Amado Luiz Cervo / Intelligere – Revista de História Intelectual / 2020

Exegi monumentum aere perennius

Horácio, Odes, L. III, 39, v .1

Amado Luiz Cervo completa 80 anos em 2021. Não é apenas a data jubilar que motiva a elaboração do dossiê em sua homenagem. Com efeito, sua vida e sua obra elevaram um monumento mais duradouro do que o bronze para a história das Relações Internacionais.

A atuação de Amado Cervo nesse campo é ímpar e deixou marca profunda e indelével, tanto na constituição da área, como em sua consolidação, inovação e ampla disseminação pelo país afora, com múltiplas conexões internacionais com o que há de melhor e mais avançado na pesquisa.

Ao longo de cerca cinquenta anos Amado Cervo tornou-se referência incontornável na pesquisa e no ensino de Relações Internacionais, emprestando seu brilho à historiografia da intrincada rede de relações entre os estados e as sociedades no mundo, desde o final do século 18 até nossos dias. Brasil, Argentina, Chile, França, Itália, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Espanha, Portugal… tantos cenários de intenso intercâmbio e produtiva cooperação.

Alguns de seus amigos e colegas decidimos prestar-lhe homenagem na forma que reflita seu impacto no campo da História da Relações Internacionais. Aquilo que se refere a sua obra, a sua atividade formadora de profissionais na área, a seu magistério em espectro de largo alcance.

Amado Cervo iniciou sua carreira universitária na Universidade de Passo Fundo (Rio Grande do Sul) e foi professor na Universidade de Brasília de 1976 a 2003, quando se aposentou, mantendo ainda por vários anos estreita colaboração científica com o Instituto de Relações Internacionais, de que foi um dos iniciadores.

Renomado e respeitado especialista, emprestou seu saber e seu fazer também à formação de gerações de diplomatas, como professor no Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty). Por décadas pesquisador do CNPq, chegou à categoria de pesquisador sênior.

O presente dossiê reúne quatorze contribuições, de amigos e colegas que decidiram exprimir, em nome de muitos outros e muitas outras – nem todos puderam – com textos de apreciação e análise, a admiração pessoal e o apreço profissional que têm pelo mestre e amigo, colocando em relevo aspectos de seu pensamento e de sua ascendência sobre área.

Dividido em quatro partes, o dossiê aborda a inserção profissional, a formação intelectual e a origem familiar de Amado Cervo (I); seu impacto e influência nos estudos de história das Relações Internacionais e de Política Externa Brasileira, incluída sua inovação teórica e a discussão das “escolas de pensamento” dominantes; sua exemplaridade na prática do ensino de história das Relações Internacionais (III) e alguns casos ilustrativos da temática histórica em Relações Internacionais (IV).

Na primeira parte, Paulo Roberto de Almeida (Itamaraty), Raúl Bernal-Meza (Buenos Aires) e Denis Rolland (Estrasburgo) descrevem, situam e analisam a formação pessoal, a produção intelectual e a influência de Amado Cervo entre Brasil, França e América Latina. O balanço é rico e coloca em relevo como a reflexão de Amado Cervo amadureceu e evoluiu ao longo de lento, gradual e seguro processo crítico de pesquisa e de elaboração teórica dos conceitos diretores da historiografia brasileira de Relações Internacionais.

Em seguida, Paulo Visentini (UFRGS), Eiiti Sato (UnB), Tullo Vigevani com André Campos (Unesp), Adilson Franceschini (USP), Alexandre Moreli (USP) com Carlo Patti (UFG) e Raquel Patrício (Lisboa), analisam e discutem a concepção de Relações Internacionais de Amado Cervo em perspectiva histórica e em diálogo com as escolas francesa, italiana e inglesa. Percebese o itinerário de originalidade e independência crítica de Amado Cervo com relação a suas fontes e a pertinência de suas análises, em particular com relação às políticas externas do Brasil e a sua inserção no contexto latino-americano.

Na terceira parte, Thiago Galvão (UnB) e Günther Mros (UFSM) apresentam reflexões sobre como se deu a constituição do campo de ensino de História das Relações Internacionais no Brasil, o papel de Amado Cervo ao longo de décadas e os desafios que tal mister hoje põe.

