Mitos papais: política e imaginação na História – RUST (Topoi)

RUST, Leandro Duarte. Mitos papais: política e imaginação na História. Petrópolis: Vozes, 2015. Resenha de: MARTINS, William de Souza. A Santa Sé e os impasses da modernidade. Topoi v.17 n.32 Rio de Janeiro Jan./June 2016.

Há um século, o historiador Benedetto Croce elaborou uma análise que marcou posteriormente diversas interpretações. Afastando-se da perspectiva segundo a qual a História contemporânea abrangeria apenas o passado muito próximo (“os cinquenta últimos anos, o último decênio, o último ano, mês ou dia ou mesmo a última hora ou minuto”), o erudito italiano entendeu que os fatos do presente mantinham relações próximas com diferentes temporalidades históricas: “somente uma preocupação da vida presente pode nos impelir a fazer pesquisas sobre um fato do passado”. Ou, dito de modo mais claro: “a contemporaneidade não é própria de uma categoria de histórias (…), mas caracteriza intimamente toda a história”.1

As considerações desenvolvidas parecem adequadas para introduzir a discussão do novo livro de Leandro Duarte Rust, professor de História Antiga e Medieval da Universidade de Mato Grosso, e autor, entre outras obras, de as Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média Central (São Paulo: Annablume, 2011). Buscando atingir simultaneamente o público acadêmico e o leitor não especializado interessado nas investigações históricas, o autor se propõe a analisar o que designa como “mitos papais”, quais sejam: o suposto pontificado de São Pedro, o apóstolo; o Cristianismo Primitivo; a Reforma Gregoriana; o papado de Alexandre VI, da família Bórgia; e o pontificado de Pio XII, que recentemente recebeu o cognome de “papa de Hitler”.

Não se trata assim de uma história linear da Igreja, como muitas já disponíveis. O leitor tem em mãos uma obra construída em torno de um problema de pesquisa bem delimitado. Além disso, salta aos olhos a habilidade do autor em alternar diferentes temporalidades históricas, indo do cristianismo dos primeiros tempos até o século XX, sem perder o fio da narrativa. Este modo de narrar resulta da forma como os mitos papais foram construídos. Nos cinco casos analisados, trata-se de narrativas estruturadas aproximadamente entre 1870 e 2000, período em que a Igreja se viu diretamente desafiada pelos processos resultantes da Modernidade, conforme será detalhado. Um dos argumentos centrais do autor é que tais narrativas mitológicas cumpriram a função de redefinir de maneira positiva o lugar da Igreja católica em geral, e da Santa Sé em particular, em um período marcado pela perda da sua influência social e política. A produção das referidas narrativas não foi obra de erudição desinteressada, resultando antes da necessidade de assumir posições políticas para combater projetos de poder rivais. Os mitos papais foram construídos no calor dos acontecimentos dos séculos XIX e XX, deixando-se impregnar pela contemporaneidade de que Benedetto Croce falava.

Antes de passar ao comentário dos mitos escolhidos pelo autor, cada um ocupando um capítulo à parte no livro, deve-se dialogar com a definição de mito utilizada na obra. O autor se baseia na análise de Christopher G. Flood, para quem os

Mitos políticos são perspectivas assumidas sobre a autoridade e a dominação, a resistência e a exclusão, a unidade e a separação. Quando narrativas deste tipo surgem conectadas, circulando em uma mesma época como armas empregadas na luta pelo controle do comportamento coletivo, elas formam uma mitologia política. (p. 27)

