Direito à saúde: discursos e práticas na construção do SUS – L’ABBATE (TES)

L’ABBATE, Solange. Direito à saúde: discursos e práticas na construção do SUS. São Paulo: Hucitec, 2010. 284 p. Resenha de: JESUS, Aidecivaldo Fernandes de. Revista Trabalho, Educação e Saúde (Online) vol.9, n.2, Rio de Janeiro, jul./out. 2011.

A autora inicia seu livro propondo uma reflexão sobre o ‘direito’ e o ‘direito à saúde’; faz uma síntese da evolução histórica do conceito desde o Código de Hamurabi, passando pela Lei de Moisés e os Direitos Romanos, até a Declaração dos Direitos Humanos. Além disso, como testemunha ocular da VIII Conferência Nacional de Saúde aliás, participante ativa e entusiasta do tema, como deixa claro em sua apresentação, a autora apresenta ainda as proposições sobre ‘direito à saúde’ debatidas no evento, introduzindo esses conceitos no cotidiano institucional do Sistema Único de Saúde (SUS).

Com essa abordagem, esclarece o que seria a formal publicação dos direitos enquanto enunciado, bem como o inerente embate de forças entre os atores que num determinado momento ‘lutam’ e participam da construção desse direito no âmbito da sociedade em que se estão inseridos. Esses apontamentos preparam o cenário para inserir o leitor na problemática nuclear do texto, ou seja, a do questionamento das posições assumidas por alguns setores sociais/atores estratégicos em relação ao direito à saúde e ao próprio conceito de saúde no universo do SUS.

Segundo a autora, esses setores/atores seriam formuladores de políticas e/ou sujeitos coletivos que representam prestadores ou consumidores organizados e de relevância para o projeto de construção do sistema, cujo princípio balizador é, exatamente, o direito à saúde. E sua proposta de pesquisa é a de analisar o modo de pensar e atuar desses representantes, buscando, em seus discursos, congruências e incongruências no que diz respeito às suas práticas políticoinstitucionais nos vários campos em que atuam.

Especificamente, a autora pretende esclarecer o projeto de implantação do SUS na cidade de Campinas durante o governo municipal do Partido dos Trabalhadores, no período de 1989-1990, entrevistando personagens essenciais nesse processo, além de representantes de diferentes setores. Sua pesquisa contemplou aspectos da trajetória de vida desses personagens, sua atuação políticoinstitucional e as práticas sociais que promulgaram. As informações obtidas são de ordem discursiva, seja a partir de fontes secundárias (jornais, livros, boletins de instituições e informes internos), seja mediante as entrevistas realizadas por ela com os atores. Com isso, oferece ao leitor uma polifonia de vozes sobre um mesmo tema: o direito à saúde.

O conjunto e a riqueza das informações colhidas na investigação permitiram uma lista de entidades/atores que forneceram material posteriormente organizado em quatro capítulos: o setor privado na área da saúde, o setor público, o movimento sindical e o movimento popular.

Segundo Gastão Wagner de Souza Campos, prefaciador do livro, a metodologia empregada na investigação permitiu uma curiosa combinação do geral com o particular, do indivíduo com o coletivo. Saliente-se, porém, que o livro não se restringe ao local: o estudo de caso feito permite a análise de atores articulados e atuantes na implantação do SUS em todo o país.

No capítulo 1, “O setor privado na área da saúde construção e manutenção de um projeto”, a autora relata a história da organização da saúde em Campinas, estabelecendo um ‘estado da arte’ do setor à época da pesquisa, mais especificamente da assistência à saúde. Contextualizando as conjunturas socioeconômicas desse processo, esclarece inicialmente a organização da atenção médica em Campinas com base em hospitais filantrópicos e beneficentes. Assim, parte dos primórdios da implantação do sistema de saúde na cidade e, por meio desse relato histórico, apresenta a realidade social municipal atual e suas necessidades.

