Indicionário do contemporâneo – CÁMARA et al (A-EN)

CÁMARA, Mário; KLINGER, Diana; PEDROSA, Celia; WOLFF, Jorge. Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. Resenha de MANZONI, Filipe.  Some possible journeys for reading the Indicionário do contemporâneo. Alea, Rio de Janeiro, v.21 n.1, jan./apr., 2019.

É conhecido o diagnóstico, lançado por Flora Sussekind em 2013, de uma emergência de “formas corais” na produção literária brasileira, textos marcados pela “constituição de uma espécie de câmara de ecos na qual ressoa o rumor (à primeira vista inclassificável, simultâneo) de uma multiplicidade de vozes” (SUSSEKIND, 2010). Flora nos diz ainda que nessas formas seria característica uma interrogação simultânea “tanto da hora histórica quanto do mesmo campo da literatura” (idem). Se nos for permitido o pressuposto de que a relação entre literatura e crítica não é de precedência mas de mútua contaminação, não é de impressionar que é contemporânea à emergência das “formas corais” a gestação de uma verdadeira “forma coral” da crítica, isto é, o trabalho de escrita do Indicionário do contemporâneo.

O projeto, bem como o processo de sua escrita, são deslindados na apresentação, “Um indicionário de nós”, assinado pelos quatro organizadores do volume, Celia Pedrosa, Diana Klinger, Jorge Wolff e Mario Cámara: trata-se de uma coletânea de ensaios escritos e reescritos ao longo de quatro anos por múltiplos pesquisadores e críticos da América do Sul. O marco inicial desse encontro, um simpósio proposto para o X JALLA – Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana intitulado“Políticas literárias do contemporâneo”, parece ter sinalizado para essa zona de ressonância entre conceitos recorrentes e pontos comuns de inquietação que foram, conforme nos conta ainda a apresentação, gestados durante oito meses pelos catorze pesquisadores que assinam, coletivamente, o livro. Desse processo de mapeamento de afinidades, seis verbetes “que incidem de modo decisivo sobre o pensamento das artes e literaturas atuais” se estabilizaram como núcleos conceituais e deram corpo à versão final do volume: “Arquivo”, “Comunidade”, “Endereçamento”, “O contemporâneo”, “Pós-autonomia” e “Práticas inespecíficas”.

Dois pontos no Indicionário parecem falar a partir de umaindistinção entre as proposições teórico-críticas e a própria metodologia e construção da obra. Em primeiro lugar, desde seu título, encontramos a marca de uma profunda ambivalência: se o texto de apresentação evidencia a ambivalência do prefixo “in-” – que supõe “insubordinação, insatisfação, inquietação, independência” (CÁMARA; KLINGER; PEDROSA; WOLFF, p. 7) mas joga também com o significante “índice ao postular uma leitura-escritura indicial das linguagens e dos conceitos em cena” (idem) -, o volume como um todo parece levar essa ambivalência alguns passos além. De fato, a sobreposição de um “in-dicionário” a um “indício-nário”, ela mesma baseada na homonímia de dois radicais latinos “in-”, um de negação outro de direcionamento, poderia ser tomada como uma marca comum de todos os ensaios. Encontramos, a cada verbete, uma espécie genealogia aberta do conceito abordado, genealogia que esbarra sempre em sua própria incompletude e impossibilidade de fechamento – em um “indicionarizável”, portanto -, mas que nos leva a uma mobilização, isto é, a direcionamentos possíveis – ou indícios – que sobrevivem enquanto potência ou possibilidade.

