Historiografia e Ensino de História | Revista Territórios & Fronteiras | 2021

A produção de um conjunto de trabalhos que tome as relações entre historiografia e ensino de História como objeto de análise insere-se na tradição da produção bibliográfica acerca do ensino de História que tem envolvido, principalmente, os debates e reflexões que vêm sendo produzidos por historiadores e professores no âmbito de instituições de pesquisa e ensino, ou como partícipes de debates em torno de programas ou políticas educacionais. Ademais, envolve também um conhecimento historicamente produzido, resultante de projetos e propostas de investigações, experiências e práticas concretas. Do ponto de vista do arcabouço teórico os trabalhos sugerem a opção e adesão aos fundamentos teóricos e filosóficos da ciência da História como referenciais para reflexões, investigações e debates. Esta opção e adesão tem caracterizado, de maneira específica, a qualidade e a especificidade para um recorte diferenciado da produção no âmbito do Ensino de História. Uma das principais contribuições a este debate tem sido o princípio indicado pelo historiador Jörn Rüsen acerca da Didática da História como ciência da aprendizagem histórica, porqueela produz de modo científico (especializado) o conhecimento necessário e próprio à história, quando se necessita compreender os processos de aprendizagem e lidar com eles de modo competente. Ou, todo conhecimento acerca do que seja a aprendizagem histórica requer o conhecimento do que seja história, daquilo em que consiste a especificidade do pensamento histórico e da forma científica moderna em que se expressa. No cerne da questão está a capacidade de pensar historicamente, a ser desenvolvida nos processos de educação e formação. Leia Mais

Amado Luiz Cervo / Intelligere – Revista de História Intelectual / 2020

Exegi monumentum aere perennius

Horácio, Odes, L. III, 39, v .1

Amado Luiz Cervo completa 80 anos em 2021. Não é apenas a data jubilar que motiva a elaboração do dossiê em sua homenagem. Com efeito, sua vida e sua obra elevaram um monumento mais duradouro do que o bronze para a história das Relações Internacionais.

A atuação de Amado Cervo nesse campo é ímpar e deixou marca profunda e indelével, tanto na constituição da área, como em sua consolidação, inovação e ampla disseminação pelo país afora, com múltiplas conexões internacionais com o que há de melhor e mais avançado na pesquisa.

Ao longo de cerca cinquenta anos Amado Cervo tornou-se referência incontornável na pesquisa e no ensino de Relações Internacionais, emprestando seu brilho à historiografia da intrincada rede de relações entre os estados e as sociedades no mundo, desde o final do século 18 até nossos dias. Brasil, Argentina, Chile, França, Itália, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Espanha, Portugal… tantos cenários de intenso intercâmbio e produtiva cooperação.

Alguns de seus amigos e colegas decidimos prestar-lhe homenagem na forma que reflita seu impacto no campo da História da Relações Internacionais. Aquilo que se refere a sua obra, a sua atividade formadora de profissionais na área, a seu magistério em espectro de largo alcance.

Amado Cervo iniciou sua carreira universitária na Universidade de Passo Fundo (Rio Grande do Sul) e foi professor na Universidade de Brasília de 1976 a 2003, quando se aposentou, mantendo ainda por vários anos estreita colaboração científica com o Instituto de Relações Internacionais, de que foi um dos iniciadores.

Renomado e respeitado especialista, emprestou seu saber e seu fazer também à formação de gerações de diplomatas, como professor no Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty). Por décadas pesquisador do CNPq, chegou à categoria de pesquisador sênior.

O presente dossiê reúne quatorze contribuições, de amigos e colegas que decidiram exprimir, em nome de muitos outros e muitas outras – nem todos puderam – com textos de apreciação e análise, a admiração pessoal e o apreço profissional que têm pelo mestre e amigo, colocando em relevo aspectos de seu pensamento e de sua ascendência sobre área.

Dividido em quatro partes, o dossiê aborda a inserção profissional, a formação intelectual e a origem familiar de Amado Cervo (I); seu impacto e influência nos estudos de história das Relações Internacionais e de Política Externa Brasileira, incluída sua inovação teórica e a discussão das “escolas de pensamento” dominantes; sua exemplaridade na prática do ensino de história das Relações Internacionais (III) e alguns casos ilustrativos da temática histórica em Relações Internacionais (IV).

Na primeira parte, Paulo Roberto de Almeida (Itamaraty), Raúl Bernal-Meza (Buenos Aires) e Denis Rolland (Estrasburgo) descrevem, situam e analisam a formação pessoal, a produção intelectual e a influência de Amado Cervo entre Brasil, França e América Latina. O balanço é rico e coloca em relevo como a reflexão de Amado Cervo amadureceu e evoluiu ao longo de lento, gradual e seguro processo crítico de pesquisa e de elaboração teórica dos conceitos diretores da historiografia brasileira de Relações Internacionais.

