João Goulart: uma biografia – FERREIRA (Tempo)

FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 714 p. Resenha de: DELGADO, Lucília de Almeida Neves. João Goulart: do limbo à escrita da história. Tempo v.19 no.34 Niterói jan./jun. 2013.

A história e a memória, embora diferentes em suas formas de registro e manifestação, são férteis interlocutoras. Ambas, como bem acentua Jacques Le Goff, são dotadas de expressivos poderes, entre eles destacam-se, por exemplo, os de construção do esquecimento, da desqualificação e da interdição de registros. Por outro lado, a memória e a história também ganham poderosa expressão ao construírem versões positivas e elogiosas de eventos e pessoas. Quando assim acontece, essas características muitas vezes contribuem para alicerçar dinâmicas de mitificação de pessoas e processos sociais. As duas situações, desqualificação e mitificação, distorcem a realidade. Ao conhecimento histórico analítico e bem fundamentado, cabe romper com a cadeia nebulosa construída por essas estratégias referentes ao vivido e ao acontecido.

O livro João Goulart: uma biografia, do historiador Jorge Ferreira, alcança com esmero o objetivo de construir um conhecimento histórico sólido, posto que é interpretativo e bem fundamentado. Trata-se de um texto que inclui inúmeras contribuições para um melhor entendimento da história do Brasil no pós-1945. O mesmo teve como mérito especial romper com pressupostos e chavões que ilharam o ex-presidente Goulart, no âmbito de uma memória de esquecimento, de desqualificação ou de interdição, e trazê-lo para o campo da história do conhecimento.

Desde a tomada do poder pelos generais presidentes em 1964, a memória do presidente João Goulart tem frequentado a zona etérea e nebulosa do limbo. Uma pátina de esquecimento há muitos anos encobre sua trajetória, que, ao contrário do que está consolidado no senso comum, apesar de permeada por crises, foi rica e marcada por expressiva e destacada participação em cargos públicos.

Tal estratégia da construção de uma memória de esquecimento sobre o ex-presidente consolidou-se graças ao forte empenho dos adversários políticos que o depuseram. A mesma teve dois objetivos: justificar o próprio golpe de estado e construir uma possível legitimidade para o regime autoritário. Porém outros fatores também integram o caleidoscópio que a explica e a reproduz. Entre os mesmos, destaca-se a construção interpretativa produzida em especial nas décadas de 1970 e 1980 por intelectuais de renome, como Florestan Fernandes, os quais identificam em Jango uma forte fragilidade política e uma ambiguidade escorregadia quanto à sua opção ideológica à esquerda. Ainda, o silêncio recorrente de jornais e revistas, de expressiva circulação, adensou o caldo da desqualificação e do esquecimento sobre Goulart.

A biografia de Jango, escrita por de Jorge Ferreira, é baseada em sólida pesquisa documental e bibliográfica. São informações retiradas de livros, crônicas, documentos oficiais, artigos de revistas e jornais, manifestos, discursos, fotos, livros de memória, e articuladas em um texto que tem o mérito de ser denso, mas fluente. O autor ainda recorreu à realização de entrevistas que trouxeram grande contribuição e um toque de emoção à sua escrita. Por essas qualidades, o livro, redigido com clareza e cuidado estético, contribui de forma efetiva para a desconstrução da injustiça referente aos eventos que levaram à desqualificação do presidente Jango como um homem público. Desqualificação elaborada com esmero estratégico que não poupa o uso frequente de adjetivos negativos para identificar o ex-presidente, entre eles destacam-se expressões como demagogo, incompetente, irresponsável, boêmio e populista.

A combinação das estratégias de construção e reprodução do esquecimento e da difusão de críticas generalizadas sobre João Goulart teve como desdobramento um grande silêncio sobre sua trajetória política. Tal fato fica mais evidente quando compara-se o número de livros e artigos publicados sobre o líder com a profusão de publicações sobre Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, que atuaram na mesma fase histórica em que Jango alcançou projeção nacional. Cabe lembrar que Goulart foi ministro do trabalho durante o Governo Vargas (quando ganhou projeção nacional), deputado federal pelo Rio Grande do Sul, vice-presidente de Juscelino Kubitschek e de Jânio Quadros e, por fim, presidente da República.

Jorge Ferreira, embora atento às ambiguidades que marcaram a trajetória de Jango, está na contramão da solidificada imagem negativa do ex-presidente. Sem cair na tentação de se apresentar como redentor da memória do presidente deposto em 1964, o autor escreveu um texto ponderado, sério e marcado por qualidades inerentes à construção do conhecimento histórico: pesquisa, registro dos fatos e interpretação do processo. Foram dez anos dedicados à investigação e redação de uma longa e agradável biografia. Dez anos de persistência e dedicação meticulosa a um objetivo que teve um resultado impressionante, combinando registro biográfico e história.

