História, Fronteiras e Identidades / Monções / 2016

A Revista Monções apresenta, neste número, o dossiê História, fronteiras e identidade. A proposta do conjunto de textos que trazemos aos/as leitores/as parte de uma perspectiva conceitual abrangente no que se refere as experiências de grupos e pessoas em espaços e/ou situações fronteiriças. Em outras palavras, compreende-se fronteira enquanto um termo polissêmico, embora tenha forte ligação com as noções de território, territorialidade e formação da nação, o conceito também abarcar uma enorme gama de possibilidades interpretativas, sobretudo quando se relacionada com culturas, identidades e sociabilidades. Assim, aborda-se a Fronteira como conceito e metáfora, compreendendo-a como algo sempre móvel e que propicia reflexões sobre diferentes percepções de mundo.

O artigo que abre o dossiê é Fronteiras (inter) disciplinares: o ensino de história no contexto das Universidades Novas, de Francismary Alves da Silva. Em sua análise, a autora traça um panorama acerca da constituição das ciências enquanto disciplinas. Ao tratar da especificamente da história, escreve que, no século XIX, “(…) a história se profissionalizou, adotou um método próprio, específico, afastou-se das especulações filosóficas, da estética literária, dos desígnios religiosos, tornou-se uma ciência.” Em outras palavras, os saberes, entre eles a história, constituíram paradigmas teórico-metodológicos próprios.

A análise avança no sentido de apontar, já no século XX, o movimento em prol da interdisciplinaridade, que, mais recentemente, chegou à Universidade brasileira, tanto no que concerne à produção acadêmica, enquanto como conceito; como também aplicado a constituição de licenciaturas e bacharelados interdisciplinares. Sob esta conjuntura, o texto aponta e problematiza questões inerentes à esta nova realidade, particularmente no diz respeito à formação em história. Desse modo, ao tomar a fronteira entre a formação disciplinar e interdisciplinar como objeto de análise, a autora coloca perguntas pertinentes, tais como: os profissionais formados em história (…) poderão atuar com a complexidade e domínio o pensamento histórico requer? O texto traz outros questionamentos igualmente importantes sobre o tema, que valem a pena para entender o cenário atual, vivenciado no interior de algumas Universidades.

Na sequência, o artigo Francisco Adolfo de Varnhagen (1816- 1878): a escrita na “’fronteira” entre história, memória e narrativa no brasil oitocentista, escrito por Marcela Irian Machado Marinho e Renilson Rosa Ribeiro apresenta outra das múltiplas formas que a conceituação de fronteira pode apresentar. O texto analisa a obra de Varnhagen buscando desvendar os compromissos da escrita do Visconde de Porto Seguro com o ideal de nação presente no Segundo Reinado. Caracterizado como “um historiador que se situa na fronteira entre a erudição com a história, a memória e a narrativa”, o artigo revela nuances da tessitura da escrita de Varnhagen, no contexto da criação e consolidação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, e permite ao leitor compreender alguns dos elementos constitutivos da identidade histórica do Brasil, forjada naquele espaço de sociabilidades e de fomento do saber, sob a pena daquele que foi considerado um de seus mais importantes escritores.

No artigo intitulado A diferença entre “nós” e os “outros”: fronteiras e territórios na história do município de Nova Porteirinha/MG, Regina Célia Lima Caleiro e Rhaenny Maísa Freitas abordam a forma como as noções de fronteira e território estão presentes na constituição do município de Nova Porteirinha, Minas Gerais. Além da fronteira física, o texto percorre questões relacionadas à fronteira cultural e identitária, discutindo como o “nós”, relativo à sociedade nova porteirinhense, se forja em distinção ao “outro”, correspondente ao município de Janaúba, que está próximo geograficamente, e Porteirinha, cidade a qual estava vinculada originalmente.

