Intolerâncias, preconceitos e racismos na Era Moderna: entre permanências e rupturas / Ofícios de Clio / 2019

No Brasil atual, o tempo inteiro somos bombardeados com notícias que chocam o nosso dia a dia. Algumas, em particular, embora chamem pouca atenção da população geral, são questões improteláveis no debate civil e apontam um problema crítico, que reflete a permanência da indiferença que os expedientes raciais tiveram na construção da sociedade brasileira na longa duração: os ataques às religiões de matriz africana. De acordo com um levantamento feito pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, as denúncias de violação ao direito de livre profissão dessa fé cresceram quase cinquenta por cento, se comparado ao ano de 2018. As queixas se referem principalmente a depredação dos locais de culto, invasões e incêndios criminosos. Ainda, o debate público, acirrado principalmente nas redes sociais, traz à tona o completo desconhecimento cultural da herança africana, colaborando com a manutenção de preconceitos e com o esvaziamento da luta pela igualdade de crenças. É sabido que nos termos jurídicos vigentes, a liberdade de credo é constitucionalmente assegurada, mas no campo empírico, observa-se uma contínua marginalização da cultura africana, afrontada constantemente pela violência física e simbólica de seus espaços. Com as instituições incapazes de responder na forma da lei para garantir a salvaguarda necessária para que as estatísticas mencionadas acima possam ser modificadas, também nos deparamos com a inaptidão da sociedade civil em aceitar em seu seio a liberdade religiosa e discutir a tolerância em todas as suas formas.

A questão da intolerância em âmbito político, social e cultural não é um problema recente. De fato, a intolerância em âmbito religioso é um forte marcador cultural da sociedade ocidental. Durante a Idade Média, as cruzadas buscavam combater o “infiel” muçulmano e retomar Jerusalém. Na Era Moderna, a intolerância – e também importantes contrapontos de tolerância – foram parte importante da conformação do imaginário e das ações políticas e práticas europeias. A retomada de Castela pelos reis católicos em 1482, e a consequente expulsão de mouros e judeus do território, marcou a guinada da fé como definidor dos expedientes das sociabilidades ibéricas, debutando bulas inquisitoriais para a uniformização religiosa das populações e repreendendo com grande ímpeto o “infiel”, pois o inimigo da fé era também inimigo do Estado. Ainda, a Igreja Católica respondia em Trento por outra parte da sua disputa de narrativa no palco europeu: para estancar a sangria da Reforma iniciada por Lutero, a Igreja decidiu acirrar a vigilância e deliberou ações pautadas na repressão, inclinada ao reforço da autoridade papal e anuindo o funcionamento dos tribunais de consciência em diversos territórios. No íntimo destas querelas, estavam judeus, muçulmanos e, mais tarde, cristãos-novos, grupos que cresceram em constante diáspora e eram colocados sob suspeição tanto em reinos católicos como protestantes. A prática de qualquer fé que não se enquadrasse nos termos de grande parte da cristandade europeia, poderia ser aditada como crime na esfera civil e religiosa.

Essa lógica permeada de intolerância, inclusive, foi a principal justificativa em âmbito moral para a expansão europeia, por vias atlânticas, à África. Nos escritos de Gomes Eanes de Zurara3 , “Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné”, datados de 1453, o autor elencou os cinco principais motivos que levaram o Infante D. Henrique a ir além do Bojador e alcançar a Guiné. Nos interessa, no âmbito deste texto, o terceiro, quarto e quinto motivo:

A terceira razão foi, porque se dizia, que o poderio dos Mouros daquela terra d’África, era muito maior do que se comumente pensava, e que não havia entre eles cristãos, nem outra alguma geração. E porque todo sisudo, por natural prudência, é constrangido a querer saber o poder de seu inimigo, trabalhou-se o dito senhor de o mandar saber, para determinadamente conhecer até onde chegava o poder daqueles infiéis. A quarta razão, porque, de 30 anos que havia que guerreava com os mouros, nunca achou rei cristão, nem senhor de fora desta terra, que por amor do nosso senhor Jesus Cristo o quisesse na dita guerra ajudar. Queria saber se achariam em aquelas partes alguns príncipes cristãos, em que a caridade e amor de Cristo fosse tão esforçada, que o quisessem ajudar contra aqueles inimigos da fé. A quinta razão, foi o grande desejo que havia de acrescentar a santa fé de nosso senhor Jesus Cristo, e trazer a ela todas as almas que se quisessem salvar, conhecendo que todo o mistério da encarnação, morte e paixão de nosso senhor Jesus Cristo, foi obrado a esta fim, por salvação das almas perdidas, as quais o dito senhor queria, por seus trabalhos e despesas, trazer ao verdadeiro caminho. (ZURARA, 1453, p. 45- 47)

Como se percebe, a injunção moral que a Coroa Portuguesa possuía para expandir até a África era o combate ao Islã. Além disso, o acréscimo a “santa fé de nosso Senhor Jesus Cristo” para a “salvação das almas pedidas” não se interessava exatamente pela liberdade dessas pessoas a serem salvas. A redução à escravidão tanto dos “infiéis” quanto “das almas que se quisessem salvar” não era um problema para os europeus.