Em seguida, Paulo Visentini (UFRGS), Eiiti Sato (UnB), Tullo Vigevani com André Campos (Unesp), Adilson Franceschini (USP), Alexandre Moreli (USP) com Carlo Patti (UFG) e Raquel Patrício (Lisboa), analisam e discutem a concepção de Relações Internacionais de Amado Cervo em perspectiva histórica e em diálogo com as escolas francesa, italiana e inglesa. Percebese o itinerário de originalidade e independência crítica de Amado Cervo com relação a suas fontes e a pertinência de suas análises, em particular com relação às políticas externas do Brasil e a sua inserção no contexto latino-americano.

Na terceira parte, Thiago Galvão (UnB) e Günther Mros (UFSM) apresentam reflexões sobre como se deu a constituição do campo de ensino de História das Relações Internacionais no Brasil, o papel de Amado Cervo ao longo de décadas e os desafios que tal mister hoje põe.

Por fim, três estudos especializados de temas relevantes de filosofia da História (Nelson Gomes, UnB) e de história das Relações Internacionais (Wolfgang Döpcke e Estevão Martins, UnB) apresentam tópicos especializados que frequentam os debates contemporâneos.


MARTINS, Estevão de Rezende. Apresentação. Intelligere – Revista de História Intelectual. São Paulo, n. 10, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Sentido e relevância da História no mundo contemporâneo / Intelligere – Revista de História Intelectual / 2017

Jörn Rüsen: um humanista para o século 21

A teoria e a filosofia da História, desde os anos 1970, tem na atuação profissional e na vasta obra de Jörn Rüsen uma contribuição sistemática de raro valor e de reconhecida importância.

Dentre os muitos autores que se destacam no cenário internacional da historiografia contemporânea, como Reinhardt Koselleck, Georg G. Iggers, Hayden White, Frank Ankersmit. François Hartog, François Dosse, Edoardo Tortarolo, Chris Lorenz, Ewa Domanska, Allan Megill, Michael Bentley, e tantos outros mais, pode-se dizer que Jörn Rüsen é aquele que enunciou a mais completa sistematização teórico-metodológica do pensamento histórico em sua versão científica mais promissora. Sua teoria, reformulada e ajustada, está reapresentada no livro de 2013, Historik (Colônia: Böhlau), que retoma o termo cunhado por Droysen no século 19. Rüsen dedica-se ao tema da teoria da História desde sua tese de doutorado, justamente sobre Droysen, defendida na Universidade de Colônia em 1966.[1] Dessa obra fundamental a Editora da Universidade Federal do Paraná publicou a tradução para o português, feita por mim e revista por Arthur Assis, em 2015 (Teoria da História. Uma teoria da história como ciência. Curitiba: Editora da UFPR, 2015).[2]

O pensamento de Rüsen, elaborado no curso de sua longa carreira nas universidades de Braunschweig, Berlim, Bochum, Bielefeld e Witten-Herdecke, beneficiou-se também da profícua experiência de diálogo e cooperação interdisciplinar e internacional proporcionada pelos dez anos em que exerceu a presidência do Instituto de Altos Estudos de Humanidades, do Estado da Renânia do Norte-Vestfália, na Alemanha (1997-2007).[3]

Intelligere reúne no presente dossiê contribuições de pesquisadores versados nas áreas de influência de Rüsen no campo da teoria, da filosofia e da história da historiografia, com suas aplicações e desdobramentos na ampla e complexa área do ensino de História e da educação histórica. Leitores e críticos de Rüsen, no melhor dos sentidos possíveis, espalham-se pelo mundo afora, e seu pensamento ecoa não apenas na Alemanha, mas igualmente na Inglaterra, em Portugal, na Espanha, na África do Sul, no Brasil, no México, na China, na Índia.