Ao adotar a História Oral como pressuposto metodológico para analisar as entrevistas concedidas pelos moradores do local, as autoras conseguem captar, de forma sensível, a construção identitária do local, formada no bojo do processo de (re)territorialização decorrente da construção da Barragem Bico da Pedra, no Rio Gorutuba e na implantação de um projeto de irrigação destinado a tornar Nova Porterinha espaço de produção de gênero alimentícios de alta qualidade.

Luciano Pereira da Silva e Rogério Othon Teixeira Alves apresentam uma instigante análise sobre a Estrada de Ferro Montes Claros: o projeto de modernidade que não se efetivou. No texto, os autores observam que, a despeito de das características políticas e sociais e de sua condição geográfica de cidade interiorana, Monte Claros não escapou ao desejo de modernização que marcou a sociedade brasileira na passagem do século XIX para o XX. A concretização de tal desejo, segundo eles, se traduziu no projeto de construção da Estada de Ferro Montes Claros que, quando concluída, poderia “tirar a cidade de certo isolamento e atraso”. Por meio da análise de obras memorialísticas e publicações em jornais da época, os autores percorrem todo o processo de planejamento da ferrovia, do início de sua construção e apontam possibilidades interpretativas para sua interrupção. A analisa denota noções, intenções e valores presentes não só em Montes Claros, mas na sociedade brasileira como um todo, no sentido de observar como a inserção no sistema capitalista, simbolizada pela construção de uma ferrovia, alimentava o imaginário em torno de uma certa ideia de desenvolvimento, progresso e civilização caras àquele período.

O artigo de Carlos Alexandre Barros Trubiliano e Kamoni São Paulo, intitulado Apontamentos sobre dinâmicas de fronteiras e a ocupação recente de Rondônia (1970 -1990), se debruça sobre a noção de fronteira geográfica e analisa o processo de ocupação recente de Rondônia. Tomando como referência a obra de Frederick Jackson Turner que estuda o avanço para Oeste nos Estados Unidos, bem como as noções de frente de expansão e frente pioneira, formuladas por José de Souza Martins, o estudo aponta questões relacionadas ao processo de expansão capitalista em direção ao Norte do Brasil, a partir de década de 1970, em particular para a realidade experienciada em Rondônia. O texto destaca o volume de migrantes atraídos para a região e as consequências da política fundiária desenvolvida pelos governos militares que gerou, entre outras, um número significativo de conflito agrários na região.

Rondônia é novamente tema de análise no texto de Eliane Teodoro Gomes e Gilmara Yoshihara Franco, denominado A conquista da última fronteira: a imprensa periódica e as narrativas sobre a ocupação de Rondônia (1960-1980). Nele, as autoras tomam a imprensa periódica, notadamente a revista Veja e o jornal Tribuna Popular, para analisar os sentidos da chegada dos migrantes no território rondoniense, bem como se apresentavam o ideário e os anseios de progresso e desenvolvimento que caracterizavam a Ditadura Civil- Militar e os sonhos daqueles que deixaram seus lugares de origem, em outras regiões do Brasil, e apostaram na conquista de um pedaço de terra no novo Oeste brasileiro.

Percorrendo outros caminhos que o conceito de fronteira permite estabelecer, o trabalho de Márcia Pereira da Silva, intitulado Os “males da mente”: o tratamento das doenças mentais entre o espiritismo e a psiquiatria na primeira metade do século XX no Brasil, mergulha universo dos discursos da medicina convencional e espírita acerca da loucura buscando compreender “as experiências na fronteira entre o que recomendava a psiquiatria e o que defendia os preceitos espíritas”, para o tratamento daquilo que denomina de “males da mente”. Ao analisar fontes e referências bibliográficas que abordam o tema, o texto permite ao leitor observar que, para além da fronteira estabelecida por tratamentos pautados em eletrochoques, lobotomia e isolamento, desenvolveu-se, por intermédio do Espiritismo, outras formas compreender, diagnosticar, enfrentar e tratar aquilo que a medicina ocidental chama de loucura.

