Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura – WOLF (VH)

WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp/Imprensa Oficial do Estado, 2001. Resenha de: AGUIAR, Tito Flávio Rodrigues de. Jardim América, o subúrbio jardim em versão brasileira. Varia História, Belo Horizonte, v.19, n.29, p. 157-161, jan., 2003.

São Paulo, a maior metrópole brasileira, é freqüentemente evocada por sua impressionante massa edificada, composta por edifícios altos, espalhada por extensa área, e por sua confusa, densa e violenta periferia. Porém, em meio ao mar de concreto armado e bem longe do caos da periferia, despontam bairros residenciais marcados pela exuberante presença do verde e por casas afastadas das ruas sinuosas e arborizadas. São os bairros-jardins, que dão forma ao núcleo da São Paulo cosmopolita e próspera, a região que os paulistanos simplesmente chamam de Jardins.

Jardim América, Jardim Europa, Jardim Paulistano são hoje símbolo da cidade, talvez exatamente por seu caráter de exceção. Constituem o ambiente que os paulistanos desejariam ver e ter em toda a sua cidade. Surgiram na década de 1910, como uma alternativa para a expansão dos bairros até então ocupados pelas elites — Campos Elísios, Higienópolis e a Avenida Paulista. Caíram no gosto das camadas altas e médias. Foram modelados a partir dos subúrbios-jardins que, ao longo da segunda metade do século XIX, tomaram forma nas cercanias de grandes cidades britânicas e americanas — Londres, Nova York, Chicago. E, por sua vez, serviram de modelo para diversos outros bairros residenciais, enquanto consolidaram-se entre os anos 1920 e 1950 como espaço de vida das faixas mais ricas e dinâmicas da população da cidade. Por tudo isso, foram tombados pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo), nos anos 1980, após intensa pressão popular.

Os Jardins vêm despertando a atenção de historiadores, arquitetos e urbanistas. Os historiadores — com destaque para Nicolau Sevcenko, em seu Orfeu extático na metrópole, e para Roney Bacelli, com sua dissertação A presença da Cia. City em São Paulo (1915-1940) e a implantação do primeiro bairro-jardim — interessados nas articulações da constituição dos Jardins com a modernização da sociedade paulista e nas possibilidades que o estudo dessa região abre para a história social e cultural da metrópole brasileira. Os arquitetos e urbanistas — entre eles Hugo Segawa e Dacio Araújo Benedicto Ottoni — fascinados pelas conexões entre o estabelecimento dos Jardins e uma das mais influentes utopias urbanísticas do fim do século XIX, a cidade-jardim proposta em 1898 pelo inglês Ebenezer Howard (1850-1928) como alternativa para as congestionadas cidades européias, numa obra com título eloqüente: Tomorrow: a peaceful pathto social reform1. Fascínio esse amplificado por serem os arquitetos que traçaram o Jardim América, o primeiro dos bairros-jardins paulistanos, os ingleses Raymond Unwin (1863-1940) e Barry Parker (1867-1947), os mesmos que, sob a liderança de Howard, conceberam e implantaram acerca de 70 quilômetros ao norte de Londres, a partir de 1903, a primeira garden city britânica, Letchworth. E por serem eles, também, os arquitetos que, entre 1903 e 1907, projetaram Hampstead, um bem sucedido garden-suburb nos arredores de Londres, já sem vínculos com Howard mas incorporando muito da experiência por eles desenvolvida em Letchworth.

