As moradas secretas de Odin: um estudo esotérico sobre a tradição nórdica | Mirella Faur

Os deuses nórdicos vêm fascinando o homem moderno desde a invenção da imprensa e a publicação das Eddas e das Sagas após o Renascimento. Em especial, com o advento do esoterismo e do ocultismo, os antigos cultos e mitologias foram retomados, recriados e interpretados segundo referenciais que muitas vezes afastam-se do que era concebido originalmente pelos escandinavos. É o caso do livro Mistérios nórdicos: deuses, runas, magias, rituais, de Mirella Faur, que propõe uma recuperação da antiga tradição nórdica, mas que na realidade é uma obra que mescla informações acadêmicas contemporâneas com diversos anacronismos criados por pensadores da atualidade. Um inventário de todos os erros, fantasias e equívocos de interpretação do livro transcenderia o espaço desta coluna, motivo que nos limita a apresentar apenas alguns destes lapsos e, principalmente, a refletir sobre a ideologia wiccana que esteve envolvida por trás da elaboração do texto de Mirella.

Ao caracterizar os sacrifícios realizados pelos Vikings, a autora afirma que estas práticas foram oriundas de contatos com as “tribos sanguinárias das estepes russas” (p.35), uma afirmação sem nenhuma comprovação histórica. As imolações já eram comuns desde os germanos da antiguidade, como atestam muitas das fontes clássicas (Langer 2004: 61-85). Também a respeito de registros visuais sobre os mitos, Faur equivoca-se: “Várias das imagens do Ragnarök existiam nas lendas escandinavas muito antes da cristianização. Existem pedras antigas na Suécia gravadas com cenas do Ragnarök” (p. 44). Na realidade, não existem imagens originalmente pagãs desta cena mítica. Em nosso levantamento sobre as estelas da ilha sueca de Gotland, o maior acervo visual pré-cristão da mitologia germânica disponível, não encontramos sequer uma imagem desta cena (Langer 2006: 10-41). Todas as esculturas sobre o Ragnarök foram produzidas em regiões e períodos de contato do paganismo com o cristianismo, no final da Era Viking (como as imagens produzidas em cruzes da área britânica). Em síntese, as antigas tradições orais sobre a batalha final dos deuses foram preservadas em manuscritos e seu núcleo básico talvez contenha muito do pensamento pagão original, mas as cenas visuais que restaram já possuem uma forte interferência e seleção cristã. Ainda no tema de imagens, a autora faz uma sistematização de símbolos que possuem realmente caráter pagão (como o valknut, o fylfot, o mjöllnir), mas enganou-se ao representar alguns, como um coração (segundo ela, “antiga representação dos atributos femininos”, p. 410)– que não ocorre no período germano antigo ou viking, ao menos em estelas e monumentos sagrados; e a espiral, que existiu somente na Escandinávia préviking.

Em relação ao simbolismo religioso das embarcações, novamente Mirella Faur equivocou-se: “Antes que os barcos se tornassem símbolos das conquistas vikings ou servissem como túmulos dos guerreiros, eles reproduziam nos petróglifos a Deusa como a doadora de vida e luz; o barco simbolizava a sua yoni (vulva) ou o veículo da deusa solar” (p. 426). Nada comprova isso: nas gravuras em rochas da Idade do Bronze sueca de Karlslund, os barcos estão associados a homens portando peles e chifres de animais, muitos com pênis eretos, portanto, associados à fertilidade e ao poder sexual masculino. Algumas destas gravuras também contém rodas solares junto a barcos, mas não sabemos se o Sol já era neste período considerado uma deidade feminina. No período pré-Viking da ilha de Gotland, muitas estelas funerárias contém espirais e rodas solares representadas acima de embarcações, uma clara alusão à morte e a passagem do morto para o outro mundo.