Mais conhecida pela historiografia brasileira, a obra de Raoul Girardet, Mitos e mitologias políticas, aparece citada somente de maneira pontual, para tratar da importância do apelo à unidade em tempos de crise (p. 71-72). Não obstante, a análise do professor Leandro Rust ganharia amplitude caso tivesse recorrido com maior frequência à obra do estudioso francês. A interpretação que Girardet propõe do mito político, segundo a qual este cumpre uma tripla função, a de fabulação, a de explicação e a de mobilização, se torna basilar para compreender as tramas conspiratórias e os complôs produzidos em série ao longo dos séculos XIX e XX, de que constituem exemplo as perseguições promovidas contra os judeus e os jesuítas.2 Sem dúvida, a gênese da produção deste tipo de mitologia política se situa um pouco mais além, no âmbito do imaginário das Luzes e da Revolução Francesa. A apropriação de alguns elementos do primeiro por parte de algumas monarquias setecentistas levou-as a medidas contrárias à Companhia de Jesus, que culminaram com a supressão da Ordem em 1773 pela Santa Sé.3 Além disto, esta se viu ameaçada com o corte de relações diplomáticas, como o que foi praticado por Portugal, entre 1759 e 1770.4 No que tange à importância dos eventos políticos da França para a produção de mitos, pode-se assinalar a contribuição de François Furet, segundo a qual a temida “conspiração aristocrática”, denunciada pelas lideranças revolucionárias, tornava-se a imagem invertida da ideologia democrática e igualitária promovida pela própria Revolução.5 Na sequência do processo revolucionário, e tornando-se porta-voz dos ideais laicizantes e republicanos da França, Napoleão Bonaparte ensejou uma farta produção de leituras e imagens míticas, “ancoradas seja na luta entre o bem e o mal, seja na perspectiva da vinda de um salvador, seja no regresso a uma idade de ouro, seja ainda, especialmente, na visão do anticristo”.6

Parece válida a chave interpretativa proposta por José D’Assunção Barros no Prefácio da obra, segundo o qual os mitos papais se situam nas “tensões produzidas pelas relações do papado com a Modernidade” (p. 17). Esta última deve ser compreendida no seu significado histórico e filosófico mais amplo de ruptura com a tradição: “a modernidade não pode e não quer continuar a ir colher em outras épocas os critérios para a sua orientação, ela tem que criar em si própria as normas por que se rege”.7 Segundo a conhecida análise de Koselleck, as condições para a afirmação plena da Modernidade foram dadas na segunda metade do século XVIII, quando o horizonte de expectativas dos sujeitos históricos se distanciava cada vez mais do espaço de experiência em que tinham sido formados, criando uma dinâmica de aceleração e de descontinuidade do tempo histórico.8 Ainda que o próprio autor não tenha recuado até o século XVIII para situar a perda de poder político e social da Igreja de Roma, talvez seja útil reconstituir aqui este contexto mais amplo para aprofundar a compreensão dos “mitos papais”.

Cabem também algumas palavras gerais sobre a composição da narrativa do autor. Em cada capítulo, é analisado um mito político particular a respeito da Santa Sé. O autor mostra convincentemente que narrativas míticas que evocavam pontificados da Antiguidade, da Idade Média e do Renascimento foram construídas muito tempo depois dos referidos acontecimentos ou, mais exatamente, entre 1870 e o pós-Segunda Guerra Mundial. Por trás da elaboração dos referidos relatos, situavam-se estudiosos e historiadores comovidos com o impacto das consequências da Modernidade sobre o poder da Igreja e do pontífice romano, como pilares dos valores da tradição e da cultura do Ocidente. Após a exposição das narrativas míticas, o autor promove a desconstrução das mesmas, valendo-se de farto material crítico, constituído por contribuições da historiografia especializada e por fontes de natureza muito variada. A partir das operações complementares de contextualização, de exposição dos mitos e da crítica, o autor fornece aos leitores valiosas pistas, que poderão levá-los a construir suas próprias visões sobre os papados em foco, atingindo o objetivo da obra historiográfica aberta a sucessivas contribuições e reinterpretações.

No primeiro capítulo, a autor discute o mito do pontificado de São Pedro. Ainda que os Evangelhos atribuam a Jesus a frase “também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja” (Mt, 16,18), está longe de consenso historiográfico a hipótese de que Pedro tenha sido o primeiro papa e fundador da Igreja de Roma. Não obstante, ao longo da Segunda Guerra Mundial, o papa Pio XII (1939-1958) promoveu escavações no subsolo da Basílica de São Pedro, a fim de obter informações que pudessem comprovar a atuação do apóstolo como primeiro pontífice. Em 1950, um relatório elaborado por uma equipe de arqueólogos e estudiosos convenceu o papa de que havia indícios suficientes sobre a descoberta da tumba e dos restos mortais do apóstolo. Esta última informação, bem mais difícil de auferir, foi encampada pela arqueóloga Margherita Guarducci, da Universidade de Roma. Para tanto, a estudiosa se baseou em diversas fontes, que são cuidadosamente apresentadas e contextualizadas pelo autor. Guarducci se apoiou também nos testemunhos das inscrições contidas na suposta tumba do apóstolo. Em diálogo crítico com a referida interpretação, o professor Leandro Rust mostra que as fontes citadas podem ser lidas de diversas maneiras, relativizando as conclusões da pesquisadora italiana. No pós-guerra, período marcado pela crise dos valores da civilização ocidental, a Santa Sé, amparada na pesquisa de diversos estudiosos, buscou se fortalecer por meio do mito do pontificado de São Pedro.

