialética busca o que poderia ser verdadeiro ali onde pensamento crítico seculariza um modelo originário irrecuperável de comentário aos textos sagrados.

Esta relação entre sujeito e objeto caracteriza a concepção de experiência própria à Dialética negativa. O romance de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, cuja noção de experiência é retomada por Adorno, pode ser entendido como um modelo dessa relação. A reconstituição da biografia de um indivíduo pela atividade rememorativa não se reduz à expressão subjetiva de uma vivência de mundo. Na medida em que o trabalho de recordação só é levado a termo pela mediação daescrita, opassado individualseobjetiva num processo de apropriação da linguagem e de convenções literárias historicamente configuradas. Quando as leis da memória se entrelaçam com as da escrita na composição da experiência literária, os anos vividos escapam ao domínio exclusivo daquele que os viveu e transformam-se em material infiel às intenções de um autor. No texto, a recordação segue caminhos próprios, os quais, entretanto, são também os caminhos daquele que os recorda. O resultado da recordação não é a vida tal como foi uma vez vivida, mas o passado reconstituído à luz do esforço atual de recordá-lo. Neste entrelaçamento de recordação e escrita, a experiência individual conquista a atualidade objetiva que, segundo Adorno, é o índice de sua verdade.

Tal afinidade da Dialética negativa com a experiência proustiana não é sinal de dissolução de fronteiras entre arte e filosofia, muito menos de projeção na arte de esperanças formuladas no âmbito da filosofia. Ela é mais um índice de que a verdade e a objetividade da experiência não estão em sua ordenação segundo a totalidade que lhe confere sentido, mas no respeito à lógica própria de composição do singular. Num momento histórico de constante ameaça de integração do indivíduo ao sistema social, a não-reconciliação entre indivíduo e totalidade e a irredutibilidade de um singular a universalidades heterônomas são vistas por Adorno como exercícios de negação e resistência articulados em processos de composição da experiência humana individual. Esta referência à experiência literária permite delinear não exatamente um conceito de experiência na Dialética negativa, mas o percurso de uma experiência efetivamente realizada como exercício singular de leitura da tradição filosófica à luz de um diagnóstico de época. Os diversos desenvolvimentos apresentados até aqui poderiam ser reunidos nesta concepção de experiência como exercício do pensamento. A Dialética negativa, contudo, não pretende estabelecer as condições de realização de tal forma de experiência no presente. Sua inscrição histórica, ou ainda, a objetividade de sua pretensão de verdade, não se origina de um ponto de vista universal ou universalizante da teoria que fala do mundo – ela reconhece a fraqueza da teoria em desvendar o funcionamento real da sociedade -, mas do entrelaçamento de condições materiais e históricas na composição da experiência individual de um intelectual do pós-guerra alemão.

Uma vez que esta dialética entre individual e universal deve apresentar-se somente num processo histórico em aberto de constituição da experiência individual, não há propriamente uma fundamentação prévia para a idéia de crítica praticada pela Dialética negativa. Do mesmo modo, também não se extrai daqui nenhuma receita política, como exigiu o movimento estudantil alemão no final dos anos de 1960. Avessa à formação de escolas ou seguidores, tal experiência fornece, contudo, material para se pensar uma noção radical de autonomia individual que poderia ser rica em conseqüências para a participação política. O que a Dialética negativa apresenta é o esforço de constituição da experiência individual diante de forças que buscam identificá-la a falsos universais. Contra toda fundamentação prévia, tal experiência é um exercício do pensamento que testa sua possibilidade à medida que é realizado. Foi durante este exercício que Adorno chegou à formulação de que o pensamento também é uma forma de práxis. Como um esforço sujeito ao fracasso, a Dialética negativa não é uma fundamentação filosófica da teoria crítica adorniana, nem uma teoria geral do funcionamento da sociedade no capitalismo tardio, mas o documento exemplar de um exercício de experiência intelectual.

Luciano Gatti – Doutor em filosofia pela Unicamp. Realiza pesquisa de pós-doutorado em filosofia na PUC/SP com bolsa da Fapesp.

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Novos Estudos Cebrasp (NE-C)

Novos Estudos Cebrap (ISSN 1980-5403) é uma publicação quadrimestral impressa e on-line do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Destina-se à publicação de trabalhos científicos originais nas áreas de Sociologia, Política, Economia, Direito, Filosofia, Antropologia, Artes e Humanidades. O objetivo da revista é publicar estudos relevantes e contribuir para o debate intelectual com uma variedade de temas. A abreviatura de seu título é Novos estud. – CEBRAP, que deve ser usada em bibliografias, notas de rodapé e em referências e legendas bibliográficas.

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