Manuel Fernandes Tomás. Escritos políticos e discursos parlamentares (1820-1822) | José Luís Cardoso

1 “Ele foi talvez o primeiro que soube achar a época, e o termo preciso, em que o direito de insurreição contra a tirania, é não só uma virtude digna de aplauso dos presentes, da comemoração dos vindouros, e mesmo de apoteose, mas também o exercício de um direito político”.[1] Manuel Fernandes Tomás e o movimento revolucionário de 1820 estão indissoluvelmente ligados. Jurista consagrado, oriundo da Figueira da Foz, concluídos os estudos na Universidade de Coimbra, após o desempenho de diferentes cargos, em 1820 encontrava-se a exercer funções de desembargador no Porto há três anos. Foi um dos membros do Sinédrio, ministro do Interior e da Fazenda da Junta Provisional do Reino, deputado às Cortes Constituintes, reeleito em 1822, ano em pereceu. O seu papel em momentos-chave da implantação do regime vintista foi essencial, a ele se devem textos fundadores, responsabilidades decisivas como a organização das primeiras eleições dentro do quadro liberal, e intervenções parlamentares decisivas. Na memória democrática, ficou consagrado como uma figura impoluta, corajosa, um político competente e um grande orador. Columbano e Veloso Salgado atribuíram-lhe espaço destacado nas duas principais representações pictóricas do edifício da Assembleia da República. “A primeira revolução liberal portuguesa tem a sua personificação em Fernandes Tomás”, escreveu José Arriaga.[2]

2 Contudo, até recentemente não se dispunha de nenhuma ampla antologia dos seus textos, em contraste com outros políticos, como Almeida Garrett ou Passos Manuel, que em vida reuniram os seus discursos parlamentares em livro. As únicas obras dele impressas em vida foram duas notáveis contribuições para a história do direito do Antigo Regime, um estudo sobre a propriedade e um repertório legislativo. O seu precoce desaparecimento, no início da segunda legislatura do regime vintista, e o apagamento da memória do vintismo durante as longas décadas de cartismo e do Estado Novo explicam-no. A recolha dos textos da sua autoria organizada por José Luís Cardoso veio preencher o vazio existente, sendo o livro em boa hora editado no ano do bicentenário da revolução de 1820, seguindo-se a outro seu livro sobre a revolução, com excelente fundamentação e bem organizado, numa linguagem acessível e de grande qualidade gráfica.[3]

3 Manuel Fernandes Tomás e a revolução de 1820 constituem alicerces fundamentais da memória e da história do liberalismo português. Foi valorizada pela corrente republicana, como o comprova a monumental História da Revolução de 1820 de José Arriaga (1886-89), onde Manuel Fernandes Tomas ocupa um lugar destacado. Também Luís Augusto Rebelo da Silva o incluiu em Varões ilustres das três épocas constitucionais (1870). Com o advento do Estado Novo, esta época esteve marginalizada, excluída da história oficial ensinada nas escolas ou difundida publicamente, onde ainda não ocupa o lugar merecido. O século XIX e o primeiro quartel do século XX eram considerados em bloco como um período negro, sobre o qual incidiu um pesado silêncio oficial.

4 Alguns historiadores isolados da oposição democrática principiaram a debruçar-se sobre esta época a partir da década de 1940. Com o restabelecimento de um regime liberal em Portugal, democrático, principiou-se um estudo mais sistemático da história do liberalismo monárquico e republicano. Manuel Fernandes Tomás foi desde logo objeto de um estudo de José Manuel Tengarrinha, acompanhado da publicação de alguns dos mais importantes documentos produzidos por ele e de várias intervenções parlamentares sobre temas fundamentais como a liberdade de imprensa ou o âmbito do sufrágio. Alguns anos decorridos, José Luís Cardoso viria a dedicar-lhe uma biografia (1983), recentemente reeditada (Manuel Fernandes Tomás. Ensaio histórico-biográfico. Coimbra: Almedina, 2020). Deve-se a Cecília Honório a primeira tese de doutoramento que lhe foi dedicada, e que é a biografia política mais completa a seu respeito. Nela são analisadas pela primeira vez as principais intervenções parlamentares e os outros textos da sua autoria (Manuel Fernandes Tomás, 1771-1822. Lisboa: Assembleia da República, 2009).

