Pacientes que curam: o cotidiano de uma médica do SUS | Júlia Rocha (R)

Bilros 4 o cotidiano de uma médica do SUS
Júlia Rocha | Imagem: Canal Júlia Rocha |

Critica Historiografica capas 9 o cotidiano de uma médica do SUSEstá expresso na constituição brasileira, conhecida como constituição cidadã, promulgada em 1988, que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” [2]. Entretanto, para que a saúde se tornasse direito de todos e dever do Estado houve um longo processo de reformas e lutas políticas e sociais. O Sistema Único de Saúde (SUS) é o coroamento desse processo, já que a saúde como um direito da população pode ser acessada por meio dele um sistema que se pretende “público, universal e descentralizado” (PAIVA & TEIXEIRA, 2014). Fortalecê-lo, portanto, é assegurar que brasileiros e brasileiras possam exercer plenamente a sua cidadania.

O livro “Pacientes que Curam: O cotidiano de uma médica do SUS”, não narra uma experiência ou um ambiente exclusivamente de assistência hospitalar – como o título pode sugerir. Em vez disso, nos apresenta as vivências de Júlia Rocha – mulher, negra que trabalha como médica de família e comunidade no SUS [3] – com pouco mais de 10 anos de carreira. Graduada em medicina no ano de 2010 e com residência médica concluída em 2015, a autora destaca a partir de sua formação e experiência profissional que o “cuidado em saúde é algo impossível de se fazer só” (ROCHA, 2020, p: 301). Assim, embora o livro não faça referência à história institucional do SUS, ele nos apresenta questões fundamentais para a reflexão sobre a importância desse sistema e sua atuação diante das mais profundas contradições brasileiras. Leia Mais

Trabalhadores técnicos em saúde: aspectos da qualificação profissional no SUS – MOROSINI et al (TES)

MOROSINI, Márcia Valéria Cardoso; LOPES, Márcia Cavalcanti Raposo; CHAGAS, Daiana Crús; CHINELLI, Filippina; VIEIRA, Mônica. (Orgs.). Trabalhadores técnicos em saúde: aspectos da qualificação profissional no SUS. Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2013. 447 p.p. Resenha de: MARTINS, Maria Inês Carsalade. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.13, n.3, set./dez. 2015.

Esta nova publicação da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Trabalhadores técnicos da saúde: aspectos da qualificação profissional no SUS, resulta do estudo “Processo de qualificação de trabalhadores técnicos em saúde: a conformação dos grupos profissionais”, desenvolvido pelo Observatório dos Técnicos em Saúde da EPSJV/Fundação Oswaldo Cruz, integrante da Rede de Observatórios de Recursos Humanos em Saúde no Brasil. As organizadoras da coletânea de artigos são professoras-pesquisadoras da EPSJV: Márcia Valéria Cardoso Morosini, Márcia Cavalcanti Raposo Lopes, Daiana Crús Chagas, Filippina Chinelli e Mônica Vieira.

A primeira parte do livro se dedica a construir o referencial teórico que orienta as pesquisas sobre os grupos profissionais de saúde em áreas abrangidas pelo Programa de Formação de Profissionais de Nível Médio para a Saúde (Profaps), do Ministério da Saúde, considerado como uma política de ampliação e qualificação da força de trabalho no setor saúde. Compartilho da avaliação de Gaudêncio Frigotto que, logo na apresentação do livro, destaca que a leitura do conjunto dos textos revela dois aspectos centrais e diferenciados nas análises sobre a formação e a qualificação dos trabalhadores: o esforço de construção coletiva de um referencial teórico que redunda em coerência interna nos diferentes aspectos estudados; e a compreensão de que as políticas de formação da classe trabalhadora são parte constituinte e constituída de projetos societários em disputa.

O conceito de qualificação, o papel da regulação profissional e educacional e a dinâmica da formação técnica e da ocupação de postos de trabalho em saúde no Brasil dos anos 2000, em uma perspectiva histórica, contextualiza o estudo e aponta para questões indutoras das pesquisas realizadas sobre diversos grupos profissionais: administrativos na gestão da saúde; técnicos de informações e registros em saúde; técnicos em radiologia; técnicos em histologia; técnicos em citologia; técnicos em análises clínicas; técnicos em hemoterapia; técnicos em vigilância em saúde; cuidadores de idosos; e agentes comunitários de saúde.