O aspecto somático também advinha, no imaginário europeu, de um aspecto religioso. Como explícito em inúmeros relatos e crônicas de viagem, pensavam que as pessoas ao sul do Saara eram negras por serem amaldiçoadas, filhas de Cam. Ao longo dos séculos que se seguiram aos primeiros contatos no século XV, esse aspecto somático foi se tornando uma pseudociência, que justificava a inferioridade das pessoas negras perante as pessoas brancas. Baseado em preceitos de eugenia e de darwinismo social, no século XIX o Ocidente tencionou criar uma base “científica” de diferenças de raças humanas. Na humanidade, a raça não existe biologicamente, sendo algo criado socialmente. Essa criação social deu origem a intolerância racista.

A formação histórica brasileira tem relação intrínseca com o quadro apresentado. Para além de uma perseguição religiosa, devemos nos debruçar no significado da constituição social e política da nossa história, cravada em marcadores étnicos categóricos para a definição de sua estrutura, sensível – e inflexível – ao componente africano, relegado primeiramente às condições desumanas da escravidão moderna para depois amuralhar o espaço do afrodescendente, destituído das mais básicas concepções de cidadania e ainda segregado das definições de igualdade jurídica implantadas ao longo dos 120 anos após a abolição. Esses reflexos não podem ser deslindados apenas dentro do âmbito político, mas também social e econômico, que abdicaram do debate sobre o racismo e ignoraram os problemas estruturais em nome de uma percepção positiva da chamada democracia racial, pautada, a exemplo, nos escritos de Gilberto Freyre, e em uma narrativa romantizada das relações na escravidão brasileira. A omissão em amparar os setores que se tornaram vulneráveis postergaram a inserção social do negro na sociedade brasileira.

No campo teórico ocidental das ciências humanas, com implicações diretas na produção historiográfica, essa lógica intolerante e racista prevaleceu no início da Era Contemporânea. No final do século XIX e durante o século XX, existiram correntes que buscavam desnaturalizar essa lógica. Com mais força agora no século XXI, correntes que visam descolonizar o pensamento, como a História Decolonial e a História Pós-colonial buscam construir um pensamento pós-abissal (SANTOS, 2009), em um entendimento epistemológico não apenas a partir da contribuição ocidental ou europeia, mas também em uma perspectiva do chamado sul global.

Os artigos recebidos para esse dossiê retratam estes séculos de história de intolerância religiosa e racial até a construção das contranarrativas em direção a descolonização do pensamento.

O primeiro artigo, “A Tolerantia no século XIII: uma breve revisão bibliográfica sobre as Minorias na Península Ibérica”, de Léo Araújo Lacerda, procurou fazer uma extensa discussão bibliográfica sobre certa tolerância que é atribuída ao reinado de Alfonso X em Castela e Leão (1252-1284). O autor buscou fazer o debate com a historiografia em sua complexidade, pensando os aspectos que poderiam fazer pesar noções de tolerância e de intolerância religiosa entre católicos, sefarditas e mudéjares, concluindo que este momento já era de um relacionamento desigual, que remonta o cristianismo primitivo, mas que desembocou na conversão forçada ou expulsão de mudéjares e sefarditas em 1502.

O segundo artigo chama-se “Robert Johnson e o racismo em Mississipi nas décadas de 1910-1930 no documentário ‘O Diabo na Encruzilhada’”, de Letícia Ferreira Aguiar. O texto inicia com uma importante introdução em que a autora busca explicar os preceitos metodológicos em que procederá sua análise, como a forma de se analisar o documentário como fonte histórica e a noção de racismo. Partindo à análise, a autora discute a biografia de Robert Johnson, homem negro que cresceu em meio a violência da Ku Klux Klan em Mississipi entre 1910 e 1930. Procurou desmitificar Johnson, a partir do contexto sociopolítico da época e considerando que seu legado foi, de certa forma, deturpado pela mentalidade racista da época e entendendo, a partir do exemplo do bluesman, a contribuição da população negra a cultura estadunidense.