Em seguida, traça o movimento de organização dos médicos como corporação, e sua articulação com a previdência social, que culminou na criação, em 1929, de duas entidades: a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas (SMCC) e o Sindicato dos Médicos. Em seguida, ressalta a organização da assistência médica previdenciária, numa situação de equilíbrio e crescimento econômico do município, e a participação dos profissionais nos Institutos de Assistência Previdenciária (IAPs), mediante a qual exerceram sua influência sobre o sistema.

Após a unificação dos IAPs no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), a autora analisa a atuação dos médicos diante da mudança no controle do sistema de saúde que leva à criação de empresas e cooperativas médicas, numa realidade de intensa e desorganizada expansão urbana. Dentre as cooperativas criadas, o projeto mais importante do setor privado de Campinas é a criação da cooperativa médica Unimed. A autora avalia a concepção de direito à saúde do setor privado e sua reação às propostas de organização do sistema de saúde em Campinas pela Secretaria Municipal, que deixa explícito o tensionamento do debate com o setor público. A transcrição dos comentários desses sujeitos permite ao leitor construir uma visão própria acerca deles.

Segundo a autora, a corporação médica é coerente quando atua para construir e manter o seu projeto próprio de assistência à saúde. Porém, para ela, tais colocações não deveriam ser empecilho para aceitar o princípio da constituição do direito à saúde, o qual, exatamente pelo seu nível de formalização, implica a própria constituição da democracia, da modernidade. Pontua, então, que existe uma negação desse princípio no setor, evidente nos depoimentos dos pesquisados. A maior dificuldade dos médicos é a de abandonar o seu ideário liberal, impossível de ser posto em prática em sua plenitude, a não ser por um número limitadíssimo de profissionais que se relacionam com um reduzidíssimo número de clientes. Com esse ideário, presente de forma extremamente forte na profissão médica, impossibilita-se sua realização na prática pelos próprios condicionamentos que essa prática médica vem adquirindo na especificidade do capitalismo brasileiro, na qual esse ideário permanece como ideologia.

No capítulo 2, “O setor público – um projeto em direção ao Sistema Único de Saúde”, a autora descreve e analisa parte do esforço feito pela Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, em 1989, para assumir de direito e de fato a direção política do sistema de saúde, apostando na possibilidade de tornar realidade concreta a municipalização dos serviços de saúde. Inicialmente, a autora faz uma reconstituição histórica, caracterizando o sistema público de saúde de Campinas: o Sistema Unificado Descentralizado de Saúde (Suds). Mapeia e esclarece os serviços oferecidos à época, bem como os principais atores do setor. Em seguida, relaciona os personagens representantes do setor público cinco membros do colegiado da Comissão Interinstitucional Municipal de Saúde selecionados para serem entrevistados. A autora detalha a trajetória desses atores, sua formação política e/ou acadêmica, esclarecendo ao leitor suas implicações e motivações institucionais.

Apesar do compromisso desses atores com o projeto da Secretaria Municipal de Saúde, eles não compartilhavam o mesmo projeto. Isto fica explícito em seus depoimentos sobre o direito à saúde, em que sobressaem suas diferentes concepções e práticas. Porém, todos aceitavam tacitamente o direito à saúde como princípio básico da organização dos serviços de saúde e, por isso, diferenciam-se dos médicos do setor privado. Ao destacar as trajetórias desses personagens, a autora permite que o leitor compartilhe da enorme perplexidade deles diante da dinâmica das instituições e da tarefa de que se incumbiram.

No capítulo 3, “O movimento sindical e o direito à saúde a conscientização dos trabalhadores”, a autora analisa a implantação, em Campinas, do Ambulatório de Saúde do Trabalhador, em 1987. Para ela, é importante desvendar essa história, pois está diretamente relacionada com as concepções que esses sujeitos trabalhadores tinham sobre a organização dos serviços de saúde e acerca do papel que os sindicalizados deveriam assumir, como usuários, na constituição do SUS.

