A produção dos saberes em língua portuguesa / História e Cultura / 2018

A relação entre a história e os diversos saberes e práticas científicas produzidos em cada época tem se tornado cada vez mais foco da atenção do historiador contemporâneo. Pensar os saberes científicos não apenas como meio de expressão da experiência humana, mas como objeto incontornável para entendermos a própria historicidade das formas de conhecimento e construção do passado, só se tornou possível a partir de uma redefinição dos rumos do conhecimento histórico. Este redimensionamento ampliou as possibilidades de se contar o passado e abriu o caminho para novas abordagens. Assim, o presente dossiê A produção dos saberes em língua portuguesa reúne trabalhos que exploram desde saberes que trataram das diversas doenças e tratamentos corpóreos, passando pela análise das formas pelas quais os homens atuaram no seu meio natural transformando-o, até trabalhos cujo enfoque foi justamente interrogar a historicidade do conhecimento, ou melhor, dos modos de conhecer as terras, os mares e até mesmo os céus.

Desde os séculos XI e XII, momento em que os saberes ganham um espaço institucional habitado por mestres ou pares, a preocupação com a definição de arte e ciência passa a ser matéria corrente para aqueles homens que se propuseram a registrar o passado, ou seja, a construção de novos parâmetros definidores dos domínios teóricos e práticos das diversas matérias torna-se peça-chave para pensar a produção do conhecimento. As ciências, nessa altura, fixaram-se ligadas ao conhecimento de caráter especulativo, que partia da crença na racionalidade e constância divina para deduzir as leis que regulavam a experiência terrena. Do mesmo modo, as artes foram concebidas como sinônimo de bem fazer e estiveram relacionadas à noção de execução de uma técnica, de uma ação que, em conformidade com a natureza, gerava ou restabelecia a harmonia dos corpos. Muito embora tais noções tenham sido retomadas da antiguidade, estas concepções de ciência e arte foram redefinidas em um ambiente outro, já que todo e qualquer conhecimento na Idade Média era proveniente de Deus, um Deus que os antigos desconheciam. É significativo dizer, inclusive, que a apropriação e difusão das noções de arte e ciência, apesar de não serem percebidas como uma unidade, estiveram no cerne da proposta dos letrados – ligada, por vezes, aos “estudos gerais” – de pensar a natureza dos saberes, suas relações, oposições e seu grau de participação na busca da verdade. Desse modo, tal interrogação foi muito significativa para definição de campos de estudo como a astronomia e a astrologia que, ainda no tempo das navegações, pendiam entre a ciência e a superstição, como mostra a autora Simone Ferreira Gomes de Almeida no seu Escritos sobre o céu para homens ao mar. Considerações e estudos sobre a astrologia e astronomia dos séculos XV e XVI.

Tal binômio, até o século XVIII, parece não ter tido suas fronteiras recortadas com nitidez, malgrado o saber científico tenha buscado se afirmar sobre novos parâmetros no Setecentos, ao deslocar do centro da análise a figura de Deus, especialmente com Kant na virada do século – que estabeleceu, grosso modo, a morte epistemológica de Deus e a ascensão do homem como sujeito do conhecimento. O Dicionário da Língua Portugueza, de Morais Silva, de 1789, por exemplo, trazia a seguinte definição de ciência e arte: a primeira seria o “conhecimento certo e evidente das cousas por suas causas; v.g., a geometria é uma ciência”; e a segunda seria a “coleção de regras, ou métodos de fazer: v.g., a arte de falar corretamente; a arte de ourivesaria, da carpintaria”, podendo ser tomada como sinônimo de artífice e artista. Pouco antes, M. D`Alembert, no Discurso Preliminar da Enciclopédia, afirmava que “a especulação e a prática constituíam a principal diferença que distinguia as ciências das artes”, ou seja, os saberes práticos estavam relacionados à arte e os saberes teóricos à ciência. Essa falta de delimitação entre a ciência e arte é perceptível, por exemplo, nos escritos arquitetônicos do século XVIII, como foi explorado por Luiza da Silva no artigo “Tratado da arquitetônica, ou arquitetura militar, ou fortificação das praças”: linguagens de defesa, de uma dimensão celestial a vitrúvio. Outros campos do conhecimento, como não poderia deixar de ser, também careciam de contornos mais definidos para se legitimarem, é o caso, por exemplo, da preparação dos remédios, ou a botica, que até o início do século XIX no Brasil, como analisa Viviane Machado Caminha, foi uma atividade quase exclusiva da Companhia de Jesus.

