A sociedade da decepção | Gilles Ipovetsky

Gilles Ipovetsky1 Decepção
Gilles Ipovetsky | Foto: Fronteiras do Penamento

A sociedade da decepcao 2 DecepçãoA obra A sociedade da decepção, de Gilles Lipovetsky,1 3 é composta por três capítulos que se articulam e se complementam nos seguintes títulos: “A espiral da frustração”; “Consagração e descrédito da democracia”; e “Uma esperança sempre renovada”. Trata-se de um livro em formato de entrevista que foi prefaciado e inquirido por Bertrand Richard. Desde o primeiro capítulo – “A espiral da frustração” – são discutidas questões que insistem na programação tentacular dos corpos e das almas que contrastam com as análises de Foucault, ainda circunscritas à denúncia do controle e da imposição existencial totalitária sob as máscaras da democracia liberal (numa adesão secreta em obedecer). Para Lipovetsky (2017), há um novo papel social assumido pelo sujeito (de autonomia protagonista), agora impulsionado pela modernidade do consumo, dos lazeres e do bem-estar de massa, para além de ser uma existência programada e burocratizada por condicionamentos generalizados.

O autor toca uma atmosfera de suspeição da onda atual e de rejeição ao assumido discurso estático sobre alienação e controle programado da existência pelo capitalismo, em vista das dúvidas, ansiedades e incertezas de uma “realidade plural, multidimensional, mas dificilmente vivida (inclusive pelos antagonistas declarados da modernidade), como se fosse um inferno absoluto. Sem dúvida, nosso universo social contém elementos que podem induzir-nos ao otimismo e ao pessimismo” (LIPOVETSKY, 2017, p. 3). Leia Mais

Elementos da filosofia moral – RACHELS (C)

RACHELS, James. Elementos da filosofia moral. Trad. de Roberto C. Filho. 4. ed. Barueri: Manole, 2006. Resenha de: BRESOLIN, Keberson. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 1, Jan/Abr, 2011.

Pensar ética é pensar sobre o modo como as pessoas relacionam-se consigo mesmas, com o outro, com a sociedade e em alguns casos, com o sobrenatural e o ambiente. Ou seja, pensar a ética é pensar a totalidade das relações que se desdobram sobre o horizonte da historicidade humana. Isso não é fácil, muito menos simples. E, quando o assunto em pauta é ética, parece que todos entendem; ou ainda, quando não entendem usam um argumento infalível [unfehlbar], qual seja, “a ética é subjetiva, então, depende de cada um”, logo, a contenda é encerrada.

Essa postura, além de relativista, demonstra a necessidade de um estudo profundo e profícuo sobre a ética para, assim, compreender que ela é uma maneira de agir a partir de princípios e/ou valores definitivamente refletidos e fundamentados. A tentativa de James Rachels, no seu livro Elementos da filosofia moral, é exatamente esta: abordar temas centrais do pensamento moral com a finalidade de mostrar seus fundamentos e seus argumentos sejam eles sustentáveis ou não.

Rachels, filósofo norte-americano, nasceu em Columbus, Geórgia em 30.5.1941 e faleceu em 5.9.2003. Proferiu aulas nas seguintes universidades: University of Richmond, New York University e na University of Alabama at Birmingham onde permaneceu por 26 anos. Sua primeira obra intitulada Moral problems (1971), ao ser lançada, contribuiu para que as faculdades norte-americanas repensassem o modelo de ensino da ética, ou seja, nesse momento, nos EUA, a metaética dominava os debates nas universidades, de modo que sua obra contribuiu a que o ensino da ética se voltasse para questões morais de envergadura prática.1

Em 1975, no início dos debates em torno de questões bioéticas, Rachels escreveu um artigo intitulado “Active and passive euthanasia”.

No ano de 1986 aparece, então, o livro The elements of moral philosophy [Elementos da filosofia moral] e, no mesmo ano publica The end of life (1986) e, em seguida, Created from animals2 (1990), Can ethics provide answers? (1997), The legacy of Socrates (2007). Pouco antes de ser diagnosticado com câncer, Rachels conclui seu livro Problems from philosophy, que foi publicado postumamente. Além disso, escreveu inúmeros ensaios e artigos e editou vários livros, mas seu best-seller é, sem sombra de dúvidas, o livro Elementos da filosofia moral.3 Esse livro já está na sua quarta edição no Brasil, justamente por ser um excelente livro de filosofia moral. Apresenta uma linguagem simples, sem deixar de ter argumentos extremamente bem-elaborados. Combina de maneira formidável exemplos práticos com teorias éticas complexas, sem ser, por isso, leviano ou descritivo. Diferentemente de outros livros, os quais abordam a ética com a metodologia por autores, o livro de Rachels aborda temas, dentro dos quais desenvolve os principais autores que abordaram tal assunto. Dessa forma, os temas escolhidos para estigmatizarem os capítulos são postos não com uma preocupação histórico-temporal, mas, a nosso ver, com uma preocupação de inserir e instruir o leitor nos mais importantes debates/temas éticos.