O terceiro artigo intitula-se “A representação dos negros na História do Brasil: narrativas de manuais didáticos na construção nacional e identitária brasileira”, de Cristina Ferreira de Assis. Neste trabalho a autora discute a representação dos negros nos manuais didáticos, partindo principalmente da análise dos manuais de autoria de João Ribeiro e Rocha Pombo. A autora faz interessantes considerações metodológicas sobre o uso de livros didáticos como fontes para a pesquisa histórica, percebendo como, no período em análise (1914-1925), as pressões sociais e conflitos políticos em questão tinham por intenção extirpar a presença dos negros na sociedade brasileira. Embora houvessem algumas diferenças nos manuais de João Ribeiro e Rocha Pombo, ambos negligenciam as heranças linguísticas e culturais do continente africano no Brasil.

Por fim, o quarto artigo é “Sobre a história que a história não conta: por contranarrativas epistemológicas”, de Carll Souza e Elisabeth Maria Oliveira dos Santos. Neste trabalho, os autores buscam entender como a subjetividade de mulheres negras são atravessadas por diversas formas de opressão, como o racismo e o sexismo. Para isso, analisam, em um trabalho fartamente referenciado, estudar o caso de três mulheres negras: a historiadora Beatriz Nascimento, a mãe Luísa Oliveira e a estudante Cláudia Maria. Discutem o apagamento histórico da negra na sociedade brasileira e o conceito de epistemícidio para entenderem os impactos da produção intelectual das três mulheres negras inseridas em espaços de produção e promoção de poder.

Neste momento político em que a intolerância religiosa, racial e de gênero alcançou o mais alto nível de representatividade no Governo Federal, a presidência da república, é imperativo aprofundar o debate sobre o seu perigo. Não param de crescer os números sobre a agressão psicológica e física contra as mulheres, sobre o genocídio do povo negro e periférico e, como dito, sobre a intransigência religiosa baseada no fundamentalismo, sobretudo, neopentecostal. Para combater ditas violências é necessário compreendê-las, destrinchar os seus motivos e os seus fundamentos ideológicos, entender os seus mecanismos discursivos e conhecer as suas formas de transmissão e disseminação. Apenas a partir da construção do conhecimento conseguiremos elaborar meios para fazer frente ao obscurantismo e aos discursos de ódio.

Nota

3. Português que foi, entre 1454 e 1475, o Guarda-mor da Torre do Tombo.

Referências

SANTOS, Boaventura Sousa. Para Além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. IN: SANTOS, Boaventura Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul Coimbra: Edições Almedina, 2009.

ZURARA, Gomes Eanes. Chronica do Descobrimento e Conquista da Guiné escrita por Mandado de El-Rei D. Affonso V. Paris: J. P. Aillaud, [1453] 1841.

Natália Ribeiro Martins – Doutoranda em história social da cultura pela UFMG.

Felipe Silveira de Oliveira Malacco – Doutorando em história social da cultura pela UFMG.


MARTINS, Natália Ribeiro; MALACCO, Felipe Silveira de Oliveira. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v.4, n. 6, jan./jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Religiosidades e Intolerâncias: reflexões e problemáticas do mundo Moderno à contemporaneidade / Escritas do Tempo / 2019

O recente filme do italiano Alberto Fasulo traz à tona um dos personagens que melhor retratam o problema da intolerância nos primórdios da Modernidade: Menocchio (Itália e Romênia/2018), reconstrói pela linguagem cinematográfica o drama do moleiro Domenico Scandella, que viveu na vila de Montereale, região das colinas do Friuli no século XVI, preso e processado duas vezes pela Inquisição por conta da sua visão de mundo e crenças vistas como ameaça à pureza da Igreja Católica. Sua história foi divulgada por Carlo Ginzburg no magistral O Queijo e os Vermes, de 1976. Menocchio, por sinal, não foi o único a ler a cosmogonia com outros olhos: no Brasil do Setecentos, em épocas de mineração, um certo Pedro Rates de Ranequim também criou sua visão de um catolicismo mestiço, em que os elementos sagrados eram identificados um pouco por todo o lado no trópico, a ponto de eleger a banana como verdadeiro fruto proibido, ao invés da maçã bíblica que teria, segundo o Gênesis, levado Adão e Eva e todos os seus descendentes à desventura eterna.

Da maçã aos nossos dias, as relações do homem com a fé nunca foram as mesmas: Deus já foi entendido e apresentado como uma figura vingativa, impositor de dogmas, que castigava seus filhos pelos mais variados motivos, ou, no caminho oposto, como o que é pleno de misericórdia, definição estrita do mais puro amor. As religiões imputaram sua visão de sagrado, de pecado, de salvação. Para as ciências das religiões, pontua Dix Steffen (2007, p. 27), por não ser possível identificarmos grupos religiosos essencialmente fechados, a saída do pesquisador consistiria em partir para a interdisciplinaridade e, assim, “tornar legíveis as actividades ou os actos religiosos”. Assim, a sociologia, antropologia e a linguística possibilitam a ampliação dos caminhos para os pesquisadores compreenderem a história religiosa e as suas complexidades (JULIA, 1976, p. 117).

