Atualismo 1.0 – Como a ideia de atualização mudou o século XXI | Mateus Pereira e Valdei Araujo

PEREIRA Mateus Atualismo
Entrevista do Plano Aberto (2019), com o historiador e professor da UFOP, Mateus Pereira, a respeito do cenário de manifestações no Brasil. youtube.com/

PEREIRA M Atualismo AtualismoCom Atualismo 1.0. Valdei Lopes e Mateus Pereira, professores e pesquisadores da UFOP, propõem uma nova categoria para a Teoria da História. O debate concerne de imediato aos historiadores ocupados com a História do Tempo Presente, e há de interessar também a estudiosos do contemporâneo em quaisquer áreas das Ciências Humanas. Isso porque o que os autores buscam identificar, incialmente a partir da ressonância do termo uptdate e variações como updatism (que os autores traduzirão por atualizar ou atualização, respectivamente) no Google Ngram, posteriormente a partir de pesquisas quantitativas com dados da Hemeroteca da Biblioteca Nacional e do Jornal do Brasil, é um processo de aceleração da experiência do tempo que diz respeito a todas as dimensões da sociedade, e não apenas à maneira como lidamos com o passado. Diz respeito, inclusive, à forma como representamos para nós mesmos o presente e, logo, também à forma como organizamos nossas capacidades enquanto sociedade diante das demandas do aqui e agora da experiência histórica. Recuperando a boa lição de Marc Bloch, para quem não apenas o passado interessa ao historiador, mas de igual modo o presente e, principalmente, a articulação entre ambos, os autores falam “numa mudança sutil e subterrânea da experiência: um substantivo deslocamento nas formas modernas de significar o tempo histórico” (p. 31).

Esta mudança os autores especificam melhor ao ressaltar, ainda na introdução do livro, a forma como o conceito de atualização foi ganhando proeminência a partir dos anos 1960 e, principalmente, 1970, paralelamente a um crescente desgaste do conceito de progresso desde o pós-guerra. Leia Mais

A vida invisível de Eurídice Gusmão – BATALHA (A-EN)

BATALHA, Martha. A vida invisível de Eurídice Gusmão. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Resenha de BERNED, Zilá. O extremo contemporâneo na literatura brasileira. Alea, Rio de Janeiro, v.21 n.3, sept./dec., 2019.

L´extrême contemporain,

 c´est mettre tous les siècles ensemble.

(Michel Chaillou apud Dominique Viart, 2008, p. 20)

Dominique Viart, em livro de 2008, estabelece distinções no âmbito das literaturas contemporâneas, afirmando que existem três tipos de literatura: as de consentimento (consentantes), ou seja, aquelas que não contestam a sociedade e que se constituem como a “arte da aprovação”, em que os escritores escrevem para o grande público, tornando-se muitas vezes bestsellers; as conciliatórias (concertantes), que fazem coro aos clichês e que se resumem a reconduzir a doxa, harmonizando as opiniões gerais; e, por fim, as literaturas desconcertantes (déconcertantes), que seriam aquelas que deslocam as expectativas da maioria dos leitores, deixando de reproduzir as velhas receitas literárias e passando a exercer uma atividade crítica que se desvia de significações pré-concebidas, levando os leitores a reavaliarem seus conceitos e sua consciência de estar no mundo. Essas literaturas desconcertantes, que incomodam pela crueza como desvendam e denunciam preconceitos ou visões estratificadas da sociedade, é que caracterizam o “extremo contemporâneo”.

Na mesma direção, em livro recente de 2018, o polêmico Johan Faeber, introduz o conceito de “après-littérature” ou literatura do “depois” (evitando o já desgastado conceito de pós-literatura ou pós-moderno), que seria a que se propõe a escrever “a contra-história de nosso tempo”. Afirma também que é esse tipo de romance que dará uma sobrevida à literatura, representando a sua revivescência. No momento em que se pensa que tudo já foi escrito e que, portanto, pode-se antever a morte da literatura, surgem os escritos do extremo contemporâneo. Para defini-lo o autor vale-se de uma expressão de Giorgio Agamben que afirma que “ser contemporâneo significa voltar a um presente onde nunca estivemos”, isto é, a um presente do qual não participamos e sobre o qual não interferimos. Um presente revisitado.

Torna-se oportuno introduzir a questão de um fenômeno que está acontecendo na cena literária brasileira dos últimos dez anos, talvez vinte anos: o surgimento de uma escritura feminina “desconcertante”, manifestando uma urgência de escrever para denunciar a invisibilidade e a inaudibilidade de toda uma geração de mulheres que a precedeu e que não teve voz nem vez na cena pública brasileira.