Por fim, três estudos especializados de temas relevantes de filosofia da História (Nelson Gomes, UnB) e de história das Relações Internacionais (Wolfgang Döpcke e Estevão Martins, UnB) apresentam tópicos especializados que frequentam os debates contemporâneos.


MARTINS, Estevão de Rezende. Apresentação. Intelligere – Revista de História Intelectual. São Paulo, n. 10, 2020. Acessar publicação original [DR]

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2º Congresso de História da Ciência e da Técnica / Intelligere – Revista de História Intelectual / 2019

[2º Congresso de História da Ciência e da Técnica]. Intelligere – Revista de História Intelectual. São Paulo, n. 7, 2019. Acessar dossiê [DR]

Sentido e relevância da História no mundo contemporâneo / Intelligere – Revista de História Intelectual / 2017

Jörn Rüsen: um humanista para o século 21

A teoria e a filosofia da História, desde os anos 1970, tem na atuação profissional e na vasta obra de Jörn Rüsen uma contribuição sistemática de raro valor e de reconhecida importância.

Dentre os muitos autores que se destacam no cenário internacional da historiografia contemporânea, como Reinhardt Koselleck, Georg G. Iggers, Hayden White, Frank Ankersmit. François Hartog, François Dosse, Edoardo Tortarolo, Chris Lorenz, Ewa Domanska, Allan Megill, Michael Bentley, e tantos outros mais, pode-se dizer que Jörn Rüsen é aquele que enunciou a mais completa sistematização teórico-metodológica do pensamento histórico em sua versão científica mais promissora. Sua teoria, reformulada e ajustada, está reapresentada no livro de 2013, Historik (Colônia: Böhlau), que retoma o termo cunhado por Droysen no século 19. Rüsen dedica-se ao tema da teoria da História desde sua tese de doutorado, justamente sobre Droysen, defendida na Universidade de Colônia em 1966.[1] Dessa obra fundamental a Editora da Universidade Federal do Paraná publicou a tradução para o português, feita por mim e revista por Arthur Assis, em 2015 (Teoria da História. Uma teoria da história como ciência. Curitiba: Editora da UFPR, 2015).[2]

O pensamento de Rüsen, elaborado no curso de sua longa carreira nas universidades de Braunschweig, Berlim, Bochum, Bielefeld e Witten-Herdecke, beneficiou-se também da profícua experiência de diálogo e cooperação interdisciplinar e internacional proporcionada pelos dez anos em que exerceu a presidência do Instituto de Altos Estudos de Humanidades, do Estado da Renânia do Norte-Vestfália, na Alemanha (1997-2007).[3]

Intelligere reúne no presente dossiê contribuições de pesquisadores versados nas áreas de influência de Rüsen no campo da teoria, da filosofia e da história da historiografia, com suas aplicações e desdobramentos na ampla e complexa área do ensino de História e da educação histórica. Leitores e críticos de Rüsen, no melhor dos sentidos possíveis, espalham-se pelo mundo afora, e seu pensamento ecoa não apenas na Alemanha, mas igualmente na Inglaterra, em Portugal, na Espanha, na África do Sul, no Brasil, no México, na China, na Índia.

A cultura humana é uma cultura histórica por excelência. Essa é uma das teses fundamentais do pensamento de Jörn Rüsen. Para explicar que seja assim, e como é assim, Rüsen elaborou – ao longo de décadas – uma teoria consistente da História como ciência, na qual a concepção de ‘matriz’ tem um papel central. Seu sentido e eventualmente sua ausência de sentido ou seu contrassenso são temas recorrentes da reflexão do autor. O horizonte de referência que emoldura o esforço sistematizador da teoria da História de Rüsen é em ampla medida filosófico, e tem como fundamento uma concepção avançada do humanismo, cuja espinha dorsal são os direitos humanos. O ser humano – agente e paciente – como sujeito histórico, a partir do qual, em torno ao qual e em função do qual se organiza e desenvolve o pensamento histórico – espontâneo e científico – é a peça mestra da arquitetura do pensamento rüseniano. Após a publicação da Historik em 2013, que inclui um capítulo específico com o programa de sua filosofia da História, Rüsen anunciou, na homenagem que lhe prestou a Universidade de Colônia em 2016, preparar uma monografia dedicada a sua filosofia. Rüsen a considera como a pedra de toque do seu sistema. No presente dossiê, o texto de Oliver Kozlarek (México) aponta elementos substantivos do humanismo filosófico, como entendido por Rüsen.