O conceito de “Cristianismo Primitivo” constitui o segundo mito analisado pelo autor. Ao longo do século XX, tanto na imprensa como em obras de natureza historiográfica, tornou-se corrente o uso daquela expressão para caracterizar o cristianismo dos primeiros tempos. De modo mais exato, o cristianismo dos três primeiros séculos, anteriores à ascensão de Constantino, que oficializou o culto cristão no âmbito do Império Romano. Além de encerrar definitivamente as perseguições dirigidas aos cristãos, o édito de Constantino teve o efeito de afastar os bispos da comunidade dos fiéis, acentuando as divisões hierárquicas na instituição eclesiástica, e de preparar o terreno para a posição central do bispo de Roma sobre toda a Igreja. Em contraste, segundo Max Weber, o “Cristianismo Primitivo” caracterizou-se pela “rejeição antipolítica do mundo”, isto é, “uma religiosidade voltada para a redenção através da fraternidade, da renúncia material, do repúdio à violência e da diferença perante o Estado” (p. 83).

O autor apresenta diversos elementos que matizam a tese weberiana, diminuindo os contrastes entre os períodos situados antes e depois da decisão de Constantino. Uma parte das elites imperiais já havia se cristianizado antes do ano 200. Outros indícios mostram que os cristãos tinham adotado previamente um código social mais pragmático, acomodado ao status quo. Em 197, o sacerdote Tertuliano defendeu a compatibilidade entre o cristianismo e a defesa dos poderes imperiais. De maneira complementar, o professor Leando Rust refuta a ideia de que o bispo de Roma teria assumido um poder centralizador sobre toda a Igreja, imediatamente depois das medidas de Constantino. Adotando o código moral das elites romanas, baseado na autoridade do pater familias e na exaltação da piedade, da castidade e da moderação, a autoridade dos pontífices romanos foi construída a partir de outras bases: “nos últimos séculos do mundo antigo, se outros bispos os obedeciam não era porque os enxergavam como líderes estatais ou soberanos, mas porque viam em suas ações e em sua retórica a patria potestas, ou seja, o poder paternal” (p. 103).

No terceiro capítulo, o autor traz à discussão o tema da Reforma Gregoriana, que foi primeiramente elaborado na tese de doutorado de Augustin Fliche, publicada na década de 1920. De acordo com este erudito, sob a ameaça dos poderes dos senhores feudais e o do imperador, que interferiam diretamente na escolha dos bispos, o papa Gregório VII (1073-1085) tomou uma série de decisões, estabelecendo que somente o pontífice romano possuía a autoridade para a investidura dos bispos. Esta e outras medidas estabeleceram o primado do poder espiritual sobre os poderes temporais, transformando a Igreja em um protótipo de monarquia centralizada, responsável pela ordem pública e pela moralização da sociedade. O professor Leandro Rust salienta que a tese da Reforma Gregoriana se tornou um poderoso mito papal, cuja repercussão se encontra presente em contribuições historiográficas recentes. Elaborada em um contexto marcado pela derrocada dos impérios russo, Habsburgo e Otomano, a tese traz a marca de um pensamento tradicionalista, temeroso diante de um quadro político em que “as instituições estavam desacreditadas; a ordem, espatifada; a lei, desacatada” (p. 115). O mito da Reforma Gregoriana vinha reforçar o papel da Igreja como guardiã da unidade e da tradição, em uma época conturbada. Além de situar o contexto de produção do mito, o autor desenvolve um exercício semelhante ao praticado nos capítulos precedentes, mostrando que a suposta “monarquia papal” do século XI era mais frágil e incerta do que se imagina: “o papado comandado por Gregório VII não foi uma monarquia centralizada capaz de inaugurar uma época inteiramente nova. Ele foi uma instituição feudal, repleta de tensões e de limitações, como o mundo que a abrigava” (p. 139).