O presente dossiê traz, ainda, dois artigos que se ocupam do ocaso do século XVIII e do século XIX, momento em que a distinção entre arte e ciência se dará com mais precisão. É nesse cenário, pois, que o discurso científico se estabelece, fixa fronteiras entre o que seria “ciência” e “pseudociência” e define normas para qualificar a atuação de diferentes homens de saber, tais como médicos e farmacêuticos. Os artigo Saberes ocultos no Brasil Império: a arte da cura pelo magnetismo animal e a busca pela legitimidade, de Danielle Christine Othon Lacerda, e A produção de conhecimentos de José Pinto de Azeredo, físico-mor de Angola e 1º professor da primera escola médica de Angola, de 1791, parte integrante da rede de conhecimento úteis do Império Ultramarino Português, de Fernanda Ribeiro Rocha Fagundes, levantam justamente essas questões, partindo, porém, de ângulos opostos: no primeiro, uma prática considerada como pseudociência, a do magnetismo animal, ganha evidência e permite questionar a própria historicidade das formas de curar; no segundo, o discurso médico como ciência é destacado por meio dos escritos elaborados pelo célebre físico-mor José Pinto de Azeredo, personagem, cabe mencionar, fundamental na criação de uma rede conhecimentos úteis ao Império Ultramarino.

O dossiê A produção dos saberes em língua portuguesa, para finalizar, reúne, como o leitor observará, textos que tratam de diferentes registros e modos de produção dos saberes científicos, ou com pretensão a científicos. Essa variedade de objetos aqui abordados traz à tona a seguinte questão: quais os contornos e nuances das áreas ou matérias constituintes da construção do saber em cada época? Se o leitor não encontrar uma resposta robusta para a questão, dada a impossibilidade de tal empreitada em um dossiê, defrontará, ao menos, com algumas pistas para discutir tal problemática.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Michelle Souza e Silva – Doutora pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP / Franca). Realiza, atualmente, estágio pós-doutoral financiado na Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Autora, entre outros, de Ler e ser virtuoso no século XV (Editora UNESP, 2012) e de estudos sobre a medicina e o corpo. Membro do grupo Escritos sobre os Novos Mundos.

Milena da Silveira Pereira – Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) e professora do Programa de Pós-Graduação em História na mesma instituição. Realizou estágio pós-doutoral com financiamento do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD / CAPES) na UNESP. Autora, entre outros, de A crítica que fez história: as associações literárias no Oitocentos (Editora UNESP, 2014), Insultos e Afagos: Sílvio Romero e os debates de seu tempo (Editora CRV, 2017) e organizadora, com Jean Marcel Carvalho França, de Por escrito: lições e relatos do mundo luso-brasileiro (EdUfscar, 2018). Membro da Association for Spanish and Portuguese Historical Studies (ASPHS) e do Grupo Escritos sobre os Novos Mundos.

As organizadoras.


SILVA, Michelle Souza e; PEREIRA, Milena da Silveira. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.7, n.2, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Linguagens da História / História e Cultura / 2012

A Revista História e Cultura apresenta, no seu primeiro número, o dossiê Linguagens da História, composto por seis artigos que refletem sobre a relação entre a história e as diversas linguagens que o homem utiliza para expressar as relações que mantém com o mundo circundante (literatura, música, cinema, religião, política, etc.). Relações, a propósito, cada vez mais foco da atenção do historiador contemporâneo.

Pensar as linguagens não apenas como meio de expressão da experiência humana, mas como objeto incontornável para entendermos a própria historicidade das formas de conhecimento e construção do passado só se tornou possível a partir de uma redefinição dos rumos do conhecimento histórico. A desnaturalização do vínculo entre história e narrativa a partir do século XX teve um papel fundamental nessa mudança. A narração, que tinha sido tomada como elemento intrínseco da história, passa a ser pensada como elemento que interfere nos sentidos da história.

Se essa história como narrativa de acontecimentos sofreu, no início do século XX, um significativo ataque pelos pioneiros da Escola dos Annales, os quais propuseram uma diluição da forma narrativa da história, foi a partir da década de 70 do século XX que a forma narrativa como fundamento da história recobrou força. O termo narrativa passou a ser defendido como próprio da história, ou seja, a nova história narrativa não significou o retorno da narrativa dos eventos, mas o redimensionamento da forma narrativa da história, sem desconsiderar suas complexas articulações com a ficção. A ênfase sobre a dimensão narrativa da história, ou melhor, o redimensionamento do papel da linguagem no discurso histórico, desse modo, ampliou as possibilidades da escrita da história e abriu o caminho para novas abordagens.

Ao levantar a problemática das Linguagens da História, o dossiê pretende refletir sobre os novos campos da história e os problemas que decorrem do uso de novos objetos, ou seja, evidenciar as perspectivas que tem os historiadores acerca dos diálogos da história com outros discursos sobre o homem. Por muito tempo, a história escrita foi pensada apenas através de um conjunto restrito de tipos de documentos, os quais, segundo a historiografia tradicional, permitiam distingui-la claramente de outras disciplinas e especialmente da ficção. Aqui, ao contrário, temos o propósito de mostrar como as diferentes linguagens que fazem a história ajudam a produzir um passado e, por isso mesmo, devem elas próprias serem examinadas em sua historicidade.