O segundo ponto que caberia destacar é o quanto todos os tópicos propostos parecem falar não apenas dentro de seu próprio ensaio, mas também através da própria estrutura do livro. Desnecessário sublinhar, por exemplo, o quanto a discussão a respeito da “Comunidade” – em seu percurso que vai da retomada etimológica e filosófica de Roberto Espósito até a proposição de um ator político proposto enquanto “multidão”, via Antonio Negri, Michael Hardt e Paolo Virno, passando ainda, entre outros pontos relevantes, pela ontologia do “com” de Jean-Luc Nancy e pela comunidade que vem de Giorgio Agamben – está na base da própria proposição do “escrever com” que marca o Indicionário. A alternância de grupos fez com que os estilos pessoais de cada pesquisador não sejam mais do que vestígios suspeitos, não autorizados por nenhuma delimitação autoral: todos os textos (exceções feitas à apresentação, assinada pelos organizadores, e ao posfácio, assinado por Raúl Antelo) são potencialmente de todos os pesquisadores, isto é, de Antonio Andrade, Antonio Carlos Santos, Ariadne Costa, Celia Pedrosa, Diana Klinger, Florencia Garramuño, Jorge Wolff, Luciana di Leone, Mario Cámara, Paloma Vidal, Rafael Gutiérrez, Raúl Antelo, Reinaldo Marques e Wander Melo Miranda.

No que toca ainda aos itinerários propostos dentro de cada ensaio, novamente a metodologia parece dizer tanto quanto a proposição teórica a respeito de um modo específico de lidar com o “Arquivo”, tema que abre o Indicionário. Parece interessar, mais do que a figura do “leitor autoritário, organizador que procure dar um sentido fixo ao conjunto” (ibidem, p. 24), uma espécie subversiva de “leitor nômade”, que circula pelos textos “estabelecendo novas redes, abrindo os sentidos” (ibidem). Caberia observar que nesses trajetos alguns caminhos são mais recorrentes, dando uma impressão algo monadológica, na medida em que no interior de cada verbete parecem habitar os demais conceitos, em uma espécie de rede de associações potenciais.

É assim, por exemplo, no ensaio sobre o “Endereçamento”, em que, a partir de uma leitura da importância dos pronomes pessoais a partir da produção de Ana Cristina Cesar, encontramos uma ameaça ao estatuto autônomo da literatura (que ressoaria no verbete “pós-autonomia”), bem como a proposição do endereçamento como “problema epistemológico e ético de como ter acesso à alteridade, sem se fechar numa forma autorreferencial” (idem p. 107), o que nos levaria também ao tópico da comunidade, via Jacques Rancière e Nicolas Bourriaud.

Os percursos possíveis no Indicionário interessam, portanto, tanto quanto possam ser remontados, repensados, e reorganizados por esse “leitor nômade”, figura que abre ainda o ensaio sobre o “Contemporâneo”, a partir de uma desestabilização moderna do espaço institucional da arte, tópico que nos levará a uma leitura de diversas instalações artísticas, tomadas enquanto práticas inespecíficas (nome também do último ensaio do volume, no qual a proposição de um “campo estendido” de Rosalind Krauss se desdobra em ferramenta para a análise de diversas obras contemporâneas que ameaçam a estabilidade de um campo literário). É a partir desse tensionamento do campo literário e da representação do presente histórico que chegamos a uma potência de anacronismo em figuras como Nietzsche, Didi-Huberman ou Agamben, autores que farão do “contemporâneo” um arquivo aberto do histórico, uma zona de constante formulação, impasse e reformulação do histórico.

Caberia ainda ressaltar que, se o tom da proposta do Indicionáio parece, em diversos momentos, trazer uma noção panorâmica ou enciclopédica, em especial pela amplitude das implicações de alguns dos verbetes escolhidos, isso não se dá mediante o sacrifício da riqueza de detalhes. De fato, se nos voltarmos para as notas – somando-se as de todos os fragmentos, quase trezentas -. estas deslumbram pela riqueza de caminhos que se abrem em uma espécie de microscopia dos “indícios” que se permitem ler a partir das catorze bibliotecas que coabitam (e assinam) a obra.

Também parece resistir à planificação sob um argumento “panorâmico” a atenção dada ao que poderíamos chamar de uma das questões centrais, ou, ao menos, a mais recorrente dentro do Indicionário: os desdobramentos e reavaliações da noção de pós-autonomia. O ensaio específico, “Pós-autonomia”, faz um levantamento minucioso das diferentes acepções do polêmico conceito proposto por Josefina Ludmer em 2006, desdobrando suas múltiplas implicações em diferentes contextos que vão desde a literatura contemporânea sul americana, sua recepção crítica, as artes plásticas no presente, mas também a própria estabilização e pacificação de um conceito de “modernidade”. Encontramos ainda, juntamente com esse desdobramento das implicações críticas da questão, um levantamento de algumas das respostas polêmicas ao conceito que, em última instância, atenta contra a própria possibilidade de circunscrição de um campo que identifique um “literário” em oposição a um “não literário”, percurso que nos conduzirá por uma dupla reação: uma postura de retomada elegíaca de uma institucionalidade perdida ou ameaçada, a partir de teóricos como Antoine Compagnon ou Tzvetan Todorov; em contraposição a uma dinamização da ameaça a essa estabilidade institucional, em figuras como Jacques Rancière ou Bruno Latour.