5 A antologia de textos agora publicada por José Luís Cardoso é precedida de um longo estudo introdutório de cerca de 40 páginas. Nele se faz uma análise abrangente das questões abordadas por Manuel Fernandes Tomás e da sua contextualização, em introduções específicas relativas a cada um dos blocos de textos. Este trabalho analítico é entremeado de útil bibliografia da época acerca de questões similares, um instrumento de trabalho estimulante de futura abordagem comparativa aqui iniciada. De salientar uma contribuição para o estudo das influências ideológicas no meio político, mediante um quadro quantificando as citações de diferentes autores estrangeiros nos trabalhos parlamentares.

6 Os textos selecionados foram agrupados em cinco blocos. No primeiro reúnem-se os manifestos e proclamações, textos anónimos cuja atribuição a MFT é indubitável e que constituem textos emblemáticos do vintismo, a que se juntaram os discursos oficiais e ofícios. Estas páginas permitem-nos acompanhar o processo de implantação do novo regime desde os seus primeiros momentos. O discurso da sala do Risco do Arsenal conduz-nos ao universo das sociedades patrióticas, uma nova forma de sociabilidade característica desta época. Os principais políticos cruzavam-se nessas sociedades, foi o caso de José Xavier Mouzinho da Silveira e Manuel Fernandes Tomás, tendo o primeiro presidido e discursado no jantar comemorativo do 1º aniversário do 24 de Agosto, promovido pela Sociedade Constitucional,[4] e que agora ficamos a saber ter estado igualmente presente na cerimónia comemorativa do 1º aniversário do 15 de Setembro promovida por esta sociedade, na qual discursou Fernandes Tomás (Cardoso, op. cit., 35 e 98-100). Dois textos com estilos e metáforas muito diferentes, mas onde se expressa o mesmo repúdio por uma sociedade baseada nos privilégios e o elogio da liberdade, no caso de Mouzinho associada ao fim da escravatura e à “união em liberdade dos dois separados hemisférios”, uma questão fundamental para a definição do espaço nacional. Tal união viria a ser por ele referida já como periclitante no mesmo círculo, decorrido um ano, a dois meses da independência do Brasil. Em 1823 consideraria urgente dá-la por encerrada para delinear nova orientação do governo.

7 As intervenções parlamentares de M. F. Tomás a respeito da questão brasileira permitem acompanhar a evolução da sua atitude e situá-la na gestão deste problema pelos constituintes neste período de transição, em si já bem estudada.[5] Admitindo a inevitabilidade da independência a longo prazo, considerava que no imediato o novo regime de liberdade permitiria o desenvolvimento conjunto das duas regiões intercontinentais da coroa portuguesa, no interesse recíproco. A “Proclamação aos habitantes do Brasil”, datada de julho de 1821, expressa essa posição de forma convicta num texto dirigido à população, posição retomada no folheto “Lutero, o padre José Agostinho de Macedo e a Gazeta Universal” (1822), incluído na secção III (pp. 190-192). Face às resistências brasileiras, esta posição alterna com a admissão de mau grado da separação do Brasil, excluindo sempre qualquer intervenção militar.