O quarto capítulo do livro analisa o pontificado de Alexandre VI (1492-1503), da família Bórgia. A fama negativa deste papado se deve à “lenda negra” construída em torno do cardeal Rodrigo Bórgia e de seu clã espanhol, que permanece arraigada até os dias atuais, a ponto de se considerá-lo “o pior papa da história” (p. 169). De acordo com o mito papal em questão, a corrupção da conduta moral da cúpula da Igreja e o favorecimento de parentes atingiram o clímax no pontificado de Alexandre VI. A própria eleição do papa foi marcada pela denúncia da compra de votos no colégio dos cardeais. Conforme assinala o autor, o mito em questão foi lavrado por Ferdinand Gregorovius. A obra A história de Roma na Idade Média foi redigida em 1870 pelo erudito alemão sob o impacto da perda dos territórios da Santa Sé para o Estado italiano e da proclamação do dogma da infalibilidade papal no Concílio Vaticano I, convocado por Pio IX (1846-1878). Adepto do ideal nacionalista, Gregorovius atribuía à “tirania” dos papas a ausência de unidade política na península italiana, colocando no mesmo plano o domínio estrangeiro dos Bórgia e o “despotismo” absoluto do papa Pio IX (p. 153 e 184).

Em contraste com as avaliações parciais do pontificado de Alexandre VI, o autor busca entendê-lo a partir dos condicionamentos coevos. Assim, “o favorecimento da própria família cumpria uma função política: redirecionando recursos da Igreja para filhos e parentes, o Papa Bórgia estruturava um grupo leal à sua autoridade” (p. 178). Ademais, estudos recentes a respeito do período do Renascimento e do Antigo Regime têm mostrado a importância dos vínculos de sangue na formação de redes de poder de famílias aristocráticas, em que a ocupação de posições no alto clero e na carreira eclesiástica em geral assumiam uma posição estratégica.9 Por fim, o autor mostra a ligação entre a imagem inteiramente negativa do pontificado de Alexandre VI com a “lenda negra” de tradicionalismo e obscurantismo associada à cultura ibérica (p. 185). Neste caminho, valeria a pena ter dialogado mais com a historiografia dos mitos políticos construídos em torno da Companhia de Jesus e da Inquisição, instituições eclesiásticas marcadas simultaneamente pela herança ibérica e pela vinculação à Santa Sé.10

No quinto capítulo, o autor discute o silêncio do papa Pio XII (1939-1958) diante das atrocidades cometidas pela Alemanha nazista. De acordo com o referido mito político, “traumatizado pelo envolvimento judaico com a luta política de 1918-1919, identificado com a cultura alemã e obcecado por fazer carreira no interior da Cúria Romana, Pacelli teria optado por uma conciliação com o nazismo” (p. 200). A tese foi difundida por John Cornwell na obra O papa de Hitler: a história secreta de Pio XII, publicada no Brasil em 2000. Pacientemente, o autor desmonta os argumentos do silêncio do papa. Sem exército e com um território mínimo, o Estado do Vaticano contava apenas com os canais diplomáticos como instrumentos de pressão externa. Em encíclicas publicadas em 1937 e em 1939, o papa condenou o antissemitismo, a exaltação da raça e a invasão da Polônia pelo exército de Hitler. Durante a Segunda Guerra, com a Itália ocupada pelas tropas alemãs, a Santa Sé mudou o tom das condenações formais, recorrendo à resistência indireta e fluida. Milhares de judeus foram poupados dos campos de concentração ao se abrigarem em estabelecimentos católicos, cuja imunidade tinha ficado assegurada pela concordata estabelecida em 1933 entre a Alemanha e o Vaticano, representado pelo cardeal Eugenio Pacelli, o futuro Pio XII.

Por trás dos mitos analisados, o autor mostra a existência de uma lógica simplista e maniqueísta que, derivada dos embates políticos, se revela incapaz de perceber as nuances e complexidades presentes no processo histórico. O livro constitui um ótimo exercício de como construir e descontruir histórias, e tem o mérito de se colocar ao alcance do público não especializado ou que está principiando os estudos na área.

1CROCE, Benedetto. Théorie et histoire de l’historiographie {1915}. Genève: Droz, 1968, p. 13-14. Grifos do autor.

2GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 9-62.