O livro percorre a trajetória de vida de João Goulart desde sua infância até sua morte, no exílio em 1976. Buscou, nas entranhas do Rio Grande do Sul e nas características familiares de Jango, elementos de formação da personalidade de um político, que, apesar de ter herdado sólida fortuna e de tê-la multiplicado com efetiva competência, sempre possuiu uma afinidade eletiva com os segmentos mais empobrecidos da população brasileira. Essa opção preferencial do ex-presidente — trabalhadores urbanos e rurais — jamais foi compreendida e aceita pelos setores mais conservadores da sociedade brasileira, que se articularam na aliança político-social atuante na deposição do ex-presidente. Esta aliança era formada pelos seguintes protagonistas: expressivos segmentos das forças armadas, partidos como a União Democrática Nacional, grandes proprietários de terra — que o viam como traidor, membros da igreja católica conservadora, governadores de estado — como Minas Gerais, Guanabara e São Paulo, empresas de capital externo que investiam no Brasil e organizações internacionais que se tornaram guardiãs do sistema capitalista no tempo da Guerra Fria.

Ferreira demonstrou que, desde jovem, Jango, como era conhecido em São Borja, sua cidade natal, tinha algumas qualidades merecedoras de importância e que foram melhor elaboradas ao longo de sua vida de homem público. Era paciente e exímio negociador, como demonstrou durante seu mandato de vice-presidente à época do governo de Kubitschek. Sobretudo, tinha vocação para a arte da política e, em especial, à formação de consensos. A essas virtudes, contudo, somaram-se defeitos, como os de muitas vezes buscar a construção da conciliação com adversários e frágeis apoiadores. Esses últimos não hesitaram em chamuscá-lo com o que atualmente é denominado de ‘fogo amigo’. Essa orientação do presidente, ou seja, buscar a conciliação mesmo quando os sinais indicavam sua inviabilidade, poderia ser um estilo e uma estratégia, mas acabou sendo identificada como vacilação, incapacidade decisória e demagogia populista.

O escritor também argumenta, de forma correta e bem fundamentada, que, diferentemente do que é disseminado, não se pode definir Jango como um populista sem méritos e sem tradição histórica. Ao contrário, identifica-o como o principal herdeiro de Vargas — embora dele se diferenciasse — e um dos maiores líderes não do populismo, mas do trabalhismo brasileiro. Para ele, a principal opção política de Goulart era o trabalhismo, desdobrado em nacionalismo, desenvolvimentismo, distributivismo social e intervencionismo estatal. Certamente, Jango estava sintonizado com expressivos políticos e intelectuais da sua época, os quais consideravam ser de responsabilidade do Estado a adoção e a administração de políticas públicas sociais e econômicas.

A biografia de Goulart coroa renovadora contribuição historiográfica de Ferreira a respeito do período entre 1945 a 1964. Seu principal investimento no que se refere à política desses anos situa-se no esforço para desconstruir a teoria do populismo. Discorda da conceituação dela decorrente, que identifica populismo como manipulação e demagogia. Portanto, diverge veementemente da utilização desse conceito como explicativo daquele período, pois entende que trabalhismo e nacional desenvolvimentismo são ideias mais consistentes e melhor explicativas de uma opção política, hegemônica à época e orientada por um projeto nacional caracterizado por definições precisas e objetivos estabelecidos. Entre as metas destacavam-se valorização do trabalho, distributivismo social, planejamento estatal, valorização dos investidores nacionais, política previdenciária sólida e reformismo social, com ênfase para a reforma agrária.

Sem se descuidar dos aspectos privados da trajetória do ex-presidente, que gostava dos prazeres da vida boêmia e do cotidiano na área rural, Jorge Ferreira também registrou, em três densos capítulos, a vida do líder no tempo do exílio. Foram anos de amargura, saudade e solidão. Nessa derradeira fase de sua vida, à Goulart só restou o prazer de cuidar de suas extensas criações de gado que, contudo, estavam, em grande parte, situadas na Argentina e no Uruguai e não em sua pátria.

Jango rumou para o exílio, pensando que o mesmo duraria pouco, tão logo os militares ascenderam ao poder em 1964. Seguiu acompanhado de sua mulher Maria Tereza e de seus filhos João Vicente e Denize. Sua opção foi a de não resistir ao golpe que o destituíra. Para muitos de seus aliados seu grande erro foi exatamente o de não ter reagido ao golpe. No entanto, Ferreira argumenta que o presidente preferiu o caminho do exílio, com toda sua imprevisibilidade, ao recurso da resistência, que, com grande probabilidade, mergulharia o Brasil em uma guerra civil. Essa mesma orientação o levou a concordar, embora contrariado, com a adoção do parlamentarismo, em 1961, quando da renúncia do presidente Jânio Quadros.

A decisão de não resistir ao Golpe de 1964 contrariou diferentes tendências das esquerdas brasileiras, que ganhavam envergadura no efervescente pré-1964. Ansiosas para chegarem ao poder, as esquerdas jamais perdoaram a opção de recuo de João Goulart quando as botas dos militares alcançaram o Palácio do Planalto, os marines americanos rondavam as costas brasileiras e o Congresso Nacional, apesar dos protestos de alguns deputados, declarou vaga a Presidência da República, mesmo estando Goulart em território nacional. Esqueceram-se de que Jango jamais foi um homem de conflito. Ao contrário, sempre escolheu a via da conciliação e da negociação, entendida por ele como inerente à democracia.