A preocupação principal de Rüsen, no final dos anos 1970 e ao longo da década de 1980, foi contribuir argumentadamente para a sustentabilidade científica da História. Não esteve sozinho nesse mister, pois um grande projeto de teoria da História foi desenvolvido com o apoio financeiro da Fundação Werner Reimers [4] (1973-1989) e levou à publicação de seis volumes que marcaram época, entre 1977 e 1990, com contribuições notáveis de autores como R. Koselleck, Christian Meier, Wolfgang J. Mommsen, Thomas Nipperdey, Lutz Niethammer, Winfried Schulze, Karl Acham, Karl-Georg Faber, Georg G. Iggers, Jürgen Kocka.

A primeira finalidade da elaboração teórica foi, pois, a fundamentação da História como ciência, cuja matriz é, assim, disciplinar.[5] Ou seja: a matriz sistematiza as características que Rüsen entende serem distintivas de três elementos essenciais da História como disciplina científica. O primeiro elemento é a origem sociocultural de todo e qualquer tema que se torne objeto do interesse e da investigação histórica. O segundo elemento é a metodização da pesquisa e sua controlabilidade profissional (com três componentes: as categorias de enquadramento teórico, as regras do método e as formas de apresentar o resultado). O terceiro elemento refere-se à reinserção sociocultural do tema, uma vez sintetizado na narrativa historiográfica. No todo, o esquema matricial comporta então cinco componentes, distribuídos em dois hemisférios – o da vida prática de todos os dias, e o da prática da disciplina cientifica.

O fundamento da reflexão da matriz disciplinar, como indica o adjetivo, é a reflexão sobre as condições de possibilidade da constituição da História como ciência, na fase de sua consolidação como disciplina acadêmica, de meados do século 19 até nossos dias.[6]

A segunda acepção da matriz é qualificada por Rüsen como matriz do pensamento histórico. Trata-se de uma extensão da amplitude da concepção de matriz, que vai assim além da produção historiográfica em sentido estrito e se aplica a toda e qualquer forma de reflexão historicizante referente à experiência do tempo. Nessa acepção, a matriz disciplinar seria uma forma derivada do pensamento histórico por efeito da metodização científica. As duas etapas do pensamento histórico constituem uma dimensão universal, entendida por Rüsen como uma constante antropológica. Ou seja: válida para qualquer agente racional humano.

Com a categoria ‘constituição histórica de sentido‘ define-se a terceira forma da matriz, que Rüsen associa à tipologia da historiografia. Para o autor, a constituição história de sentido é uma função originária do pensamento histórico, cuja especialização desemboca, pelo caminho da investigação metódica, na narrativa historiográfica. Uma das características marcantes dessa terceira forma, que se consolidou ao longo da reflexão do autor, é a interdependência dos diversos tipos de sentido (tradicional, genético, exemplar, crítico), com a prevalência do sentido tradicional e sob influxo transversal do sentido crítico. A terceira versão da matriz compõe, pois, as três perspectivas de abordagem adotadas por Rüsen: o pensamento histórico, a constituição de sentido histórico e a produção técnica da narrativa historiográfica.

A matriz disciplinar foi originalmente inspirada pela discussão de Thomas S. Kuhn acerca da cristalização de paradigmas (teóricos e metódicos) nas ciências naturais, e eventualmente quanto a sua dogmatização. Rüsen repensou a ideia de Kuhn desde a perspectiva da História como experiência humana e como ciência. pensamento histórico do historicismo à história como ciência social.[7]

Para o pensamento histórico em geral, como para o pensamento historiográfico em particular, Rüsen considera que o ponto analítico inicial da matriz se situa numa angústia existencial elementar, por ele chamada de carência de orientação. Vista como uma constante antropológica – que ecoa o binômio categorial consagrado por Koselleck: espaço de experiência e horizonte de expectativa – a carência de orientação motiva o indivíduo, suscita interesse, impulsiona a pergunta histórica.[8] Pode-se dizer que o modo de perguntar e o modo de responder, do pensamento histórico em geral e do pensamento histórico em sua forma especializada na historiografia, diferem apenas em grau. Neste, o controle metódico e o rigor analítico prevalecem. Naquele, vibra a espontaneidade das inquietações e das ansiedades, tão marcantes no pensamento de Paul Ricoeur.[9]

A finalidade do pensamento histórico é responder à pergunta histórica de modo consistente e controlável. Isso se aplica, obviamente, também ao discurso ‘técnico’ da historiografia. Assim, a linguagem (em todos os seus formatos, discursivos ou não) é meio para o fim. A narrativa instituidora de sentido não cria ou inventa o sentido.