3A respeito dos discursos mitológicos envolvendo especificamente a Companhia de Jesus, ver FRANCO, José Eduardo. O mito dos jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente (séculos XVI a XX). Lisboa: Gradiva, 2006, v. 1, p. 19-45; WRIGHT, Jonathan. Os jesuítas: missões, mitos e histórias. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006, p. 137-194.

4MILLER, Samuel J. Portugal and Rome, c. 1748-1830: An Aspect of the Catholic Enlightenment. Roma: Università Gregoriana Editrice, 1978, p. 232-245.

5FURET, François. Pensar a Revolução Francesa [1978]. Lisboa: Ed. 70, 1988, p. 80-84.

6NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal (c. 1808-1810). São Paulo: Alameda, 2008, p. 29.

7HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990, p. 18. Grifos do autor.

8KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias históricas. In: KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 305-327.

9MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: HESPANHA, António Manuel (Coord.). O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, 1993, p. 332-379; LAVEN, Mary. Virgens de Veneza: vidas enclausuradas e quebra de votos no convento renascentista. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p. 67-83.

10PROSPERI, Adriano. Tribunais da consciência: inquisidores, confessores, missionários. São Paulo: Edusp, 2013, p. 189-211, a respeito da “lenda negra” da Inquisição. A respeito dos jesuítas, ver a nota 3 acima.

William de Souza Martins – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].

As irmandades de São Miguel e Almas do Purgatório: culto e iconografia no setecentos mineiro – CAMPOS (Tempo)

CAMPOS, Adalgisa Arantes. As irmandades de São Miguel e Almas do Purgatório: culto e iconografia no setecentos mineiro. Belo Horizonte: C/Arte, 2013. Resenha de: MARTINS, William de Souza. Almas santas e aflitas nas Minas setecentistas. Tempo v.21 no.37 Niterói jan./jun. 2015.

Quando a primeira versão deste trabalho veio à luz em 1994, constituída pela Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a orientação de Laura de Mello e Souza, tornou-se fonte de consulta indispensável aos especialistas do catolicismo no período colonial, particularmente aos interessados nas manifestações litúrgicas ligadas ao momento da morte. Desde então, a autora, professora titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, publicou uma grande variedade de trabalhos dedicados, entre outros temas, ao culto aos santos e aos rituais da Paixão de Cristo, passando pela análise das representações iconográficas realizadas nas capelas e matrizes mineiras. A publicação da principal obra de Adalgisa Arantes Campos vem preencher uma lacuna importante no campo de estudos em que se situa e, além disso, coloca ao alcance de um círculo maior de leitores reflexões acerca dos rituais católicos do século XVIII que continuam válidas.

A autora estabelece um diálogo importante com a historiografia francesa, a quem cabe o pioneirismo no desbravamento deste campo temático, particularmente Michel Vovelle (19782010), Jacques Le Goff (1993), Philippe Ariès (2014) e Jacques Chiffoleau (2011). Os três primeiros autores são considerados bastante representativos da chamada “história das mentalidades”, que priorizou o estudo das representações coletivas que adquiriam permanência na “longa duração”, conforme definição clássica de Fernand Braudel. A historiografia portuguesa é também visitada, com destaque no capítulo que dedica à análise da iconografia e da devoção às Almas em Portugal. Trata-se de um diálogo crítico, que rejeita a aplicação mecânica ao território das Minas coloniais de modelos de interpretação elaborados para as realidades do Velho Mundo.

Conforme argumenta Adalgisa Arantes Campos, existiram diversas especificidades do culto às Almas e das manifestações litúrgicas associadas à morte nas Minas entre 1712 e 1810, o recorte escolhido pela autora. Para compreendê-las, é indispensável ter em mente certas características da ocupação daquele território, marcada no primeiro quartel do século XVIII pela grande opulência material propiciada pelo ouro, ao qual se seguiu um lento e, depois de 1750, vertiginoso declínio. A proibição de fixação de ordens regulares na capitania teve o efeito de diminuir a quantidade de sacerdotes disponíveis para a celebração de missas, ofícios e outros rituais fúnebres associados às Almas do Purgatório. Paralelamente, devido à inexistência de mosteiros e de conventos, o culto às Almas ocupou os altares de capelas e de matrizes paroquiais, sobressaindo estas últimas, onde foram instaladas quase todas as irmandades que veneravam o Arcanjo São Miguel e as Almas do Purgatório.