Para definir os marcos conceituais que fundamentam a discussão, no primeiro capítulo, as autoras fazem uma revisão teórica sobre o conceito de qualificação, contrapondo-se à abordagem das competências, conceito que vem sendo apropriado pelo segmento patronal, quase sempre associado ao de empregabilidade. A tese defendida é de que a qualificação não é fruto ou desdobramento natural das tecnologias e novas formas de organização do trabalho. Entendendo a qualificação como historicamente construída, condicionada pelo contexto econômico, político e social e, portanto, uma síntese de múltiplas determinações, as autoras argumentam que

as relações de poder entre capital e trabalho e os fatores socioculturais que influenciam o julgamento da sociedade dependem da conduta e estratégias empresariais (métodos de gestão e controle da força de trabalho) e da consciência e organização dos trabalhadores (na busca de maior decisão e intervenção no processo produtivo). (Chinelli, Vieira e Deluiz, 2013, p. 43).

No âmbito da saúde, o estudo possibilita ao leitor fazer um resgate do processo de institucionalização do Sistema Único de Saúde (SUS), ao pesquisar as diferentes trajetórias de formação e qualificação dos técnicos em saúde, bem como das regulações profissional e educacional das diferentes profissões/ocupações.

Tendo como pressuposto teórico que a qualificação não está somente relacionada ao conteúdo do trabalho exercido, mas é uma relação social, um processo e, ao mesmo tempo, um produto social, o segundo e o terceiro capítulos fazem o resgate histórico da criação, transformação e regulamentação das profissões/ocupações técnicas em saúde. Segundo os autores, esse processo se intensifica nos anos 1970 e 1980, o que evidencia o caráter tardio delas em relação à regulamentação do trabalho industrial, relacionando as políticas indutoras no sentido da profissionalização dos técnicos de nível médio em saúde e o modelo de produção e organização setorial.

A análise da dinâmica da formação técnica e da ocupação dos postos de trabalho em saúde nos anos 2000 orienta a abordagem do quarto capítulo. A partir da base de dados do censo escolar realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o estudo aponta para a predominância do setor privado na formação técnica em saúde no período 1999–2009, relacionando esse fenômeno ao fato de que essa área de formação nunca se consolidou “como de interesse público, nem [foi] desenvolvida pelas instâncias públicas” (Vieira et al., 2013, p. 127). Por outro lado, com base na evolução dos postos de trabalho de níveis elementar, auxiliar e técnico, ocupados nos estabelecimentos de saúde, e nos dados da Pesquisa de Assistência Médico-Sanitária (AMS), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o período 1999–2009, o estudo discute o aumento na taxa de crescimento dos postos de trabalho em saúde, relacionando-o com as políticas públicas de saúde priorizadas no período. Os autores indicam que, em relação à totalidade dos postos de trabalho criados no setor terciário no período, houve uma marcante expansão dos postos ligados ao cuidado em saúde; o aumento dos níveis de escolaridade da força de trabalho ocupada no setor; e o setor público ainda constitui um importante mercado de trabalho para as ocupações de nível médio/intermediário (técnico/auxiliar) e, principalmente, para as de nível elementar, entre outras questões.

A segunda parte do livro, partindo do referencial teórico esboçado acima, reúne os resultados das pesquisas que recuperam a história da criação e institucionalização de dez grupos profissionais. A leitura dos capítulos nos leva a refletir que, de certa maneira, a criação/(re)recriação de algumas profissões/ocupações técnicas se relacionam diretamente com um determinado contexto de mudanças no modelo de atenção e transição epidemiológica. Nesse sentido, destaca-se a trajetória das agentes comunitárias de saúde, dos cuidadores de idosos e dos técnicos em vigilância em saúde. Do ponto de vista da transição tecnológica, as mudanças impactam diretamente a formação e regulação dos técnicos de radiologia, histologia, citologia, análises clínicas e hemoterapia. Finalmente, considerando os métodos de organização da produção dos serviços, as mudanças implicam a reorientação do processo de qualificação dos técnicos de registro e informações em saúde e dos trabalhadores administrativos que atuam na gestão da saúde.