Trata-se de autoras jovens, quase todas escrevendo entre os 35 e os 50 anos, a maioria detentoras de diplomas universitários e teses de mestrado e/ou doutorado, e que vêm revolucionando a cena literária em nosso país. Entre elas, Carola Saavedra, Aline Bei, Eliane Brum, Conceição Evaristo, Martha Batalha, Tatiana Salem Levy, Adriana Lisboa, Paloma Vidal, Ana Maria Gonçalves, Leticia Wierzchowski, Cíntia Moscovich, Maria da Graça Rodrigues, entre tantas outras. É interessante consultar a antologia organizada por Luiz Ruffato: 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Record, 2004). O organizador da antologia sentiu também a necessidade de abordar o advento de uma nouvelle vague literária no feminino cujas obras, escapando ao “prêt-à-penser” cultural, ou seja, recusando-se a repetir velhas e desgastadas fórmulas romanescas, desconcertam os leitores ao desnudar histórias de vida que permitem a suas narradoras/protagonistas, através da recuperação da memória de suas antepassadas (mães e/ou avós) e de sua ressignificação no presente, entender em que medida sentem-se (ou não) herdeiras desse passado.

Importa, em especial, falar do livro de Martha Batalha (nascida em 1973), A vida invisível de Eurídice Gusmão (São Paulo: Companhia das Letras, 2016), que desvenda a invisibilidade da protagonista – Eurídice Gusmão -, a quem nomeia no título, para convocá-la à existência apontando suas tentativas de se emancipar, todas elas frustradas pelo marido. O livro transforma-se em um verdadeiro inventário de ausências na vida de Eurídice Gusmão, típica dona de casa do Rio de Janeiro, dos anos 1940, quando a mulher da classe média que trabalhasse fora do lar representava o fracasso do marido em sustentar a família.

Inventário das coisas ausentes é o título de um livro de Carola Saavedra (Cia. das Letras, 2014), remetendo igualmente às ausências, às faltas na vida das mulheres no Brasil e à necessidade de inventariá-las, uma vez que só após o inventário se reparte a herança, e que só depois de recebido o legado é possível transmiti-lo. As memórias só se constituem plenamente pela transmissão. A transmissão, no dizer de Paul Ricoeur, é geradora de sentido. Por isso nunca se viu tantas mulheres escrevendo romances verdadeiramente “desconcertantes” no Brasil: eles são necessários para realizar o inventário das ausências e transmiti-las através da escritura, gerando sentido e restaurando memórias feridas.

Patrick Chamoiseau escreveu um livro intitulado La matière de l´Absence (SEUIL, 2016), no qual reconhece que as literaturas das Américas vem sendo construídas com “a matéria da ausência”, ou seja sobre camadas de esquecimento e denegação de elementos culturais indígenas e africanos cuja transmissão não foi efetivada porque houve rejeição dessa herança pelos herdeiros ou porque tais tradições não foram consideradas quando da construção das identidades nacionais. Podemos pensar em algo semelhante diante do silenciamento imposto às mulheres às quais não se concediam o direito à alfabetização e, posteriormente, à frequentação de universidades.

Pois foi esse silêncio, essa ausência que tornou as mulheres e os papéis que desempenhavam invisíveis. Martha Batalha aponta em seu livro as diferentes tentativas de sua heroína de sair da invisibilidade, inicialmente organizando um livro de receitas, depois das bem-sucedidas experimentações que realizava em sua cozinha. O que poderia ter sido um bestseller pelo talento de Eurídice Gusmão foi jogado no lixo pelo marido que não podia admitir tamanha audácia por parte da esposa, que – segundo ele – deveria se contentar com a repercussão familiar das receitas. A nova tentativa de desenvolver seus dotes artísticos através da costura foi igualmente castrada pelo todo poderoso marido, pois o que haveriam de pensar os vizinhos diante do fato de a esposa “costurar para fora”. Assim vai se desperdiçando a vida da personagem até os filhos não precisarem mais de sua dedicação: é quando percebe que na estante da sala de sua casa havia livros e que livros poderiam ser lidos, passando a devorar os livros da estante assim como os da biblioteca pública. O passo seguinte foi a compra da máquina de escrever, a mudança da casa velha para o novo bairro que estava surgindo à beira-mar: para Ipanema. “Mudar-se para Ipanema no início dos anos 60 não era apenas transferir a mobília alguns quilômetros adiante. Era atravessar os portões do tempo, para viver num lugar que fazia o resto do Rio se parecer com o passado” (2016, p. 169). Os tec, tec, tec da máquina foram ouvidos com mais insistência do que na antiga casa da Tijuca, embora ninguém se preocupasse com o que teria para escrever uma dona de casa. Embora os jornais não tenham aceitado seus textos nem ninguém na casa manifestasse o mínimo interesse por eles, foi através primeiro da leitura e depois da escritura que Eurídice Gusmão se viu face a face com a invisibilidade que lhe foi imposta pelo marido.