8 O segundo bloco, intitulado “Ação governativa”, é constituído por um único documento, o famoso relatório sobre o estado e administração do reino, fruto da sua própria experiência como ministro do interior e a da fazenda na Junta Provisional, apresentado às Cortes logo no seu início. O terceiro e quarto blocos constituem as partes mais inesperadas para um leitor menos conhecedor desta época. Que um ministro e depois deputado prestigiado tenha publicado anonimamente as Cartas do Compadre de Belém e um pouco mais tarde um jornal juntamente com Ferreira de Moura, deputado com quem estava em alguma sintonia, testemunha de profunda osmose entre a ação política e as novas formas de comunicação impressa. Folhetos e jornais tornam-se, de 1820 em diante, o instrumento novo e inebriante do debate de ideias e de difusão de notícias. Mais de uma centena de jornais são editados no período vintista, com formato, dimensão e duração muito variáveis.

9 A iniciativa de lançar o jornal O Independente (publicado de novembro de 1821 a março de 1822) inseria-se neste movimento descrito de forma entusiástica no editorial do primeiro número: “a variedade de assuntos, a rapidez, com que são tratados; […] a facilidade de se obterem estes escritos e a brevidade com que se leem […]”. Desde os primórdios da imprensa periódica que a desinformação e a invocação errática da “opinião pública” não tardaram a aparecer, como se alerta logo no terceiro artigo, “Testemunhos falsos que se costumam levantar à opinião pública”. Esta iniciativa explica-se também pela ausência de partidos políticos nesta época. O jornal é um instrumento de difusão alargada dos debates parlamentares e uma forma de fortalecer as posições de ambos os deputados nesses debates, por isso se caracteriza por um número elevado de artigos de opinião. José Luís Cardoso agrupou-os em quatro secções temáticas: Cidadania Constitucional, Reformas institucionais, Economia e Finanças, e Segurança pública.

10 O quinto e último bloco de textos, o mais extenso, contém uma ampla seleção dos discursos parlamentares, ultrapassando as duas centenas de páginas. MFT teve intensa participação parlamentar, intervindo como orador em 281 sessões ao longo de 21 meses e 7 dias, em regra com mais de uma intervenção em cada sessão, como nos informa J. Luís Cardoso. O total de registos do seu nome como orador eleva-se a 580. Compreende-se que a obra de Cecília Honório, já mencionada, tenha sido incluída na Colecção Grandes Oradores, dirigida por Zília Osório de Castro. Naturalmente, as intervenções tiveram dimensão e significado muito variável. Para esta antologia foram selecionados 119 discursos, utilmente agregados em dez grupos, de que é impossível dar uma súmula aqui, sendo cada um deles objeto de análise cuidada no estudo introdutório.

11 Pode questionar-se a sua sequência, seria porventura mais lógico que os grupos das intervenções sobre princípios constitucionais, soberania e a divisão de poderes antecedessem o grupo sobre a justiça e a sua organização. Agregar os textos segundo o tema dominante, nem sempre o único, não foi fácil, como releva o autor. Poderia preferir-se que o debate sobre os jurados e a lei de imprensa fosse inserido no grupo acerca deste tema e não no da justiça, ou pelo menos fosse ali referido. Também pode lamentar-se que não se tenha indicado a que projeto-lei se refere cada intervenção ou grupo de intervenções, ou quem é o “preopinante” referido aqui e ali – e uma pequena nota sobre o significado desta palavra caída em desuso podia também ser útil. Sendo possível hoje a consulta on-line do Diário das Cortes, é certo que o leitor poderá fazer essa pesquisa, com maior facilidade do que anteriormente. Nada disto diminui o mérito do trabalho realizado, a seleção e organização temática dos principais discursos parlamentares constitui uma obra da maior utilidade e é porventura a contribuição mais valiosa desta antologia, no seu conjunto com grande interesse histórico.