É no centro dessa polêmica que se insere ainda o posfácio do livro, único ensaio assinado por um único autor, Raúl Antelo. O ensaio, originalmente uma conferência intitulada “Autonomia, pós-autonomia, an-autonomia” apresentada no segundo encontro do grupo de pesquisa, em 2013, aparece aqui como “Espaçotempo”, e traz um segundo mapeamento da proposição de Ludmer da pós-autonomia (após uma raiz comum ao verbete “pós-autonomia” via Kant – Adorno), detendo-se na relevância do questionamento da autonomia nas teorias da esquerda italiana da década de 70 (discussão da qual Ludmer seria herdeira). Finalmente, após uma retomada da questão do espaçotempo e da quarta dimensão, percurso que vai desde Ouspensky até as clássicas investigações benjaminianas sobre o cinema e a aura na década de 30, chegamos a uma ressonância entre Ludmer e Benjamin, ponte especialmente contemporânea, já que sobrepõe duas polêmicas longes da pacificação. A partir do temor de alguns possíveis desdobramentos políticos nefastos da aceitação da pós-autonomia (que ressoam o temor benjaminiano da apropriação fascista da potência revolucionária do cinema), Raúl Antelo propõe, em um tom cuidadoso, uma renovação do “crédito ao conceito de autonomia, mesmo que em plano reconfigurado, digamos, an-autonômico” (ibidem, p. 252). Cabe ressaltar o quanto esse final, ou mais especificamente, esse prefixo de negação “an-”. Parece ressoar ainda o “in-” que dá título ao volume, em especial porque ao mesmo tempo que aponta para o estatuto aporético da questão – ou seja “in-dicionário” -, se abre enquanto espaço de apostas – ou seja, para os “indícios”.

Cabe, finalmente, nos permitirmos uma última palavra sobre um ponto que não pode ser deixado de lado quando nos referimos a essa empreitada crítica de tantos pesquisadores. E o que nos interessa ressaltar é precisamente o quanto essa ambivalência que vem desde o título do volume nunca se furta a manter aberto o contemporâneo como um espaço de apostas mais do que do esgotamento. Encontramos, por exemplo, no ensaio sobre “o contemporâneo” uma contraposição ao escuro catastrófico que se resguarda ainda à possibilidade de uma aposta nas sobrevivências, isto é, um pouco de Didi-Huberman contrabalanceando o peso de Giorgio Agamben. Encontramos, ainda, em toda a discussão sobre o “endereçamento”, uma via de escape do fechamento do moderno em um modelo autorreferencial e intransitivo (ou novamente autonomista) a partir de uma abertura ao outro, a uma investidura ainda possível em um pensamento da comunidade, um pensamento que se funda no impróprio, na impropriedade radical, o que, novamente, parece espelhar, mais que teoricamente, metodologicamente o dispositivo crítico do Indicionário.

Referências

CÁMARA, Mário; KLINGER, Diana; PEDROSA, Celia; WOLFF, Jorge (Org.). Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. [ Links ]

GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Trad. Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. [ Links ]

LUDMER, Josefina. “Literaturas pós-autonomas”. In: Sopro Panfleto Político cultural. Trad. Flávia Cera. Desterro: Cultura e Barbárie, 2010, p. 1-4. Disponível em: <Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n20.pdf >. Acesso em: 16 jul 2018. [ Links ]

SUSSEKIND, Flora. Objetos verbais não identificados. O Globo, v. 21, Rio de Janeiro, 2013. Disponível em <Disponível em https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/objetos-verbais-nao-identificados-um-ensaio-de-flora-sussekind-510390.html > Acesso em 15 de março de 2019. [ Links ]