Embora o livro traga as marcas de um feminismo incipiente em que o homem (marido) é o inimigo, ele aporta frescor ao feminismo atual pelo fato da emancipação não passar por grupos, mas pela afirmação de si mesma, através do florescer de preocupações intelectuais e pelo ato de criação literária.

A personagem se liberta pela escritura, e a autora constrói um romance com base em uma personagem feminina subjugada que lentamente sai de sua invisibilidade e sobretudo de sua inaudibilidade, sem cair em narrativas piegas, ou na criação de uma escritura à l´eau de rose, como dizem os franceses. Ambas escrevem para se conhecerem através da escritura, compondo obras que desconcertam pela crueza das descrições e por chegarem, como afirma Viart: là où on ne les attend pas. Elles échappent aux significations preconçues, au prêt-à-penser culturel. (2008. p. 13)1

Nessa medida, Martha Batalha desenvolve uma escrita crítica e ao mesmo tempo cheia de humor e de leveza, rompendo cordões de isolamento, deslocando ideias e recriando fórmulas narrativas inéditas. De modo semelhante, autoras de sua mesma geração, como as citadas acima, cada uma escolhendo um objeto do deslocamento, vêm criando o que Luiz Ruffato chama de “Nova literatura brasileira”: Aline Bei aborda, em O peso do pássaro morto (2018), a ainda impronunciável questão do estupro; Eliane Brum, em Uma duas (2018), traz à baila as relações deterioradas entre mãe e filha e temas como a automutilação; Conceição Evaristo, em Olhos d´água (2015), descreve a infância de crianças negras em uma favela e a busca por saber a cor dos olhos da mãe; e Carola Saavedra, em Com armas sonolentas (2018), enfrenta o duríssimo tema da maternidade indesejada e dos desencontros de separações entre mães e filhos, tudo embalado pelo canto “sonolento” de Soror Juana Inés de la Cruz. Enfim, soberbas lições trazidas por esses romances desconcertantes, por vezes penosos para o leitor, mas que certamente não sai o mesmo depois de acabada a leitura. Trata-se de uma literatura que renuncia a trilhar caminhos conhecidos e a reproduzir o que Dominique Viart chama de “o depósito cultural dos séculos e das civilizações” (2008, p. 20).

O belíssimo inventário de perdas realizado por Martha Batalha em A vida invisível de Eurídice Gusmão passou ao cinema tendo sido recentemente apresentado no Festival de Cannes, onde foi premiado na mostra Un certain regard. O melodrama de Karim Aïmouz contou, em seu elenco, com Carol Duarte, Julia Stockler, Gregório Duvivier e com a participação de Fernanda Montenegro. O filme será lançado em setembro no Brasil.

Até lá, ler o livro é uma prazerosa e “desconcertante” urgência. O leitor/a estará trilhando os caminhos do extremo contemporâneo ou, no dizer de Johan Faeber, entrando em contato com uma literatura que surge quando se pensa que tudo já foi escrito e que nada mais de novo haveria para ser contado, correspondendo ao que o autor chama de “après littératures”, ou seja, aquelas que representam uma revivescência do fato literário.

Referências

BATALHA, Martha. A vida invisível de Eurídice Gusmão. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. [ Links ]

FAEBER, Johan. Après la littérature: écrire le contemporain. Paris: PUF, 2018. [ Links ]

RUFFATO, Luiz. 25 mullheres que estão fazendo a nova literatura brasileira. Rio de Janeiro: Record, 2004. [ Links ]

VIART, Dominique; VERCIER, Bruno. La littérature française au présent. 2a. ed. Paris: Bordas, 2008. [ Links ]

Notas

1Lá onde não as esperamos. Elas escapam às significações pré-concebidas, ao pronto-para-pensar cultural.

