Manuel Fernandes Tomás. Escritos políticos e discursos parlamentares (1820-1822) | José Luís Cardoso

1 “Ele foi talvez o primeiro que soube achar a época, e o termo preciso, em que o direito de insurreição contra a tirania, é não só uma virtude digna de aplauso dos presentes, da comemoração dos vindouros, e mesmo de apoteose, mas também o exercício de um direito político”.[1] Manuel Fernandes Tomás e o movimento revolucionário de 1820 estão indissoluvelmente ligados. Jurista consagrado, oriundo da Figueira da Foz, concluídos os estudos na Universidade de Coimbra, após o desempenho de diferentes cargos, em 1820 encontrava-se a exercer funções de desembargador no Porto há três anos. Foi um dos membros do Sinédrio, ministro do Interior e da Fazenda da Junta Provisional do Reino, deputado às Cortes Constituintes, reeleito em 1822, ano em pereceu. O seu papel em momentos-chave da implantação do regime vintista foi essencial, a ele se devem textos fundadores, responsabilidades decisivas como a organização das primeiras eleições dentro do quadro liberal, e intervenções parlamentares decisivas. Na memória democrática, ficou consagrado como uma figura impoluta, corajosa, um político competente e um grande orador. Columbano e Veloso Salgado atribuíram-lhe espaço destacado nas duas principais representações pictóricas do edifício da Assembleia da República. “A primeira revolução liberal portuguesa tem a sua personificação em Fernandes Tomás”, escreveu José Arriaga.[2]

2 Contudo, até recentemente não se dispunha de nenhuma ampla antologia dos seus textos, em contraste com outros políticos, como Almeida Garrett ou Passos Manuel, que em vida reuniram os seus discursos parlamentares em livro. As únicas obras dele impressas em vida foram duas notáveis contribuições para a história do direito do Antigo Regime, um estudo sobre a propriedade e um repertório legislativo. O seu precoce desaparecimento, no início da segunda legislatura do regime vintista, e o apagamento da memória do vintismo durante as longas décadas de cartismo e do Estado Novo explicam-no. A recolha dos textos da sua autoria organizada por José Luís Cardoso veio preencher o vazio existente, sendo o livro em boa hora editado no ano do bicentenário da revolução de 1820, seguindo-se a outro seu livro sobre a revolução, com excelente fundamentação e bem organizado, numa linguagem acessível e de grande qualidade gráfica.[3]

3 Manuel Fernandes Tomás e a revolução de 1820 constituem alicerces fundamentais da memória e da história do liberalismo português. Foi valorizada pela corrente republicana, como o comprova a monumental História da Revolução de 1820 de José Arriaga (1886-89), onde Manuel Fernandes Tomas ocupa um lugar destacado. Também Luís Augusto Rebelo da Silva o incluiu em Varões ilustres das três épocas constitucionais (1870). Com o advento do Estado Novo, esta época esteve marginalizada, excluída da história oficial ensinada nas escolas ou difundida publicamente, onde ainda não ocupa o lugar merecido. O século XIX e o primeiro quartel do século XX eram considerados em bloco como um período negro, sobre o qual incidiu um pesado silêncio oficial.

4 Alguns historiadores isolados da oposição democrática principiaram a debruçar-se sobre esta época a partir da década de 1940. Com o restabelecimento de um regime liberal em Portugal, democrático, principiou-se um estudo mais sistemático da história do liberalismo monárquico e republicano. Manuel Fernandes Tomás foi desde logo objeto de um estudo de José Manuel Tengarrinha, acompanhado da publicação de alguns dos mais importantes documentos produzidos por ele e de várias intervenções parlamentares sobre temas fundamentais como a liberdade de imprensa ou o âmbito do sufrágio. Alguns anos decorridos, José Luís Cardoso viria a dedicar-lhe uma biografia (1983), recentemente reeditada (Manuel Fernandes Tomás. Ensaio histórico-biográfico. Coimbra: Almedina, 2020). Deve-se a Cecília Honório a primeira tese de doutoramento que lhe foi dedicada, e que é a biografia política mais completa a seu respeito. Nela são analisadas pela primeira vez as principais intervenções parlamentares e os outros textos da sua autoria (Manuel Fernandes Tomás, 1771-1822. Lisboa: Assembleia da República, 2009).

5 A antologia de textos agora publicada por José Luís Cardoso é precedida de um longo estudo introdutório de cerca de 40 páginas. Nele se faz uma análise abrangente das questões abordadas por Manuel Fernandes Tomás e da sua contextualização, em introduções específicas relativas a cada um dos blocos de textos. Este trabalho analítico é entremeado de útil bibliografia da época acerca de questões similares, um instrumento de trabalho estimulante de futura abordagem comparativa aqui iniciada. De salientar uma contribuição para o estudo das influências ideológicas no meio político, mediante um quadro quantificando as citações de diferentes autores estrangeiros nos trabalhos parlamentares.

