História e Gênero na América Latina: problemas, possibilidades e desafios interpretativos (séculos XIX e XX) | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2021

Nos últimos anos, a América Latina foi atravessada por uma nova “onda” feminista que reanimou tanto antigas pautas do movimento como experiências novas. Em 2015, teve início a marcha Ni una a Menos, coordenada pelo coletivo feminista argentino de mesmo nome, trazendo para a cena pública as denúncias sobre as várias faces da violência de gênero, entre elas o feminicídio. Dois anos depois, as feministas convocaram uma greve geral com um programa que visava denunciar a precarização das relações de trabalho, a falta de reconhecimento das tarefas domésticas e do cuidado materno, as longas jornadas de trabalho, o desemprego e o crescente endividamento. Toda essa efervescência foi marcada por iniciativas legislativas e intervenções que ocuparam espaços públicos, constituindo uma experiência massiva e heterogênea que conectou as ruas com a academia e os centros de pesquisa. Tais ações resultaram em uma série de protestos e marchas que se estenderam por cidades do Brasil, Chile, México, Peru e Uruguai. Em 2018, acompanhamos os pañuelos verdes, utilizados pelas ativistas argentinas em uma clara referência às Madres de Mayo, que se tornaram símbolo da luta pelos direitos reprodutivos na América Latina. No Chile, em outubro de 2019, irrompeu uma série de ações organizadas por diferentes movimentos sociais, como estudantes, idosos, trabalhadores, etc., contra as ações do presidente Sebastián Piñera, expondo, ainda, os efeitos do neoliberalismo no país. Adotado durante o regime militar de Augusto Pinochet, o modelo econômico diminuiu a responsabilidade do Estado em assuntos essenciais como saúde, educação, saúde e previdência social. As mulheres foram peças fundamentais nas ações ocorridas no país e, em novembro, organizaram a performance “Un violador en tu camino”, que incluía canção com letra que denuncia a conivência de vários setores da sociedade, sobretudo do Estado, para com a perpetuação da violência sexual contra as mulheres. A performance ecoou em vários países da América Latina, Europa e Ásia e diversas mulheres foram às ruas, com vendas nos olhos, denunciar a violência de gênero em seus países3 . Leia Mais

Sanitarismo e Interpretações do Brasil / História Ciências Saúde — Manguinhos / 2009

Em 2009 comemora-se o centenário de uma das grandes realizações da ciência brasileira: a descoberta, por Carlos Chagas (1878-1934), jovem pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, da doença que leva seu nome.

A tripanossomíase americana atinge, atualmente, cerca de 12 milhões de pessoas na América Latina e integra o grupo das chamadas ‘doenças tropicais negligenciadas’, intimamente relacionadas à pobreza neste continente. Apesar dos notáveis avanços na compreensão científica da doença, e nas ações voltadas a combatê-la, muito há ainda por fazer, alertam os especialistas, os governos dos países afetados e as agências internacionais.

Como em outros momentos comemorativos, as atenções se voltam para a história, na expectativa de reconstituição dos fatos e de melhor celebrar a efeméride. A pesquisa histórica, entretanto, vai muito além da celebração, ao buscar respostas para perguntas fundamentais: como seu deu este ‘feito único’ da medicina nacional? Quais foram as circunstâncias sob as quais ele se viabilizou? Qual foi o seu impacto no Brasil e no exterior? Por que depois de tantos anos a doença permanece um problema importante de saúde pública? Os historiadores, municiados com os documentos de época e com as questões e metodologias próprias à disciplina, debruçam-se sobre o tema, em diálogo com os pesquisadores da área biomédica e de saúde.

O centenário desta descoberta traz à reflexão o longo caminho pelo qual a ciência brasileira – mais especificamente a ciência médica do início do século XX, impulsionada pelas ‘conquistas’ da microbiologia e da medicina tropical – instituiu-se como atividade social legítima, com espaços institucionais próprios, reconhecida pela sociedade como importante para identificar e solucionar os problemas da tão sonhada ‘civilização brasileira nos trópicos’.

A perspectiva de associar as reflexões sobre a descoberta de Carlos Chagas como emblema de uma ciência a serviço da saúde e da modernização levou-nos a situá-la, neste número comemorativo, no contexto histórico-social mais amplo que lhe deu sentido como fato histórico e símbolo nacional. Trata-se do debate sobre os ‘males’ deste país que, apesar da confiança no progresso materializado em sua capital da Belle Époque, constituía-se, em seus desconhecidos ‘sertões’, como um ‘imenso hospital’. A célebre expressão de Miguel Pereira, proferida em outubro de 1916, sintetizou discussão vigente no meio médico brasileiro desde a descoberta, no sertão mineiro de Lassance, de que ali grassava um importante ‘flagelo’ do interior do país. Essa discussão ecoaria por muitas décadas com a repercussão da campanha pelo saneamento rural.

O chamado movimento sanitarista da Primeira República constituiu um marco no processo de construção do Estado-Nação no Brasil. A produção historiográfica que o tomou como objeto contribuiu fortemente para a institucionalização da Casa de Oswaldo Cruz e do próprio campo de pesquisa em história da ciência e da saúde no Brasil. Tal produção vem sendo continuada, por meio de novas perspectivas de análise sobre a relação entre ciência, saúde e sociedade, em distintos momentos históricos.

Reunimos, neste número, textos que abordam a descoberta e as pesquisas sobre a doença de Chagas no Brasil e no exterior – alguns deles apresentados na mesa-redonda que a Casa de Oswaldo Cruz organizou (mediante comitê composto por Simone Kropf, Nara Azevedo, Nísia Trindade Lima e Magali Romero Sá) no âmbito do Simpósio Internacional do Centenário da Descoberta da Doença de Chagas (http: / / www.chagas2009.com.br), promovido pela Fiocruz – e trabalhos relacionados ao debate mais geral em torno das idéias e propostas para o saneamento do Brasil. Cabe lembrar que em 2009 também celebramos os 90 anos de importante reforma no aparato sanitário federal do país. Em dezembro de 1919 foi aprovada a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, do qual Chagas foi o primeiro diretor, numa forte evidência do entrecruzamento entre ciência, saúde e política. A metáfora do ‘imenso hospital’ produziu, e continuaria a produzir, não apenas imagens do país, mas ações, políticas e instituições.

Além de artigos escritos por historiadores, o número conta com textos de importantes médicos que atuaram na pesquisa sobre a doença de Chagas: o de Joffre Rezende, na seção artigos; e o depoimento de Francisco Laranja, concedido em 1986, e que integra o acervo de história oral da Casa de Oswaldo Cruz. Enriquecido pela análise de fontes iconográficas relacionadas aos temas da descoberta e do saneamento, o número traz ainda o documento-chave para a criação da imagem do Brasil como ‘imenso hospital’: o discurso de Miguel Pereira. Muito citado, mas pouco acessível aos leitores, esse texto está agora reproduzido na íntegra e analisado em seus múltiplos sentidos.

Convidamos o leitor a nos acompanhar nos caminhos desta história, que, por sua vez, nos leva não apenas a conhecer o passado, mas a refletir sobre os novos desafios e o muito que há por ser feito nos campos da ciência e da saúde.

Simone Petraglia Kropf

Dominichi Miranda de Sá


KROPF, Simone Petraglia; SÁ, Dominichi Miranda de. Cartas das editoras. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.16, supl.1, jul., 2009. Acessar publicação original  [DR]

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