A autora preserva a equivocada concepção de que o culto aos Vanes foi mais antigo que o dos Ases: “o mundo pacífico dos adoradores dos Vanir foi dominado pela cobiça e violência dos conquistadores indo-europeus, cujo panteão formado por senhores do céu, dos raios, dos trovões e das batalhas foi se sobrepondo às divindades autóctones que regiam a terra, as forças da natureza, a fertilidade e a sexualidade” (p. 428), algo sem nenhuma comprovação histórico-arqueológica. Na realidade, divindades masculinas conectadas com o céu e com a guerra já apareciam na Escandinávia Neolítica, muito antes das invasões indo-européias, e eram simbolizados por figuras fálicas portando machados e lanças (Davidson 1987: 21).

Outro erro de Mirella é em relação à influência política das deusas: “Existem registros detalhados da devoção de certos reis, que dedicavam templos, estátuas e homenagens às suas madrinhas e protetoras. Posteriormente, o lugar dessas deusas responsáveis pelas dinastias reais e as vitórias nos combates foi outorgado a Odin, Frey, Thor e Tyr” (p. 429). Que registros são esses? Infelizmente a autora não concede maiores detalhes. Todas as fontes disponíveis (obras de Saxo Gramaticus, Snorri Sturlusson, etc) apontam que tanto as dinastias reais pré-Vikings quanto do período Viking eram consideradas influenciadas objetivamente pelo deus Odin (e em alguns poucos casos, por Freyr). Aliás, até mesmo os antigos reis germanos se consideravam descendentes diretos de Wotan e tinham muito orgulho disso (Davidson 1987: 31).

A maior parte da obra dedica-se ao estudo e interpretação das runas (p. 139-379), dentro de uma caracterização muito comum também em outros livros disponíveis em português sobre divinação, sem muitas novidades.[1] A associação de algumas runas a asteróides como Ceres e Vesta e planetas como Urano e Netuno (p. 143, 164, 273), todos invisíveis a olho nu e desconhecidos pelos escandinavos medievais, é ridícula. Não se sabe exatamente que runas eram utilizadas para previsão do futuro e nem que métodos de leitura eram empregados, ao menos durante a Era Viking. Os manuscritos medievais conhecidos como galdraboks são muito posteriores e contém influências mágico-esotéricas alheias à religiosidade pré-cristã. Em especial, o método de divinação apresentado como cruz rúnica (p. 319), nada mais é que uma adaptação do conhecido método da cruz celta do Tarot, transposto para as runas. Outras aplicações mágicas com as runas descritas no livro, como a relação com os pranaiamas da ioga e o stadhagaldr (a ioga rúnica), popularizados pelos esotéricos Ralph Blum e Edred Thorsson (p. 399), são concepções contemporâneas, sem relação direta com a religiosidade Viking.

Durante a descrição da prática mágica do seiðr, a autora possui uma postura ambígua. Primeiro adota a concepção de que o caráter negativo desta magia foi devido ao registro tardio de algumas sagas, já influenciadas pelo cristianismo, sendo seu caráter positivo o verdadeiro aspecto existente na sociedade viking (p. 413). Em um momento posterior do livro, ela apresenta uma outra visão, a de que o seiðr já era considerado negativo pelos escandinavos pagãos, devido a sua relação com os homens efeminados (p. 420). Apesar de ser um tema complexo ainda sujeito a maiores pesquisas, algumas investigações revelam que o verdadeiro poder religioso e social da mulher escandinava era o da esfera privada, onde o seiðr era fundamental, oposto à esfera pública, dominada pelo odinismo e posteriormente pelo cristianismo. Isso foi revelado magistralmente pela pesquisa de Borovsky 1999: 6-39. Já para Schurbein (2003: 129), o xamanismo foi a primeira forma de poder entre as escandinavas, enquanto Dommasnes (2005: 104) reforça os conflitos existentes entre a magia feminina doméstica e a religiosidade pública (todas afirmações de mulheres e pesquisadoras acadêmicas, então, não é uma conspiração masculina de minha parte…).