12 As intervenções parlamentares de Fernandes Tomás foram com grande frequência decisivas, conhecê-las permite compreender o que esteve em jogo e a mentalidade da época, e a capacidade de MFT encontrar a mudança possível, adequada ao momento. Veemente na defesa da abolição da Inquisição, da censura prévia da imprensa ou a favor do sufrágio alargado, foi também conciliador em relação à liberdade religiosa e à reforma dos forais. A sua posição política tem sido assim classificada de gradualista, pontuada de escolhas radicais. A igualdade perante a justiça tornava inadiável a reforma da justiça e J. Luís Cardoso acentua justamente a relevância das reflexões e propostas sobre o sistema de justiça, cuja dimensão passara desapercebida até agora. Também Borges Carneiro, de cujas propostas discordava frequentemente, apontara a prioridade devida à reforma do código penal existente (Portugal Regenerado, 1820).

13 Esta obra ora publicada representa uma contribuição valiosa para o pensamento e a ação de um dos principais políticos do vintismo e abre o caminho à abordagem comparativa entre os diferentes políticos liberais numa base mais consistente, permitindo um conhecimento mais completo acerca desta época.

Notas

1. Ferreira Moura, DCC, 4/1/1823, p. 347, in Cecília Honório, Manuel Fernandes Tomás, 1771-1822. Lisboa: Assembleia da República/Texto, 2009, p. 26.

2. José Arriaga, História da Revolução Portugueza de 1820. Porto: Livraria Portuense, 1886-1889, t. III, p. 632, in Honório, op. cit., p. 15.

3. José Luís Cardoso, A Revolução Liberal de 1820. Lisboa: Clube do Colecionador dos Correios, 2019.

4. Ver M. H. Pereira et al. (eds), Obras de Mouzinho da Silveira. Lisboa: F. Calouste Gulbenkian, 1989, v. I, p. 53 n. 83 e v. II, pp. 1917-20.

5. Ver Valentim Alexandre, “Nacionalismo vintista e a questão brasileira”, in M. H. Pereira et al. (org), O liberalismo na Península Ibérica na primeira metade do século XIX. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1982, v. 1, pp. 287-307; Zília Osório de Castro, Portugal e Brasil. Lisboa: Assembleia da República, 2002.

Miriam Halpern Pereira – CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]


CARDOSO, José Luís Cardoso (org). Manuel Fernandes Tomás. Escritos políticos e discursos parlamentares (1820-1822). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2020. 538p. Resenha de: PEREIRA, Miriam Halpern. Ler História. Lisboa, n.78, p.296-300. Acessar publicação original [IF]

Dicionário dos Historiadores Portugueses – Da Academia Real das Ciências até ao final do Estado Novo – MATOS (LH)

MATOS, Sérgio Campos de (Coord). Dicionário dos Historiadores Portugueses – Da Academia Real das Ciências até ao final do Estado Novo. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2015. Resenha de: PEREIRA, Miriam Halpern. Ler História, v. 62, p. 193-197, 2012.

1 Excelente ideia a de produzir um dicionário deste teor. Já existem noutros países europeus, Espanha, França ou noutros países mais distantes como o Brasil. Mas o dicionário português apresenta numerosas singularidades. Ser on-line, até agora este tipo de obras tem sido editado em papel. Também é novidade ser lançado no site da Biblioteca Nacional de Portugal uma obra em construção, os e-books costumam editar-se completos, este produto virtual assemelha-se às antigas edições em fascículos. Por enquanto tem só 30 entradas e listas das futuras entradas agrupadas por historiadores, temáticas, instituições e revistas. São essas listas que permitem compreender um pouco melhor o sentido da construção da obra, que anuncia como ponto de partida a Academia Real das Ciências e como ponto final o dia 25 de abril de 1974. As fronteiras são discutíveis. Na minha opinião ou se começava em Fernão Lopes ou em Alexandre Herculano, tal como têm sido as escolhas de outros países: em França, Christian Amalvi (2004) optou por principiar em Grégoire de Tours, em Espanha (2002) optou-se por 1840.

