Marcello Caetano, uma biografia (1906-1980) – MARTINHO (VH)

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano, uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016. 589 p. GONÇALVES, Leandro Pereira. Marcello Caetano, uma biografia dos trópicos. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 66, Set./ Dez. 2018.

“Sei que estás em festa, pá

Fico contente

E enquanto estou ausente

Guarda um cravo para mim”

(Chico Buarque, “Tanto Mar”, versão I, 1974)

Os versos da canção de Chico Buarque, Tanto mar, foram entoados e intensificados, criando uma unidade entre Brasil e Portugal a partir dos desdobramentos de 25 de abril de 1974, quando, com a Revolução dos Cravos, ocorreu o processo de consolidação da democracia e a derrocada do Estado Novo português. Esse momento marcou o deslocamento para o exílio do último representante do regime, Marcello Caetano, que inspirado ou não em Chico, expressou: “mas entre nós está tanto mar…”, ao referenciar a nova vida na Cidade Maravilhosa, onde permaneceu até sua morte, em 1980.

A relação entre os dois países não é ocasional, não apenas com Chico Buarque ou mesmo Marcello Caetano, mas também com Francisco Carlos Palomanes Martinho, autor da mais recente biografia do líder português. O professor luso-brasileiro, que é livre-docente do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, autor de diversos estudos sobre Portugal Contemporâneo,1 desenvolve uma reflexão sobre a vida de Marcello Caetano em vários níveis, abordando o sentido do personagem em sua totalidade, desde aspectos do cotidiano, do âmbito privado e familiar, até momentos de sua trajetória política, acadêmica e intelectual. Além disso, traz informações sobre o exílio, fase de grande contribuição historiográfica, pois o autor utiliza uma série de documentos que os colegas investigadores portugueses não alcançaram em outros trabalhos, devido ao depósito em acervos brasileiros. Há de ressaltar a quantidade significativa de materiais coletados em arquivos portugueses, estabelecendo, portanto, uma produção empírica sólida e de relevância.

O prefácio, escrito por António Costa Pinto – que ao lado de Angela de Castro Gomes, representam as principais influências historiográficas do autor -, mapeia a obra como a terceira “grande biografia” de Caetano publicada em poucos anos, expressando a relevância da investigação. Talvez o único ponto possível de reflexão mais aprofundada sejam as ausências das biografias antecessoras como elementos analíticos, mas há a compreensão do autor em optar por não utilizá-las, buscando uma interpretação sem balizas anteriores.2

A biografia, um gênero cada vez mais abordado na academia, é cercada de aspectos metodológicos e teóricos que o autor não se furtou quando analisou e refletiu de forma conceitual elementos centrados sobre a memória do personagem, ainda mais em torno de um líder que teve a “ingrata” missão de ser o “número dois” da ditadura, sucedendo a liderança consolidada em torno da imagem de António de Oliveira Salazar.

Marcello Caetano foi político, professor de Direito e o último presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo, entre 1968 e 1974. Na área acadêmica, atuou na Universidade de Lisboa, tendo uma carreira docente de extrema relevância para a consolidação das doutrinas corporativistas na História do Direito. Na juventude, foi militante do movimento monárquico, fazendo parte do Integralismo Lusitano. Nos anos 1930, foi uma das peças-chave do regime salazarista no âmbito do Estado Novo, inclusive participando da redação da Constituição de 1933. Apesar de divergências políticas com Salazar, devido ao caráter reformista de suas propostas, manteve-se ativo no governo, o que contribuiu para a sua ascensão em 1968, momento em que António de Oliveira Salazar foi afastado por motivo de doença. Um governo reformista em um contexto de instabilidade gerou a derrubada do Estado Novo e do governo de Marcello Caetano com a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, sendo exilado no Brasil, onde se adaptou bem na sociedade e desenvolveu atividades acadêmicas na Universidade Gama Filho, ocupando o cargo de diretor. Mesmo não tendo uma ação ativa na política, Caetano vivia em um país autoritário, ou seja, um espaço propício para o desenvolvimento de seus pensamentos e suas práticas políticas e intelectuais.