A autora contextualiza as conjunturas político-institucionais da época favoráveis a tal projeto e descreve o universo sindical de Campinas e sua interlocução com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Ao fazer isso, mostra a ideologia partidária progressista dos atores entrevistados o que, aliás, orienta muitas de suas posições e facilita a compreensão quanto a alguns aspectos dos depoimentos desses sindicalistas e das práticas implementadas por eles em suas entidades. Foram selecionados o Sindicato dos Metalúrgicos e o Sindicato dos Bancários por causa da diferença nos tipos de trabalho e, consequentemente, nas repercussões específicas em sua saúde. Além disso, foi abordada a importância que cada sindicato atribuía às questões da saúde do trabalhador, bem como a filiação específica do sindicato a determinada central sindical.

Mais uma vez a autora faz uma breve descrição da trajetória dos entrevistados, de suas concepções políticas e visão de mundo, e assim, também nesse setor, permite ao leitor uma melhor compreensão dos depoimentos dados. Na área da saúde, a atuação desses sujeitos inspirou-se nas suas concepções sobre o direito à saúde, na maneira como pensavam a relação entre o público e o privado e na forma como concebiam o papel do Estado na organização dos serviços de saúde. Aqui também, segundo ela, existia uma aceitação plena do direito à saúde como princípio básico da organização dos serviços de saúde do município. A criação do ambulatório representou um tipo de estratégia em que se combinavam as ações de natureza política, técnica e administrativa de instituições públicas de saúde com as de alguns sindicatos.

No capítulo 4, “O movimento popular de saúde instituindo o direito à saúde como dimensão do cotidiano”, a autora nos relata a trajetória do Movimento Popular de Saúde de Campinas, criado, em 1987, a partir de um seminário de moradores de vários bairros que buscavam soluções para os seus problemas de saúde. Segundo ela, ao nos trazer as trajetórias e práticas de alguns participantes da coordenação desse movimento, foi possível resgatar a importância do processo que esses moradores vivenciaram e a interlocução do movimento com os outros setores já descritos. As cinco mulheres entrevistadas foram selecionadas com base na combinação de representação com liderança. Ao descreverem suas trajetórias, revelam sua subjetividade, sua condição político-social como membro de determinado grupo, comissão ou entidade. E suas biografias se cruzavam de forma significativa com os movimentos dos quais participavam. Nesse capítulo, ainda de forma mais vibrante e viva, a autora nos oferece uma rica descrição das práticas ocorridas dentro desses movimentos. Talvez por essas características, é que se percebe especificamente nesses depoimentos uma abrangência maior do direito à saúde. A autora faz essa constatação e conclui que, portanto, o direito à saúde deve dizer respeito não apenas ao maior acesso a serviços de saúde de qualidade, mas também ao direito a condições de higiene, transporte, educação e salários dignos, sem discriminação de sexo, idade, condição física ou seja, mais do que o direito à saúde, é o direito à vida.

Em suas considerações finais, a autora nos brinda com um exercício reflexivo, ao imaginar como seria uma rodada de conversações entre esses setores, com suas diferentes implicações. Aposta, assim, no diálogo para a construção de uma verdadeira democracia econômica, social e política, propondo que essa deveria ser a nossa utopia.

Segundo Nelson Rodrigues dos Santos, autor do Posfácio, a autora conseguiu realizar o dom incomum de unir, em sua pesquisa, um elevado nível metodológico e também político e humanístico; e de manter, o tempo todo, como fio condutor, os princípios e diretrizes constitucionais consubstanciados em torno do valor ‘direito à saúde’. Portanto, o que temos como produto final é um imprescindível e belo livro, que nos permite aprofundar reflexões e posicionamentos sobre o ‘macro’ e o ‘micro’, sobre a hegemonia e a contra-hegemonia.

Aidecivaldo Fernandes de Jesus – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, Brasil. E-mail: aidecivaldo@yahoo.com.br

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