Por fim, o artigo de Rita de Cássia Biason, Ética pública e o bom governo: uma tênue fronteira, toma obras clássicas de Platão, Aristóteles, Maquiavel e Hobbes para analisar suas respectivas concepções acerca da formação de bons governos e seu funcionamento a partir de uma ética própria ao Estado. A intenção da autora centra-se sobre o tema da ética na esfera pública. Por intermédio de seu estudo é possível observar como a ética, enquanto conceito, tem concepções distintas no tempo e no espaço e como alguns filósofos a interpretam, com vista a determinar aquilo que entendem como “bom governo” e atuação adequada dos homens que ocupam cargos públicos.

Esperamos que todos e todas apreciem a leitura.

Gilmara Yoshihara Franco

Márcia Pereira da Silva


FRANCO, Gilmara Yoshihara; SILVA, Márcia Pereira da. Apresentação. Monções. Coxim, v.3, n.5, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Linguagens da História / História e Cultura / 2012

A Revista História e Cultura apresenta, no seu primeiro número, o dossiê Linguagens da História, composto por seis artigos que refletem sobre a relação entre a história e as diversas linguagens que o homem utiliza para expressar as relações que mantém com o mundo circundante (literatura, música, cinema, religião, política, etc.). Relações, a propósito, cada vez mais foco da atenção do historiador contemporâneo.

Pensar as linguagens não apenas como meio de expressão da experiência humana, mas como objeto incontornável para entendermos a própria historicidade das formas de conhecimento e construção do passado só se tornou possível a partir de uma redefinição dos rumos do conhecimento histórico. A desnaturalização do vínculo entre história e narrativa a partir do século XX teve um papel fundamental nessa mudança. A narração, que tinha sido tomada como elemento intrínseco da história, passa a ser pensada como elemento que interfere nos sentidos da história.

Se essa história como narrativa de acontecimentos sofreu, no início do século XX, um significativo ataque pelos pioneiros da Escola dos Annales, os quais propuseram uma diluição da forma narrativa da história, foi a partir da década de 70 do século XX que a forma narrativa como fundamento da história recobrou força. O termo narrativa passou a ser defendido como próprio da história, ou seja, a nova história narrativa não significou o retorno da narrativa dos eventos, mas o redimensionamento da forma narrativa da história, sem desconsiderar suas complexas articulações com a ficção. A ênfase sobre a dimensão narrativa da história, ou melhor, o redimensionamento do papel da linguagem no discurso histórico, desse modo, ampliou as possibilidades da escrita da história e abriu o caminho para novas abordagens.

Ao levantar a problemática das Linguagens da História, o dossiê pretende refletir sobre os novos campos da história e os problemas que decorrem do uso de novos objetos, ou seja, evidenciar as perspectivas que tem os historiadores acerca dos diálogos da história com outros discursos sobre o homem. Por muito tempo, a história escrita foi pensada apenas através de um conjunto restrito de tipos de documentos, os quais, segundo a historiografia tradicional, permitiam distingui-la claramente de outras disciplinas e especialmente da ficção. Aqui, ao contrário, temos o propósito de mostrar como as diferentes linguagens que fazem a história ajudam a produzir um passado e, por isso mesmo, devem elas próprias serem examinadas em sua historicidade.

Vejamos como as diferentes linguagens são trabalhadas pelos autores que compõem o dossiê.

No artigo de abertura, André Luiz Cruz Tavares busca analisar o papel dos compêndios de História Universal, utilizados no Ensino Secundário durante a Primeira República do Brasil (1889-1930), para a construção de uma identidade republicana. Tomando o político como linguagem para a empreitada, Tavares examina como os autores desses manuais encontraram na Roma republicana – especialmente nos discursos de Marco Túlio Cícero, grande defensor do modelo da República romana – um exemplo político e jurídico a ser seguido pelo Brasil daquele tempo.