Recebido: 27 de Abril de 2019; Aceito: 31 de Agosto de 2019

Filipe Manzoni. É Doutor em literatura pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutoramento sobre poesia contemporânea brasileira na Universidade Federal Fluminense e leciona literatura brasileira na Universaidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Literatura e ética: da forma para a força – KLINGER (A-EN)

KLINGER, Diana. Literatura e ética: da forma para a força. Rio de Janeiro: Editora da Rocco, 2014. Resenha de ANDRADE, Antonio. A força ética de uma reflexão. Alea, Rio de Janeiro, v.17 n.2, july/dec., 2015.

O livro Literatura e ética: da forma para a força, de Diana Klinger – lançado pela coleção Entrecríticas (coordenada por Paloma Vidal) – situa, a meu ver, os leitores e pesquisadores da literatura contemporânea diante da problemática mudança de paradigmas que o declínio de valores éticos e estéticos da modernidade provoca. A passagem do campo da autonomia da obra de arte – do objeto literário, ficcional ou poético – para o “pós-autônomo” – termo utilizado por setores da crítica dedicados à reflexão sobre a produção contemporânea que se afasta das ideias de literariedade e autorreferencialidade do texto literário para aderir a um modo de escrita que se faz “em continuidade com os dados da realidade” (KLINGER, 2014: 41) – implica, para esta ensaísta, a necessidade de se repensar pressupostos teóricos que instrumentalizam o estudioso da literatura, com vistas a estabelecer uma rede de conceitos e estratégias de leitura capazes de funcionar como critérios de escolha e positivação de autores e textos.

Esse movimento do discurso crítico-ensaístico de modo algum é simples. Na verdade, constitui no texto de Diana um profundo empenho de ressubjetivação que se produz por meio de mecanismos de endereçamento, haja vista a mescla do gênero epistolar com o ensaio nas três cartas à amiga Luciana Di Leone, que marcam momentos fundamentais do livro: pela forte presença do autobiográfico na escrita crítica, configurada pela articulação da narrativa memorialística com a argumentação teórica ou analítica; pela construção de um lugar de autoria que joga, de maneira proposital, com referências dialógicas de ordens distintas ao desdobrar, por exemplo, reflexões em torno de poemas ou estudos críticos produzidos por amigos, alunos e colegas, ao lado de citações e discussões sobre Nietzsche, Adorno, Benjamin, Deleuze, Blanchot etc. Tal empenho não se produz, sem dúvida, isento de contradições. Ao buscar uma espécie de tom “menor” para seu ensaio, incorre na negação (psicanalítica) daquilo que se é, ou se deseja: “Os textos sobre esses autores não são de crítica literária nem têm essa pretensão. São anotações de pensamentos suscitados por essas leituras” (KLINGER, 2014: 14 – grifos meus). Não à toa, em alguns momentos centrais do texto, a autora não se vexa em assumir a enunciação assertiva, e até certas construções de caráter prescritivo, no afã de conduzir/persuadir seus leitores/destinatários: “A literatura não é uma força, mas é preciso transformá-la numa força” (ibidem: 191); “O que a poesia de Tamara encena é […]” (KLINGER, 2014: 107 – grifos meus). E, decerto, devido à percepção dessa contradição, enxerga a necessidade de modalizar suas formulações, que, se por um lado, “apostam” na recuperação ressignificada da ideia de resistência da literatura, por outro compreendem a relatividade do alcance da potência discursiva do literário – a qual parece advir de sua própria fragilidade: “Talvez seja possível, no entanto, apostar numa forma de resistência mais ‘fraca’ ou sutil” (KLINGER, 2014: 162).