O mesmo João Goulart, que sempre fora conciliador e trabalhista, abraçou, com vigor, o radicalismo reformista no final do ano de 1963 e início de 1964. Após inúmeras tentativas, sem ressonância, de negociação com os setores mais conservadores da sociedade brasileira, recorreu ao apoio das esquerdas para sua sustentação no poder. Tal estratégia orientou a regulamentação da lei, que controlava a remessa de lucros por empresas de capital internacional instaladas no Brasil, e a adoção de medidas como a da reforma agrária, anunciada no comício de 13 de março de 1964.

Para Ferreira, a conspiração conservadora a depô-lo ganhou forma e envergadura a partir desse contexto. Portanto, concluímos que nesse ponto o autor carregou um pouco na tinta, pois em 1954, quando da crise política que levou ao suicídio de Getúlio Vargas, os acontecimentos de 1964 já haviam sido anunciados. As circunstâncias adversas do governo Jango e o movimento das peças no xadrez da história somente definiram o tempo exato desse desfecho.

Finalmente, vale ressaltar que, nesta alentada biografia, Ferreira esclareceu seu entendimento sobre qual foi o papel, no contexto do imediato pré-golpe de 1964, das divergentes forças políticas que atuavam naqueles anos. Considerou que a conjuntura foi marcada por marchas e contramarchas e por um forte radicalismo à direita e à esquerda. Esse processo radical dificultou uma avaliação melhor acurada dos possíveis desdobramentos decorrentes da extrema polarização conjuntural. Nesse quadro de crescente intransigência, também alimentada pelos acontecimentos da Guerra Fria, a vocação negociadora de Goulart não encontrou eco e não teve força persuasiva. À uma determinada altura dos acontecimentos, que define como o ano de 1963, não foi mais possível conter o avanço da oposição ou neutralizar a força da radicalização política à esquerda que se movimentava sob forte influência do brizolismo. Contudo, mesmo reafirmando a tese do crescente radicalismo, deixou registrado que os opositores do trabalhismo, do nacionalismo e do reformismo foram os protagonistas principais do golpe de 1964. Em outras palavras, os responsáveis pelo golpe situavam-se no campo da direita.

Uma biografia do porte e da qualidade de escrita do historiador Jorge Ferreira é leitura indispensável para quem quer conhecer melhor o tempo polêmico e efervescente do pré-1964 e seus terríveis desdobramentos, uma vez que o livro se estende até a morte de Goulart, em 1976, quando o presidente ainda estava no exílio. Entre os méritos do autor, que são muitos, destaca-se o da ousadia de se contrapor à história hegemônica e à construção do esquecimento coletivo sobre quem foi um protagonista vencido e não vencedor. Mais do que isso, o historiador demonstrou que Jango foi um homem público de grande envergadura, merecendo transitar, de forma definitiva, do limbo para as páginas da história.

Lucilia de Almeida Neves Delgado – Historiadora; Professora do Curso de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (UnB); Professora do Programa de Pós Graduação em Direitos Humanos da UnB; Pesquisadora do Programa de História Oral da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); autora, entre outros, do livro: PTB: do Getulismo ao Reformismo (1945-1964). 2 ed, São Paulo, LTr, 2011. E-mail[email protected].

João Goulart: uma biografia | Jorge Ferreira

A obra de Jorge Ferreira intitulada João Goulart: uma biografia, lançada em 2011, retrata a vida pessoal e política do presidente deposto pelo golpe militar em 1964. Logo em sua introdução, o autor trata de desmistificar a imagem, recorrente em boa parte da historiografia, de João Goulart como um político demagogo e impotente diante das crises políticas do período em que foi presidente. Ferreira demonstra que essa alegoria sobre Goulart foi criada pelas administrações políticas subsequentes, interessadas em afetar a imagem de qualquer liderança que estivesse ligada ao trabalhismo ou demonstrasse complacência com a corrente comunista.

Professor titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense, Ferreira também publicou outros livros que focaram a política nacional, especialmente o chamado populismo, entre eles: O imaginário trabalhista – getulismo, PTB e cultura política popular; Prisioneiros do Mito – cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (1930-1956); além de ter organizado O populismo e sua história, debate e crítica2 . Graduado em História pela mesma instituição na qual leciona, obteve o título de doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Atualmente, lidera um grupo de pesquisa na própria UFF chamado Brasil Republicano – Pesquisadores em história cultural e política e é pesquisador também em outro grupo dessa universidade denominado Núcleo de pesquisa e estudos em história cultural. Leia Mais

 João Goulart: uma biografia – FERREIRA (RBH)

FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 714p. Resenha de: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, n.63, 2012.

João Goulart, ou Jango, é um dos personagens mais controvertidos da história brasileira e, por que não dizer, dos mais trágicos também. Presidiu a um governo que mobilizou as esperanças de milhares de pessoas sob a promessa de reformar o Brasil e atenuar suas mazelas sociais, projetos que provocaram medo e insegurança em outros grupos sociais, os mesmos que o derrubaram do poder em 1964. Dono de imagem inevitavelmente polêmica, a suscitar tanto admiração quanto desprezo, a importância de Goulart no contexto que levaria ao golpe é inquestionável, pois suas ações e projetos, mas sobretudo a maneira como foram interpretados, desempenharam papel chave no processo.