A cultura humana é uma cultura histórica por excelência. Essa é uma das teses fundamentais do pensamento de Jörn Rüsen. Para explicar que seja assim, e como é assim, Rüsen elaborou – ao longo de décadas – uma teoria consistente da História como ciência, na qual a concepção de ‘matriz’ tem um papel central. Seu sentido e eventualmente sua ausência de sentido ou seu contrassenso são temas recorrentes da reflexão do autor. O horizonte de referência que emoldura o esforço sistematizador da teoria da História de Rüsen é em ampla medida filosófico, e tem como fundamento uma concepção avançada do humanismo, cuja espinha dorsal são os direitos humanos. O ser humano – agente e paciente – como sujeito histórico, a partir do qual, em torno ao qual e em função do qual se organiza e desenvolve o pensamento histórico – espontâneo e científico – é a peça mestra da arquitetura do pensamento rüseniano. Após a publicação da Historik em 2013, que inclui um capítulo específico com o programa de sua filosofia da História, Rüsen anunciou, na homenagem que lhe prestou a Universidade de Colônia em 2016, preparar uma monografia dedicada a sua filosofia. Rüsen a considera como a pedra de toque do seu sistema. No presente dossiê, o texto de Oliver Kozlarek (México) aponta elementos substantivos do humanismo filosófico, como entendido por Rüsen.

A preocupação principal de Rüsen, no final dos anos 1970 e ao longo da década de 1980, foi contribuir argumentadamente para a sustentabilidade científica da História. Não esteve sozinho nesse mister, pois um grande projeto de teoria da História foi desenvolvido com o apoio financeiro da Fundação Werner Reimers [4] (1973-1989) e levou à publicação de seis volumes que marcaram época, entre 1977 e 1990, com contribuições notáveis de autores como R. Koselleck, Christian Meier, Wolfgang J. Mommsen, Thomas Nipperdey, Lutz Niethammer, Winfried Schulze, Karl Acham, Karl-Georg Faber, Georg G. Iggers, Jürgen Kocka.

A primeira finalidade da elaboração teórica foi, pois, a fundamentação da História como ciência, cuja matriz é, assim, disciplinar.[5] Ou seja: a matriz sistematiza as características que Rüsen entende serem distintivas de três elementos essenciais da História como disciplina científica. O primeiro elemento é a origem sociocultural de todo e qualquer tema que se torne objeto do interesse e da investigação histórica. O segundo elemento é a metodização da pesquisa e sua controlabilidade profissional (com três componentes: as categorias de enquadramento teórico, as regras do método e as formas de apresentar o resultado). O terceiro elemento refere-se à reinserção sociocultural do tema, uma vez sintetizado na narrativa historiográfica. No todo, o esquema matricial comporta então cinco componentes, distribuídos em dois hemisférios – o da vida prática de todos os dias, e o da prática da disciplina cientifica.

O fundamento da reflexão da matriz disciplinar, como indica o adjetivo, é a reflexão sobre as condições de possibilidade da constituição da História como ciência, na fase de sua consolidação como disciplina acadêmica, de meados do século 19 até nossos dias.[6]

A segunda acepção da matriz é qualificada por Rüsen como matriz do pensamento histórico. Trata-se de uma extensão da amplitude da concepção de matriz, que vai assim além da produção historiográfica em sentido estrito e se aplica a toda e qualquer forma de reflexão historicizante referente à experiência do tempo. Nessa acepção, a matriz disciplinar seria uma forma derivada do pensamento histórico por efeito da metodização científica. As duas etapas do pensamento histórico constituem uma dimensão universal, entendida por Rüsen como uma constante antropológica. Ou seja: válida para qualquer agente racional humano.

Com a categoria ‘constituição histórica de sentido‘ define-se a terceira forma da matriz, que Rüsen associa à tipologia da historiografia. Para o autor, a constituição história de sentido é uma função originária do pensamento histórico, cuja especialização desemboca, pelo caminho da investigação metódica, na narrativa historiográfica. Uma das características marcantes dessa terceira forma, que se consolidou ao longo da reflexão do autor, é a interdependência dos diversos tipos de sentido (tradicional, genético, exemplar, crítico), com a prevalência do sentido tradicional e sob influxo transversal do sentido crítico. A terceira versão da matriz compõe, pois, as três perspectivas de abordagem adotadas por Rüsen: o pensamento histórico, a constituição de sentido histórico e a produção técnica da narrativa historiográfica.

A matriz disciplinar foi originalmente inspirada pela discussão de Thomas S. Kuhn acerca da cristalização de paradigmas (teóricos e metódicos) nas ciências naturais, e eventualmente quanto a sua dogmatização. Rüsen repensou a ideia de Kuhn desde a perspectiva da História como experiência humana e como ciência. pensamento histórico do historicismo à história como ciência social.[7]

Para o pensamento histórico em geral, como para o pensamento historiográfico em particular, Rüsen considera que o ponto analítico inicial da matriz se situa numa angústia existencial elementar, por ele chamada de carência de orientação. Vista como uma constante antropológica – que ecoa o binômio categorial consagrado por Koselleck: espaço de experiência e horizonte de expectativa – a carência de orientação motiva o indivíduo, suscita interesse, impulsiona a pergunta histórica.[8] Pode-se dizer que o modo de perguntar e o modo de responder, do pensamento histórico em geral e do pensamento histórico em sua forma especializada na historiografia, diferem apenas em grau. Neste, o controle metódico e o rigor analítico prevalecem. Naquele, vibra a espontaneidade das inquietações e das ansiedades, tão marcantes no pensamento de Paul Ricoeur.[9]