Um dos aspectos de maior relevância da produção de Francisco Martinho é a destreza do autor em criar um texto acadêmico que, ao mesmo tempo, fosse compatível com o grande público, não perdendo conceitos e equilibrando elementos aos leitores dos dois países. Com o impacto editorial, a biografia ganhou uma versão em língua inglesa e brevemente estará circulando na terra do exílio de Marcello Caetano (Martinho, 2018).

A obra é composta de uma produção linear da vida do líder português, contribuindo para o entendimento dos vários aspectos do biografado, principalmente em relação a um elemento de extrema relevância: o uso intelectual e acadêmico com uma finalidade política, demonstrando que a vida de Caetano não está restringida ao período de 1968 a 1974, momento que esteve na Presidência do Conselho de Ministros.

A biografia é composta por dez capítulos, e após o primeiro capítulo memorialístico sobre o Estado Novo, o autor dedica reflexões em relação ao contexto privado, focando a formação de Marcello Caetano, que nasceu em Lisboa no dia 17 de agosto de 1906 e presenciou todas as transformações políticas do século XX, sendo, desde jovem, quando estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, militante católico, monárquico e democrata-cristão conservador.

O livro segue uma estrutura cronológica, tendo o eixo político como base central a relação analítica. O terceiro capítulo apresenta a maturidade do biografado, quando assumiu a Mocidade Portuguesa, assunto do quarto capítulo. Devido às divergências entre Salazar e Caetano, o líder português o nomeia ministro das Colônias, período abordado no quinto capítulo. O capítulo sexto tem como ponto central o retorno de Marcello Caetano para o interior do Estado Novo, quando assumiu a Comissão Executiva da União Nacional e a Presidência da Câmara Corporativa, alcançando assim notório reconhecimento político. Sem abandonar suas atividades acadêmicas e intelectuais, conforme mostra o capítulo sete, quando assume a reitoria da Universidade de Lisboa, Caetano se destaca na política nacional com cargos no Executivo do Estado Novo, o que o faz assumir a função de ser o sucessor de Salazar, como exposto no capítulo oito. Com grandes dificuldades de dar sequência ao governo anterior, a queda do marcellismo com todas suas repercussões é o tema do capítulo nove. O exílio no Brasil é apresentado no último capítulo para concluir essa importante obra biográfica.

Trata-se de um líder político de expressão do século XX com características peculiares em torno de uma ótica católica e corporativista que passou a ser um dos braços centrais do Estado Novo, sendo um homem do Estado que possuía uma via acadêmica ativa com uma rede de intelectuais, o que propiciou uma vida (não muito intensa) no Brasil, mas que encontrou nos trópicos, no contexto ditatorial, um porto seguro para os últimos anos de sua vida.

1 MARTINHO, 2002MARTINHO; COSTA PINTO, 2007MARTINHO; COSTA PINTO, 2016.

2Refere-se aos estudos de: CASTILHO, 2012LEITÃO, 2014.

Referências

CASTILHO, José Manuel Tavares. Marcello Caetano – uma biografia política. Lisboa: Edições 70, 2012. [ Links ]

LEITÃO, Luís Menezes. Marcello Caetano – um destino. Lisboa: Quetzal, 2014. [ Links ]

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. A bem da nação: o sindicalismo português entre a tradição e a modernidade (1933-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. [ Links ]

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano, uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016. [ Links ]

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano and the Portuguese “New State”. Sussex University Press, 2018. [ Links ]

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes; COSTA PINTO, António (Org.). O corporativismo em português: Estado, política e sociedade no salazarismo e no varguismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. [ Links ]

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes; COSTA PINTO, António (Org.). A onda corporativa: corporativismo e ditaduras na Europa e na América Latina. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016. [ Links ]

Leandro Pereira Gonçalves – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Juiz de Fora, Rua José Lourenço Kelmer, Juiz de Fora, MG, 36.036-330, Brasil. [email protected].

Marcello Caetano: Uma biografia (1906-1980) – MARTINHO (RH-USP)

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano: Uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016. Resenha de: SECCO, Lincoln. Marcello Caetano: o ethos intelectual e as artimanhas do poder. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo  2018.