2 Mas intrigante e pouco claro é o ponto final: 25 de abril de 1974, data do final do Estado Novo. O que se entende por isso? Incluem-se os historiadores já existentes nessa data, ou seja que tinham obra publicada até então? Uma rápida leitura da lista dos nomes on-line mostra que não. Será em função da carreira universitária? Ou o doutoramento? Também não se acerta. Continuam a ser evidentes as ausências, além de tal não se coadunar com o critério anunciado de incluir autodidatas e personalidades de diferentes formações e não só académicos, o que, sendo sempre adequado, ainda o é mais quando se conhece o poderoso filtro ideológico e político que foram as instituições universitárias durante o Estado Novo. Mas tendo incluído Álvaro Cunhal, dever-se-ia incluir também Mário Soares, autor de As Ideias Políticas e Sociais de Teófilo Braga, com prefácio de Vitorino Magalhães Godinho (Centro Bibliográfico, Lisboa, 1950). Aliás a obra de Álvaro Cunhal, As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média, só consta como editada em 1975, no Catálogo da BNP e é pena que a edição clandestina anterior não esteja depositada na BNP. O interesse de homens políticos pela escrita histórica, que explica a inclusão de vários outros nomes, é uma tradição portuguesa, que se deve valorizar hoje, face à «transmutação» atual de gestores tecnocratas em políticos, com demasiada frequência falhos de cultura histórica.

3 A grande notoriedade posterior a 1974 parece explicar a presença de autores que não tinham quase nada publicado no domínio da historiografia até o dia 25 de abril de 1974 e só depois daquela data, às vezes vários anos mais tarde, é que vieram a publicar obras de vulto de natureza histórica. O crivo não foi pois a relevância científica das obras publicadas antes de 1974, critério que é evidente não ter sido aplicado. O critério da morte terá sido o que explica uma dessas presenças, a de João Bénard da Costa, segundo me foi explicado pelo coordenador. Mas mesmo seguindo esse critério, continuam as ausências. Não constam Rómulo de Carvalho, Ana Maria Alves, César de Oliveira, Sacuntala de Miranda, Maria Ioannis Baganha, Jill Dias, António Candeias, entre outros. O critério da morte, adotado no caso francês, para evitar a tendência hagiográfica, podia até ter a vantagem de rejuvenescer o dicionário português. Estando prevista a sua conclusão em 2015, estarão excluídos desta obra 41 anos de produção historiográfica portuguesa! Por acaso trata-se, como é geralmente sabido, de um período de intensa renovação da historiografia e das ciências sociais em Portugal. Mas mesmo entre os autores clássicos encontrei uma lacuna inexplicável: como se pode omitir José Acúrsio das Neves autor da História das Invasões Francesas?

4 Uma boa ideia foi incluir os historiadores estrangeiros que escreveram sobre a história de Portugal, aliás bem poucos, mas também houve aqui esquecimentos importantes, recordo apenas H. E. S. Fisher, Rebecca Catz ou ainda Lucia Perrone que não constam, mantendo-se aqui a falta de um critério de escolha compreensível. E eis que se descobre nova indefinição: será que não se inclui a historiografia sobre as antigas colónias?

5 Autores estrangeiros prestigiados que estudaram a história colonial portuguesa em África, como Herman Bauman, Beatrix Heintze, David Birmingham, Allen Isaacman, Douglas Wheeler, René Pélissier, Basil Davidson não constam, embora várias das suas obras tenham sido editadas nos anos 50, 60 e início de 70. Foram fundamentais nesta área, numa época em que entre os portugueses quase só funcionários do Estado Novo escreviam sobre a África dita «portuguesa», sobretudo no que se refere aos séculos XIX-XX.

6 E como explicar também a reduzida presença de brasileiros, cuja produção sobre a história colonial portuguesa no Brasil é enorme? Consta Novais, cujo primeiro livro data de 1975 (portanto fora do período demarcado), mas não se avistam vários autores, alguns bem anteriores, como Tarquínio de Sousa, Alice Canabrava, E. Viotti da Costa, Carlos Guilherme Mota, entre tantos outros. Infelizmente o francês Abade Raynal escreveu o célebre livro O estabelecimento dos portugueses no Brasil (1770) antes de 1779, data da criação da Real Academia das Ciências.