Buscando através dessas sutilezas uma forma de expressão crítica que se coadune à ideia de crise, Diana tenta em seu texto configurar, retomando Barthes, o lugar tensivo de uma meia distância, isto é, de um distanciamento crítico “que não quebre o afeto” e que seja atravessado pela “delicadeza” (KLINGER, 2014: 118). Isso significa, em outros termos, ruptura com os valores de objetividade e frieza que tanto o estabelecimento de critérios de correferencialidade e padrões esteticistas canônicos da arte autônoma quanto os parâmetros generalistas da aparente “chave de leitura” concebida pela perspectiva pós-autônoma parecem projetar. Em oposição a eles, seu olhar crítico mobiliza-se em torno das ideias de singularidade, diferença e excepcionalidade, locupletando, por sua vez, o forte anseio por modos “singulares” de expressão e de subjetivação configurados pelos discursos teóricos relacionados às questões do contemporâneo. Cito, como exemplo, sua justificativa para a eleição dos autores focalizados no livro (a saber: Cortázar, Barthes, Kamenszain e Bolaño): “Trago Bolaño aqui não apenas porque ele me ajuda a pensar a vivência do medo. Também porque ele, como os outros autores a que me referi antes, sugere em sua obra uma aproximação com a própria vida que não tem nada a ver com propostas performáticas e autoficcionais de sua geração” (KLINGER, 2014: 134).

Nota-se, então, que nesse recorte está embutida certa “queixa” – a meu ver, também, bastante necessária – em relação à replicação de modelos estéticos que se tornaram hegemônicos na literatura atual. Entretanto, não se pode negar que suas escolhas, pelo menos as mais aprofundadas, se assentam sobre nomes consagrados do passado e do presente, cujo valor já constitui uma espécie de “indubitável”. Desse modo, não haveria já um forte processo de singularização desses autores e de seus textos? Se concordamos que sim, é possível compreender, então, que a tarefa crítica é menos a de desvelar singularidades camufladas em meio ao “semsentido” – para usar um termo empregado pela ensaísta -, e mais a de mediar a relação de seus interlocutores com essas vozes “singulares”.

Outro ponto que se explicita na construção de seu critério eletivo é a importância da relação literatura e vida, que fomenta e atravessa toda a discussão em torno do afeto e da ética no livro. Tal relação serve-lhe de base para pensar a escrita “como uma prática ou ritual, uma forma de estar no mundo” (ibidem: 49), concebendo-a assim fora do modelo estético da representação. E, também, para pensar a leitura, ou melhor, o modo como o sujeito pode ser afetado pelos textos, aproximando pois literatura e leitor no complexo processo de procura do sentido da vida. A condição paradoxal, no entanto, dessa busca é que ela se faz justamente negando tudo aquilo que se considera banal, tudo que estaria submetido à ordem do capitalismo cultural, ou preso às diretrizes da “sociedade de controle”, para usar um conceito deleuzeano discutido pela autora. Nesse sentido, a afirmação da vida, bem como a inscrição da ética no âmbito da imanência – de acordo com os pressupostos filosóficos que engendram aí a articulação entre Spinoza, Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari – interpelam intelectuais como Diana a assumir um posicionamento contradiscursivo, avesso ao funcionamento comum da linguagem e aos dispositivos habituais de produção dos sentidos – sobretudo os que se ligam ao poder midiático.

“Da forma para a força” é a formulação postulada já no subtítulo da obra para sinalizar o movimento de passagem de uma instância de reflexão sobre o biopoder para a proposição de uma biopotência afirmativa: força de resistência não imobilizada pelo espectro das representações, e sim propulsora de “práticas alheias aos modos de subjetivação estatal” (KLINGER, 2014: 81), com o intuito de “construir um plano de consistência para afetos que não estejam atravessados pela axiomática da troca” (KLINGER, 2014: 71). O trajeto argumentativo de Literatura e ética é, portanto, o de afirmação desse lugar singular da potência: o que seria, em si mesmo, já uma atitude ética. Contudo, não só o fato de tal atitude ser pensada a partir da dicotomia entre gestos especiais, repletos de “intensidade”, e práticas cotidianas, ainda mais esvaziadas de sentido se vistas com as lentes desta ótica filosófica, mas também a consciência de um iminente fracasso da literatura nesse intento de criar e difundir práticas que liberem o desejo, os afetos e as relações dos aparatos culturais e discursivos que os (re)capturam a todo instante, deslocam qualquer grau de certeza em relação à noção de ética para o espaço de um interrogante: o que é ético? Esta atitude é realmente ética?