No que diz respeito à leitura dos aspectos sociais e culturais mais amplos que nortearam a colonização daquele território, a autora se valeu de uma rica tradição de estudos do “barroco mineiro”, em que avultam as edições patrocinadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.1 Ao lado desse conjunto de estudos, a autora dialogou também com as obras que analisaram a atuação das irmandades na capitania das Minas (Salles, 1963Boschi, 1986Aguiar, 1997, p.80-106). Talvez um dos maiores méritos da obra resida na combinação das abordagens próprias da história da arte, aplicadas à análise das manifestações e dos modelos iconográficos, e da história social do território e das associações que veneravam as Almas do Purgatório e o Arcanjo São Miguel.

Da perspectiva das fontes escolhidas para a análise, a autora realiza um verdadeiro tour de force: fontes escritas de natureza normativa e litúrgica; farta documentação iconográfica; documentação de diferentes irmandades sob a invocação de São Miguel e Almas do Purgatório; tratados de meditação e oração, sermões e literatura. A escolha de material tão diversificado poderia conduzir à dispersão ou à análise superficial do material empírico. Pelo contrário, procedendo a partir da comparação, a análise sistemática dos detalhes produz uma visão orgânica do culto às Almas do Purgatório e dos rituais funerários na região das Minas. Estruturando a obra em cinco capítulos, pareceu acertada a decisão de não incluir o capítulo inicial da tese, dedicado à análise dos “novíssimos do homem” (a morte, o juízo, o inferno e o paraíso).2 Diminuindo-se o material de apoio, o livro ficou mais leve e mais focado no recorte escolhido.

A autora abre o primeiro capítulo com a discussão acerca do sistema teológico do Purgatório, que remete à grande obra de Jacques Le Goff. Na Idade Média, a constituição de um espaço intermediário ocupado pelos que morriam com pecados veniais, que mantinha simultaneamente união com o mundo dos vivos e dos santos, sublinhava as solidariedades e as trocas espirituais nos três níveis em que se dividia a Igreja de Cristo. Conforme a própria autora assinalou em outro trecho:

O Purgatório tornou-se um tempo e lugar intermediários, constituindo no centro, na esperança, de muitas devoções. Os mortais ocupavam boa parte da sua vida terrena auxiliando as almas a resgatarem os próprios pecados e ascenderem na rota espiritual, rumo à imortalidade (p.68).

O capítulo inicial também apresenta a relação entre o culto às Almas e as descrições do Purgatório contidas na obra que exerceu profunda influência sobre as representações do além na sociedade ocidental: A divina comédia, de Dante Aliguieri. Na obra do poeta italiano, a purificação dos pecados por meio do fogo constituiu uma importante atividade realizada no espaço do Purgatório. Após a purgação obtida nesse espaço intermediário, as almas estavam prontas para receber as glórias do Paraíso. Aos homens que faleciam em pecado mortal, estavam reservadas as penas infinitas do Inferno, sem possibilidade de remissão. A autora assinala a complexidade do papel assumido pelo fogo no Purgatório: “ao mesmo tempo pune, rejuvenesce e imortaliza” (p.47, grifos no original). Ao consultar as imagens contidas nos livros das irmandades de São Miguel e Almas e outros testemunhos iconográficos das Minas, a autora percebe a continuidade, na “longa duração”, do sistema de representações expresso por Dante:

As imagens expressam claramente a leitura do fogo enquanto elemento de purificação e santificação. Não há contorções, feições desfiguradas ou qualquer indício da natureza unívoca do fogo. As [Almas] eleitas atingidas pelo fogo conservam a serenidade, em sinal de meditação sobre o pecado e a esperança em Deus. Podemos ler o Purgatório de Dante, contemplando o acervo artístico proveniente das Minas do Ouro, como se este constituísse as pranchas ilustrativas daquela obra, tal é a afinidade entre as duas produções artísticas (p.47).

O capítulo dois trata da “iconografia e devoção às Almas em Portugal”. Trata-se de um importante material de apoio necessário à discussão dos capítulos centrais do livro. A partir do exame da historiografia portuguesa e da análise de diversas representações iconográficas existentes em diferentes localidades de Portugal, a autora constatou a variedade formal do culto às Almas efetuado no Reino. Chama inicialmente a atenção para as “alminhas”, isto é, pequenos oratórios que se edificavam ao ar livre e que continham painéis alusivos às Almas do Purgatório. Os cruzeiros, cuja localização apresentava muita diversidade, mantinham igualmente uma relação direta com o referido culto. No que tange às confrarias das Almas, é possível verificar a existência de patronos diversificados, como São Francisco, São Gregório, São José etc.