Entre as principais questões levantadas, a (in)visibilidade, o campo de atuação, a identidade profissional, o mercado de trabalho e o desenvolvimento tecnológico são questões que perpassam todas as análises e se colocam como pontos de reflexão sobre os desafios, possibilidades e limites da qualificação dos trabalhadores de nível médio no sistema de saúde, tanto público como privado, no Brasil.

Trata-se, portanto, de uma importante referência não apenas para os ‘formadores’, mas para gestores, trabalhadores, reguladores e estudiosos do campo da saúde, que se ocupam e se preocupam com a qualidade dos serviços de saúde e com a qualificação do trabalho e do trabalhador enquanto processo indissociável.

Maria Inês Carsalade Martins – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Direito à saúde: discursos e práticas na construção do SUS – L’ABBATE (TES)

L’ABBATE, Solange. Direito à saúde: discursos e práticas na construção do SUS. São Paulo: Hucitec, 2010. 284 p. Resenha de: JESUS, Aidecivaldo Fernandes de. Revista Trabalho, Educação e Saúde (Online) vol.9, n.2, Rio de Janeiro, jul./out. 2011.

A autora inicia seu livro propondo uma reflexão sobre o ‘direito’ e o ‘direito à saúde’; faz uma síntese da evolução histórica do conceito desde o Código de Hamurabi, passando pela Lei de Moisés e os Direitos Romanos, até a Declaração dos Direitos Humanos. Além disso, como testemunha ocular da VIII Conferência Nacional de Saúde aliás, participante ativa e entusiasta do tema, como deixa claro em sua apresentação, a autora apresenta ainda as proposições sobre ‘direito à saúde’ debatidas no evento, introduzindo esses conceitos no cotidiano institucional do Sistema Único de Saúde (SUS).

Com essa abordagem, esclarece o que seria a formal publicação dos direitos enquanto enunciado, bem como o inerente embate de forças entre os atores que num determinado momento ‘lutam’ e participam da construção desse direito no âmbito da sociedade em que se estão inseridos. Esses apontamentos preparam o cenário para inserir o leitor na problemática nuclear do texto, ou seja, a do questionamento das posições assumidas por alguns setores sociais/atores estratégicos em relação ao direito à saúde e ao próprio conceito de saúde no universo do SUS.

Segundo a autora, esses setores/atores seriam formuladores de políticas e/ou sujeitos coletivos que representam prestadores ou consumidores organizados e de relevância para o projeto de construção do sistema, cujo princípio balizador é, exatamente, o direito à saúde. E sua proposta de pesquisa é a de analisar o modo de pensar e atuar desses representantes, buscando, em seus discursos, congruências e incongruências no que diz respeito às suas práticas políticoinstitucionais nos vários campos em que atuam.

Especificamente, a autora pretende esclarecer o projeto de implantação do SUS na cidade de Campinas durante o governo municipal do Partido dos Trabalhadores, no período de 1989-1990, entrevistando personagens essenciais nesse processo, além de representantes de diferentes setores. Sua pesquisa contemplou aspectos da trajetória de vida desses personagens, sua atuação políticoinstitucional e as práticas sociais que promulgaram. As informações obtidas são de ordem discursiva, seja a partir de fontes secundárias (jornais, livros, boletins de instituições e informes internos), seja mediante as entrevistas realizadas por ela com os atores. Com isso, oferece ao leitor uma polifonia de vozes sobre um mesmo tema: o direito à saúde.

O conjunto e a riqueza das informações colhidas na investigação permitiram uma lista de entidades/atores que forneceram material posteriormente organizado em quatro capítulos: o setor privado na área da saúde, o setor público, o movimento sindical e o movimento popular.

Segundo Gastão Wagner de Souza Campos, prefaciador do livro, a metodologia empregada na investigação permitiu uma curiosa combinação do geral com o particular, do indivíduo com o coletivo. Saliente-se, porém, que o livro não se restringe ao local: o estudo de caso feito permite a análise de atores articulados e atuantes na implantação do SUS em todo o país.