6 Os textos selecionados foram agrupados em cinco blocos. No primeiro reúnem-se os manifestos e proclamações, textos anónimos cuja atribuição a MFT é indubitável e que constituem textos emblemáticos do vintismo, a que se juntaram os discursos oficiais e ofícios. Estas páginas permitem-nos acompanhar o processo de implantação do novo regime desde os seus primeiros momentos. O discurso da sala do Risco do Arsenal conduz-nos ao universo das sociedades patrióticas, uma nova forma de sociabilidade característica desta época. Os principais políticos cruzavam-se nessas sociedades, foi o caso de José Xavier Mouzinho da Silveira e Manuel Fernandes Tomás, tendo o primeiro presidido e discursado no jantar comemorativo do 1º aniversário do 24 de Agosto, promovido pela Sociedade Constitucional,[4] e que agora ficamos a saber ter estado igualmente presente na cerimónia comemorativa do 1º aniversário do 15 de Setembro promovida por esta sociedade, na qual discursou Fernandes Tomás (Cardoso, op. cit., 35 e 98-100). Dois textos com estilos e metáforas muito diferentes, mas onde se expressa o mesmo repúdio por uma sociedade baseada nos privilégios e o elogio da liberdade, no caso de Mouzinho associada ao fim da escravatura e à “união em liberdade dos dois separados hemisférios”, uma questão fundamental para a definição do espaço nacional. Tal união viria a ser por ele referida já como periclitante no mesmo círculo, decorrido um ano, a dois meses da independência do Brasil. Em 1823 consideraria urgente dá-la por encerrada para delinear nova orientação do governo.

7 As intervenções parlamentares de M. F. Tomás a respeito da questão brasileira permitem acompanhar a evolução da sua atitude e situá-la na gestão deste problema pelos constituintes neste período de transição, em si já bem estudada.[5] Admitindo a inevitabilidade da independência a longo prazo, considerava que no imediato o novo regime de liberdade permitiria o desenvolvimento conjunto das duas regiões intercontinentais da coroa portuguesa, no interesse recíproco. A “Proclamação aos habitantes do Brasil”, datada de julho de 1821, expressa essa posição de forma convicta num texto dirigido à população, posição retomada no folheto “Lutero, o padre José Agostinho de Macedo e a Gazeta Universal” (1822), incluído na secção III (pp. 190-192). Face às resistências brasileiras, esta posição alterna com a admissão de mau grado da separação do Brasil, excluindo sempre qualquer intervenção militar.

8 O segundo bloco, intitulado “Ação governativa”, é constituído por um único documento, o famoso relatório sobre o estado e administração do reino, fruto da sua própria experiência como ministro do interior e a da fazenda na Junta Provisional, apresentado às Cortes logo no seu início. O terceiro e quarto blocos constituem as partes mais inesperadas para um leitor menos conhecedor desta época. Que um ministro e depois deputado prestigiado tenha publicado anonimamente as Cartas do Compadre de Belém e um pouco mais tarde um jornal juntamente com Ferreira de Moura, deputado com quem estava em alguma sintonia, testemunha de profunda osmose entre a ação política e as novas formas de comunicação impressa. Folhetos e jornais tornam-se, de 1820 em diante, o instrumento novo e inebriante do debate de ideias e de difusão de notícias. Mais de uma centena de jornais são editados no período vintista, com formato, dimensão e duração muito variáveis.

9 A iniciativa de lançar o jornal O Independente (publicado de novembro de 1821 a março de 1822) inseria-se neste movimento descrito de forma entusiástica no editorial do primeiro número: “a variedade de assuntos, a rapidez, com que são tratados; […] a facilidade de se obterem estes escritos e a brevidade com que se leem […]”. Desde os primórdios da imprensa periódica que a desinformação e a invocação errática da “opinião pública” não tardaram a aparecer, como se alerta logo no terceiro artigo, “Testemunhos falsos que se costumam levantar à opinião pública”. Esta iniciativa explica-se também pela ausência de partidos políticos nesta época. O jornal é um instrumento de difusão alargada dos debates parlamentares e uma forma de fortalecer as posições de ambos os deputados nesses debates, por isso se caracteriza por um número elevado de artigos de opinião. José Luís Cardoso agrupou-os em quatro secções temáticas: Cidadania Constitucional, Reformas institucionais, Economia e Finanças, e Segurança pública.