7 Em relação à Asia, como se pode omitir Donald F. Lach, autor do notável livro Asia in the making of Europe (1.ª edição1965, reeditado 1971), em que se dedica a Portugal diferentes capítulos em cada um dos 4 volumes desta grande obra? Como ainda não se traduziu este livro magistral? Pannikar, autor de Asia and western dominance – a survey of Vasco da Gama epoch of Asian History (1959), também não está previsto. Só me tenho referido a autores com obra dentro das balizas atuais deste dicionário, ainda que as considere questionáveis. Talvez Gaston Perera, historiador do Sri Lanka, que estudou a ocupação portuguesa no seu país, em obras recentes, tendo falecido subitamente em 2011, pudesse também ser incluído…

8 A dificuldade em excluir a produção de 38 anos de intensa vida científica ou intelectual torna-se evidente quando se consultam as duas únicas entradas temáticas já existentes, História de Arte e História Cultural, a bibliografia referida é num caso posterior a 1979 e no outro a 1990. E naturalmente que a baliza temporal também ultrapassa largamente 1974 nas biografias e bibliografias ativas e passivas de algumas das principais entradas já existentes.

9 Consultando a lista das instituições, encontram-se as Faculdades de Letras e de Direito, mas aqui também as ausências surpreendem, não constam nem o ISCEF (predecessor do ISEG), nem sequer o GIS, predecessor do ICS, nem a Faculdade de Economia de Coimbra, nem o ISCTE (a comemorar este ano os 40 anos de existência). Quanto às revistas, só constam revistas fundadas antes de 1974, mas está indicado como termo limite do âmbito em consideração a data de 2011-2012, quando elas ainda existem. Porém, nenhuma das novas revistas que surgiram nesse período estão incluídas: a Revista da História das Ideias, a Revista de História Económica, a Ler História, entre outras. Ainda mais estranha é ausência da Revista de Economia, que antes de 1974 publicou estudos importantes de história.

10 Face às balizas temporais adotadas surpreende menos que ao mencionar as fronteiras da história com outras ciências humanas, se não refira nem a sociologia, nem a ciência política, embora já existissem com nome camuflado. O regime estado-novista tinha os seus gostos (des-gostos) linguísticos e semânticos. É mais um lapso.

11 Na apresentação on-line conclui-se que o dicionário será acrescentado regularmente com novas entradas e poderá beneficiar com sugestões críticas dos seus leitores. Aqui ficam as minhas. No que me diz respeito, embora o meu primeiro livro, que é o texto também da tese de doutoramento, tenha sido publicado em 1971, e tenha tido grande impacto e embora tenha vários artigos publicados em revistas estrangeiras e portuguesas prestigiadas antes do 25 de abril, e já então fosse professora universitária, espero e prefiro estar viva em 2015 e continuar a escrever e a publicar a meu gosto, a estar morta para ser incluída no dicionário, o que mesmo assim seria incerto… Desejo também nessa altura festejar os longos anos de José Manuel Tengarrinha, alguns bem menos de José Sasportes, de Maria Beatriz Nizza da Silva, e meus também. Todos nós com obra publicada antes de 1974 somos ainda demasiado jovens para este dicionário desatualizado de 41 anos. O dicionário espanhol, publicado em 2002, avançava até 1980, e mesmo assim foi criticado por não se prolongar mais. Bem equilibrada e transparente foi a opção do Dicionário Histórico de Economistas Portugueses, organizado por José Luís Cardoso, incluindo na sua seleção dos economistas aqueles que tivessem completado 70 anos à data da publicação. Útil também salientar que o critério de relevância científica, em detrimento de funções universitárias, administrativas, políticas ou outras, presidiu a essa escolha, assim como a prioridade dada à análise da obra científica, reduzindo a parte biográfica, em geral já retratada em outras obras de referência. O que também não constituiu norma comum nas entradas já disponíveis neste dicionário.