O livro João Goulart: uma biografia, de autoria do professor Jorge Ferreira, constitui extensa e cuidadosa análise sobre o ex-presidente e traz contribuição inestimável ao estudo do controverso líder, bem como do contexto político em que atuou. Trata-se de trabalho de grande fôlego, com base em pesquisa abrangente que inclui entrevistas, memórias, documentos pessoais, registros da imprensa e consulta a numerosa bibliografia, resultando em obra de mais de setecentas páginas. Dado o escopo do trabalho, resenhá-lo adequadamente em poucas linhas torna-se um desafio. Adotando postura realista, preferiu-se aqui apontar alguns traços fortes da obra, como um convite ao leitor para ler o trabalho e formular seu próprio juízo.

Motivado pela percepção de que a memória sobre Jango está presa aos eventos de 1964, Ferreira procurou lançar luz sobre outros pontos da trajetória política do ex-presidente, de modo a permitir visão mais ampla. Moveu o autor, também, o desejo de ir além das apreciações críticas ao político gaúcho, dominantes na literatura e na memória, e revelar as qualidades positivas do líder que, aliás, explicam sua ascensão. A intenção foi produzir análise mais equilibrada sobre Jango, fugindo das críticas que o rotulam de populista e fraco e o acusam de responsável pela crise que levou ao golpe. Isso não significa que o autor tenha escamoteado as críticas a Goulart, pois, no seu texto, aparecem referências aos erros cometidos pelo ex-presidente, principalmente em 1964; mas ele tende a destacar mais traços positivos como lealdade (ao varguismo, em especial), talento para a negociação e sensibilidade social. Goulart foi de fato político hábil, fiel ao estilo de seu mestre, e por isso mesmo conseguiu fazer carreira rápida no campo varguista e trabalhista, com o detalhe de defender projeto social bastante mais avançado em comparação às ações adotadas por Getúlio. A obra oferece excelente análise da trajetória inicial de Goulart, justamente a fase menos conhecida da sua vida, começando pelos primeiros contatos com Vargas, de quem era vizinho em São Borja, e prosseguindo pelos laços construídos por Jango com os sindicatos e a esquerda. Merece destaque a análise sobre a construção do relacionamento entre Goulart e os sindicalistas, no início dos anos 1950, graças à sua atuação como ministro do Trabalho na tormentosa segunda metade do mandato constitucional de Vargas, bem como a análise de suas atividades como presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), no mesmo período, as quais forneceram os pilares para toda sua carreira política.

Naturalmente, a biografia apresenta dados sobre a vida pessoal do político, como a explicação para o defeito na perna de Goulart, assim como suas aventuras amorosas com as mulheres. A propósito, os dois fatos tinham relação, as aventuras sexuais e o problema físico. Porém, Ferreira não se deixou levar pela atração fácil do escândalo e do espetáculo e, ainda que não tenha omitido informações úteis para o entendimento do personagem, tratou sua vida privada com sobriedade. Outro aspecto da vida privada de Jango analisado com propriedade pelo autor foi o talento empresarial do político gaúcho. Goulart herdou os negócios rurais do pai, mas ampliou consideravelmente a fortuna da família ao desenvolver notável faro para ganhar dinheiro, característica que seria muito útil na sua futura vida de exilado. Mas a biografia se concentra mais nos aspectos públicos da vida de Goulart, a sua atuação como líder que começou como afilhado político de Vargas e terminou no exílio, onde encontrou a morte, após tumultuado e inconcluso período como presidente.

Nesse percurso, Ferreira analisou os grandes eventos e processos políticos vivenciados por Jango nos anos 1950 e 1960, fase decisiva na história brasileira. No livro encontramos narrativas cuidadosas de alguns momentos importantes, como a passagem de Goulart pelo Ministério do Trabalho, a crise do governo Vargas e seu suicídio, a renúncia de Jânio Quadros e o movimento pela ‘legalidade’ (ou seja, pela posse do vice-presidente João Goulart), o comício de 13 de março de 1964 e outros acontecimentos às vésperas do golpe. O livro oferece informações e análises imprescindíveis ao conhecimento da nossa história política recente, aliás, pouco conhecida pelo grande público. Do período pós-1964 até a morte de Goulart, em fins de 1976, a biografia nos mostra os padecimentos da vida no exílio, dele e dos familiares, que viram as amarguras do desterro se associarem à angústia da insegurança, pois Uruguai e Argentina, países escolhidos por Goulart por sua proximidade com o Brasil, logo seriam convulsionados por episódios de violência política semelhantes aos experimentados no Brasil.

O autor demonstra certa simpatia/empatia pelo biografado, o que lhe permite analisar os objetivos políticos de Jango de maneira compreensiva, embora não indulgente. Mesmo que aponte algumas atitudes autoritárias do presidente, principalmente no controle do PTB, e não deixe de considerar o projeto pessoal de poder do político gaúcho, Jorge Ferreira nos mostra um Goulart sinceramente empenhado nas causas anunciadas em seus discursos. Ele desejava melhorar a vida dos mais pobres e reduzir a dependência externa (ou emancipar a nação, nos termos da época), e pretendia consegui-lo por meio de negociações e acordos, que evitassem rupturas revolucionárias. Não desejava questionar as bases do sistema capitalista, afinal era grande fazendeiro e negociante, mas queria construir modelo econômico menos injusto e mais ‘nacional’.