No capítulo 1, “O setor privado na área da saúde construção e manutenção de um projeto”, a autora relata a história da organização da saúde em Campinas, estabelecendo um ‘estado da arte’ do setor à época da pesquisa, mais especificamente da assistência à saúde. Contextualizando as conjunturas socioeconômicas desse processo, esclarece inicialmente a organização da atenção médica em Campinas com base em hospitais filantrópicos e beneficentes. Assim, parte dos primórdios da implantação do sistema de saúde na cidade e, por meio desse relato histórico, apresenta a realidade social municipal atual e suas necessidades.

Em seguida, traça o movimento de organização dos médicos como corporação, e sua articulação com a previdência social, que culminou na criação, em 1929, de duas entidades: a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas (SMCC) e o Sindicato dos Médicos. Em seguida, ressalta a organização da assistência médica previdenciária, numa situação de equilíbrio e crescimento econômico do município, e a participação dos profissionais nos Institutos de Assistência Previdenciária (IAPs), mediante a qual exerceram sua influência sobre o sistema.

Após a unificação dos IAPs no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), a autora analisa a atuação dos médicos diante da mudança no controle do sistema de saúde que leva à criação de empresas e cooperativas médicas, numa realidade de intensa e desorganizada expansão urbana. Dentre as cooperativas criadas, o projeto mais importante do setor privado de Campinas é a criação da cooperativa médica Unimed. A autora avalia a concepção de direito à saúde do setor privado e sua reação às propostas de organização do sistema de saúde em Campinas pela Secretaria Municipal, que deixa explícito o tensionamento do debate com o setor público. A transcrição dos comentários desses sujeitos permite ao leitor construir uma visão própria acerca deles.

Segundo a autora, a corporação médica é coerente quando atua para construir e manter o seu projeto próprio de assistência à saúde. Porém, para ela, tais colocações não deveriam ser empecilho para aceitar o princípio da constituição do direito à saúde, o qual, exatamente pelo seu nível de formalização, implica a própria constituição da democracia, da modernidade. Pontua, então, que existe uma negação desse princípio no setor, evidente nos depoimentos dos pesquisados. A maior dificuldade dos médicos é a de abandonar o seu ideário liberal, impossível de ser posto em prática em sua plenitude, a não ser por um número limitadíssimo de profissionais que se relacionam com um reduzidíssimo número de clientes. Com esse ideário, presente de forma extremamente forte na profissão médica, impossibilita-se sua realização na prática pelos próprios condicionamentos que essa prática médica vem adquirindo na especificidade do capitalismo brasileiro, na qual esse ideário permanece como ideologia.

No capítulo 2, “O setor público – um projeto em direção ao Sistema Único de Saúde”, a autora descreve e analisa parte do esforço feito pela Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, em 1989, para assumir de direito e de fato a direção política do sistema de saúde, apostando na possibilidade de tornar realidade concreta a municipalização dos serviços de saúde. Inicialmente, a autora faz uma reconstituição histórica, caracterizando o sistema público de saúde de Campinas: o Sistema Unificado Descentralizado de Saúde (Suds). Mapeia e esclarece os serviços oferecidos à época, bem como os principais atores do setor. Em seguida, relaciona os personagens representantes do setor público cinco membros do colegiado da Comissão Interinstitucional Municipal de Saúde selecionados para serem entrevistados. A autora detalha a trajetória desses atores, sua formação política e/ou acadêmica, esclarecendo ao leitor suas implicações e motivações institucionais.

Apesar do compromisso desses atores com o projeto da Secretaria Municipal de Saúde, eles não compartilhavam o mesmo projeto. Isto fica explícito em seus depoimentos sobre o direito à saúde, em que sobressaem suas diferentes concepções e práticas. Porém, todos aceitavam tacitamente o direito à saúde como princípio básico da organização dos serviços de saúde e, por isso, diferenciam-se dos médicos do setor privado. Ao destacar as trajetórias desses personagens, a autora permite que o leitor compartilhe da enorme perplexidade deles diante da dinâmica das instituições e da tarefa de que se incumbiram.

No capítulo 3, “O movimento sindical e o direito à saúde a conscientização dos trabalhadores”, a autora analisa a implantação, em Campinas, do Ambulatório de Saúde do Trabalhador, em 1987. Para ela, é importante desvendar essa história, pois está diretamente relacionada com as concepções que esses sujeitos trabalhadores tinham sobre a organização dos serviços de saúde e acerca do papel que os sindicalizados deveriam assumir, como usuários, na constituição do SUS.