12 Não há nenhuma referência a um motor de busca por nomes ou temas, de forma a cruzar informação. Seria desde já útil. Quem se interessasse por António Sérgio poderia encontrar a referência à polémica com Mário de Albuquerque, referida por Ana Leal Faria, mas que não mereceu a atenção de Romero de Magalhães, com ou sem razão, essa não é a questão. Esperemos que, no que parece ser o primeiro dicionário virtual do mundo neste domínio, esta funcionalidade seja introduzida rapidamente. Não o fazer seria um desperdício dos novos meios tecnológicos. Um contrassenso. Mais um.

13 Sem qualquer sombra de dúvida, este dicionário merece ser revisto, remodelado com base em critérios transparentes e naturalmente atualizado – prolongando-o até o final do século XX, para não constituir uma ocasião perdida de prestar um excelente serviço à comunidade científica, evitando um considerável desperdício de meios humanos e financeiros, e podendo vir a contribuir para uma boa imagem nacional e internacional das instituições envolvidas, a Biblioteca Nacional de Portugal e o Centro de História da FLL-UL.

Miriam Halpern PereiraProfessora catedrática emérita do ISCTE-IUL e investigadora do CEHC, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. E-mail: [email protected]

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Diccionário Biográfico Español (1808-1833), de los orígenes del liberalismo a la reacción absolutista – NOVALES (LH)

NOVALES, Gil, Alberto, Diccionário Biográfico Español (1808-1833), de los orígenes del liberalismo a la reacción absolutista. Madrid: , Fundación Mapfre (Instituto Cultural), 2010. (3 volumes + CD interativo). Resenha de: PEREIRA, Miriam Halpern. Ler História, n.62, p. 197-199, n. 62, 2012.

1 O autor é um prestigiado especialista das origens do liberalismo em Espanha. Doutorou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Saragoça, tendo continuado a sua carreira na Alemanha, Estados Unidos e, ao regressar a Espanha, após um período de alternância entre as Universidades de Madrid e Barcelona, acabou por estabilizar na Universidade Complutense. É atualmente professor emeritus desta Universidade. Dirige desde 1983 a revista Triénio- Ilustración y liberalismo.

2 A sua obra mais recente é o Diccionário biográfico español (1808-1833), de los orígenes del liberalismo a la reacción absolutista, fruto de mais de três décadas de investigação. Este culminar de uma vida de labor científico insere-se numa obra em que o interesse pela origem do liberalismo espanhol foi acompanhada desde longa data pela valorização do papel do indivíduo na história. Principiando por uma abordagem clássica no estudo sobre Joaquim Costa (tese defendida na Faculdade de Direito da Universidade de Saragoça), desde cedo sucedeu-lhe uma abordagem prosopográfica no amplo estudo sobre as Sociedades Patrióticas, inovadora análise sobre a sociabilidade política: Las Sociedades Patrióticas (1820-1823): Las Libertades de expresión y de reunion en el origen de los partidos políticos (Madrid, 1975, 2 vols.). Alberto Gil Novales veio a Lisboa, creio que pela primeira vez a uma reunião científica, quando participou no colóquio O Liberalismo na Península Ibérica na 1ªmetade do século XIX, a primeira de um conjunto de intervenções em colóquios portugueses que viria a realizar nos anos subsequentesSeria extremamente interessante ouvi-lo agora falar-nos sobre esta sua recente obra, que inclui um CD interativo, permitindo dois tipos de pesquisa, uma simples pesquisa alfabética, e um tipo de pesquisa livre, pela palavra ou pelo nome no conjunto da obra.