No século XVIII, momento da organização do culto às Almas no território das Minas, observou-se uma redução da variedade constatada no Reino de Portugal: inexistência das “alminhas”, o número de intermediários celestes associados à devoção às Almas ficou praticamente limitado ao Arcanjo São Miguel etc. No capítulo em questão, a autora trata ainda de deslocamentos ocorridos nas representações das Almas em Portugal, entre fins da Idade Média e princípios da Moderna. Enquanto no primeiro período a Virgem figurava em lugar de destaque no papel de intercessora das Almas do Purgatório, após o Concílio de Trento (1545-1563), Maria foi em parte substituída por outros intermediários celestes. Como hipótese para explicar essa mudança, a autora comenta que, para as sensibilidades clericais da modernidade, constituía uma ousadia figurar Nossa Senhora apertando os seios para aliviar com o seu leite a secura das almas padecentes (p.62 e 72).

O capítulo três constitui o eixo do livro e contém talvez as principais contribuições da autora para o estudo da “economia da salvação” subjacente às representações do Purgatório (Araújo, 1997, p.387-436). Seguindo tendências prenunciadas já na Idade Média, após o Concílio de Trento, o sacramento da eucaristia se tornou o principal sufrágio aplicado à salvação das Almas (Le Goff, 1993, p.362). Neste contexto, as autoridades eclesiásticas se preocuparam em garantir a solenidade do uso litúrgico do corpo de Cristo, fiscalizando o estado dos templos e altares e até a aparência dos sacerdotes que celebravam o santo sacrifício, como também combatendo a utilização de hóstias em sortilégios e práticas mágicas.

Nas irmandades de São Miguel, além dos sufrágios constituídos por missas celebrados pelos irmãos falecidos – o que constituía também uma prática realizada por outras irmandades -, havia a instituição de capelanias de missas dedicadas ao conjunto das Almas do Purgatório. Na Irmandade de São Miguel da Matriz do Pilar de Vila Rica, tal capelania foi extinta em 1810, fato que foi destacado pela autora no desenvolvimento de um dos principais argumentos do terceiro capítulo: o declínio do culto às Almas ao longo do século XVIII.

Tal declínio foi impactado pelo agravamento da situação econômica da capitania. Nesse ponto, percebe-se o diálogo implícito com a tese de Laura de Mello e Souza (1990) a respeito da pobreza no território das Minas setecentistas. A opulência de que se revestia o culto às Almas no primeiro quartel do século XVIII, caracterizado pela celebração de ofícios cantados com a participação de numerosos sacerdotes, músicos e decoração dos templos, foi substituída pela celebração silenciosa de missas em sufrágio das Almas. O culto às Almas vai assim perdendo espaço para a preocupação obsessiva com a salvação individual dos membros das irmandades de São Miguel. Para tanto, mesmo com as dificuldades econômicas assinaladas, as referidas irmandades aumentaram ao longo do século XVIII o número de sufrágios constituídos por missas, celebradas após o falecimento dos respectivos membros. Tal escolha revela a força da “contabilização do além” associada ao imaginário do Purgatório (Chiffoleau, 2011, p.127; Le Goff, 1993, p.269-271): o maior número de sufrágios tinha o efeito de apressar a passagem da alma pelo lugar intermediário, conduzindo-a ao Paraíso. Pelo fato de que, com algumas poucas exceções, os sacerdotes podiam apenas celebrar uma missa diariamente, a demanda maciça por sufrágios somente podia ser atendida fazendo-se celebrar as missas fora da capitania, de preferência na cidade do Rio de Janeiro ou no Reino de Portugal. Além dos vínculos afetivos existentes nesses territórios, a esmola para a celebração da missa era mais reduzida nos mesmos, devido à existência de maior número de sacerdotes. Por fim, a autora analisa o importante lugar ocupado nas rendas sacerdotais pelas missas de sufrágio e por outros atos litúrgicos associados ao momento da morte, o que permite compreender melhor a concentração de sacerdotes nas áreas mais urbanizadas da América Portuguesa, já apontada em estudo clássico (Neves, 1997, p.213-218).