10 O quinto e último bloco de textos, o mais extenso, contém uma ampla seleção dos discursos parlamentares, ultrapassando as duas centenas de páginas. MFT teve intensa participação parlamentar, intervindo como orador em 281 sessões ao longo de 21 meses e 7 dias, em regra com mais de uma intervenção em cada sessão, como nos informa J. Luís Cardoso. O total de registos do seu nome como orador eleva-se a 580. Compreende-se que a obra de Cecília Honório, já mencionada, tenha sido incluída na Colecção Grandes Oradores, dirigida por Zília Osório de Castro. Naturalmente, as intervenções tiveram dimensão e significado muito variável. Para esta antologia foram selecionados 119 discursos, utilmente agregados em dez grupos, de que é impossível dar uma súmula aqui, sendo cada um deles objeto de análise cuidada no estudo introdutório.

11 Pode questionar-se a sua sequência, seria porventura mais lógico que os grupos das intervenções sobre princípios constitucionais, soberania e a divisão de poderes antecedessem o grupo sobre a justiça e a sua organização. Agregar os textos segundo o tema dominante, nem sempre o único, não foi fácil, como releva o autor. Poderia preferir-se que o debate sobre os jurados e a lei de imprensa fosse inserido no grupo acerca deste tema e não no da justiça, ou pelo menos fosse ali referido. Também pode lamentar-se que não se tenha indicado a que projeto-lei se refere cada intervenção ou grupo de intervenções, ou quem é o “preopinante” referido aqui e ali – e uma pequena nota sobre o significado desta palavra caída em desuso podia também ser útil. Sendo possível hoje a consulta on-line do Diário das Cortes, é certo que o leitor poderá fazer essa pesquisa, com maior facilidade do que anteriormente. Nada disto diminui o mérito do trabalho realizado, a seleção e organização temática dos principais discursos parlamentares constitui uma obra da maior utilidade e é porventura a contribuição mais valiosa desta antologia, no seu conjunto com grande interesse histórico.

12 As intervenções parlamentares de Fernandes Tomás foram com grande frequência decisivas, conhecê-las permite compreender o que esteve em jogo e a mentalidade da época, e a capacidade de MFT encontrar a mudança possível, adequada ao momento. Veemente na defesa da abolição da Inquisição, da censura prévia da imprensa ou a favor do sufrágio alargado, foi também conciliador em relação à liberdade religiosa e à reforma dos forais. A sua posição política tem sido assim classificada de gradualista, pontuada de escolhas radicais. A igualdade perante a justiça tornava inadiável a reforma da justiça e J. Luís Cardoso acentua justamente a relevância das reflexões e propostas sobre o sistema de justiça, cuja dimensão passara desapercebida até agora. Também Borges Carneiro, de cujas propostas discordava frequentemente, apontara a prioridade devida à reforma do código penal existente (Portugal Regenerado, 1820).

13 Esta obra ora publicada representa uma contribuição valiosa para o pensamento e a ação de um dos principais políticos do vintismo e abre o caminho à abordagem comparativa entre os diferentes políticos liberais numa base mais consistente, permitindo um conhecimento mais completo acerca desta época.

Notas

1. Ferreira Moura, DCC, 4/1/1823, p. 347, in Cecília Honório, Manuel Fernandes Tomás, 1771-1822. Lisboa: Assembleia da República/Texto, 2009, p. 26.

2. José Arriaga, História da Revolução Portugueza de 1820. Porto: Livraria Portuense, 1886-1889, t. III, p. 632, in Honório, op. cit., p. 15.

3. José Luís Cardoso, A Revolução Liberal de 1820. Lisboa: Clube do Colecionador dos Correios, 2019.

4. Ver M. H. Pereira et al. (eds), Obras de Mouzinho da Silveira. Lisboa: F. Calouste Gulbenkian, 1989, v. I, p. 53 n. 83 e v. II, pp. 1917-20.

5. Ver Valentim Alexandre, “Nacionalismo vintista e a questão brasileira”, in M. H. Pereira et al. (org), O liberalismo na Península Ibérica na primeira metade do século XIX. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1982, v. 1, pp. 287-307; Zília Osório de Castro, Portugal e Brasil. Lisboa: Assembleia da República, 2002.

Miriam Halpern Pereira – CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. E-mail: miriam.pereira@iscte-iul.pt


CARDOSO, José Luís Cardoso (org). Manuel Fernandes Tomás. Escritos políticos e discursos parlamentares (1820-1822). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2020. 538p. Resenha de: PEREIRA, Miriam Halpern. Ler História. Lisboa, n.78, p.296-300. Acessar publicação original [IF]