Ainda hoje mata-se (supostamente) em nome de Deus. Em vários países, os interesses religiosos se fizeram e fazem presentes em governos, em políticas de saúde, em justificativa de violências. Guerras são travadas, atentados são reivindicados pela disposição em destruir o outro, entendido como aquele que não crê igual. O desfile da Estação Primeira de Mangueira no Carnaval do Rio de Janeiro em 2020 mostra como, para o bem e para o mal, o Divino, as Igrejas e a crenças estão no olho do furacão do mundo caótico em que vivemos, justificando violências ou pedindo paz. É o que mostra a Mangueira quando apresenta um Jesus da Gente, negro, indígena, mulher, pobre, e afirma, numa clara referência ao triste desvelar dos autoritarismos no Brasil de hoje, que “Não tem futuro sem partilha / Nem Messias de arma na mão”. Religião como justificativa para tudo aquilo que, no âmago, ela não prega, seja qual delas for.

Este dossiê que aqui se apresenta tem como objetivo refletir sobre as religiões e religiosidade desde a Época Moderna aos tempos em que vivemos hoje. Neste sentido, reunimos aqui trabalhos que discutem estes temas em diferentes espaços, temporalidades e sentidos, partindo da tolerância ou mesmo da intolerância como chaves de leitura e análise. A Escritas do Tempo ratifica seu interesse em ouvir múltiplas vozes no intuito de procurar entender, sob a lente da História, o papel que o mundo religioso exerce sobre os homens e mulheres, e sobre como esses indivíduos reagem às estruturas da fé que, aliás, também demarcam as relações de poder.

Diante das inquietações aqui sublinhadas, bem como da crescente problemática referente ao binômio tolerância/intolerância no campo das religiões e religiosidades, a Escritas do Tempo, através dos seus organizadores, apresenta ao público leitor os 10 (dez) artigos que compõem esse número, além de 2 (duas) entrevistas que dialogam diretamente com a proposta em questão.

A historiadora Ana Margarida Pereira apresenta uma importante reflexão sobre a atuação histórica da Igreja Católica, desde os primórdios do cristianismo, acerca da escravidão. Seu artigo intitulado “A escravidão na doutrina da Igreja: temas e questões em debate da Antiguidade à época moderna” defende a ideia de que as discussões teológicas e doutrinárias encabeçadas pelos representantes do catolicismo foram conciliadas aos interesses econômicos e políticos dos próprios religiosos e dos Estados Nacionais ao longo da modernidade. Assim, sem questionar profundamente a estrutura escravista, muitas das reflexões produzidas pelos tratadistas do período foram resultado dessa conciliação em prol de articular os interesses materiais com a prática espiritual e religiosa da Igreja.

Também interessado em analisar os discursos religiosos presentes na Época Moderna, o trabalho de Bento Machado Mota, cujo título é “O além dos que estão alémmar: o problema da salvação dos índios em Francisco Suárez”, parte do conceito de ignorância invencível para discutir sobre a problemática da salvação dos gentios. Para isso, o foco das suas análises consiste na teologia construída por Francisco Suárez, jesuíta e, segundo o autor, “o maior expoente do pensamento jesuítico do século XVII”. Inserido no contexto da contrarreforma, o pensamento de Suárez influenciou largamente nas políticas de conversão realizadas no Novo Mundo, principalmente entre os religiosos interessados em ampliar os limites desse conceito.

O artigo de Luzia Tonon da Silva, “Cristianização e Inquisição em Goa: a confessionalização portuguesa e católica no Estado da Índia no século XVI” também está direcionado, de certo modo, ao contexto normativo referente à conversão. Nesse caso, o foco da autora consiste em avaliar a problemática da conversão ao catolicismo vivenciada por homens e mulheres asiáticos no Estado da Índia. Para isso, foram analisadas as provisões e documentos oficiais produzidos pelo Santo Ofício estabelecido em Goa, de modo a mapear a atuação das autoridades nesse espaço.

Igualmente situada nos primeiros momentos da Época Moderna, a historiadora portuguesa Isabel Drumond Braga, com o artigo intitulado “Religiosidade, cultura material e arte: para o estudo dos ex-votos portugueses da Época Moderna ao presente”, apresenta uma importante contribuição sobre a história religiosa de Portugal. Trata-se de um estudo interessado em compreender a importância do ex-voto na composição da religiosidade e da cultura material presentes nesse espaço.

