Kentukis / Samanta Schweblin

Em uma das primeiras vídeo-chamadas que fiz com minha família em razão da pandemia de Covid-19, minhas tias pediram para que eu mostrasse minha casa. Moro sozinha, em um apartamento pequeno, e sou uma pessoa reservada; raramente convido pessoas a virem aqui e vídeo-chamadas eram incomuns. Até que então me encontrei arrastando o computador por diferentes cômodos, repetindo a frase “não notem a bagunça” para minhas tias e minha prima, então espalhadas entre Porto Alegre, Florianópolis, e Valencia, na Espanha. Partes dele também se tornaram visíveis às minhas instrutoras de Pilates e de Yôga, à minha terapeuta e a inúmeras outras pessoas com quem conversei dessa forma nesse meio tempo.

Não que eu não “exibisse” partes da minha casa na internet; no começo do ano, quando o novo coronavírus ainda era uma abstração que acometia outro hemisfério, um amigo entrou na minha sala pela primeira vez e disse:

– Ah! Essa mesa! – Porque minha mesa, entre outros recortes do apartamento, figura volta e meia em raros posts de Instagram.

Imediatamente antes das nossas vidas sociais (e profissionais, para alguns privilegiados) serem mediadas por telas, delays de áudio e a frase “Ih, travou”, puseram em minhas mãos o romance Kentukis, da escritora argentina Samanta Schweblin, publicado em outubro de 2018 e indicado ao International Booker Prize. Autora de outras seis obras, das quais a antologia de contos Pássaros na Boca e o romance Distância de Resgate encontram-se publicados no Brasil, Schweblin, motivada pelo diagnóstico da ausência da tecnologia na ficção contemporânea, aqui imagina uma nova forma de relação virtual. Na trama, o gadget do momento é um brinquedo de pelúcia com câmera e microfone, chamado kentuki, que leva a forma de diversos animais. Os usuários têm duas opções de uso: eles podem “ser” o kentuki, habitar o animal de pelúcia através de um tablet; ou “ter” o kentuki, comprar o animalzinho, ligá-lo e de pronto ter um estranho circulando pela casa. Os verbos “ser” e “ter” aqui não são usados despropositadamente: quem possui o aparelho é considerado seu “amo”. Para além disso, a conexão é única: em caso de dano ou de não carregamento da bateria, ela se desfaz permanentemente. O enredo segue múltiplas narrativas, em várias cidades do mundo, nas quais os personagens são kentukis, têm kentukis ou deparam com eles.

Através delas, se apresentam diferentes possibilidades desta forma de relação. O otimismo, quase reminiscente daquele relacionado à web 2.0, está encarnado em Marvin, um menino de Antigua, órfão de mãe e com um pai ausente, que quer “ser um dragão” e ver neve. Há também o igualmente promissor potencial de se mitigar a solidão, como é o caso da peruana Emilia, que ganha uma conexão do filho que vive em Hong Kong e que, transmutada em um coelho, passa a habitar um apartamento na Alemanha, sendo paparicada por uma jovem. Por outro lado, está ali a chance para o estabelecimento de relações de poder, como as que Alina, uma jovem sem rumo, vivendo no México, estabelece com seu corvo. Dada a vulnerabilidade dos aparelhos, que podem ser abandonados, destruídos ou ter seu direito de ir e vir cerceado por seus “amos”, surge em um dos arcos um incipiente movimento pela sua libertação. Também, como um desdobramento quase natural do capitalismo, aparece a compra em massa de conexões para que possam ser oferecidas experiências personalizadas, pois pelas regras, os usuários não têm poder de escolha a respeito de onde e com quem vão parar. É aí, justamente nessa falta de controle, que também moram os perigos.

Para além de ser uma reflexão sobre a nossa relação com a tecnologia e as formas com que nos apresentamos através dela, há um momento no romance em que se coloca uma questão singela, já aludida aqui, e que tem a ver, sim, com controle: a de que haveria dois tipos de pessoas no mundo – os que têm e os que são; isto é, aqueles que desejam ser vistos por outrem e aqueles que desejam ver. É necessário dizer que embora os aparelhos contenham tradutores embutidos de forma a permitir a comunicação dos amos com seus kentukis, estes só emitem ruídos condizentes com os dos animais que representam. Quem é, portanto, a princípio, é também totalmente passivo e anônimo. A princípio.

Essa dinâmica entre quem se expõe na internet e quem apenas observa existe desde que ela começou a possibilitar a interação imediata das pessoas com o conteúdo nela disponível e a formação de comunidades em torno de interesses em comum. Quando da leitura do romance, meu primeiro impulso foi o de comparar quem habitava kentukis com os lurkers de fóruns de internet: pessoas que apenas leem posts ou consomem o conteúdo produzido por dada comunidade sem realmente participar dela. Contudo, outros paralelos são possíveis, principalmente em relação ao anonimato e ao poder que esses anônimos supostamente passivos podem deter sobre quem está se expondo, algo que tem sido pauta nas redes sociais, principalmente em relação ao tratamento conferido às mulheres.

O romance de Schweblin é inquietante precisamente por imaginar um mundo aparentemente distópico – a própria imagem de inofensivos bichos de pelúcia sugere certo elemento macabro –, mas que é bastante plausível, dado o fato de que as fronteiras entre o que é público e privado têm-se tornado cada vez mais elusivas através das redes sociais, independente de nós agora em isolamento estarmos mostrando nossas casas, filhos, animais de estimação e até mesmo o interior de nossas geladeiras em reuniões de trabalho. Para além das opções do quanto nos expomos na internet, a vida privada ou uma versão dela é muitas vezes o principal conteúdo que muitos influencers produzem e, de modo geral, tem-se tornado cada vez mais rentável. Já nos dividimos em variados graus e, de certa forma, entre quem deseja ser visto e aqueles que desejam ver.

Renata Dal Sasso Freitas – Professora de Teoria da História no Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do Pampa, no Rio Grande do Sul, e pesquisa as relações entre a história e a escrita de prosa de ficção.


SCHWEBLIN, Samanta. Kentukis. Buenos Aires: Literatura Random House, 2018. Resenha de: FREITAS, Renata Dal Sasso. Sobre Kentukis, de Samanta Schweblin. Humanas – Pesquisadoras em Rede. 20 jul. 2020. Acessar publicação original. [IF]

Volverse Palestina | Lina Meruane

Lina Meruane es escritora, periodista y docente, y se ha hecho conocida tanto por sus libros de cuentos y novelas Las Infantas (1998), Póstuma (2000), Cercada (2000), Fruta podrida (2007) y Sangre en el ojo (2012), como por sus trabajos ensayísticos y crónicas Viajes virales (2012), Contra los hijos (2014) y Volverse Palestina (2013/2014).

Sus textos narrativos tienden a centrarse en el cuerpo, los cuerpos, todos femeninos: cuerpos adolescentes en Las Infantas; cuerpos sufrientes, incluso en estado de putrefacción, en Fruta podrida y Sangre en el ojo; cuerpos en lucha por dominar a otro cuerpo y cuerpos que carecen de todo abrigo y enfrentan así al mundo porque no les queda otra. Meruane escribe en un contexto literario de post-dictadura. Allí el sufrimiento y la lucha de las figuras se convierten en señales liberadoras, a la vez que potencialmente fatales. Sus textos se valen de un lenguaje velado y corporal pasible, llegado el momento, de expresar lo inexpresable, de acusar recibo del daño y del deterioro que desean comunicar, incluso si se trata de expresarse en voz alta antes de sucumbir. Leia Mais