A finalidade do pensamento histórico é responder à pergunta histórica de modo consistente e controlável. Isso se aplica, obviamente, também ao discurso ‘técnico’ da historiografia. Assim, a linguagem (em todos os seus formatos, discursivos ou não) é meio para o fim. A narrativa instituidora de sentido não cria ou inventa o sentido.

A vantagem teórica da matriz proposta por Rüsen é sua adaptabilidade funcional à diversidade temática da pesquisa histórica. Para o efeito multiplicador suposto pela concepção abrangente da matriz do pensamento histórico de Rüsen, a estratégia da educação histórica no espaço público é fundamental. Com efeito, a afirmação do fato antropológico da orientação no tempo e no espaço requer que todo agente racional humano historicize sua existência e sua referência no mundo. Nesse processo – um moto perpétuo, pode-se dizer – a educação funciona tanto ‘informalmente’, como construção de sentido e de consciência histórica, quanto ‘formalmente’, como mediação cognitiva e instrumental no sistema escolar.

As contribuições deste dossiê dão também alguns indicadores da interlocução de Rüsen com os campos epistemológico (Luiz Sérgio Duarte, Arthur Assis, André Gustavo Araújo, Martin Wiklund) e educacional (Barca, Schmidt) no Brasil e em Portugal.

Notas

1. Begriffene Geschichte. Genesis und Begründung der Geschichtstheorie Johann Gustav Droysens. Paderborn: Schöningh 1969

2. A primeira versão da teoria de Rüsen foi publicada na famosa trilogia: Razão Histórica, Reconstrução do Passado e História Viva, publicada pela Editora da Universidade de Brasília (I: 2001; II e III: 2007). Os originais alemães foram publicados em 1983, 1986 e 1989, respectivamente.

3. Pormenores da vida e da obra do autor em sua página na rede: http: / / www.joern-ruesen.de /

4. Werner Reimers (1888-1965), industrial alemão, criou a fundação que leva seu nome em 1963, com o objetivo de fomentar as ciências humanas, e a dotou com a totalidade de seu legado financeiro: http: / / www.reimers-stiftung.de

5. Ver Estevão de Rezende Martins. As matrizes do pensamento histórico em Jörn Rüsen. Em M. A. Schmidt / E. de R. Martins (orgs). Jörn Rüsen. Contribuições para uma Teoria da Didática da História. Curitiba: W. A. Editores, 2016, p. 100-110.

6. Ver Estevão de Rezende Martins (org.). A História pensada. Teoria e método na historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Contexto 2010.

7. Ver Friedrich Jaeger / Jörn Rüsen. Geschichte des Historismus. Munique: C. H. Beck, 1992. Estevão de Rezende Martins. Historicismo: o útil e o desagradável, em Flávia F. Varella; Helena M. Mollo; Sérgio R. da Mata; Valdei L. de Araujo. (orgs.). A dinâmica do Historicismo. Revisitando a historiografia moderna. Belo Horizonte: Fino Traço (Argumentum), 2008, p. 15-48.

8. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto / PUC-Rio, 2006, cap. 14. (Ed. orig. alemã: 1965).

9. Ver Paul Ricoeur. Vraie et fausse angoisse, em Raymond de Saussure, Paul Ricoeur, Mircea Eliade, Robert Schuman, Guido Calogero, François Mauriac: L’angoisse du temps présent et les devoirs de l’esprit. Genebra: Rencontres Internationales de Genève, vol. VIII (1953), p. 33-53 (Neuchâtel: Éditions de la Beconnière). Em 1998, Ricoeur, 45 anos depois do encontro em Genebra, participou de um intenso debate sobre a questão da ansiedade / angústia na decifração do enigma do passado, no Instituto de Altos Estudos em Humanidades, a convite de Rüsen, seu presidente. Ver Paul Ricoeur. Das Rätsel der Vergangenheit. Erinnern – Vergessen – Verzeihen. Göttingen: Wallstein, 1998.

Estevão de Rezende Martins – Professor titular de Teoria da História e História Contemporânea Departamento de História / Instituto de Relações Internacionais – Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

MARTINS, Estevão de Rezende. Apresentação. Intelligere – Revista de História Intelectual, v. 3. São Paulo, n. 2, 2017. Acessar publicação original [DR]

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