Linguagens da História / História e Cultura / 2012

A Revista História e Cultura apresenta, no seu primeiro número, o dossiê Linguagens da História, composto por seis artigos que refletem sobre a relação entre a história e as diversas linguagens que o homem utiliza para expressar as relações que mantém com o mundo circundante (literatura, música, cinema, religião, política, etc.). Relações, a propósito, cada vez mais foco da atenção do historiador contemporâneo.

Pensar as linguagens não apenas como meio de expressão da experiência humana, mas como objeto incontornável para entendermos a própria historicidade das formas de conhecimento e construção do passado só se tornou possível a partir de uma redefinição dos rumos do conhecimento histórico. A desnaturalização do vínculo entre história e narrativa a partir do século XX teve um papel fundamental nessa mudança. A narração, que tinha sido tomada como elemento intrínseco da história, passa a ser pensada como elemento que interfere nos sentidos da história.

Se essa história como narrativa de acontecimentos sofreu, no início do século XX, um significativo ataque pelos pioneiros da Escola dos Annales, os quais propuseram uma diluição da forma narrativa da história, foi a partir da década de 70 do século XX que a forma narrativa como fundamento da história recobrou força. O termo narrativa passou a ser defendido como próprio da história, ou seja, a nova história narrativa não significou o retorno da narrativa dos eventos, mas o redimensionamento da forma narrativa da história, sem desconsiderar suas complexas articulações com a ficção. A ênfase sobre a dimensão narrativa da história, ou melhor, o redimensionamento do papel da linguagem no discurso histórico, desse modo, ampliou as possibilidades da escrita da história e abriu o caminho para novas abordagens.

Ao levantar a problemática das Linguagens da História, o dossiê pretende refletir sobre os novos campos da história e os problemas que decorrem do uso de novos objetos, ou seja, evidenciar as perspectivas que tem os historiadores acerca dos diálogos da história com outros discursos sobre o homem. Por muito tempo, a história escrita foi pensada apenas através de um conjunto restrito de tipos de documentos, os quais, segundo a historiografia tradicional, permitiam distingui-la claramente de outras disciplinas e especialmente da ficção. Aqui, ao contrário, temos o propósito de mostrar como as diferentes linguagens que fazem a história ajudam a produzir um passado e, por isso mesmo, devem elas próprias serem examinadas em sua historicidade.

Vejamos como as diferentes linguagens são trabalhadas pelos autores que compõem o dossiê.

No artigo de abertura, André Luiz Cruz Tavares busca analisar o papel dos compêndios de História Universal, utilizados no Ensino Secundário durante a Primeira República do Brasil (1889-1930), para a construção de uma identidade republicana. Tomando o político como linguagem para a empreitada, Tavares examina como os autores desses manuais encontraram na Roma republicana – especialmente nos discursos de Marco Túlio Cícero, grande defensor do modelo da República romana – um exemplo político e jurídico a ser seguido pelo Brasil daquele tempo.

Próximo da temática abordada por André Luiz Cruz Tavares, Rubens Arantes Correa pretende, a partir da produção cronística de Raul Pompéia publicada no jornal O Estado de S. Paulo e intitulada “Da Capital”, remontar a política na última década do século XIX. No texto, além de destacar como Pompéia denuncia aspectos do tumultuado período que compreende os governos de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, Correa aponta a perspectiva do cronista sobre o cotidiano carioca e a falta de estrutura da capital do país. A literatura, pelas crônicas de Raul Pompéia, aparece no artigo como uma linguagem possível para “reconfigurar o debate político nos momentos iniciais da República no Brasil, marcado por disputas em torno de projetos de nação em construção”.

O trabalho de Carla Ferreti Santiago e Débora Viveiros Pereira, ao explorar a arte nas páginas do jornal mineiro Diário da Tarde, entre os anos de 1968-1978, apresenta uma história dos “movimentos de contracultura em Belo Horizonte”. As autoras destacam como a capital mineira foi palco de atuação de bandas musicais, de grupos teatrais e de produções artísticas que buscavam distanciar-se dos cânones oficiais para se expressarem; e como tais manifestações foram retratadas negativamente pelo periódico Diário da Tarde. De um modo geral, o artigo busca perceber como sociedades com valores e padrões morais conservadores lidam com expressões artísticas que inauguram novos padrões estéticos e estabelecem linguagens não convencionais de arte.

Outra linguagem presente num dos artigos que compõem o dossiê é a música. Gustavo dos Santos Prado busca captar a sociedade brasileira dos anos 80, do século XX, pela música, em especial o Rock. Através da análise das letras e das melodias do Rock produzido nos anos 80, Prado acredita ser possível mapear os dilemas, medos, anseios, dúvidas e questionamentos da juventude e entender o Brasil daquele tempo.

A religião também é umas das linguagens exploradas pelos dois últimos autores do dossiê. Danilo Medeiros Gazzotti estuda a difusão do Priscilianismo – uma interpretação dissonante da doutrina oficial da Igreja – na região da Gallaecia e como essa “heresia” foi interpretada pelo bispo Idácio de Chaves. Este, durante seu bispado, deixou suas impressões acerca dos acontecimentos no império em uma crônica que abrange desde a elevação de Teodósio I a condição de imperador em 379 d.C. até o ano de 469 d.C. Por meio do testemunho deste episcopal, Gazzotti busca compreender os conflitos e as disputas de poder que opunham essa heresia ao projeto institucionalizante de controle do cristianismo proposto pela Igreja Católica.

O estudo do corpo e das formas pelas quais os indivíduos com ele se relaciona é o foco do último artigo do dossiê, de Frederico Alves Mota. Partindo do papel da linguagem religiosa para a criação de normas e padronização do comportamento, Mota tem por objetivo analisar as representações religiosas produzidas pela Renovação Carismática Católica no que se refere à sexualidade, mais especificamente acerca da homossexualidade. Ao exaltar a heterossexualidade, o discurso da Renovação Carismática procura associar o homossexualismo as mais diversas patologias, bem como equalizar o comportamento homossexual a suscetibilidade às influências das forças do mal. Tal linguagem, segundo Mota, pretende homogeneizar as práticas espirituais e os comportamentos sexuais, numa tentativa de reafirmar os dogmas que por séculos tem dado sustentação aos postulados da Igreja Católica.

Finalizada esse breve apresentação ao dossiê, esperamos que as Linguagens da História suscitem reflexões e debates sobre as práticas do historiador, seus objetos, suas possibilidades de abordagens e os diálogos com outros campos do conhecimento. Agradecemos a colaboração dos autores ao dossiê e desejamos uma boa leitura.

Milena da Silveira Pereira

Gilmara Yoshihara Franco


PEREIRA, Milena da Silveira; FRANCO, Gilmara Yoshihara. Introdução. História e Cultura. Franca, v.1, n.1, 2012. Acessar publicação original [DR]

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