A vantagem teórica da matriz proposta por Rüsen é sua adaptabilidade funcional à diversidade temática da pesquisa histórica. Para o efeito multiplicador suposto pela concepção abrangente da matriz do pensamento histórico de Rüsen, a estratégia da educação histórica no espaço público é fundamental. Com efeito, a afirmação do fato antropológico da orientação no tempo e no espaço requer que todo agente racional humano historicize sua existência e sua referência no mundo. Nesse processo – um moto perpétuo, pode-se dizer – a educação funciona tanto ‘informalmente’, como construção de sentido e de consciência histórica, quanto ‘formalmente’, como mediação cognitiva e instrumental no sistema escolar.

As contribuições deste dossiê dão também alguns indicadores da interlocução de Rüsen com os campos epistemológico (Luiz Sérgio Duarte, Arthur Assis, André Gustavo Araújo, Martin Wiklund) e educacional (Barca, Schmidt) no Brasil e em Portugal.

Notas

1. Begriffene Geschichte. Genesis und Begründung der Geschichtstheorie Johann Gustav Droysens. Paderborn: Schöningh 1969

2. A primeira versão da teoria de Rüsen foi publicada na famosa trilogia: Razão Histórica, Reconstrução do Passado e História Viva, publicada pela Editora da Universidade de Brasília (I: 2001; II e III: 2007). Os originais alemães foram publicados em 1983, 1986 e 1989, respectivamente.

3. Pormenores da vida e da obra do autor em sua página na rede: http: / / www.joern-ruesen.de /

4. Werner Reimers (1888-1965), industrial alemão, criou a fundação que leva seu nome em 1963, com o objetivo de fomentar as ciências humanas, e a dotou com a totalidade de seu legado financeiro: http: / / www.reimers-stiftung.de

5. Ver Estevão de Rezende Martins. As matrizes do pensamento histórico em Jörn Rüsen. Em M. A. Schmidt / E. de R. Martins (orgs). Jörn Rüsen. Contribuições para uma Teoria da Didática da História. Curitiba: W. A. Editores, 2016, p. 100-110.

6. Ver Estevão de Rezende Martins (org.). A História pensada. Teoria e método na historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Contexto 2010.

7. Ver Friedrich Jaeger / Jörn Rüsen. Geschichte des Historismus. Munique: C. H. Beck, 1992. Estevão de Rezende Martins. Historicismo: o útil e o desagradável, em Flávia F. Varella; Helena M. Mollo; Sérgio R. da Mata; Valdei L. de Araujo. (orgs.). A dinâmica do Historicismo. Revisitando a historiografia moderna. Belo Horizonte: Fino Traço (Argumentum), 2008, p. 15-48.

8. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto / PUC-Rio, 2006, cap. 14. (Ed. orig. alemã: 1965).

9. Ver Paul Ricoeur. Vraie et fausse angoisse, em Raymond de Saussure, Paul Ricoeur, Mircea Eliade, Robert Schuman, Guido Calogero, François Mauriac: L’angoisse du temps présent et les devoirs de l’esprit. Genebra: Rencontres Internationales de Genève, vol. VIII (1953), p. 33-53 (Neuchâtel: Éditions de la Beconnière). Em 1998, Ricoeur, 45 anos depois do encontro em Genebra, participou de um intenso debate sobre a questão da ansiedade / angústia na decifração do enigma do passado, no Instituto de Altos Estudos em Humanidades, a convite de Rüsen, seu presidente. Ver Paul Ricoeur. Das Rätsel der Vergangenheit. Erinnern – Vergessen – Verzeihen. Göttingen: Wallstein, 1998.