O século XVII também foi contemplado neste dossiê, sendo alvo das reflexões propostas por Regina de Carvalho Ribeiro da Costa, além do trabalho conjunto de Daniela Cristina Nalon e Carla Maria Carvalho de Almeida. Em “Entre dois Manoéis, Moraes e Calado: o libelo dos sacerdotes no Brasil holandês”, as análises de Regina da Costa partem da tolerância como chave de leitura. Situada no período de dominação neerlandesa nas capitanias do Norte, a proposta da autora parte dos Cadernos do Promotor para examinar a atuação inquisitorial nesse espaço e a relação entre os holandeses e o clero católico presente na região. Já em “A trajetória dos cristãos-novos Diogo Correia do Vale e Luis Miguel Correia de Vila Real ao Auto da Fé de 6 de julho de 1732 (1670-1732)”, as historiadoras Daniela Nalon e Carla Almeida se enveredam pela ampla temática cristã-nova. Ao se debruçarem nos processos inquisitoriais de Diogo Correia do Vale e Luis Miguel Correia de Vila Real, ambas as autoras desvendam o cotidiano das Minas Gerais, as relações econômicas e políticas protagonizadas pelos cristãos-novos, sem desconsiderar o ambiente de intolerância religiosa cuja presença do Santo Ofício foi fundamental para a sua sustentação.

A problemática dos judeus convertidos forçadamente ao catolicismo em 1497, bem como dos seus descendentes, foi igualmente discutida no trabalho de João Antônio Lima. Em ““Não há pessoa alguma por pequena que seja que não saiba”: uma família e sua fama de “cristã-novice” no Maranhão setecentista”, o recorte do autor está inserido no Maranhão do século XVII, também ancorados nos estudos influenciados pela microhistória. Nesse caso, a trajetória analisada é a da família de Felipe Camello Brito, investigado pela Cúria diocesana e pelas autoridades inquisitoriais residentes no Maranhão. Também articulando os estudos sobre a Inquisição portuguesa aos pressupostos da micro-história italiana, o historiador Philippe Delfino Sartin, em ““Pera que os bons se nam contaminem com os maos costumes, e vida dos depravados”: o medo das bruxas em São João do Peso (Portugal, século XVIII)”, analisa o desenvolvimento da feitiçaria no bispado da Guarda, em Portugal.

O Pará é espaço de reflexões no artigo de Allan Azevedo de Andrade, intitulado “A evangelização dos “bárbaros da floresta”: D. José Afonso e a cristianização dos índios na diocese do Pará (1844-1857)”. Seu trabalho é uma importante contribuição, quando comparado aos demais trabalhos desse dossiê, pois indica como problema da evangelização das populações indígenas no Novo Mundo foi elemento sensível para as autoridades seculares e religiosas ao longo da Época Moderna. Situado na trajetória do bispo d. José Afonso, que atuou na diocese entre os anos de 1844 a 1857, o autor analisa o contexto dos embates entre os ultramontanos e a tentativa do Estado em submeter a vida religiosa aos seus próprios interesses.

Resultado das suas pesquisas realizadas entre o povo indígena Akwẽ-Xerente, o trabalho de Valéria Moreira Coelho de Melo, “Xamanismo e Cristianismo entre os Akwẽ-Xerente (TO)”, discute, como o próprio título indica, a presença do xamanismo indígena e as suas reelaborações a partir das relações com o cristianismo. De um lado, a autora percebe como o cristianismo possibilita “um meio de democratização” de uma série de atributos tradicionalmente vinculados aos xamãs. Por ouro lado, o xamanismo aparece diluído nas mais diversas práticas dos Akwẽ, não somente sob um caráter religioso, mas, também, na vida cotidiana e nas decisões políticas desse povo.

As manifestações religiosas na contemporaneidade também são abordadas por Ellen Cirilo e Manoel da Silva no trabalho intitulado “Entre batuques e bandeiras de luta: a juventude alagoana nos terreiros de axé”. A proposta do artigo consiste em analisar a formação política e religiosa de alguns adolescentes pertencentes à Juventude de Terreiro chamada “Àbúró N’ilê- RJT/AL”, cuja sede fica em Alagoas.

Na seção de entrevistas, os organizadores deste dossiê entrevistaram a historiadora Laura de Mello e Souza (Lettres Sorbonne Université), pioneira dos estudos sobre religiosidade no Brasil e uma das principais referências sobre o Império português e a sua atuação no Brasil. Trata-se não somente de um testemunho pessoal acerca da sua formação, das principais influências historiográficas, mas, também, uma importante reflexão sobre o ofício do historiador em tempos de intolerância. O historiador Ronaldo Vainfas (UFF) também gentilmente concedeu uma entrevista à Escritas do Tempo. Juntamente com Laura de Mello e Souza, os estudos de Vainfas têm sido desde a década de 1980 referências para a historiografia das religiosidades e das instituições no Brasil-Colônia.