Rachels elaborou 14 capítulos para seu livro, sendo que podemos encontrar nele não apenas questões centrais da milenar ética normativa, mas também questões da jovem metaética. Como todo bom livro, o primeiro capítulo (“O que é a moralidade”?) desenrola uma discussão sobre a natureza da moral. Faz isso de maneira inusitada utilizando-se de três exemplos práticos nos quais a decisão moral não é simples. Os exemplos: a bebê Teresa (bebê anencéfalo), Jodie e Mary (gêmeos siamesas) e Tracy Latimer (vítima de paralisia cerebral), de cunho prático, são apresentados em toda a sua complexidade e dificuldade de resolução.

Depois disso, Rachels apresenta o que ele chama “concepção mínima de moralidade”, a qual, a nosso ver, reflete uma postura utilitarista. A concepção mínima de moralidade é o esforço ou, pelo menos, o esforço para dirigir nossa conduta por razões ou, ainda, fazer aquilo que nos mostre as melhores razões para fazer sem deixar de ser, ao mesmo tempo imparcial, ou seja, considerar os interesses de todos os envolvidos na ação de maneira não parcial. Segundo Rachels, essa é a melhor concepção moral porque ela é mínima, ou seja, aquilo que todos podem igualmente concordar em fazer, não exigindo uma moralidade austera ou ascética do agente.

No segundo capítulo intitulado “O desafio do relativismo cultural”, Rachels aborda de maneira genuína o problema que o relativismo cultural desencadeia para a moral. Primeiramente, o autor se coloca na postura de um relativista cultural de maneira a extrair daí as consequências sérias de ser relativista cultural. Demonstra, então, que não poderíamos criticar outras culturas pelas suas ações e atos, visto que o certo e o errado são relativos de cada cultura em um determinado momento espaciotemporal.

Faz isso utilizando-se de inúmeros exemplos, como a excisão no Togo, as diferentes e antigas práticas funerais entre os gregos e os Calatinos (tribo de indianos). Os exemplos/fatos são algo marcante em toda obra, tornando-a, pois, atraente não apenas a estudantes de ética, mas também a pessoas leigas no assunto que possuem uma centelha de curiosidade pela ética.

“O subjetivismo em ética” é o título do terceiro capítulo, no qual aborda o relativismo em uma dimensão doméstica, ou seja, “particularista-subjetivo”. Aborda, além disso, a questão do sentimento moral e sua nova estruturação dada pelo emotivismo e a complexa questão posta pela oposição cognitivista versus não cognitivista em moral, qual seja, existem ou não fatos morais? No quarto capítulo, “Dependerá a moralidade da religião?”, o autor realiza uma excelente análise sobre a relação religião/moral e como elas se aproximaram ao longo do processo ético-histórico. Rebate categoricamente o fato de algumas pessoas crerem que, se não existir um Deus punidor, então, não há motivo algum para haver ações morais, ou seja, por que agir moralmente se não há castigo, nem vida pós-morte? Ausculta, ainda, a teoria dos mandamentos divinos, demonstrando como esse argumento é carente de fundamentação. Faz isso a partir da célebre afirmação de Sócrates no diálogo Eutifron, no qual se pergunta se o comportamento é correto porque os deuses ordenaram ou os deuses ordenaram porque é correto. Aborda, também, com alguma mazela a teoria da lei natural.

No quinto capítulo aborda “O egoísmo subjetivo” no qual se apropinqua da possibilidade de altruísmo. Mas, a nosso ver, o capítulo sexto intitulado “O egoísmo ético” é muito mais consistente e persuasivo.

Trabalha com argumentos a favor e contra o egoísmo e acaba com o lendário mito de que todo indivíduo egoísta é moralmente mau. Egoísmo é uma concepção moral. Ser egoísta é preservar unicamente seus interesses. No capítulo sétimo “A abordagem utilitarista” e o oitavo “O debate sobre o utilitarismo”, Rachels aborda genialmente o utilitarismo, demonstrando, então, a origem do mesmo e, em seguida, novamente citando vários casos concretos, propõe argumentos prós e contras. Como já dito anteriormente, o livro, segundo nossa leitura, possui um cunho utilitarista leviano, ou seja, não compromete a obra, muito menos a torna tendenciosa. A própria solução apresentada por Rachels ao relativismo cultural, no capítulo segundo, ou seja, um critério neutro de avaliação cultural, apresenta, indiscutivelmente, personalidade utilitarista.

Ao tratar de Kant, nos capítulos nono e décimo, o autor perscruta o âmago da concepção moral kantiana. No capítulo nono, proposto em forma de pergunta (“haverá regras morais absolutas?”), objetifica a moralidade kantiana, demonstrando os dois imperativos: categórico e hipotético. A partir da perspectiva kantiana a resposta à pergunta que originalmente está posta no título do capítulo é sim. Rachels demonstra que o imperativo categórico não suporta exceção e, por isso, toda regra de conduta que surge dele é categoricamente absoluta. Essa regra é apresentada como obrigação da razão e consiste, então, tanto em uma obrigação para fazer como uma obrigação para não fazer alguma ação. O autor trabalha com o famoso texto kantiano “Sobre o suposto direito de mentir por amor à humanidade” para enfatizar a absolutidade das regras categóricas, inclusive, em momentos nos quais a mentira poderia salvar uma vida. O capítulo décimo “Kant e o respeito pelas pessoas” não foi feliz como o anterior. Deixa a desejar na concepção kantiana de dignidade humana. Utiliza-se de uma interpretação da qual não pensamos ser kantiana o suficiente para abarcar a profundidade de tal percepção.