Estevão de Rezende Martins – Professor titular de Teoria da História e História Contemporânea Departamento de História / Instituto de Relações Internacionais – Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

MARTINS, Estevão de Rezende. Apresentação. Intelligere – Revista de História Intelectual, v. 3. São Paulo, n. 2, 2017. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura: ficção e verdade (II) / Intelligere – Revista de História Intelectual / 2017

Nesta edição de Intelligere temos o prazer de apresentar a segunda e última parte do dossiê “História e literatura: ficção e verdade”, dando continuidade aos debates que abrimos no número anterior sobre as múltiplas e instigantes relações entre a história e o universo ficcional.

A segunda parte do dossiê é composta por cinco artigos e um texto da seção “Pesquisa”. Maria Antonieta Jordão de Oliveira Borba parte de autores como Michel Foucault, Jacques Derrida e Silviano Santiago para pensar o problema da colonização brasileira e a questão das identidades nacionais na América latina. Margareth dos Santos propõe uma leitura da poética de Ángel González sobre a Espanha durante a ditadura de Franco, mostrando como essa literatura é um ponto de referência para se compreender a experiência sombria do franquismo. Rogério de Almeida e Fábio Takao Masuda tratam das relações entre ficção e história por meio da literatura de Clarice Lispector, explicitando como aspectos da realidade social brasileira aparecem como partes constitutivas dos dramas íntimos de seus personagens. Camila Rodrigues explora os manuscritos de Guimarães Rosa, nos quais encontra questionamentos acerca do devir histórico, mostrando o quão fecunda é a proposta de Carlo Ginzburg para a análise das obras literárias. Flávia Maria Corradin apresenta um estudo sobre as obras de Vasco Pereira da Costa e Rosa Lobato de Faria, dois autores portugueses contemporâneos, para apontar a força das relações entre história, mito e literatura. Na seção “Pesquisa”, Michelly Cristina da Silva compara dois livros de Ricardo Piglia para explorar o tema do relato policial e sua narrativa.

A segunda parte do dossiê “História e Literatura” aparece apenas poucos dias após o anúncio da morte do escritor argentino Ricardo Piglia, que foi tema de dois artigos aqui publicados. Manifestamos nosso reconhecimento à sua obra e legado.

“A história é o lugar em que se vê que as coisas podem mudar e se transformar. Nos momentos em que parece que nada muda, que tudo está enclausurado e que o pesadelo do presente parece eterno, a história (…) prova que houve outras situações iguais, enclausuradas, nas quais se terminou por encontrar uma saída. Os rastros do futuro estão no passado, o fluir manso da água da história gasta as pedras mais duras.”

Ricardo Piglia, Crítica y ficción

Júlio Pimentel Pinto (USP),

Francine Iegelski (UFF),

Stefania Chiarelli (UFF).

Os coordenadores do dossiê


PINTO, Julio Pimentel; IEGELSKI, Francine; CHIARELLI, Stefania. Apresentação. Intelligere – Revista de História Intelectual. São Paulo, v. 3, n. 1, 2017. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura: ficção e verdade (I) / Intelligere – Revista de História Intelectual / 2016

“O que me interessa não é tanto a relação do texto com a sociedade, é a transformação da sociedade em texto.” [1]

Faz décadas que críticos literários, historiadores, antropólogos, filósofos e sociólogos participam, juntos, do debate interdisciplinar sobre as relações entre história e ficção. Essa discussão assumiu diversas formas: sondou as aproximações da história com a(s) verdade(s); explorou as textualizações da vida social; refletiu sobre mecanismos de construção e invenção de contextos; reconheceu diferenças e semelhanças nos procedimentos narrativos; percebeu a contaminação que todo diálogo implica; reiterou a autonomia conceitual e estética das representações ficcionais e historiográficas.

Intelligere propõe-se a contribuir para esse debate: neste número e no próximo – dois dossiês – a revista apresenta textos que percorrem obras ficcionais e historiográficas, que partilham a inquietação, a angústia e o fascínio de contrastar perspectivas diferentes, perceber como elas se encontram e divergem, do mesmo modo que se constroem reciprocamente.