A análise do autor é convincente ao mostrar que o principal impulso do projeto político de Goulart era realizar reformas, e não utilizá-las para tornar-se ditador ou golpear as instituições. De fato, há poucos indícios de que Jango desejasse ou tenha planejado instituir um regime autoritário. Não obstante, o presidente aceitou e adotou uma estratégia de pressionar o Congresso Nacional para obter as reformas, fazendo uso de comícios e outros meios de pressão que deixaram no ar a dúvida sobre suas reais intenções e semearam confusão e intranquilidade no campo político. Os aliados de esquerda do ex-presidente fizeram movimentos mais agudos nessa direção, principalmente Leonel Brizola, com discursos agressivos dirigidos ao Congresso que podiam ser interpretados como ameaça às instituições liberais. Pessoalmente, Goulart repeliu sugestões de fechar o Congresso, porém, entre seus aliados nem todos pensavam assim.

Na correta avaliação de Jorge Ferreira, os principais erros de Goulart foram cometidos no front militar, e esses foram decisivos para sua queda. Ele confiou em oficiais pouco capazes que trouxe para seu círculo íntimo, e, no episódio da revolta dos marinheiros (março de 1964), chancelou uma solução para a crise totalmente favorável aos rebeldes, decisão considerada equivocada até por oficiais comunistas ligados ao governo. Com a libertação dos marinheiros, o presidente permitiu que a oficialidade o imaginasse favorável à quebra da hierarquia militar, e isso jogou contra o governo a maioria da corporação militar, até então neutra e na expectativa. Outro erro grave do presidente no campo militar e político foi sua atitude no episódio do pedido de estado de sítio, em outubro de 1963. Ele aceitou a sugestão dos ministros militares para solicitar ao Congresso a medida extrema, decisão incompreensível ainda hoje e surpreendente em vista da esperteza política do presidente. Como concordou com medida que não tinha apoio de nenhuma força política significativa, e que o deixou isolado tanto à esquerda quanto à direita, lançando insegurança e ansiedade em todos os quadrantes?

Por fim, vale destacar a análise de Jorge Ferreira sobre as razões para Goulart ter abdicado de resistência armada ao golpe, o que rendeu muitas acusações e críticas ao ex-presidente. Ao contrário de fraqueza, o autor viu no episódio a manifestação do cuidado de Jango em preservar o país de guerra civil, que possivelmente teria resultado em intervenção dos Estados Unidos. O desmoronamento do apoio militar ao governo e a fraca capacidade dos grupos de esquerda para arregimentar-se contra o golpe, apesar de honrosas e corajosas exceções, demonstram que as chances de vitória em caso de guerra civil eram poucas, e a decisão de Goulart bem pode ter poupado o país de violências ainda maiores. Mas é possível, também, que, além da violência da guerra civil, o presidente desejasse evitar outro desdobramento: a resistência armada poderia gerar radicalização esquerdista muito além do seu projeto político.

Enfim, trata-se de obra escudada em sólida pesquisa e análises consistentes, que se constitui em texto indispensável para os pesquisadores do tema e também para o público mais amplo. É produto maduro de historiador experiente, que passa a integrar o rol de leituras obrigatórias sobre a história política recente do Brasil.

Rodrigo Patto Sá Motta – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. Avenida Antônio Carlos, 6627, Pampulha. 31270-901 Belo Horizonte – MG – Brasil, E-mail: [email protected]

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João Goulart – uma biografia – FERREIRA (EH)

FERREIRA, Jorge. João Goulart – uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 713 p. Resenha de: NAPOLITANO, Marcos. João Goulart: um personagem em busca de uma história. Estudos Históricos, v.25 n.49 Rio de Janeiro Jan./June 2012.

João Goulart é um dos personagens mais polêmicos e menos estudados da história do Brasil. Dizer isso soa como um clichê, mas é inevitável. Mais que um interesse meramente biográfico, o estudo de sua vida e trajetória política é, necessariamente, um exercício de análise da história do Brasil. Qualquer estudo biográfico sobre o personagem é um convite à polêmica e exige do analista um jogo de aproximação e de distanciamento a um só tempo.

O livro do historiador Jorge Ferreira consegue construir o perfil de um líder com qualidades e defeitos, faturas e fracassos, que ao longo de sua curta trajetória na política brasileira – de pouco mais de 14 anos – mexeu profundamente com nossa modorrenta e conservadora vida política. Para tanto, Jorge Ferreira explicita de saída sua estratégia: analisar Jango para além dos dois dias finais de seu governo, aqueles que se plasmaram para sempre na história do biografado.

O livro resgata aspectos da vida privada e pública de Jango, traçando um perfil coerente de uma personalidade política que ajudou a formular um projeto para o Brasil, designado como trabalhismo reformista de corte nacional-popular (p. 137-140). Jango tornou-se, na memória e na história, o personagem síntese deste projeto fracassado, tragado por uma bem-sucedida conspiração direitista. Personagem que acabou visto como um arremedo de Vargas e Perón, sem a grandeza trágica ou a coragem política dos dois.

A biografia ganha especial importância, reposicionando criticamente algumas questões e matizando as visões negativas e moralistas sobre Jango, sua época – a “República de 46” – e seu governo. O distanciamento do autor, cioso do seu oficio de historiador, não se traduz em uma visão pretensamente neutra. O biografado Jango que se desenha nas 690 páginas de texto é um líder lúcido, ponderado, coerente. Mas também manipulador, contraditório e, em muitos (e fatais) momentos, hesitante. Nem vilão, nem herói, Jango é reconhecido como um político importante que esboçou um projeto e uma agenda de reformas profundas.