A autora contextualiza as conjunturas político-institucionais da época favoráveis a tal projeto e descreve o universo sindical de Campinas e sua interlocução com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Ao fazer isso, mostra a ideologia partidária progressista dos atores entrevistados o que, aliás, orienta muitas de suas posições e facilita a compreensão quanto a alguns aspectos dos depoimentos desses sindicalistas e das práticas implementadas por eles em suas entidades. Foram selecionados o Sindicato dos Metalúrgicos e o Sindicato dos Bancários por causa da diferença nos tipos de trabalho e, consequentemente, nas repercussões específicas em sua saúde. Além disso, foi abordada a importância que cada sindicato atribuía às questões da saúde do trabalhador, bem como a filiação específica do sindicato a determinada central sindical.

Mais uma vez a autora faz uma breve descrição da trajetória dos entrevistados, de suas concepções políticas e visão de mundo, e assim, também nesse setor, permite ao leitor uma melhor compreensão dos depoimentos dados. Na área da saúde, a atuação desses sujeitos inspirou-se nas suas concepções sobre o direito à saúde, na maneira como pensavam a relação entre o público e o privado e na forma como concebiam o papel do Estado na organização dos serviços de saúde. Aqui também, segundo ela, existia uma aceitação plena do direito à saúde como princípio básico da organização dos serviços de saúde do município. A criação do ambulatório representou um tipo de estratégia em que se combinavam as ações de natureza política, técnica e administrativa de instituições públicas de saúde com as de alguns sindicatos.

No capítulo 4, “O movimento popular de saúde instituindo o direito à saúde como dimensão do cotidiano”, a autora nos relata a trajetória do Movimento Popular de Saúde de Campinas, criado, em 1987, a partir de um seminário de moradores de vários bairros que buscavam soluções para os seus problemas de saúde. Segundo ela, ao nos trazer as trajetórias e práticas de alguns participantes da coordenação desse movimento, foi possível resgatar a importância do processo que esses moradores vivenciaram e a interlocução do movimento com os outros setores já descritos. As cinco mulheres entrevistadas foram selecionadas com base na combinação de representação com liderança. Ao descreverem suas trajetórias, revelam sua subjetividade, sua condição político-social como membro de determinado grupo, comissão ou entidade. E suas biografias se cruzavam de forma significativa com os movimentos dos quais participavam. Nesse capítulo, ainda de forma mais vibrante e viva, a autora nos oferece uma rica descrição das práticas ocorridas dentro desses movimentos. Talvez por essas características, é que se percebe especificamente nesses depoimentos uma abrangência maior do direito à saúde. A autora faz essa constatação e conclui que, portanto, o direito à saúde deve dizer respeito não apenas ao maior acesso a serviços de saúde de qualidade, mas também ao direito a condições de higiene, transporte, educação e salários dignos, sem discriminação de sexo, idade, condição física ou seja, mais do que o direito à saúde, é o direito à vida.

Em suas considerações finais, a autora nos brinda com um exercício reflexivo, ao imaginar como seria uma rodada de conversações entre esses setores, com suas diferentes implicações. Aposta, assim, no diálogo para a construção de uma verdadeira democracia econômica, social e política, propondo que essa deveria ser a nossa utopia.

Segundo Nelson Rodrigues dos Santos, autor do Posfácio, a autora conseguiu realizar o dom incomum de unir, em sua pesquisa, um elevado nível metodológico e também político e humanístico; e de manter, o tempo todo, como fio condutor, os princípios e diretrizes constitucionais consubstanciados em torno do valor ‘direito à saúde’. Portanto, o que temos como produto final é um imprescindível e belo livro, que nos permite aprofundar reflexões e posicionamentos sobre o ‘macro’ e o ‘micro’, sobre a hegemonia e a contra-hegemonia.

Aidecivaldo Fernandes de Jesus – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, Brasil. E-mail: [email protected]

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O que é o SUS? – PAIM (TES)

PAIM, Jairnilson Silva. O que é o SUS?. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009, 148 p. Resenha de: LIMA, Sylvia Marisa Braga de; MATTA, Gustavo Corrêa. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.8, n.1,  mar./jun. 2010.