Próximo da temática abordada por André Luiz Cruz Tavares, Rubens Arantes Correa pretende, a partir da produção cronística de Raul Pompéia publicada no jornal O Estado de S. Paulo e intitulada “Da Capital”, remontar a política na última década do século XIX. No texto, além de destacar como Pompéia denuncia aspectos do tumultuado período que compreende os governos de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, Correa aponta a perspectiva do cronista sobre o cotidiano carioca e a falta de estrutura da capital do país. A literatura, pelas crônicas de Raul Pompéia, aparece no artigo como uma linguagem possível para “reconfigurar o debate político nos momentos iniciais da República no Brasil, marcado por disputas em torno de projetos de nação em construção”.

O trabalho de Carla Ferreti Santiago e Débora Viveiros Pereira, ao explorar a arte nas páginas do jornal mineiro Diário da Tarde, entre os anos de 1968-1978, apresenta uma história dos “movimentos de contracultura em Belo Horizonte”. As autoras destacam como a capital mineira foi palco de atuação de bandas musicais, de grupos teatrais e de produções artísticas que buscavam distanciar-se dos cânones oficiais para se expressarem; e como tais manifestações foram retratadas negativamente pelo periódico Diário da Tarde. De um modo geral, o artigo busca perceber como sociedades com valores e padrões morais conservadores lidam com expressões artísticas que inauguram novos padrões estéticos e estabelecem linguagens não convencionais de arte.

Outra linguagem presente num dos artigos que compõem o dossiê é a música. Gustavo dos Santos Prado busca captar a sociedade brasileira dos anos 80, do século XX, pela música, em especial o Rock. Através da análise das letras e das melodias do Rock produzido nos anos 80, Prado acredita ser possível mapear os dilemas, medos, anseios, dúvidas e questionamentos da juventude e entender o Brasil daquele tempo.

A religião também é umas das linguagens exploradas pelos dois últimos autores do dossiê. Danilo Medeiros Gazzotti estuda a difusão do Priscilianismo – uma interpretação dissonante da doutrina oficial da Igreja – na região da Gallaecia e como essa “heresia” foi interpretada pelo bispo Idácio de Chaves. Este, durante seu bispado, deixou suas impressões acerca dos acontecimentos no império em uma crônica que abrange desde a elevação de Teodósio I a condição de imperador em 379 d.C. até o ano de 469 d.C. Por meio do testemunho deste episcopal, Gazzotti busca compreender os conflitos e as disputas de poder que opunham essa heresia ao projeto institucionalizante de controle do cristianismo proposto pela Igreja Católica.

O estudo do corpo e das formas pelas quais os indivíduos com ele se relaciona é o foco do último artigo do dossiê, de Frederico Alves Mota. Partindo do papel da linguagem religiosa para a criação de normas e padronização do comportamento, Mota tem por objetivo analisar as representações religiosas produzidas pela Renovação Carismática Católica no que se refere à sexualidade, mais especificamente acerca da homossexualidade. Ao exaltar a heterossexualidade, o discurso da Renovação Carismática procura associar o homossexualismo as mais diversas patologias, bem como equalizar o comportamento homossexual a suscetibilidade às influências das forças do mal. Tal linguagem, segundo Mota, pretende homogeneizar as práticas espirituais e os comportamentos sexuais, numa tentativa de reafirmar os dogmas que por séculos tem dado sustentação aos postulados da Igreja Católica.

Finalizada esse breve apresentação ao dossiê, esperamos que as Linguagens da História suscitem reflexões e debates sobre as práticas do historiador, seus objetos, suas possibilidades de abordagens e os diálogos com outros campos do conhecimento. Agradecemos a colaboração dos autores ao dossiê e desejamos uma boa leitura.

Milena da Silveira Pereira

Gilmara Yoshihara Franco


PEREIRA, Milena da Silveira; FRANCO, Gilmara Yoshihara. Introdução. História e Cultura. Franca, v.1, n.1, 2012. Acessar publicação original [DR]

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