Vejamos como as diferentes linguagens são trabalhadas pelos autores que compõem o dossiê.

No artigo de abertura, André Luiz Cruz Tavares busca analisar o papel dos compêndios de História Universal, utilizados no Ensino Secundário durante a Primeira República do Brasil (1889-1930), para a construção de uma identidade republicana. Tomando o político como linguagem para a empreitada, Tavares examina como os autores desses manuais encontraram na Roma republicana – especialmente nos discursos de Marco Túlio Cícero, grande defensor do modelo da República romana – um exemplo político e jurídico a ser seguido pelo Brasil daquele tempo.

Próximo da temática abordada por André Luiz Cruz Tavares, Rubens Arantes Correa pretende, a partir da produção cronística de Raul Pompéia publicada no jornal O Estado de S. Paulo e intitulada “Da Capital”, remontar a política na última década do século XIX. No texto, além de destacar como Pompéia denuncia aspectos do tumultuado período que compreende os governos de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, Correa aponta a perspectiva do cronista sobre o cotidiano carioca e a falta de estrutura da capital do país. A literatura, pelas crônicas de Raul Pompéia, aparece no artigo como uma linguagem possível para “reconfigurar o debate político nos momentos iniciais da República no Brasil, marcado por disputas em torno de projetos de nação em construção”.

O trabalho de Carla Ferreti Santiago e Débora Viveiros Pereira, ao explorar a arte nas páginas do jornal mineiro Diário da Tarde, entre os anos de 1968-1978, apresenta uma história dos “movimentos de contracultura em Belo Horizonte”. As autoras destacam como a capital mineira foi palco de atuação de bandas musicais, de grupos teatrais e de produções artísticas que buscavam distanciar-se dos cânones oficiais para se expressarem; e como tais manifestações foram retratadas negativamente pelo periódico Diário da Tarde. De um modo geral, o artigo busca perceber como sociedades com valores e padrões morais conservadores lidam com expressões artísticas que inauguram novos padrões estéticos e estabelecem linguagens não convencionais de arte.

Outra linguagem presente num dos artigos que compõem o dossiê é a música. Gustavo dos Santos Prado busca captar a sociedade brasileira dos anos 80, do século XX, pela música, em especial o Rock. Através da análise das letras e das melodias do Rock produzido nos anos 80, Prado acredita ser possível mapear os dilemas, medos, anseios, dúvidas e questionamentos da juventude e entender o Brasil daquele tempo.

A religião também é umas das linguagens exploradas pelos dois últimos autores do dossiê. Danilo Medeiros Gazzotti estuda a difusão do Priscilianismo – uma interpretação dissonante da doutrina oficial da Igreja – na região da Gallaecia e como essa “heresia” foi interpretada pelo bispo Idácio de Chaves. Este, durante seu bispado, deixou suas impressões acerca dos acontecimentos no império em uma crônica que abrange desde a elevação de Teodósio I a condição de imperador em 379 d.C. até o ano de 469 d.C. Por meio do testemunho deste episcopal, Gazzotti busca compreender os conflitos e as disputas de poder que opunham essa heresia ao projeto institucionalizante de controle do cristianismo proposto pela Igreja Católica.

O estudo do corpo e das formas pelas quais os indivíduos com ele se relaciona é o foco do último artigo do dossiê, de Frederico Alves Mota. Partindo do papel da linguagem religiosa para a criação de normas e padronização do comportamento, Mota tem por objetivo analisar as representações religiosas produzidas pela Renovação Carismática Católica no que se refere à sexualidade, mais especificamente acerca da homossexualidade. Ao exaltar a heterossexualidade, o discurso da Renovação Carismática procura associar o homossexualismo as mais diversas patologias, bem como equalizar o comportamento homossexual a suscetibilidade às influências das forças do mal. Tal linguagem, segundo Mota, pretende homogeneizar as práticas espirituais e os comportamentos sexuais, numa tentativa de reafirmar os dogmas que por séculos tem dado sustentação aos postulados da Igreja Católica.

Finalizada esse breve apresentação ao dossiê, esperamos que as Linguagens da História suscitem reflexões e debates sobre as práticas do historiador, seus objetos, suas possibilidades de abordagens e os diálogos com outros campos do conhecimento. Agradecemos a colaboração dos autores ao dossiê e desejamos uma boa leitura.

Milena da Silveira Pereira

Gilmara Yoshihara Franco


PEREIRA, Milena da Silveira; FRANCO, Gilmara Yoshihara. Introdução. História e Cultura. Franca, v.1, n.1, 2012. Acessar publicação original [DR]

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