Cidade-jardim, subúrbio-jardim e bairro-jardim são concepções urbanísticas surgidas a partir dos anos 1850 como respostas aos problemas decorrentes da rápida urbanização que marcou a Europa e a América do Norte no século XIX. O subúrbio-jardim pode ser entendido como o desdobramento de configurações urbanas que desde a Antiguidade estiveram presentes na cidade ocidental: chácaras e casas de campo nos arredores das cidades, possibilitando aos privilegiados a fuga dos densos ambientes urbanos. No século XIX, o desenvolvimento de estradas de ferro e linhas de bonde tornou viável o estabelecimento dos espaços de vida de grande número de pessoas em subúrbios cada vez mais distantes dos centros urbanos, expandindo as cidades. A Garden city de Howard foi, por sua vez, desdobramento desse processo de expansão urbana, propondo a criação de comunidades autônomas e de crescimento controlado, integrando campo e cidade. Com o subúrbio jardim, arquitetos britânicos e americanos também buscaram associar campo e cidade, porém sem pretenderem a autonomia característica da garden city. O subúrbio-jardim deve, assim, ser entendido como extensão da grande cidade, enquanto a cidade-jardim coloca-se como uma nova cidade, distinta da metrópole à qual se articula. Por fim, o bairro jardim surgiu da aplicação do modelo do subúrbio-jardim a contextos essencialmente urbanos, como no caso de São Paulo.

O primeiro bairro-jardim paulistano, o Jardim América, é o objeto do livro de Silvia Ferreira Santos Wolff. Longe de fazer a história de um bairro, a autora constrói seu objeto a partir de uma inquietação. Como pesquisadora do Condephaat, Silvia Wolff constatou que o processo de tombamento dos bairros-jardins e os mecanismos legais adotados em 1985 para a preservação desses bairros visavam sobretudo a conservação da paisagem urbana, do verde, das ruas e das praças. Ou seja, a preservação do espaço urbano. Quanto à conservação dos edifícios, pouca coisa, quase nada. Ora, sabemos que o traçado e a paisagem urbana dependem do modo como os edifícios configuram o espaço da cidade. Seria possível, portanto, preservar o espaço urbano sem conservar a arquitetura que o constitui? Por que a arquitetura do Jardim América (e de outros bairros, como o Pacaembu) não despertou maior interesse do Condephaat?

Para responder a essas questões, Silvia Wolff repassou em sua tese de doutoramento em Arquitetura, desenvolvida na USP sob orientação do Professor Carlos Lemos, o estabelecimento do Jardim América, empreendimento imobiliário comercial, distante das concepções utópicas da cidade-jardim e próximo ao subúrbio-jardim anglo-americano. Considerando que a arquitetura das casas do Jardim América vem sendo pouco estudada, por ser ela produção arquitetônica de transição entre duas produções mais valorizadas no campo da arquitetura — o ecletismo classicizante das últimas décadas do século XIX e a arquitetura modernista que se tornou hegemônica na paisagem paulistana após a Segunda Guerra Mundial —, Silvia Wolff levou a cabo um extenso levantamento arquitetônico das edificações do Jardim América com base no acervo do arquivo da Cia. City, empresa responsável pela implantação desse bairro-jardim. Levantamento que, apoiado por cuidadosa revisão da concepção urbanística da cidade-jardim e do subúrbio-jardim, é o ponto alto do trabalho e traz contribuições para pesquisadores interessados no estudo das grandes cidades brasileiras e nos modos de vida de seus habitantes.

A pesquisa histórica desenvolvida por Silvia Wolff nos arquivos da Cia. City deve ser destacada, pois aponta caminhos instigantes para arquitetos e historiadores que, tomando a produção arquitetônica como produção cultural, procuram lançar novas luzes sobre as transformações urbanas, especialmente desvelando as convergências e conflitos entre os interesses privados e o poder público na acelerada expansão das cidades brasileiras, no século XX. Conhecida como Cia. City, a City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited foi organizada em 1911, com escritórios em São Paulo, Londres e Paris, associando o arquiteto Joseph Bouvard e o banqueiro Édouard Fontaine de Laveleye, ambos franceses, a um grupo de investidores e proprietários de terras nos arredores de São Paulo, integrantes da elite paulista e com acesso franco à cúpula político-administrativa do estado. Cincinato Braga, político paulista, Horácio Belfort Sabino, advogado e proprietário de terras, e Victor da Silva Freire, professor da Escola Politécnica e diretor de Obras Públicas da Prefeitura de São Paulo, estiveram ligados ao início da atuação da Cia. City. Lord Balfour, presidente da São Paulo Railway Co. e governador do Banco da Escócia, também fazia parte da primeira diretoria da empresa. Com os capitais reunidos, a Cia. City comprou aproximadamente 12 km² de terras nas vizinhanças das áreas que já vinham sendo ocupadas pelas camadas altas da sociedade local. Constituída, a companhia iniciou a urbanização de partes dessas terras e a venda dos lotes, entrando no movimentado mercado imobiliário paulistano. Ainda hoje a Cia. City é atuante nesse mercado e seu sucesso derivou, em grande medida, das estratégias inovadoras e bem traçadas que marcaram seus primeiros anos. Estavam entre essas estratégias, por um lado, técnicas de venda a prazo dos lotes, de financiamento da construção das casas e de seleção dos compradores e, por outro lado, a busca de soluções urbanísticas que tornassem diferentes e atraentes seus loteamentos.