O texto é marcado pelo equilíbrio entre a biografia e o ensaio acadêmico de história política. Cabe aqui destacar o importante trabalho que Jorge Ferreira vem desenvolvendo há algum tempo na recuperação historiográfica da “República de 46”, apontando para a necessidade de outras pautas de pesquisa que deem conta do período, para além das categorias clássicas “populismo” e  “desenvolvimentismo”.

Há uma impressionante quantidade de fontes primárias e secundárias, muito bem articuladas pelo autor: livros de memórias, crônicas, documentos oficiais, cartas, manifestos políticos, matérias de imprensa partidária e comercial. Mas não deixa de ser curioso que o biografado, nos momentos em que esteve no poder – como deputado, presidente do PTB, ministro do trabalho, vice-presidente ou presidente da República – pouco fale de si através das inúmeras fontes primárias citadas. Ao contrário, as fontes em primeira pessoa escritas por Jango surgem apenas no contexto do exílio, dando o tom dos dois últimos capítulos da biografia escrita por Jorge Ferreira. Nestas fontes, entretanto, predominam o gosto amargo da derrota e os balanços negativos de sua trajetória e legado, impedindo qualquer tipo de monumentalização histórica, sempre muito comum em biografias. Jango, em certo sentido, mergulhou no esquecimento ou no ostracismo, apesar do esforço de alguns poucos correligionários e historiadores em dar-lhe uma sentença mais justa no tribunal do tempo.

Nesta linha, Jorge Ferreira resgata um aspecto ainda pouco estudado da trajetória política de Jango: sua passagem pelo Ministério do Trabalho do segundo governo Vargas (capítulo 3). O detalhamento desta fase da vida política do futuro presidente é uma das grandes contribuições historiográficas do livro. No comando da pasta, Goulart mudou completamente o papel do Estado na negociação entre patrões e trabalhadores (urbanos) e, mesmo inclinando-se para o lado destes últimos, nunca abriu mão da estratégia de mediação e negociação de conflitos. As bases sociais e políticas ali constituídas deram-lhe força para esboçar um projeto reformista que, na verdade, foi muito mais uma agenda do que um projeto, abortada pelo golpe de 1964.

Ferreira recusa duas explicações clássicas sobre o golpe: a tese da “grande conspiração da direita”, bem como a tese do “colapso do populismo”. Ambas trabalham com a idéia de inexorabilidade do processo histórico. A primeira minimiza os erros políticos da esquerda ao destacar a sagacidade da direita, e a segunda vê o governo Jango apenas como um soluço final no grande terremoto estrutural que moveu a história, porque a lógica de acumulação do capital assim o quis. Há no livro uma percepção detalhada sobre as “marchas e contramarchas” do tempo histórico na direção do golpe de estado, evitando a inexorabilidade do evento que selou o destino do personagem e do seu tempo. Mas ao recusar estes paradigmas para explicar o golpe militar de 1964, Ferreira se aproximou de outro, que, a meu ver, mereceria mais exame crítico. Aqui me refiro à maneira como Jorge Ferreira utilizou o livro de Argelina Figueiredo, Democracia ou reformas (publicado no início dos anos 1990), e incorporou, em certo sentido, o paradigma do colapso da democracia como obra do radicalismo dos atores de esquerda e direita (p. 429). Fruto de uma excelente e acurada pesquisa empírica e dotado de coerência teórico-metodológica e plausibilidade argumentativa, o livro de Argelina consolidou a retomada da história política para compreender a crise política que desaguou no golpe militar de 1964. Entretanto, sua perspectiva de análise funcionalista parte do princípio de que as instituições políticas devem absorver e neutralizar os “interesses” e “conflitos” protagonizados pelos atores.

Mesmo se pautando pela tese do radicalismo generalizado, Jorge Ferreira deixa bem claro que o golpe foi da direita, evitando diluir as responsabilidades pelo conjunto de atores. Mas defende a tese de que o ambiente político criado pela radicalização das esquerdas (leia-se, a esquerda brizolista, sobretudo) inviabilizou a liderança janguista na condução de um projeto negociado de reformas e acabou fazendo com que o centro político fosse para a direita (p. 412, 429). Jorge Ferreira demonstra que a habilidade de negociador de João Goulart encontrou seu limite neste ponto. Mas como negociar reformas em um ambiente político e institucional conservador que transformou o lugar da negociação – o Congresso Nacional – em um bunker do antirreformismo?

Neste ponto, seria oportuno revisar o conteúdo histórico do pretenso “radicalismo” das esquerdas que teriam ajudado a construir o golpe da direita. Olhando mais de perto, a grande radicalização das esquerdas entre 1962 e 1964, bravatas retóricas à parte, era propor uma reforma agrária contra o latifúndio improdutivo, disciplinar a remessa de lucros para o exterior e apostar em um novo poder constituinte.