3 O objetivo do Diccionário é, retomando palavras do autor «refletir as vidas, ideias, vicissitudes e aspirações dos nossos compatriotas de aqueles anos e dos não-espanhóis que estavam em contacto próximo com eles». Conhecer as vivências de um indivíduo ajuda a compreender não só as suas ideias, como as suas atitudes. A rede de relações sociais, de parentesco e de amizade, os altos e baixos do percurso individual esclarecem comportamentos porventura menos previsíveis. Estudo biográfico e estudo da sociedade em que viveu o biografado completam-se e cruzam-se nesta obra.

4 Esta monumental obra inclui 25.000 notícias biográficas, de todos os que tiveram um papel relevante, por pequeno que tenha sido, durante o reinado de Fernando VII. Recorde-se que durante este reinado tiveram lugar acontecimentos decisivos na história de Espanha: a Guerra da Independência, correspondente ao que em Portugal tem a designação de invasões francesas, as Constituições de Cádiz e de Bayonne, a independência das colónias sul-americanas e o Triénio Liberal. Trata-se de uma obra elaborada pelo autor ao longo de 35 anos. Foi sendo precedida de publicações parciais, colocando-se à disposição da comunidade científica e do público interessado sucessivos conjuntos já em si muito valiosos. Os Dicionários do Triénio Liberal (em colaboração, 1991), Dicionários biográficos de Extremadura (1998) e o aragonês (2005), precederam este grande marco da historiografia espanhola.

5 O período abrangido não se cinge às balizas temporais anunciadas, naturalmente há personagens que nasceram no século XVIII e outros que só desapareceram na década de 70 do século seguinte. Nestas notícias biográficas, intercaladas de algumas pequenas biografias mais alargadas (como é o caso de General Álava, Flórez Estrada, Riego, entre outros) estão presentes dominantemente homens. A presença feminina é menor do que se poderia desejar, nas palavras do autor, mas a época não permite mais.

6 Permitiu sim ao autor percorrer os diversos estratos da sociedade espanhola. Desde os burgueses e pequeno burgueses, capitalistas, empresários, comerciantes, industriais, viajantes, proprietários, lavradores, homens do campo, artesãos, operários, toureiros, oficias do Exército e da Marinha, guerrilheiros, conspiradores, agentes de polícia, espias, ladrões, bandidos, e até escravos residuais. O clero também está presente – frades e sacerdotes, bispos, algumas freiras milagrosas – assim como a aristocracia, a família real (recobrindo três reinados, Carlos IV, Fernando VII, José I), os altos funcionários administrativos, os chefes políticos, os deputados, das províncias e das Cortes, o corpo diplomático estrangeiro residente no reino e o espanhol em funções no estrangeiro, os jornalistas, os escritores, os poetas, os atores e atrizes de teatro, os artistas, os homens de ciência, os juristas e os eruditos, num desfile colossal de personagens que permitem reconstituir a trama social desta época. Não só todas as regiões de Espanha estão presentes, mas também gente das Américas e de outras zonas do mundo. Naturalmente que todas posições ideológicas, religiosas e políticas estão presentes nesta magnífica obra. Para sua realização, a enorme erudição e o profundo conhecimento desta época pelo autor foi determinante na meticulosa e inteligente análise de grande variedade de fontes, entre as quais se contam: registos paroquiais, guias vários, atas de sociedades, colégios e instituições de ensino, ordens religiosas e de igrejas seculares, imprensa, folhetos, correspondência privada.

7 O Dicionário biográfico encontra-se disponível na Biblioteca Nacional de Portugal, onde, face ao reduzidíssimo intercâmbio cultural luso-espanhol, entendi dever colocar à disposição do público português o exemplar que me foi oferecido, guardando para mim unicamente o CD, dada a inexistência de um serviço de documentos audiovisuais nesta instituição.

Miriam Halpern PereiraProfessora catedrática emérita do ISCTE-IUL e investigadora do CEHC, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. E-mail: [email protected]

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