O primeiro dossiê é composto por sete textos e uma entrevista. Na entrevista (inédita), o escritor Milton Hatoum discute aspectos da construção literária, seus vínculos com a memória e a história e o lugar da ficção no mundo, seus esforços e compromissos. Júlio Pimentel Pinto reflete sobre os signos da arte e o trabalho da memória num romance de Milton Hatoum. Francine Iegelski interpreta as diversas faces do tempo, particularmente a trágica e a melancólica, a partir da literatura de Raduan Nassar e de Milton Hatoum. Stefania Chiarelli propõe uma visão da presença dos emigrantes em determinadas obras da literatura brasileira, percebendo como estas narrativas contribuem para promover um ponto de vista específico sobre o próprio conceito de nação. Ingrid Robyn analisa barroquismo e maravilha na obra do cubano Alejo Carpentier e do brasileiro Euclides da Cunha. Alberto Schneider apresenta um estudo sobre as polêmicas entre Silvio Romero e Machado de Assis, lançando luz sobre o ambiente intelectual brasileiro do fim do século XIX. Daniel Puglia e Débora Reis Tavares tratam de textos de George Orwell que estabelecem nexos entre história, socialismo e literatura no entre-guerras. Eduardo Ferraz Felippe explora as relações entre futuro, experiência e sentido na obra do argentino Ricardo Piglia.

No próximo número, a discussão continua. Inclusive porque Intelligere sabe que ela é longa, necessária e prazerosamente infinita.

Nota

1. Antonio Candido. Entrevista 30 / 09 / 1996. In: Luiz Carlos Jackson. A tradição esquecida: Os parceiros do rio Bonito e a Sociologia de Antonio Candido. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2002. p. 170.

Julio Pimentel Pinto (USP)

Francine Iegelski (UFF)

Stefania Chiarelli (UFF)

Comitê organizador


PINTO, Julio Pimentel; IEGELSKI, Francine; CHIARELLI, Stefania. Apresentação. Intelligere – Revista de História Intelectual. São Paulo, v. 2, n. 2, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Georges Canguilhem, a história e os historiadores / Intelligere – Revista de História Intelectual / 2016

“A obra do filósofo e médico Georges Canguilhem experimenta atualmente um extraordinário revival, que se produz tanto em escala nacional francesa quanto internacional, e com um alcance interdisciplinar, envolvendo as mais diferentes áreas. Essa ascensão do interesse pela obra de Canguilhem teve início antes de seu falecimento, e continua se manifestando através da multiplicação de colóquios sobre seu pensamento, publicações em forma de livros e revistas, traduções de seus escritos para diversos idiomas, além da organização de centros de investigação e de documentação que levam o seu nome.” [1]

Essa avaliação feita por Francisco Vázquez García tem se provado verdadeira também para o Brasil. O interesse renovado pelos textos de Georges Canguilhem (1904 – 1995), motivado pela descoberta de escritos inéditos e pela publicação das suas obras completas na França, também é verificado entre os pesquisadores brasileiros, fato que medimos pelo aumento de pesquisas de pós-graduação, livros, artigos e eventos dedicados ao seu pensamento [2]. É verdade que, graças a autores como Sérgio Arouca, Cecília Donnangelo e Ricardo Bruno Mendes Gonçalves, O normal e o patológico conhece uma prestigiosa reputação no Brasil desde os anos 70. Mas foi apenas nos últimos anos que vimos serem traduzidos os livros O conhecimento da vida e Estudos de história e de filosofia das ciências concernentes aos vivos e à vida, que apresentaram a um público mais amplo no Brasil as contribuições inovadoras de Canguilhem para a teoria e a prática da história do pensamento médico e biológico.

Pacifista engajado na juventude, a vida adulta fez de Canguilhem um combatente: membro do Comitê de Vigilância dos Intelectuais Antifascistas, Médico Tenente e Chefe do Estado-Maior político da Resistência Francesa durante a ocupação nazista. Combateu, também, pela história das ciências. Em 1983, recebeu a “Medalha George Sarton”, a mais prestigiosa honraria da área de história das ciências, concedida pela History of Science Society em reconhecimento “a uma vida de conquistas acadêmicas”. Essas conquistas estão concentradas no período entre 1955 e 1971, quando lecionou história e filosofia das ciências na Sorbonne, dirigiu o Institut d’histoire des sciences et des techniques e publicou seus textos mais conhecidos. Mas a abertura dos arquivos pessoais e de trabalho de Canguilhem, preservados no Centre d’Archives en Philosophie, Histoire et Édition des Sciences (CAPHÉS), revelou aos pesquisadores novos aspectos do seu pensamento e do seu diálogo com os historiadores.