Além do dossiê temático, o atual número da Escritas do Tempo também possui a seção de artigos que acolheu os trabalhos de Andrea Ciacchi e Igor Bruno Cavalcante dos Santos. O primeiro, em “Botânico, ma non solo: a viagem de Luigi Buscalioni na Amazônia em 1899”, se debruça na trajetória de Luigi Buscalioni, reconhecido médico e botânico italiano que, em 1899, foi responsável por uma viagem de pesquisa realizada na Amazônia. Já em “A História da Família como um campo plural de compreensões e de possibilidades na comarca do Rio das Velhas no século XVIII”, o historiador Igor dos Santos articula os pressupostos teóricos e metodológicos presentes no campo da História da Família para investigar a prática do concubinato na Comarca do Rio das Velhas.

Referências

DIX, Steffen. O que significa o estudo das religiões: uma ciência monolítica ou interdisciplinar? Revista lusófona de ciência das religiões, ano VI, n. 11, p. 11-31, 2007.

JULIA, Dominique. “A religião: História religiosa”. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novas abordagens. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1976. p. 106-131.

Marcus Vinicius Reis – Docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Doutor em História pela UFMG. Editor da Revista Escritas do Tempo.

Angelo Adriano Faria de Assis – Docente da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Doutor em História pela UFF.


REIS, Marcus Vinicius; ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Apresentação. Escritas do Tempo, Pará, v.1, n.3, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Deslocamentos, Oralidades e Intolerâncias / Revista Trilhas da História / 2013

A Revista Trilhas da História chega ao quarto número mantendo ininterruptamente a periodicidade semestral. A quantidade e a qualidade dos textos recebidos, e a diversidade de instituições de pesquisa de que se originam os autores, demonstram o acerto do quadro docente e discente do Curso de História do CPTL / UFMS em lançar o periódico no segundo semestre de 2011, mesmo diante das adversidades do trabalho em uma instituição federal periférica.

A Revista agora está indexada na base Latindex, o que permite vislumbrar a inscrição no sistema de avaliação de periódicos Qualis / CAPES. As trilhas percorridas até aqui reforçam os objetivos iniciais da Revista de ser um espaço aberto às contribuições de pesquisadores experientes no ofício da História e áreas afins que contribuem na seção “artigos”, como também lugar em que alunos da graduação possam apresentar os caminhos iniciais de suas pesquisas na seção “ensaios”, se expondo para a crítica, algo necessário para o ensino-aprendizagem na graduação.

Os artigos e ensaios deste quarto número, inscritos no dossiê “Deslocamentos, Oralidades e Intolerâncias”, abrangem um longo período histórico, do século XVI à atualidade, bem como diversos problemas de pesquisa: gênero, religiosidade, história indígena, cotidiano, microhistória, história das ideias, economia, cultura, e fontes para a História.

O artigo de Wallas Lima e Edson Silva “Intolerância e sexualidade: a Inquisição em Pernambuco Colonial (1593-1595)” analisa o tema da sexualidade a partir de relatos de homens e mulheres acusados de sodomia e fornicação na capitania de Pernambuco. A análise dos autores coloca em evidência as relações da Igreja e a população colonial.

Em “Hierarquias, fortunas e artigos importados em Belém (1840-1870)”, as autoras Mábia Sales e Leila Mourão apresentam uma análise instigante que transita entre a economia e a cultura, a vida pública e a privada, o micro e o macro. A partir dos inventários do Centro de Memórias da Amazônia, as autoras analisam a circulação de mercadorias e de cultura, entre a Europa e o Pará, e a composição da riqueza de parte da elite da cidade portuária de Belém no XIX.

O texto de André Rego “Deslocamentos espaciais de índios nas aldeias e vilas indígenas da Bahia do século XIX” aborda o deslocamento de núcleos indígenas pressionados pela configuração fundiária e a demanda pela mão de obra. O estudo demonstra que a forma da relação com as comunidades indígenas no Império seguia os preceitos do que regia a legislação da Colônia.

No artigo “Capoeira, do crime à legalização: uma história de resistência da cultura popular” os autores Albert Cordeiro e Nazaré Carvalho apresentam uma história da capoeira no Brasil, com base na pesquisa bibliográfica. A narrativa histórica compreende a manifestação da capoeira na Bahia, no Rio de Janeiro e no Pará, desde a colônia ao início do século XX, quando a prática é legalizada pelo Estado.