O que é o SUS?, título do novo livro de Jairnilson Silva Paim, reconhecido pensador baiano e militante da Reforma Sanitária Brasileira, pode nos levar a pensar imediatamente algumas questões: Para que mais um livro sobre a história e organização do Sistema Único de Saúde (SUS)? Já não teríamos o bastante, das mais variadas formas e conteúdo?; O que é o SUS? nos remeteria a pensar o que ‘não’ é o SUS? Difícil resposta em tempos de indistinção paradigmática entre público e privado, entre Estado e sociedade; Em função da diversidade de serviços, políticas e ideologias que atravessam o sistema de saúde brasileiro, como discutir de forma original e sintética os principais elementos que o constituem ao mesmo tempo apresentando seus principais desafios e contradições?

Na realidade, essas questões apontam para desafios, obstáculos literário, científico e político, que, em primeira mão, poderiam ser colocados em segundo plano para um livro que, de acordo com o autor, não pretende ser “uma obra acadêmica voltada para estudiosos e pesquisadores” (p. 9). Mas não é o que se observa neste livro que, apesar de pretender alcançar um público mais amplo e não necessariamente iniciado nas discussões acadêmicas e políticas sobre a reforma sanitária brasileira. Sua virtude é a capacidade de dialogar e apresentar teses muito caras ao pensamento sanitário brasileiro de forma clara, simples e, ao mesmo tempo, sem perder a densidade de sua dimensão política, ética e social. Aliás, características inerentes à trajetória de Paim, ao longo de tantos anos de contribuições e militância política na construção do SUS.

O livro está organizado em cinco capítulos que podemos identificar como temas que englobam desde a concepção de saúde e de sistema de saúde, passando pelo processo histórico de construção das políticas de saúde e da reforma sanitária brasileira, chegando aos elementos legais e institucionais do SUS, além de refletir sobre seus avanços e desafios.

Realmente, a linguagem proposta por Paim é simples, mas sem perder a densidade, como fazem os grandes sábios. Portanto, seu auditório é amplo. É composto por estudantes, docentes, cidadãos, gestores, profissionais de saúde, entre outros. Enfim, todos aqueles que têm em comum a alma crítica e atenta às crenças e valores da reforma sanitária brasileira e lutam para a consolidação do SUS.

Ao final do livro, Paim convida o leitor para seguir discutindo o SUS por meio de sugestões de leituras que vão desde documentos históricos, no marco da reforma, como “A questão democrática na área de saúde”, publicado pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em 1980, até seu próprio livro Reforma sanitária brasileira: contribuição para compreensão e crítica, de 2008, no qual Paim aprofunda muitos dos temas debatidos aqui e suas propostas para fazer avançar o SUS.

Gostaríamos, para ampliar o debate, de destacar três grandes momentos do livro, entre vários que poderíamos selecionar, onde o autor apresenta de forma crítica e contundente suas posições, deixando de lado o didatismo descritivo e a eloquência característica dos livros que louvam e idealizam o SUS, alienando-o da materialidade histórica a que pertence.

“O SUS ‘não é’ um mero meio de financiamento e de repasse de recursos federais para estados, municípios, hospitais, profissionais e serviços de saúde. ‘Não é’ um sistema de serviços de saúde destinados aos pobres e ‘indigentes’. Pelo menos não é isso que se encontra na constituição e nas leis, nem é o proposto pela RSB” (p. 72)

No livro, Paim explora, denuncia e aponta soluções para as distorções que o SUS vem sofrendo ao longo dos anos. Relaciona, sobretudo, seus impasses com o cenário político e econômico das últimas décadas, bem como com a cultura política e o histórico de malversações do erário público e os diversos interesses econômicos e ideológicos que estão em jogo na arena da seguridade social brasileira.

De um lado, há o evidente interesse do famigerado complexo médico-industrial brasileiro na transformação de toda e qualquer ação e serviço de saúde numa relação de mercado, de consumo e de acúmulo de capital por parte de empresas nacionais e internacionais. Isso faz com que, muitas vezes, ‘em defesa do SUS’, estratégias de gestão público/privado sejam colocadas em cena, fazendo do sistema um mero distribuidor de recursos e um regulador das relações entre público e privado.