Zilá Bernd é professora titular aposentada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e atualmente professora permanente do PPG-Memória Social e Bens Culturais do UNILASALLE/Brasil. É bolsista de pesquisa 1B CNPq. Foi uma das primeiras presidentes da ABECAN (Associação Brasileira de Estudos Canadenses) e presidente do ICCS-CIEC (International Council for Canadian Studies). Foi a fundadora e primeira editora da Revista Interfaces Brasil-Canadá. É Officier des Palmes Académiques e Officier de l´Ordre National du Québec. É autora de dezenas de artigos publicados em revistas do Brasil, do Canadá e da França, e de vários livros – sendo o último A persistência da memória; romances da anterioridade e seus modos de transmissão intergeracional. Porto Alegre: Besouro Box, 2018. O mesmo teve versão em língua francesa: La persistance de la mémoire: romans de l´antériorité et leurs modes de transmission intergénérationnelle. Paris : Société des écrivains, 2018. E-mail: [email protected]

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Indicionário do contemporâneo – CÁMARA et al (A-EN)

CÁMARA, Mário; KLINGER, Diana; PEDROSA, Celia; WOLFF, Jorge. Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. Resenha de MANZONI, Filipe.  Some possible journeys for reading the Indicionário do contemporâneo. Alea, Rio de Janeiro, v.21 n.1, jan./apr., 2019.

É conhecido o diagnóstico, lançado por Flora Sussekind em 2013, de uma emergência de “formas corais” na produção literária brasileira, textos marcados pela “constituição de uma espécie de câmara de ecos na qual ressoa o rumor (à primeira vista inclassificável, simultâneo) de uma multiplicidade de vozes” (SUSSEKIND, 2010). Flora nos diz ainda que nessas formas seria característica uma interrogação simultânea “tanto da hora histórica quanto do mesmo campo da literatura” (idem). Se nos for permitido o pressuposto de que a relação entre literatura e crítica não é de precedência mas de mútua contaminação, não é de impressionar que é contemporânea à emergência das “formas corais” a gestação de uma verdadeira “forma coral” da crítica, isto é, o trabalho de escrita do Indicionário do contemporâneo.

O projeto, bem como o processo de sua escrita, são deslindados na apresentação, “Um indicionário de nós”, assinado pelos quatro organizadores do volume, Celia Pedrosa, Diana Klinger, Jorge Wolff e Mario Cámara: trata-se de uma coletânea de ensaios escritos e reescritos ao longo de quatro anos por múltiplos pesquisadores e críticos da América do Sul. O marco inicial desse encontro, um simpósio proposto para o X JALLA – Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana intitulado“Políticas literárias do contemporâneo”, parece ter sinalizado para essa zona de ressonância entre conceitos recorrentes e pontos comuns de inquietação que foram, conforme nos conta ainda a apresentação, gestados durante oito meses pelos catorze pesquisadores que assinam, coletivamente, o livro. Desse processo de mapeamento de afinidades, seis verbetes “que incidem de modo decisivo sobre o pensamento das artes e literaturas atuais” se estabilizaram como núcleos conceituais e deram corpo à versão final do volume: “Arquivo”, “Comunidade”, “Endereçamento”, “O contemporâneo”, “Pós-autonomia” e “Práticas inespecíficas”.

Dois pontos no Indicionário parecem falar a partir de umaindistinção entre as proposições teórico-críticas e a própria metodologia e construção da obra. Em primeiro lugar, desde seu título, encontramos a marca de uma profunda ambivalência: se o texto de apresentação evidencia a ambivalência do prefixo “in-” – que supõe “insubordinação, insatisfação, inquietação, independência” (CÁMARA; KLINGER; PEDROSA; WOLFF, p. 7) mas joga também com o significante “índice ao postular uma leitura-escritura indicial das linguagens e dos conceitos em cena” (idem) -, o volume como um todo parece levar essa ambivalência alguns passos além. De fato, a sobreposição de um “in-dicionário” a um “indício-nário”, ela mesma baseada na homonímia de dois radicais latinos “in-”, um de negação outro de direcionamento, poderia ser tomada como uma marca comum de todos os ensaios. Encontramos, a cada verbete, uma espécie genealogia aberta do conceito abordado, genealogia que esbarra sempre em sua própria incompletude e impossibilidade de fechamento – em um “indicionarizável”, portanto -, mas que nos leva a uma mobilização, isto é, a direcionamentos possíveis – ou indícios – que sobrevivem enquanto potência ou possibilidade.