Priscilla Silveira em “„Doces memórias…‟: produção de doces na Usina Oiteirinhos em Sergipe durante a trajetória de Dona Baby (1954-1968)”, destaca as doces delícias da culinária pernambucana e sergipana por meio de um estudo da oralidade. Trata-se de uma história da alimentação, da tradição alimentar, a partir da história de vida de uma personagem nordestina.

No artigo “A presença batista em Mato Grosso” Ademar Silva narra uma história da Igreja Batista em Mato Grosso, especialmente a migração de batistas para o sul do estado, em vinculação com São Paulo, entre as décadas de 1910 e 1940. Importa ao autor, também, compreender a imposição da moral religiosa batista às mulheres.

Em “De volta para o princípio: ensaio sobre o resgatar identitário” o geógrafo Júlio Ribeiro apresenta uma discussão teórica da identidade do ser socioespacial. No interior de uma tradição teórica testada de longa data, o autor trava embate com as certezas da mundialização e do capital, colocando a questão da identidade / neo(des)identidade no lugar de polêmica que o conceito requer.

Diovana Thiago propõe uma reflexão sobre o saber científico nas ciências humanas, com destaque para a História. A autora concentra-se na crítica ao método tomado como formatador e limitador do exercício do pensamento, especialmente para a ciência História, e na necessidade de o discurso do historiador se abrir para além da área, para fora do domínio acadêmico.

O artigo de Rubens Correa “Parâmetros teóricos e políticoinstitucionais das independências no mundo hispano-americano” apresenta a história da historiografia do processo de independência dos estados hispanoamericanos. O autor aponta para as abordagens da Nova História Política que compreendem os movimentos de independência a partir das dinâmicas políticas internas às colônias, na relação com a metrópole.

A seção dos graduandos, “ensaios”, inicia com o texto de Iara Silva, “Cristianização da Nova Terra: os jesuítas e a catequese na Colônia”. A autora parte de documentos reproduzidos no todo ou em partes pela historiografia, para estudar a catequização dos povos originários e colonos por parte da Companhia de Jesus, na América Portuguesa.

Rogério de Paula em “Breves considerações sobre a agropecuária e o mercado interno de víveres na América Portuguesa (séculos XVII e XVIII)” apresenta um ensaio de história econômica conjugado à história demográfica, com o objetivo de compreender o comércio de víveres e a produção de gêneros de subsistência na colônia.

No ensaio “Estudos migratórios: as fontes orais e a busca de uma epistemologia histórica”, Nelson de Lima Junior discute a metodologia da história oral e a sua contribuição para o estudo da migração.

A seção “resenhas” traz a apresentação construída pela graduanda Rejane Rodrigues da obra de Elciene Azevedo “O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo”, da Editora da UNICAMP. O livro contribui para se entender o processo que envolve a luta abolicionista em São Paulo nas últimas décadas do século XIX.

Na sequência, o graduando Charles Asssi apresenta a coletânea de textos organizada por Mirian Claudia Lourenção Simonetti “Assentamentos rurais e cidadania: a construção de novos espaços de vida”, das Editoras Cultura Acadêmica e Oficina Universitária. Trata-se de obra coletiva que traz estudos acerca dos movimentos sociais, da reforma agrária e de assentamentos rurais, na perspectiva da Geografia, da História, da Sociologia, da Economia e da Agronomia.

O professor Geraldo Menezes Neto, da Rede de Educação de BelémPA, destaca o livro de Mark Curran “Retrato do Brasil em cordel”, publicado pela Ateliê Editorial. O livro é um estudo fora do âmbito acadêmico que contribui para se entender a história desta manifestação literária popular.

Por fim, a seção “fontes” traz o texto da graduanda Mariely Sousa intitulado “Gregório de Matos: uma análise da Bahia e da América Portuguesa por meio de suas poesias”. A autora compreende a literatura como fonte para a História, para tanto discorre sobre a obra de Gregório de Matos, contextualizando-a na América Portuguesa, especificamente na Bahia de fins do século XVII.

Vitor Oliveira

Inverno de 2013.


OLIVEIRA, Vitor. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.2, n.4, jan. / jun., 2013. Acessar publicação original [DR]

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Intolerâncias / Antíteses / 2008

Editorial

Apresentar este segundo número de Antíteses tem um significado especial, já que tínhamos que lhe dar continuidade, depois de um auspicioso início, não apenas para confirmar o que havia sido realizado, mas também para ampliar seus horizontes, num caminho que, almejamos, seja muito longo e próspero.

O padrão de qualidade da revista vem se mantendo, contando com um quadro de consultores e colaboradores de ampla abrangência institucional, enriquecendo seu processo interno de trabalho. Os textos que aqui incluímos confirmam, assim, que a construção do conhecimento é uma tarefa coletiva, à qual todos nós nos dedicamos.