Portugal sobreviveu na periferia europeia às forças mais poderosas que sacudiram o século XX: as guerras mundiais, as ditaduras e a descolonização. A narrativa desses processos já seria um desafio imponente. Mais difícil, porém, é filtrá-los pelas lentes de uma vida singular, ainda que a de um homem que viria a desempenhar papel de relevo na política de seu país.

Em 600 páginas, com estilo límpido, o historiador Francisco Carlos Palomanes Martinho compôs uma obra que já é referência. Dez capítulos impecavelmente equilibrados, com introdução explicativa e conclusões em cada um deles, e que findam amiúde com um convite à leitura do próximo capítulo. Uma narrativa por vezes em suspense que não perde por isso nada do rigor acadêmico, provado na destreza com que coletou, selecionou e analisou suas fontes e ampla bibliografia, com destaque para a consulta da epistolografia, de notícias de jornais, manuscritos e outros documentos inéditos.

O historiador não poderia, entretanto, projetar no jovem jornalista católico ou no professor de Direito e ideólogo do corporativismo o futuro presidente do Conselho de Ministros. Francisco Martinho evita muito bem as armadilhas com as quais o gênero biográfico costuma apanhar aqueles que desconhecem o ofício do historiador. Não nos apresenta um Marcello Caetano pronto e acabado. Ao contrário, vemos um homem por vezes indeciso entre a tradição e a modernidade, mas que ao fim de tudo se aferra a uma concepção messiânica da história do seu país.

À indagação que se lhe poderia fazer, se esta é uma biografia intelectual ou política, o historiador antecipa-se muito bem já no título: Marcelo Caetano: Uma biografia. A sua narrativa foi feliz em encontrar a unidade no diverso.

A vida de Marcelo Caetano aqui apresentada é plena de ambivalências. Martinho nos revela um filho de família despossuída, mas não pobre; um católico que finda a vida agnóstico; o monárquico que abandonou os círculos monarquistas à própria sorte; o salazarista marcado por sucessivas desavenças com Salazar; o direitista a quem a direita se opôs; a esperança liberal que frustrou a transição a um novo sistema.

Caetano viveu uma revolução com o apego à solenidade ritual do cargo. Foi um patriota exilado. Alguém que queimou os seus navios, porém manteve profundas ligações epistolares com o seu país. O homem sisudo que, no exílio carioca, descobre um amor outonal; um fim trágico, porém envolto em tertúlias prazerosas.

De todas os paradoxos que emergem da leitura dessa biografia, o que mais se evidencia é o ethos intelectual mobilizado pelas conveniências da política. É certo que o mais oportunista dos políticos ainda traz em si princípios bem ou mal delineados, conscientemente ou não. Da mesma forma, lideranças marcadas por fortes posicionamentos de princípio não deixam de ceder, em muitos momentos decisivos, às artimanhas do poder. O que importa é definir o lado para o qual pende a balança.

Marcello Caetano construiu a imagem do professor de Direito por profissão e do historiador por vocação. Um homem das letras provisoriamente convocado pela política. Ele pavimentou assim o seu caminho ao poder. E fez parte de sua expertise a permanente reafirmação como intelectual cioso das prerrogativas da autonomia universitária. Restrita, por certo, aos limites pré-estabelecidos pelo regime a que servia.

Não deixa de ser notável a fina análise que o autor tece da crise universitária de 1962 que levou Caetano a se demitir da reitoria da Universidade de Lisboa. O historiador, diante das representações à direita e à esquerda, das justificativas do seu próprio personagem, escolhe a releitura das fontes e desvela um comportamento que não se enquadra fácil. Que é nuançado, pontilhado por motivações pessoais e por princípios corporativos que se confundem (deliberadamente?) com discretas tendências liberais.

A marca do doutrinarismo intelectual foi o que de mais permanente houve na vida de Marcello Caetano, mas como o autor comprova em inúmeras passagens da sua obra, era um doutrinarismo flexível o suficiente para reconhecer as imposições da conjuntura, aceitar os interesses dos homens (sim, eram obviamente todos homens) com os quais precisava concertar uma ação política. Eis uma tese que emerge não de repente, mas de sucessivas linhas que o autor tece para apreender a totalidade de uma trajetória pública, intelectual, engajada e que molda a própria família e a intimidade marcada pelo distanciamento e pelo recato.