O segundo ponto que caberia destacar é o quanto todos os tópicos propostos parecem falar não apenas dentro de seu próprio ensaio, mas também através da própria estrutura do livro. Desnecessário sublinhar, por exemplo, o quanto a discussão a respeito da “Comunidade” – em seu percurso que vai da retomada etimológica e filosófica de Roberto Espósito até a proposição de um ator político proposto enquanto “multidão”, via Antonio Negri, Michael Hardt e Paolo Virno, passando ainda, entre outros pontos relevantes, pela ontologia do “com” de Jean-Luc Nancy e pela comunidade que vem de Giorgio Agamben – está na base da própria proposição do “escrever com” que marca o Indicionário. A alternância de grupos fez com que os estilos pessoais de cada pesquisador não sejam mais do que vestígios suspeitos, não autorizados por nenhuma delimitação autoral: todos os textos (exceções feitas à apresentação, assinada pelos organizadores, e ao posfácio, assinado por Raúl Antelo) são potencialmente de todos os pesquisadores, isto é, de Antonio Andrade, Antonio Carlos Santos, Ariadne Costa, Celia Pedrosa, Diana Klinger, Florencia Garramuño, Jorge Wolff, Luciana di Leone, Mario Cámara, Paloma Vidal, Rafael Gutiérrez, Raúl Antelo, Reinaldo Marques e Wander Melo Miranda.

No que toca ainda aos itinerários propostos dentro de cada ensaio, novamente a metodologia parece dizer tanto quanto a proposição teórica a respeito de um modo específico de lidar com o “Arquivo”, tema que abre o Indicionário. Parece interessar, mais do que a figura do “leitor autoritário, organizador que procure dar um sentido fixo ao conjunto” (ibidem, p. 24), uma espécie subversiva de “leitor nômade”, que circula pelos textos “estabelecendo novas redes, abrindo os sentidos” (ibidem). Caberia observar que nesses trajetos alguns caminhos são mais recorrentes, dando uma impressão algo monadológica, na medida em que no interior de cada verbete parecem habitar os demais conceitos, em uma espécie de rede de associações potenciais.

É assim, por exemplo, no ensaio sobre o “Endereçamento”, em que, a partir de uma leitura da importância dos pronomes pessoais a partir da produção de Ana Cristina Cesar, encontramos uma ameaça ao estatuto autônomo da literatura (que ressoaria no verbete “pós-autonomia”), bem como a proposição do endereçamento como “problema epistemológico e ético de como ter acesso à alteridade, sem se fechar numa forma autorreferencial” (idem p. 107), o que nos levaria também ao tópico da comunidade, via Jacques Rancière e Nicolas Bourriaud.

Os percursos possíveis no Indicionário interessam, portanto, tanto quanto possam ser remontados, repensados, e reorganizados por esse “leitor nômade”, figura que abre ainda o ensaio sobre o “Contemporâneo”, a partir de uma desestabilização moderna do espaço institucional da arte, tópico que nos levará a uma leitura de diversas instalações artísticas, tomadas enquanto práticas inespecíficas (nome também do último ensaio do volume, no qual a proposição de um “campo estendido” de Rosalind Krauss se desdobra em ferramenta para a análise de diversas obras contemporâneas que ameaçam a estabilidade de um campo literário). É a partir desse tensionamento do campo literário e da representação do presente histórico que chegamos a uma potência de anacronismo em figuras como Nietzsche, Didi-Huberman ou Agamben, autores que farão do “contemporâneo” um arquivo aberto do histórico, uma zona de constante formulação, impasse e reformulação do histórico.

Caberia ainda ressaltar que, se o tom da proposta do Indicionáio parece, em diversos momentos, trazer uma noção panorâmica ou enciclopédica, em especial pela amplitude das implicações de alguns dos verbetes escolhidos, isso não se dá mediante o sacrifício da riqueza de detalhes. De fato, se nos voltarmos para as notas – somando-se as de todos os fragmentos, quase trezentas -. estas deslumbram pela riqueza de caminhos que se abrem em uma espécie de microscopia dos “indícios” que se permitem ler a partir das catorze bibliotecas que coabitam (e assinam) a obra.

Também parece resistir à planificação sob um argumento “panorâmico” a atenção dada ao que poderíamos chamar de uma das questões centrais, ou, ao menos, a mais recorrente dentro do Indicionário: os desdobramentos e reavaliações da noção de pós-autonomia. O ensaio específico, “Pós-autonomia”, faz um levantamento minucioso das diferentes acepções do polêmico conceito proposto por Josefina Ludmer em 2006, desdobrando suas múltiplas implicações em diferentes contextos que vão desde a literatura contemporânea sul americana, sua recepção crítica, as artes plásticas no presente, mas também a própria estabilização e pacificação de um conceito de “modernidade”. Encontramos ainda, juntamente com esse desdobramento das implicações críticas da questão, um levantamento de algumas das respostas polêmicas ao conceito que, em última instância, atenta contra a própria possibilidade de circunscrição de um campo que identifique um “literário” em oposição a um “não literário”, percurso que nos conduzirá por uma dupla reação: uma postura de retomada elegíaca de uma institucionalidade perdida ou ameaçada, a partir de teóricos como Antoine Compagnon ou Tzvetan Todorov; em contraposição a uma dinamização da ameaça a essa estabilidade institucional, em figuras como Jacques Rancière ou Bruno Latour.