Fomos apresentados ao “Canguilhem avant Canguilhem”, expressão de Jean-François Braunstein, já de uso corrente entre os comentadores que se dedicam aos textos produzidos entre 1926 e 1939, a partir dos quais é possível detectar o interesse precoce de Canguilhem pelos trabalhos dos historiadores de ofício. O rastreamento das leituras de Canguilhem nesse período e, principalmente, da utilização dos textos de historiadores em seus cursos de filosofia já na década de 30, permitiu que entendêssemos melhor a importância dos fundadores da revista dos Annales, dos historiadores agrupados em torno do Centre de Synthèse e dos historiadores das ideias para o desenvolvimento de uma técnica original de investigação histórica das ciências da vida e da medicina que começa a ser posta em prática já no Essai sur quelques problèmes concernant le normal et le pathologique, tese de doutorado em medicina publicada em 1943.

A compreensão renovada da problemática histórica na obra de Canguilhem também permitiu uma reavaliação dos seus débitos com a epistemologia de Gaston Bachelard, e, aparente paradoxo, fez crescer o interesse pela epistemologia histórica, hoje entendida cada vez menos como uma filosofia nacional francesa, e mais como um processo de historicização da epistemologia que repercutiu em diferentes pontos da Europa. Daí ser possível identificar, por meio de uma história intelectual comparada, um “ar de família” entre Canguilhem e o polonês Ludwik Fleck. Leituras menos preocupadas em enquadrar Canguilhem nos limites de uma suposta “escola francesa” passaram a destacar a importância de temas como a circulação das ideias, as continuidades e descontinuidades entre conceitos e mitos ou as relações entre ciência e ideologia para a concretização do seu projeto de historicização das ciências.

Pouco mais de vinte anos após a morte de Canguilhem, sua ausência é profundamente sentida por todos aqueles que ele ajudou a formar, direta ou indiretamente, através das suas lições ou dos seus livros. Não causa espanto que, diante dos problemas atualmente postos ao conhecimento da vida e da saúde, ao pensamento e à prática médica, à teoria e à prática da história das ciências da vida e da medicina, os pesquisadores continuem retornando à obra de Canguilhem em busca de respostas ou de pistas até elas. Os textos apresentados nesse dossiê são manifestações de reconhecimento da vitalidade de um pensamento que, mesmo interrompido há décadas, segue se provando original.

Notas

1. Francisco Vásquez García. “Redescubriendo a un filósofo híbrido: Georges Canguilhem”. In: Asclepio. Revista de Historia de la Medecina y de la Ciencia. 66 (2), julho-dezembro 2014.

2. O próprio Grupo de Pesquisa em História Intelectual organizou, em setembro de 2015, o colóquio “Canguilhem, a história e os historiadores” e, em abril de 2016, a mesa-redonda “Os objetos da história das ciências”, também dedicada ao pensamento de Canguilhem. Esses eventos contaram com o apoio do Departamento de História, do Laboratório de Teoria da História e Historiografia (LabTeo) e do Centro Interunidade de História da Ciência da USP.

Tiago Santos Almeida – Doutorando em História Social na Universidade de São Paulo Grupo de Pesquisa em História Intelectual (Departamento de História – USP) EXeCO – Expérience et connaissance (Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne)

Comitê organizador:

Tiago Santos Almeida (USP)

Marcos Camolezi (USP / Université Paris 1)

Iván Moya-Diez (Université Paris 1)

Matteo Vagelli (Université Paris 1)


ALMEIDA, Tiago Santos. Apresentação. Intelligere – Revista de História Intelectual. São Paulo, v. 2, n. 1, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Intelligere | USP | 2016

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Intelligere (São Paulo, 2016-), Revista de História Intelectual é um periódico científico semestral, eletrônico, trilingue (português, espanhol, inglês) dedicado aos estudos de História Intelectual e História das Ideias.

Intelligere publica artigos originais, entrevistas, resenhas de livros, notícias de pesquisa em andamento, traduções e fontes documentais relevantes para a história intelectual.

Periodicidade semestral.

Acesso livre

ISSN 2447-9020 (Online)

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