São um índice da complexidade do personagem reconstituído por Martinho as atitudes dele como presidente do Conselho de Ministros a partir de 1968, após a inabilitação e posterior morte de Salazar. O equilibrista que este sempre fora entre facções do regime é substituído por um governante mais duro e que se mostra incapaz de perceber os movimentos econômicos que lançavam Portugal na integração europeia.

Diga-se o que se quiser, Salazar soube manter perto de si os extremos aceitáveis de sua época. A começar pela sua insistência em ter o próprio Marcello Caetano em funções e cargos afetos ao regime. Caetano, que já ascendia sob a desconfiança dos velhos salazaristas, não soube se entender com os novos. Ele não aceitou os valores democráticos e nem as demandas crescentes das classes médias e trabalhadoras, ainda que seu governo introduzisse mudanças na legislação trabalhista. Ele se agarrou à ideia de um império colonial condenado, embora na juventude tivesse defendido uma autonomia relativa das colônias.

Em certo sentido, conta-nos Martinho, Caetano era moderno. Ao contrário de Salazar, aceitava a urbanização, o industrialismo e se preocupava com a política educacional. Mas de forma diferente do seu líder, no governo frustrou tanto as facções que o consideravam liberal quanto a extrema direita apegada ao passado. Terminou sozinho porque o juste milieu tornara-se um caminho impossível. Era a conjuntura aguda do fim do colonialismo a não mais permitir uma “evolução na continuidade”. O tempo perdido das reformas exigia a coragem dos rompimentos.

Ao fim, apegou-se ao que havia de mais nuclear no sistema que ele apoiou a vida toda: a suposta supremacia civilizacional do homem branco na governação de povos negros, tidos como incapazes de autonomia plena.

Mais doutrinário que Salazar e mais ideólogo que expert, como sustenta o seu biógrafo, Caetano também persistiu obstinado na ideia de que os governos têm uma “função retificadora da sociedade”, mesmo que durante o salazarismo muitas vezes opusesse a atitudes despóticas do chefe a necessidade de convencimento social para a legitimação do poder. Era cioso das hierarquias e tradições. Mostrou-o quando defendeu os ornamentos e distinções do cargo que passou a ocupar nos anos 1950: o de comissário geral da Câmara Corporativa, um órgão meramente consultivo.

Conta-se que, no 25 de abril, uma vez cercado no quartel do Carmo pelas tropas do capitão Salgueiro Maia, Caetano sentiu-se desconfortável em estabelecer tratativas com um oficial de baixa patente. Perguntou pelos chefes e, finalmente, aceitou render-se ao general Spínola, afirmando: “assim o poder não cai na rua”.

Domados pelas paixões do nosso tempo, é inescapável julgar deletério o seu papel na vida política de Portugal. Mas sem prejuízo de nossos valores, não deixa de nos intrigar a sua fleuma, aquela frieza inabalável que não provinha simplesmente do cargo. Conforme ele escreveu, resultava do decoro exterior que as instituições nos impõem. Não a todos, mas apenas aos que se apegam a elas com princípios. E ele os tinha, ainda que não os aceitemos.

Decerto, Martinho viveu um bom pedaço de sua vida ao lado de seu biografado. Foram anos a fio entre aulas, viagens e arquivos. Frequentou-lhe as cartas, as fotografias de família, os amigos, os livros e a memória que se construiu em torno dele (tão magnificamente tratada no primeiro capítulo dessa biografia).

O professor da Universidade de São Paulo se sentiu melhor ao lado do colega da Universidade de Lisboa do que diante do político do Estado Novo. Independente disso, o leitor é conduzido a um fim moderadamente triste. O tempo arrefece os ódios e o biógrafo, se não busca salvar o político que Marcello Caetano foi, evita “a exagerada superficialidade da desqualificação”.

No 25 de abril, o ditador cedeu lugar ao professor que ele jamais deixou de ser durante toda a vida. A ambos o historiador não julga, compreende.

Referências

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano: Uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016. [ Links ]

1Resenha do livro: MARTINHO, Francisco Carlos PalomanesMarcello Caetano: Uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016.

Lincoln Secco – Professor no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP. E-mail: [email protected].