Ainda que mantenha certas perspectivas sobre a crise final do governo e sobre o golpe que poderiam ser mais problematizadas, Jorge Ferreira deu uma grande contribuição no sentido de reposicionar Jango criticamente na tessitura do tempo histórico sem tomá-lo como farsante ou herói mal compreendido. Esta é uma das grandes qualidades da obra, que, inclusive, valoriza a erudição na qual se apoia. João Goulart – uma biografia sem dúvida entrará para a galeria das biografias clássicas da história do Brasil. A partir dele, Jango deixa o território da memória (ou melhor, do esquecimento) para retornar à história.

Marcos Napolitano – Marcos Napolitano é doutor em História Social e livre-docente pela Universidade de São Paulo, onde leciona História do Brasil desde 2004 ([email protected])

João Goulart. Uma biografia – FERREIRA (AN)

FERREIRA, Jorge. João Goulart. Uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 713p. Resenha de: WASSERMAN, Cláudia. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 33, p. 281-285, jul. 2011.

“Jango era um conciliador porque buscava o entendimento entre as partes. Seu objetivo era alcançar acordos e compromissos políticos.” Jorge Ferreira

Para que serve a biografia de um ex-presidente do Brasil? Para esquadrinhar a história de vida de um personagem importante do século XX brasileiro, conhecer suas motivações, sua vida pessoal, suas dúvidas ocultas e suas realizações palpáveis. Neste trabalho, Jorge Ferreira gastou dez anos de sua vida profissional, pesquisando, explorando e indagando sobre João Goulart. Os outros tantos anos que Ferreira tem de estrada no ofício de historiador serviram como bagagem cognitiva para que a biografia de Jango não fosse apenas o retrato do personagem, mas também se configurasse como uma análise aguçada sobre nossa história contemporânea.

O livro desenrola-se em ordem cronológica, desde antes do nascimento de Janguinho, em 1919, até sua morte, em 1976, sem deixar de examinar os desdobramentos decorrentes das investigações sobre a hipótese de assassinato, concluídas com o arquivamento do processo de averiguação em 2010.

A tendência de construir uma ilusão biográfica, identificada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (A Ilusão Biográfica, 1996), não se confirma para a biografia construída por Jorge Ferreira, ainda que o autor de Jango: uma biografia tenha recorrido à “sucessão cronológica, às sequências ordenadas e às relações inteligíveis” (BOURDIEU, 1996, p. 75). Essas, no entanto, não cedem à “ilusão retórica” (p.76), porque foram desenhadas a partir de pesquisa minuciosa, que deixa entrever “a estrutura da rede” (p. 81).

Mesmo fiel à diacronia, Ferreira rejeita os conceitos de unidade e coerência do sujeito, fornecendo ao leitor suficientes elementos para compreender que João Goulart teve uma sinuosa trajetória, perpassada pelo mutável panorama da sociedade brasileira: “[…] não procurei montar um quebra-cabeças para, ao final, encontrar um quadro de coerências. Também evitei, o equívoco, tão comum ao relatar a vida de um personagem, de apontar suas diversas incoerências.” (p. 18). Em outras palavras, Jorge Ferreira conseguiu driblar a “ilusão biográfica”. Para tanto, valeu-se de infl uências teóricas consistentes – entre as quais ele menciona Jean-René Pendaries, Phillipe Levillain, Giovanni Levi, Chrisopher Lloyd, Vavy Pacheco Borges – e do quase infalível procedimento de “[…] recorrer a uma multiplicidade de fontes” (p. 16-17).

O controle da técnica, a consistência teórica e a profusão de fontes não fazem do volume um compêndio enfadonho com centenas de citações. O livro tem uma linguagem propositadamente fl uida, mas não peca pelo excesso de empiria. Ao contrário, seu primeiro mérito é realçar duas polêmicas, presentes, nem sempre tão evidenciadas, na historiografia brasileira. Em primeiro lugar, a respeito da ausência/quase-supressão de João Goulart dos estudos históricos do nosso país e, em segundo lugar, sobre a personalidade dessa personagem e sua suposta vacilação diante do golpe de 1964.

Ao realçar esses dois pontos, Ferreira evidencia sua admiração pela personagem. Mas o que poderia parecer falta de objetividade, merece ser investigado. Ferreira consegue, com habilidade indisfarçável, compreender a origem dessas características da historiografia brasileira em relação a Jango. Explica – a partir da noção de “[…] usos políticos do passado” – porque e por quais grupos sociais Jango foi acusado de covarde, bem como que setores da sociedade se interessaram, ao longo da história recente, por esquecer/eclipsar a sua passagem pela presidência da república. Com isso, apesar da aparente admiração pelo biografado, o que Ferreira procura é despersonalizar a história, evitando recair sobre o indivíduo todo o peso do passado.

Ao longo do livro, Jorge Ferreira vai mostrando que a construção da personalidade de Jango não estava definida a priori, mas que foi sendo moldada a partir de infl uências, de lealdades e até mesmo, fruto da ingenuidade e da inconsistência política que caracterizaram seus primeiros passos na vida pública. A profusão de outras personagens da história do Brasil, algumas altamente estudadas pela historiografia e outras desconhecidas, obscurecidas pelo tempo e pelas omissões propositais, é um mérito adicional do livro. Nesse aspecto, o livro também aborda instituições – algumas delas igualmente pouco estudadas pela historiografia brasileira – como a trajetória do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), lugar privilegiado de militância ao qual Jango dedicou sua vida inteira; o sindicalismo brasileiro, que cresceu enormemente na década de 1950, acompanhado de perto pelo percurso do político João Goulart. A imprensa, as forças armadas, o parlamento são algumas outras instituições brasileiras abordadas no livro. Foram evidenciados também processos, tais como a industrialização e o capitalismo brasileiros, oscilantes entre os ideólogos do nacional-desenvolvimentismo e do desenvolvimento integrado ao capital monopólico.