É no centro dessa polêmica que se insere ainda o posfácio do livro, único ensaio assinado por um único autor, Raúl Antelo. O ensaio, originalmente uma conferência intitulada “Autonomia, pós-autonomia, an-autonomia” apresentada no segundo encontro do grupo de pesquisa, em 2013, aparece aqui como “Espaçotempo”, e traz um segundo mapeamento da proposição de Ludmer da pós-autonomia (após uma raiz comum ao verbete “pós-autonomia” via Kant – Adorno), detendo-se na relevância do questionamento da autonomia nas teorias da esquerda italiana da década de 70 (discussão da qual Ludmer seria herdeira). Finalmente, após uma retomada da questão do espaçotempo e da quarta dimensão, percurso que vai desde Ouspensky até as clássicas investigações benjaminianas sobre o cinema e a aura na década de 30, chegamos a uma ressonância entre Ludmer e Benjamin, ponte especialmente contemporânea, já que sobrepõe duas polêmicas longes da pacificação. A partir do temor de alguns possíveis desdobramentos políticos nefastos da aceitação da pós-autonomia (que ressoam o temor benjaminiano da apropriação fascista da potência revolucionária do cinema), Raúl Antelo propõe, em um tom cuidadoso, uma renovação do “crédito ao conceito de autonomia, mesmo que em plano reconfigurado, digamos, an-autonômico” (ibidem, p. 252). Cabe ressaltar o quanto esse final, ou mais especificamente, esse prefixo de negação “an-”. Parece ressoar ainda o “in-” que dá título ao volume, em especial porque ao mesmo tempo que aponta para o estatuto aporético da questão – ou seja “in-dicionário” -, se abre enquanto espaço de apostas – ou seja, para os “indícios”.

Cabe, finalmente, nos permitirmos uma última palavra sobre um ponto que não pode ser deixado de lado quando nos referimos a essa empreitada crítica de tantos pesquisadores. E o que nos interessa ressaltar é precisamente o quanto essa ambivalência que vem desde o título do volume nunca se furta a manter aberto o contemporâneo como um espaço de apostas mais do que do esgotamento. Encontramos, por exemplo, no ensaio sobre “o contemporâneo” uma contraposição ao escuro catastrófico que se resguarda ainda à possibilidade de uma aposta nas sobrevivências, isto é, um pouco de Didi-Huberman contrabalanceando o peso de Giorgio Agamben. Encontramos, ainda, em toda a discussão sobre o “endereçamento”, uma via de escape do fechamento do moderno em um modelo autorreferencial e intransitivo (ou novamente autonomista) a partir de uma abertura ao outro, a uma investidura ainda possível em um pensamento da comunidade, um pensamento que se funda no impróprio, na impropriedade radical, o que, novamente, parece espelhar, mais que teoricamente, metodologicamente o dispositivo crítico do Indicionário.

Referências

CÁMARA, Mário; KLINGER, Diana; PEDROSA, Celia; WOLFF, Jorge (Org.). Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. [ Links ]

GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Trad. Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. [ Links ]

LUDMER, Josefina. “Literaturas pós-autonomas”. In: Sopro Panfleto Político cultural. Trad. Flávia Cera. Desterro: Cultura e Barbárie, 2010, p. 1-4. Disponível em: <Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n20.pdf >. Acesso em: 16 jul 2018. [ Links ]

SUSSEKIND, Flora. Objetos verbais não identificados. O Globo, v. 21, Rio de Janeiro, 2013. Disponível em <Disponível em https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/objetos-verbais-nao-identificados-um-ensaio-de-flora-sussekind-510390.html > Acesso em 15 de março de 2019. [ Links ]

Recebido: 27 de Abril de 2019; Aceito: 31 de Agosto de 2019

Filipe Manzoni. É Doutor em literatura pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutoramento sobre poesia contemporânea brasileira na Universidade Federal Fluminense e leciona literatura brasileira na Universaidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo – ROUSSO (RTA)

ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Trad. Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV, 2016. Resenha de: MAYNARD, Dilton Cândido Santos. Rumo à catástrofe. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.20, p.333‐338. jan./abr., 2017.