Estes primeiros meses de vida da Revista Antíteses têm sido intensos e, devido às novas tecnologias, o impacto foi além do esperado, pois conseguimos nossa primeira indexação, com a inclusão da revista no Latindex, situação que, a partir de agora, será intensificada com novos pedidos em bases nacionais e estrangeiras, possibilitando, assim, maior visibilidade e oportunidades de atingir um público mais vasto.

Fizemos também várias inovações internas, além da nova versão da página, com maiores aplicativos, incluímos as seções Primeiros Passos, aberta para os estudantes de graduação e pós-graduação do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina; resumos de Teses e Dissertações; e Análises Bibliográficas. Pretendemos, dessa forma, contribuir tanto para o processo formativo do corpo discente, quanto para a discussão de temáticas nas quais se dialogue com um conjunto amplo de autores e ainda divulgar a importante produção do nosso Departamento.

Passando a tratar do conteúdo das colaborações incluídas neste número, destacamos que as “Intolerâncias”, temática do dossiê, permitiram abordar uma multiplicidade de objetos e abranger espaços distantes que, mesmo não sendo sua pretensão inicial, terminou por formar microcosmos articulados que permitem o diálogo entre diferentes textos.

No primeiro grupo, são abordadas as intolerâncias contra diferentes grupos étnicos durante o fim do período medieval e na Idade Moderna, em especial para com os judeus, em territórios do império português. Patrícia Souza de Faria e Carlos Eduardo Calaça se debruçam sobre o estudo desse assunto na Espanha, em Goa e no Rio de Janeiro.

O racismo contra os negros, que ainda dilacera muitas sociedades, foi abordado por Valeria Lourdes Carbone e Elaine Pereira Rocha, num diálogo multidisciplinar entre a história e a literatura, para os Estados Unidos, a África do Sul e o Brasil, debate que as instituições brasileiras e, em especial a Universidade Estadual de Londrina, têm promovido intensamente nestes últimos anos.

A intolerância política centrada no anti-comunismo perpassa os textos de Cristiano Cruz Alves, Marylu Alves de Oliveira e Alicia Servetto, que embora tratando de regiões distintas como Piauí, Bahia e Córdoba, na Argentina, são elucidativos de processos mais amplos.

De certa forma, o trabalho de Fernando da Silva Rodrigues terminou por articular o estudo dessas três formas de intolerância dentro do exército brasileiro, trazendo contribuições inéditas para as discussões que seguramente serão prosseguidas no evento da Associação Brasileira de Estudos da Defesa, que promoveremos no mês de julho deste ano, e no respectivo dossiê, a ser publicado na revista.

Gabriel Giannattasio e Rodrigo Poreli nos proporcionam um olhar sobre a vadiagem e vidas transgressoras, discorrendo sobre o assunto por várias épocas históricas até chegar a uma singular série de eventos que ocorreram na cidade de Londrina e arredores, que fez aflorar atitudes de repulsa para com comportamentos diferentes.

Na seção artigos, Vanessa Cristina Santos Matos propõe um estudo teórico, na perspectiva historiográfica, para articular os conceitos de gênero e classe no processo de produção e reprodução da força de trabalho, os que, muitas vezes, têm estado dissociados.

Através de suas resenhas, Victoria Baratta e Leonardo Simonetta, nos oferecem análises acerca de obras de autores argentinos que abordam questões medulares da historiografia de minha pátria natal e país irmão, como o caudilhismo e o doloroso processo de integração nacional, que esclarecem sobre as formas de construir a ordem naquele espaço.

Inaugurando a seção Resumos de Teses e Dissertações, nossa colega, Regina Célia Alegro, nos brinda a possibilidade de conhecer seu trabalho de doutorado em Educação, que fora defendido na Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, campus de Marília. Aproveitamos a oportunidade para felicitá-la pela conquista.

No momento da despedida, gostaria de agradecer a todos aqueles que se envolveram para o sucesso do segundo número da revista, em especial a Marco Antonio Neves Soares, coordenador do dossiê, a Laudicena de Fátima Ribeiro, diretora da Biblioteca Central e a Zaqueu Costeski, da Assessoria de Tecnologia de Informática, os três da Universidade Estadual de Londrina, desejar a todos uma boa leitura e solicitar que continuem colaborando, nos diferentes níveis do processo editorial, para que possamos continuar nesta senda, que, a cada dia, se reafirma como instância de debates e trocas, no melhor sentido do termo, imprescindível para o sadio desenvolvimento acadêmico.

Hernán Ramírez –  Editor

Londrina, março de 2009.

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