A seguir, Rachels, junto com Hobbes, expõe “A ideia de contrato social” (título do décimo primeiro capítulo), no qual ratifica o paradigma do filósofo britânico ao afirmar o caráter não social e egoísta do homem.

A natureza fez os homens tão iguais que é inevitável o conflito, uma vez que as necessidades são semelhantes, e os recursos, finitos, sendo, pois, necessário um Estado poderoso, o Leviatã, para administrar tais conflitos.

Apresenta também o famigerado dilema do prisioneiro para assoalhar que a decisão fundamentada em princípios cooperativos é a melhor escolha.

No capítulo décimo segundo “Feminismo e a ética do cuidado”, Rachels analisa um tema recente em filosofia moral. A partir dos estágios propostos pelo psicólogo Lawrence Kohlberg e de suas constatações realizadas a partir do “dilema de Heinz” de que o menino estaria em nível superior de moralidade ao ser comparado com uma menina de mesma idade, Rachels desenrola um debate, com o auxílio das ideias de Carol Gilligan, sobre como há diferença na construção de juízos de valoração entre homens e mulheres. Enquanto os homens prezam por uma ética principialista, a ética feminista possui um cunho de cuidado. Esse capítulo é excelente, porque o autor parte dos diferentes aspectos psicológicos que há entre homens e mulheres para chegar, então, a visualizar como tais diferenças influenciam a construção de juízos de valor.

No penúltimo capítulo, o autor aborda a “Ética das virtudes”. Esse paradigma ético não está preocupado, como enfatiza ele, em formular obrigações morais, mas em compreender o que torna o caráter bom. O que é virtude? Como praticá-las? Quantas são? tornam a preocupação com essa ética diferente das demais, embora continue sendo normativa.

Dessa maneira, o autor demonstra a especificidade da ética das virtudes em relação às éticas dos mandamentos morais, elaborada, principalmente, a partir da modernidade.

No último capítulo, Rachels faz uma reflexão em torno de como seria uma teoria moral satisfatória. Aqui os traços utilitaristas do autor são ainda mais claros. Evidenciando o fato de que existem inúmeras teorias éticas, que são, em muitos casos, incompatíveis entre si, Rachels pergunta-se: como seria uma teoria moral satisfatória? Promover os interesses de todas as pessoas de maneira imparcial, tratando cada uma delas como merecem, ou seja, por serem agentes racionais devem ser tratados sem distinção simplesmente por possuírem o poder de escolha.

Todavia, o autor ressalva que a ideia de promover de forma igual os interesses de todos não parece conseguir captar a amplitude da vida moral, fazendo, pois, uma reserva em relação à questão do merecimento pessoal, ou seja, à consideração das individualidades. Dito isso, o autor comenta as concepções de Smith e o “utilitarismo dos motivos” de Sidgwick, acerca do qual não se mostra simpático e propõe o “utilitarismo de estratégias múltiplas”, ou seja, o fim fundamental continua sendo o bem-estar geral, mas se pode defender estratégias diferentes como meio para buscar esse fim. Consoante Rachels, há aqui uma combinação de métodos, motivos e virtudes de tomada de decisão que será melhor para o agente, considerando as suas circunstâncias, o caráter e as capacidades.

Aqui é necessário pensar melhor no sentido de otimizar as condições de possibilidade de o agente ter uma boa vida, ao mesmo tempo que otimiza as possibilidades de as outras pessoas terem vida boa.

Sem dúvida, o livro Elementos da filosofia moral é uma excelente obra de introdução a questões éticas. Mostra-se de grande valor no ensino da ética, uma vez que isso se torna claro diante da quantidade de casos e exemplos utilizados ao longo de toda obra, sem deixar a desejar, ao mesmo tempo, um conteúdo fundamentado. Não é um livro catequético, pelo contrário, apresenta, na maioria das vezes, argumentos prós e contras à teoria abordada, embora, como já mencionado, segundo nossa leitura, possua um fio condutor utilitarista.

Notas

1 Cf. Disponível em: < http://www.jamesrachels.org/ >. Acesso em: 31 dez. 2010.

2 Rachels arguiu a favor do vegetarianismo moral e dos direitos dos animais. Neste livro Created from Animals, ele assevera que a visão de mundo darwinista tem implicações filosóficas fundamentais e [deveria] altera[r] o modo como tratamos os animais não humanos. 3 Cf. Disponível em: < http://www.jamesrachels.org/ >. Acesso em: 31 dez. 2010.

Keberson Bresolin – Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul.

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