A história do tempo presente está na moda. De uma abordagem comparada em curioso tom pejorativo ao jornalismo e à sociologia, nos últimos anos ela passou a receber tratamento atencioso no mercado editorial e obteve demonstrações de prestígio na Academia. Da rarefação passamos à oferta ampla. Este movimento, que levou a HTP da periferia para o cerne dos debates historiográficos, pôde ser observado no número crescente de congressos, workshops, simpósios temáticos, grupos de pesquisa e publicações dedicadas à rubrica.

Porém este avanço inspira cuidados. Como lembrou Robert Darnton ao tratar do Iluminismo, quando algo “está começando a ser tudo”, pode findar sendo nada (DARNTON, 2005:18). É preciso, então, buscar uma definição mais acertada das fronteiras, dos procedimentos e das especificidades da história do tempo presente. É este o desafio assumido no livro A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo, do historiador francês Henry Rousso, publicado no Brasil pela Editora da Fundação Getúlio Vargas em 2016.

Nos quatro e densos capítulos – além da introdução e da conclusão –, a obra originalmente publicada em francês com o título La dernière catastrophe : L’histoire, le présent, le contemporain (Paris, Gallimard, 2013) propõe questionamentos e apresenta respostas possíveis com desenvoltura e coragem. Com o objetivo de “retraçar a evolução, compreender os móbiles, explicar os paradigmas e os pressupostos dessa parte da disciplina histórica que passou, em algumas décadas, da margem ao centro” (18), Rousso toma a metáfora da catástrofe como “revolvimento” e “desenlace teatral”(28) para, no desenrolar dos ensaios, oferecer uma leitura que parece colocar ordem no caos de abordagens sobre a história do tempo presente.

Os ensaios escritos pelo pesquisador nascido no Cairo, em 1954, são distribuídos através dos capítulos: 1. A Contemporaneidade no passado (31‐98), 2. A guerra e o tempo posterior (99‐164), 3. A contemporaneidade no cerne da historicidade (165‐218) e 4. O nosso tempo (219‐280). Os dois primeiros ensaios percorrem a trajetória da história do tempo presente, enquanto nos seguintes, sobretudo no último, Rousso encara o desafio de pensar respostas aos problemas que levanta na obra.

Assim, após demonstrar a persistência da ideia de uma história do tempo presente na longa duração, o autor evidencia uma forma “particular” de HTP a partir dos anos 1970. O olhar de Rousso percorre a historiografia produzida na Inglaterra, Alemanha e América do Norte, mas é na França, a sua base acadêmica – lembramos que ele é pesquisador do renomado Institut d’histoire du temps present, além de possuir atuação frequente no universo acadêmico dos EUA – o espaço de maior atenção, justamente por ver ali algumas das manifestações centrais ao desenvolvimento do campo.

De modo geral, na argumentação de Rousso, temos dois vetores importantes, dois “momentos inaugurais” fundamentais: a I Guerra Mundial – na qual emergem a testemunha, a busca por coleções e a figura do expert, e a II Guerra Mundial – que reforça a importância do passado recente enquanto objeto.

Mas se as duas guerras mundiais foram elementos fundamentais para uma mudança na prática e na percepção histórica, é nos anos 1950‐1970, que a HTP amplia a sua inserção como disciplina e obtém considerável apoio da mídia. A ideia de acontecimento e “acontecimento‐monstro”, como chamou Pierre Nora (1976), ganha contornos mais evidentes com episódios como o caso dos reféns nas Olimpíadas de Munique (1972) ou a Guerra do Vietnã (1955‐1975), eventos televisionados que ampliaram a demanda social por explicações “históricas”. Um sintoma deste avanço pode ser percebido na ocupação pelos historiadores de importantes espaços midiáticos na Europa (Georges Duby foi, provavelmente, o caso mais emblemático).

Mas quais as fronteiras do presente? Onde ele começa? Para Henry Rousso, na última catástrofe. O autor nos lembra do anjo pintado por Paul Klee (1879‐1940), o Angelus Novus (1920), o mesmo mencionado por Walter Benjamin (1892‐1940) em suas Teses sobre o conceito de História, de 1940. Ali, na nona tese lê‐se que “O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés” (BENJAMIN, 1994:226).