Os capítulos oito e nove, respectivamente, De março a março: rumo à radicalização e Rumo ao desastre, são eletrizantes. Ferreira utiliza grande parte da bibliografia disponível a respeito do golpe civilmilitar e narra o desenrolar daquele processo através da figura presidencial, de seu apreço pela democracia e pela conciliação. O título do capítulo dez, Dois dias finais sugere o início de uma narrativa linear dos fatos que se sucederam entre os dias trinta de março e primeiro de abril de 1964, mas o capítulo surpreende com um intenso debate historiográfico, motivação principal do livro e de toda a pesquisa.

De um lado, Ferreira não aceita que políticos, cientistas sociais e historiadores tenham responsabilizado Jango pelo golpe, ou que tenham atribuído o desfecho trágico daqueles dias à clara indisposição do presidente em resistir ao golpe. Para corroborar sua perspectiva e explicar os motivos desse uso abusivo do passado, o autor da biografia de Jango ressalta a personalidade conciliadora do presidente, ressaltando que “Conciliação, aliás, era o termo mais insultoso entre as esquerdas naquele momento. Em uma conjuntura política de crescente radicalização, aquele que não fosse radical era considerado conservador ou, mesmo, reacionário” (FERREIRA, 2011, p. 292).

Acompanhando o raciocínio de Ferreira: o Brasil vivia um dos períodos mais democráticos de toda a sua história. A participação e as reivindicações das classes subalternas, antes ignoradas e/ou mantidas sob rígido controle coercitivo, somente aumentavam em ritmo alucinante. Um dos horizontes desses grupos sociais era o socialismo que, segundo eles próprios, e a partir do exemplo cubano, deveria ser desencadeado a partir de uma revolução.

Neste contexto, as propostas de conciliação só poderiam soar como um obstáculo concreto ao seu projeto e, portanto, como adesão velada ao projeto antagonista. Sendo que os antagonistas da transição ao socialismo e da revolução brasileira também não confiavam que a postura conciliadora de Jango pudesse garantir a continuidade do sistema econômico, político e social por eles defendido.

Por isso, a postura conciliadora do presidente João Goulart foi tão veementemente contestada. Porque ser conciliador, em meio ao contexto de polarização, não significava ficar em cima do muro, mas adquiria sentido de um firme posicionamento político, nesse caso, contrário às transformações sistêmicas.

Restaria discutir criticamente esse termo tão difuso para nosso campo da história e tão caro aos cientistas políticos: o conceito de conciliação. Buscar o entendimento entre as partes, procurar fazer acordos e compromissos políticos é um comportamento louvável nos homens públicos, que pode impedir graves crises políticas.

Mas, até onde pode ir o acordo, o entendimento e a conciliação? Até onde se pode abrir mão das próprias convicções? Diante de projetos antagônicos de sociedade e de nação, as convicções devem ser abandonadas pelos homens públicos em nome da conciliação?

Por outro lado, Ferreira tem razão, não foi efetivamente essa personalidade conciliadora de Jango que provocou o golpe nem uma atitude mais consistente poderia ter impedido o desfecho, mas isso também não vem ao caso. A história não é mestra da vida, certamente não teremos uma repetição desses episódios que possam desmentir uma ou outra interpretação.

Fato emblemático e, ao mesmo tempo, curioso, no entanto, é que o apelo à conciliação e à boa acolhida a essa postura de negociação pacífica dos confl itos sociais, harmonização das relações etc.

esteve presente nos dois momentos mais polarizados da nossa história contemporânea: o período pré-64 e a luta pela redemocratizado por volta dos anos 80. No primeiro período, a posição conciliatória não impediu o golpe de morte à democracia e, no segundo, essa harmonização impediu que a sociedade brasileira soubesse de verdade quem foram os responsáveis por esse atentado.

A pesquisa sobre o exílio do presidente Goulart foi primorosa, ajuda a compreender as relações entre exilados, os ambientes dos países de acolhida, as relações entre os militares dos países assolados por ditaduras e as tentativas de articulação política para o retorno ao país. Jango voltou morto ao Brasil em 1976, para ser enterrado em São Borja, segundo Ferreira, uma concessão do governo militar; não sabemos como ele agiria politicamente caso tivesse sido anistiado em 1979. Mas sabemos o que disse Leonel Brizola ao chegar ao país, o mesmo Brizola impaciente que tanto criticou a “falta de atitude” do cunhado presidente. Entrou no Brasil por Foz do Iguaçu no dia 06 de setembro de 1979 e falou pouco, deixando claro que aqueles que o seguissem no retorno ao Brasil deveriam ter “cautela, paciência e prudência”. Um indício de que a ideia da conciliação voltaria a assombrar a história recente do país.

Claudia Wasserman – Professora do PPG-História da UFRGS. E-mail: [email protected].