Isto explica a contratação, em 1913, de Raymond Unwin e Barry Parker para a elaboração do projeto do Jardim América e a vinda do segundo a São Paulo, em 1917, para conduzir a implantação do bairro-jardim. Em Londres, Unwin e Parker projetaram a concepção básica do loteamento, lançando mão do know-how acumulado nos projetos da cidade-jardim de Letchworth e do subúrbio-jardim de Hampstead. Em São Paulo, entre 1917 e 1919, Barry Parker desenvolveu o projeto, participou dos trabalhos de urbanização, definiu padrões urbanísticos para o Jardim América, influenciou a legislação urbanística da cidade (através de contatos com o diretor de obras da Prefeitura, Victor da Silva Freire) e estabeleceu padrões arquitetônicos para as casas do bairro-jardim, projetando algumas delas, inclusive. O levantamento da passagem de Parker por São Paulo é outro ponto destacado no trabalho de Silva Wolff e, sem dúvida, interessa aos historiadores e arquitetos que estudam as grandes cidades brasileiras.

Em resumo, o livro de Silvia Wolff, deve ser entendido como um trabalho que, desenvolvido a partir do campo da arquitetura e do urbanismo, situa-se na fronteira entre o campo da história e o campo da história da arquitetura e do urbanismo. Lançando mão do método histórico para o estudo da produção arquitetônica e da cidade, a autora traz uma importante contribuição à história social e cultural de São Paulo.

Por fim devemos elogiar a qualidade da edição e o modo como os numerosos desenhos, mapas, fotos e reproduções de peças publicitárias, pertencentes ao acervo do arquivo da Cia. City, estão associados ao texto, especialmente na parte dedicada ao levantamento e análise da arquitetura do Jardim América. Porém, não podemos deixar de lamentar a ausência de um glossário dirigido aos leitores menos familiarizados com os termos usualmente empregados na arquitetura e urbanismo. Num trabalho de fronteira, como esse de Silvia Wolff, é sempre útil lembrar que nem todos os dicionários comuns explicam o que vem a ser um traçado hipodâmico ou uma sash window.2

Notas

1 Amanhã: um caminho pacífico para a reforma social. Em 1902, essa obra seria reeditada com o título: Garden cities of tomorrow — Cidades-jardins de amanhã. Para os interessados, vale consultar a tradução brasileira, editada em São Paulo, em 1996, pelas editoras Hucitec e Annablume, reeditado em 2002.

2 Traçado hipodâmico é nada mais que o velho traçado em tabuleiro de xadrez, no qual ruas se cruzam ortogonalmente definindo quarteirões retangulares. O termo evoca Hipódamo, o grego que, no século VI a.C., teria sido o primeiro a propor esse traçado regular. Sash window é um tipo de janela comum nas casas inglesas, com duas folhas envidraçadas (sash) que podem ser levantadas ou abaixadas com facilidade, lembrando o funcionamento de uma guilhotina. Daí vem o termo brasileiro: janela de guilhotina.

Tito Flávio Rodrigues de Aguiar – Arquiteto. Doutorando em História, UFMG.

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