Na verdade, o intento maior de Mirella Faur é transmitir ao leitor a idéia de que a religiosidade nórdica original era a efetuada por mulheres ou pelo sagrado feminino: “Prevaleciam os ritos e rituais femininos em relação aos masculinos, por ser o universo das mulheres muito mais complexo, amplo e diversificado” (p. 430). Uma afirmação totalmente errônea, se levarmos em conta que desde a pré-história os cultos de divindades masculinas eram os mais preponderantes e importantes na sociedade escandinava em seus aspectos públicos: “As cenas representadas nas rochas mostram rituais de um culto predominantemente masculino, indicado para guerreiros e agricultores, nos quais a mulher desempenha pequeníssimo papel, sendo-lhe apenas permitido aplaudir as procissões” (Davidson 1987: 26). Isso não desmerece de maneira nenhuma a importância das mulheres para a sociedade escandinava, sendo elas no período Viking as transmissoras de quase todo o conhecimento e cultura (Jochens 2005: 217-232).

Em todo momento de seu livro, Mirella Faur leva o leitor a pensar que tanto o pequeno papel das divindades femininas nos mitos e na religiosidade foi causado por uma misoginia dos transcritores dos manuscritos: “O advento do cristianismo levou a uma perseguição intensa do princípio sagrado feminino” (p. 431), quanto do próprio trabalho dos acadêmicos modernos (!), em sua maioria homens: “iniciei a árdua tarefa de procurar a verdade primeva, soterrada sob a poeira dos tempos e fragmentada pelas interpretações tendenciosas dos monges cristãos e dos historiadores e pesquisadores do sexo masculino” (p. 15). Mas o que se percebe de forma geral nos manuscritos transcritos durante o período cristão, no tocante à feitiçaria nórdica masculina e feminina, é que seus praticantes não foram necessariamente descritos como sinistros ou satanizados, mas caracterizados dentro de regras de micro-política das comunidades (Ogilvie 2006: 1-8).

A própria mitologia nórdica, em sua forma como nos foi legada pelas fontes medievais, é questionada por Mirella:

“Da mesma maneira que o mito da criação, a descrição do Ragnarök foi feita pela ótica masculina (…) Nenhuma outra deusa, nem mesmo as Valquírias, é mencionada na grande batalha final (…) A guerra e a destruição jamais foram provocadas ou sustentadas por manifestações do princípio sagrado feminino, pois nenhuma deusa provocou o Ragnarök, participou dele ou colaborou para que ele ocorresse” (p. 44, 45).

Para se entender a batalha final, é preciso estudar o próprio fenômeno da cosmologia e cosmogonia nórdica, sendo que todas as ações realizadas pelos deuses no início dos tempos e em sua trajetória colaboraram para o caos futuro, devido à própria ambigüidade e contradições das divindades masculinas e femininas – neste caso, incluindo desde a “promiscuidade” de Freyja até o ato de Frigg para tentar salvar Balder, não sendo, portanto, as deusas omissas na ordem dos acontecimentos. Para um melhor aprofundamento, ver o estudo de Jesch (2003: 133-140).

Mas qual seria a causa deste posicionamento da autora? Em seu capítulo “O princípio feminino na tradição nórdica” (p. 425) encontramos as respostas. Mirella foi influenciada diretamente pela esoterista Diana Paxson, que auxiliou Marion Bradley a escrever o romance As Brumas de Avalon, durante os anos 1970 e uma das divulgadoras da wicca diânica. Surgido na Califórnia, esse ramo wiccano é conhecido pelo seu radicalismo feminista, propagador da utopia do matriarcado (que nunca foi comprovado historicamente em nenhuma sociedade, vide Georgoudi 2007: 24-27) e pela falsa concepção de que existiu uma poderosa magia feminina européia e um culto a uma única deusa desde a pré-história, perseguida pelo poder masculino pagão e depois pelo cristão, mas que sobreviveu na forma da bruxaria medieval [2].