Portanto, são os historiadores a definir a última catástrofe. Tais eventos catastróficos exigem das gerações a reflexão e a consequente síntese da sua história recente, implicam em muitas vezes reposicionar elementos da memória, transformam as identidades e acabam por reordenar as interpretações do passado. E quais os eventos “inaugurais” possíveis? Anos emblemáticos como 1789, 1917, 1940 (ao menos para a França), 1945, 1989 e 2001? Para além dos anos inaugurais, conforme o autor, a história contemporânea enquanto um conhecimento constituído a partir da mediação é caracterizada pelo peso dos eventos catastróficos, pela demanda social em torno do historiador, pelo quase inevitável envolvimento judicial e pela importância dada à memória e à testemunha. A propósito, a presença da testemunha é marca deste tipo de pesquisa e é necessário considerar os influxos da emergência da “testemunha que vê, a testemunha que fala, a testemunha que escreve, seja o próprio historiador, desempenha claramente um papel essencial, uma vez que é um mediador primário, para não dizer único” (282), como adverte Rousso.

Uma coisa importante é que o autor não apenas provoca questionamentos, mas demonstra coragem em respondê‐los no decorrer das 341 páginas do livro. A obra nos convida a refletir sobre o ofício do historiador e suas tarefas no século 20. Rousso aponta a relevância do debate sobre o problema fundamental da periodização. A proximidade com os eventos e os desdobramentos disto. Em que medida o historiador deve estar afastado? “A queda do Muro de Berlim ou os atentados de 11 de setembro podem por sua vez constituir fronteiras para um novo período contemporâneo? É… cedo demais para dizê‐lo” (279). Não há resposta fácil quando se trabalha com história do tempo presente.

O livro demonstra que a ideia de contemporaneidade sofreu profunda evolução.

Se “toda história é história contemporânea”, como afirmou Benedetto Croce (1866‐1952), Rousso adverte, no entanto, que: “Isso não significa, contudo, que existe uma concepção contínua e imutável através de vários milênios na maneira de escrever sobre o seu próprio tempo: as modalidades, os métodos, as finalidades de escrita da história mudaram consideravelmente de uma civilização para a outra” (281).

Mas, sim, toda história é contemporânea na medida em que “a história do passado encerrado que seria distinto, e até mesmo cortado em relação ao tempo presente, não tem sentido realmente” (41). Diferente de outros momentos, não se trata de obter o conhecimento a partir de uma ação da Providência ou de uma revelação, é importante considerar a história como conhecimento mediado como uma mudança crucial no sentido atribuído ao tempo presente.

Por sua vez, a ideia de memória é fundamental à história do tempo presente, pois ela descola a HTP do presentismo, da ideia de uma história imediata. A memória confere duração. Deste modo, Henry Rousso ressalta que se configura como um antídoto ao presentismo, não de um sintoma deste fenômeno. A desconstrução de uma leitura linear da história e a valorização das idas e vindas, da presença do passado no presente e do presente no passado exige o trabalho em duas frentes, como lembra o autor: “a da história e a da memória, a de um presente que não quer passar, a de um passado que volta para assombrar o presente, sendo a distinção entre as duas por vezes indisfarçável” (302).

A publicação da obra em português ocorre em momento bastante adequado, em tempos de ampla demanda por reflexões dos historiadores, dias de tensão nos rumos do Brasil, do Mundo, mas também em momento de duros questionamentos acerca do papel social do historiador, da sua necessidade nas salas de aula e da sua validade na orientação das políticas públicas. Neste aspecto, a obra contempla a situação de inúmeros intelectuais que, em diferentes países e contextos, foram chamados a colaborar em processos judiciais, foram interpelados pelas vítimas e pressionados pelos agressores.

Neste sentido, Henry Rousso nos lembra que “o historiador do presente mantém relações conflituosas com o poder, seja religioso, seja político” (282). Em tempos de Donald Trump acelerando o relógio do Armagedon na Casa Branca, Marine Le Pen tocando o tambor da xenofobia na França e quando, no Brasil, assistimos, atônitos, alguém democraticamente eleito ser afastado do cargo com votos dos que celebram eufóricos, cheios de ódio e preconceito, os piores momentos da ditadura e seus torturadores mais temidos, ler A Última Catástrofe é convite irrecusável.

Referências

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. Obras Escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. v. I.p.222‐234 DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

NORA, Pierre. O Retorno do Fato. in NORA, Pierre, LE GOFF. Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.p.179‐193 ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Trad. Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV, 2016.

Dilton Cândido Santos Maynard – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor do Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Federal de Sergipe, e do Programa de Pós‐Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Grupo de Estudos do Tempo Presente da Universidade Federal de Sergipe. Bolsista Produtividade CNPq. Brasil [email protected].

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