Percebe-se, em diversos momentos do texto de Klinger, a dimensão problemática dessa dúvida. Não à toa, no capítulo “O remorso da literatura” assinala-se a questão da culpa como aporia constitutiva tanto da arte autônoma quanto da pós-autônoma. Já em “O sentido da escrita”, a ensaísta trata de dar sustentação teórica à afirmação da ideia de potência e à aposta na literatura como forma de promessa, que, conforme demonstra sua releitura de Benjamin, deve ser contínua e simultaneamente desauratizada e apropriada como meio de busca do sentido em face do vazio e da banalidade. A construção dessa perspectiva, que para alguns leitores pode soar como demasiado positiva, é dialetizada pelo capítulo “Em nome próprio”, em que, por meio da incursão no terreno autobiográfico, tensamente relacionado à leitura de Tamara Kamenszain, Diana produz uma interessante reflexão a respeito das noções de fuga, esquecimento e sobrevivência, chamando a atenção para as possibilidades de proposição de novos agenciamentos políticos a partir da perda.

Todo o desenvolvimento dessa discussão parece impelir Diana a endossar uma visão filosófica negativa da ideia de comunidade, na clave de Bataille, Nancy e Blanchot. Isso é bem perceptível em “A comunidade em suspenso”, capítulo que, se por um lado revela grande fôlego teórico da autora/pesquisadora, não obstante conduz, por outro, a um fechamento da leitura, na medida em que desinveste os traços identitários que constituem os diversos tipos de arranjo comunitário de qualquer potencialidade possível, chegando a realizar afirmativas como: “o que os seres compartilham é a diferença que os singulariza” (KLINGER, 2014: 111). A meu ver, este tipo de frase tende a certa clicherização na esfera crítico-acadêmica. É preciso, portanto, ler nas dobras da contradição que esse discurso deixa escapar a produtividade da tensão entre fuga e pertencimento: note-se que, embora a ensaísta seja uma argentina radicada no Rio de Janeiro, suas escolhas afetivas de leitura nesse livro revelam a priorização de escritores também hispânicos – dois argentinos (Cortázar e Kamenszain) e um chileno (Bolaño) que, como ela, viveu durante muito tempo fora de seu país natal. E é justamente em “Queime os livros!”, capítulo onde analisa a obra de Bolaño, que o texto de Diana alcança grande capacidade de captura do leitor: após belo momento autobiográfico sobre a violência e o medo que ocupam suas memórias de infância e juventude na Argentina, a autora desenvolve a seguinte reflexão no bojo de sua leitura do romance 2666: “A literatura está imersa nesse território da violência, nesse deserto onde só cabe desaparecer; por outro lado, a literatura é o único território” (KLINGER, 2014: 140), reafirmando assim sua aposta no literário como espaço de potência ética.

Essa perspectiva ainda se desdobra no capítulo “Spinoza e a potência da literatura”, no qual se oferece ao leitor um bom estudo sobre os modos de recuperação e reverberação do pensamento spinoziano na filosofia contemporânea (Negri & Hardt, Deleuze & Guattari, sobretudo), e em “Uma pequenina luz”, capítulo em que chama a atenção para o caráter dúplice que o poder de resistência da literatura enceta: “força ambígua, ao mesmo tempo desmesurada e desesperançada. Essa frágil força do desejo” (KLINGER, 2014: 183-184). Porém, é sob essa luz pequenina, sob essa força frágil, que Diana ensaia o risco de uma escrita original e instigante, que, em vez de partir do prognóstico apriorístico da impotência do discurso literário na contemporaneidade, investe na indagação dessa potencialidade problemática, perguntando-se, ao longo de todo o percurso: “o que pode a literatura?” (KLINGER, 2014: 135).

Antonio Andrade – Professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua como docente permanente do programa de pós-graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. Desenvolve pesquisas nas áreas de análise do discurso, formação de professores e literatura contemporânea. Publicou diversos artigos em livros e revistas acadêmicas, dentre os quais se destacam “Diálogos e tombeaux: Haroldo de Campos, Néstor Perlongher e Severo Sarduy” (Gragoatá, v. 31) e “Literatura e comunidade na formação de professores de Espanhol/LE (Abehache, v. 4). E-mail: [email protected].

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