Em outro livro, As moradas secretas de Odin: um estudo esotérico sobre a tradição nórdica, de Valquíria Valhalladur, encontramos muitos dos mesmos equívocos de Mirella Faur, especialmente o uso da stadhagaldr e ativação de chacras com as runas (p. 79-150), além da idéia de uma ancestralidade autóctone do culto aos vanires (“eram pacíficas, sedentárias e, provavelmente, matriarcais e apologistas da igualdade dos sexos”, p. 66). Alguns novos erros: “Ao contrário dos alfabetos gregos e romanos, as runas nunca se tornaram um sistema fonético fixo” (p. 14). Mas e as centenas de textos em estelas e monumentos na Escandinávia? Antes de tudo, as runas eram uma forma de escrita alfabética, sendo a magia uma aplicação secundária, assim como sua ligação com a cura e relacionadas diretamente ao culto das dísir (Nasstrom 2000: 361). Erros históricos também são comuns: “os barcos Knörr eram temidos por quem cruzasse na sua rota” (p. 157). Esse era o termo empregado para os barcos cargueiros e comerciais, que não utilizavam carrancas, nem escudos ou remos, portanto, não infligiam medo a ninguém. A autora desconhece cronologias sobre os Vikings: “Esses guerreiros desbravaram territórios até se instalarem como um temível império rival dos romanos” (p. 157).

As obras esotéricas, desta maneira, acabam criando muitas falsas interpretações sobre a história, a religiosidade e a sociedade da Escandinávia da Era Viking, confundindo especialmente os neófitos em leituras sobre estes temas. Tanto para os estudantes e pesquisadores quanto para os interessados na reconstituição das antigas práticas religiosas e mitos pré-cristãos, só resta aguardar a publicação de livros mais sérios e fundamentados em nosso país ou recorrer a bibliografia acadêmica em línguas estrangeiras.

Notas

1. O estudo das runas ainda é extremamente precário em nosso país, mesmo dentro da academia. Como exemplo, em uma recente monografia de bacharelado em História na cidade de Vitória (ES), a pesquisadora Mila Marques cometeu vários equívocos sobre o tema da Escandinávia Medieval, entre eles atribuindo a autoria do poema éddico Hávamál, integrante da Edda Poética, ao poeta islandês Snorri Sturlusson: “A intenção foi pesquisar as representações rúnicas no poema Hávamál na obra Textos Mitológicos das Eddas (1220) de Snorri Sturluson”. O poema em questão é anônimo, mais antigo que a Edda Prosaica de Snorri, do qual ele próprio faz citações (Cf. Hall 2007: 211). Outro equívoco de Mila Marques é a respeito da estrutura do poema: “O maior interesse desta pesquisa foi analisar o capitulo 4 do Hávamál intitulado: A História das Runas de Odin”. Cf. Marques, Mila. Defesa de pesquisa acadêmica. Na trilha das runas. Disponível em: http://www.milarunas.net Último acesso: 2 de dezembro de 2008. O Hávamál não possui títulos ou divisões nas estrofes do manuscrito medieval. Esses lapsos demonstram que os estudos sobre runas em nosso país ainda necessitam de maior seriedade e referências bibliográficas de obras acadêmicas, bem como a co-orientação de especialistas nos estudos escandinavísticos.

2. Sobre esse assunto e uma reflexão historiográfica para a wicca diânica, consultar o artigo de Campos e Langer (2007: 12-18).

Referências

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Johnni Langer – Departamento de História UFMA. E-mail: [email protected]


FAUR, Mirella. Mistérios nórdicos: deuses, runas, magias, rituais. São Paulo: Madras, 2007. VALHALLADUR, Valquíria. As moradas secretas de Odin: um estudo esotérico sobre a tradição nórdica. São Paulo: Editora Madras, 2007. Resenha de: LANGER, Johnni. Runas e Magia. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.8, n.1, p. 106-110, 2008. Acessar publicação original [DR]