Além disso, em nome da equidade e da escassez de recursos para o setor público de saúde no Brasil, o SUS transmuta-se numa expressão focalizada das políticas sociais voltadas para pobres e desassistidos de toda a sorte. Isso não quer dizer que não se devem priorizar os que mais necessitam, mas reduzir as ações e serviços de saúde a uma classe social é fazer do SUS o amortecedor social para a delimitação das áreas livres para exploração dos planos de saúde privados e do livre mercado no setor saúde. Este SUS é o oposto da proposta de direito à saúde que está inscrita na constituição de 1988 e que foi resultado de uma histórica e ampla conquista popular.

Estas reflexões nos levam ao segundo grande momento que pretendemos destacar.

“A constituição estabelece que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, mas em nenhum momento condena o SUS a ser refém da ‘administração direta’. Novas institucionalidades podem ser concebidas e pesquisadas no âmbito da ‘administração indireta’ que, além de garantir maior efetividade e qualidade dos serviços prestados, facilitem uma ‘blindagem’ contra o predomínio de interesses político-partidários e corporativos na gestão do sistema e na gerência de programas e serviços” (p. 131).

O autor aqui apresenta uma preocupação fundamental em relação aos usos que governos, políticos e partidos políticos fazem do SUS nas suas diversas esferas de atuação (federal, estadual e municipal), não seguindo os princípios, diretrizes, resoluções de impacto orçamentário e administrativo que dão forma e conteúdo ao SUS. Pelo contrário, observa-se com muita frequência o desvio de recursos para fins distintos do setor saúde e a adoção de ações e serviços que não atendem, por exemplo, a universalidade e integralidade da atenção à saúde. Além disso, entraves burocráticos e administrativos da gestão pública impedem a resolubilidade e a qualidade do SUS, que muitas vezes requerem agilidade e inteligência para atuar com rapidez e estrategicamente.

Por outro lado, o que Paim chama de blindagem política do SUS, com todas as razões coerentes e necessárias que argumenta, poderia colocar em xeque o processo político e social inerente à própria constituição democrática do SUS. Cabe à sociedade e ao Estado fortalecer as instituições sociais e radicalizar as formas de representação e participação para fazer cumprir, de forma democrática e dialógica, os objetivos e as estratégias para o direito à saúde no Brasil.

Em relação a isso, no terceiro momento que destacamos, Paim conclama a sociedade para lutar, novamente e ininterruptamente, pela emancipação social que o SUS representa.

“Daí a pertinência de revisitarmos a reforma sanitária e ampliarmos suas bases sociais e políticas, no sentido de radicalizar a democracia e lutar pelas mudanças prometidas no seu ‘projeto’. Nessa perspectiva, retomar mobilizações em prol do desenvolvimento de uma consciência sanitária na população e entre os trabalhadores do SUS parece-nos inadiável. Informar, comunicar, conscientizar, mobilizar, organizar e pressionar são verbos que conotam ações fundamentais para a defesa do SUS e o avanço da reforma sanitária” (p. 132).

Com esta chamada para retomar o movimento sanitário, ampliando suas bases, sofisticando seus dispositivos e fortalecendo a consciência política coletiva, Paim retoma sua trajetória, jamais abandonada, de militância e esperança nas conquistas sociais pela saúde.

A fim de se garantir os direitos dos cidadãos usuários do SUS, o autor lista medidas a serem cumpridas e direitos dos pacientes, tomando em especial atenção as questões de financiamento, humanização e ética. Defende que a luta pelo direito à saúde passa, necessariamente, pela reorientação das políticas públicas, econômicas e sociais que favoreçam a redução das desigualdades, a cidadania plena, a qualidade de vida e a democracia.

Em resumo, o livro O que é o SUS? não é apenas mais uma obra sobre o processo histórico de construção da Reforma Sanitária Brasileira e suas conquistas, mas principalmente um texto que fornece uma base sólida e crítica para a defesa do SUS e da democracia. É um manual de bolso para conhecermos os avanços, as contradições, os desafios e uma pauta de luta para todos os cidadãos brasileiros, profissionais de saúde ou não, em defesa da vida, da emancipação social e da saúde como um direito humano e universal.

Sylvia Marisa Braga de Lima – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

Gustavo Corrêa Matta – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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