O quarto capítulo foi destinado à análise de outros rituais, além da celebração de missas, que tinham relação com o culto às Almas do Purgatório: os ofícios, as procissões e as práticas de sepultamento. No que tange aos ofícios, a autora desenvolve em detalhes a tese do declínio de manifestações mais solenes ligadas ao culto das Almas, em decorrência não somente de dificuldades de ordem material, como também do “processo de aclimatação do universo religioso português” ao território das Minas (p.157). As procissões seguiram, em linhas gerais, o mesmo caminho. O estudo das práticas de sepultamento foi realizado de maneira meticulosa, a partir da base de dados dos livros de óbito da matriz do Pilar de Vila Rica. Na análise dos referidos registros, a autora reconstrói as hierarquias tecidas pelos irmãos de São Miguel e Almas e pelos fiéis em geral por ocasião do sepultamento. Por parte da população livre, havia preferência clara pela inumação no interior do templo, enquanto no adro deste sepultavam-se basicamente os escravos. Mesmo no interior do espaço sagrado da matriz havia diferenças entre o sepultamento na capela-mor, reservada a confrades de diferentes irmandades que tinham exercido cargos de direção em suas respectivas associações, e o sepultamento nas campas localizadas na nave templo paroquial.

No último capítulo, a autora se dedica à análise da iconografia do Arcanjo São Miguel. Apoiando-se em estudos dedicados à análise dos modelos iconográficos e da história da arte (Belting, 2010Male, 1984, entre outras referências), a autora constata as mudanças das representações de São Miguel e das Almas ocorridas no território das Minas, ante os padrões europeus. A autora faz também um mapeamento de cerca de 60 irmandades e devoções dedicadas à veneração do Arcanjo e das Almas do Purgatório que, em sua quase totalidade, impediam o ingresso de descendentes de africanos em suas fileiras. Talvez constitua uma lacuna da obra a ausência de maiores informações referentes aos irmãos das Almas, o que permitiria reconstituir o perfil prosopográfico dos mesmos. Em que pese isto, a obra de Adalgisa Arantes Campos constitui uma contribuição basilar ao estudo das representações acerca da morte e das práticas mortuárias no período colonial, um campo de estudos em que foi pioneira, ao lado das contribuições de João José Reis (1991) e de Cláudia Rodrigues (2005).

Referências

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1Com relação ao primeiro grupo, ver: Oliveira (2006)Del Negro (1978)Trindade (1951)Lopes (1942)Passos (1940).

2A autora justificou a exclusão devido à publicação prévia do capítulo em Rezende e Villalta (2007).

William de Souza Martins – Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro (RJ) – Brasil. E-mail: [email protected].

El culto mariano en Luján y San Nicolás: eligiosidad e historia regional. Buenos Aires – FOGELMAN (Topoi)

FOGELMAN, Patricia; CEVA, Mariela, TOURIS, Claudia. El culto mariano en Luján y San Nicolás: religiosidad e historia regional. Buenos Aires: Biblos, 2013. Resenha de: MARTINS, William de Souza. Santuários e romarias na Argentina: dinâmicas sociais, políticas e culturais. Topoi v.15 n.28 Rio de Janeiro Jan./June 2014.

A recente contribuição trazida por um conjunto de estudiosos argentinos deve merecer a maior atenção da comunidade de historiadores interessada no estudo das práticas e das representações religiosas. Ligando-se ao Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnológicas (Conicet), à Universidad de Buenos Aires (UBA), à Universidad Nacional de Luján (Unlu) e a outras instituições de pesquisa, os organizadores e demais autores publicaram uma coletânea que traz a marca do trabalho coletivo de pesquisa e do esforço conjunto de reflexão metodológica. Devido a tais características, a importância da obra vai além do estudo específico da dinâmica social e das apropriações políticas construídas em torno aos santuários marianos localizados em Luján e em San Nicolás, trazendo também hipóteses e reflexões que podem servir de ponto de partida para a análise do culto à Virgem Maria em outros contextos da ibero-américa.

Na introdução, de autoria das três organizadoras do volume, estão delineadas as principais diretrizes de interpretação da devoção mariana irradiada dos dois locais de peregrinação selecionados. Superando o enfoque meramente institucional, as autoras/organizadoras amparam-se em uma abordagem interdisciplinar para dar conta da complexidade dos fenômenos religiosos em foco. De acordo com tal perspectiva, a ação institucional da Igreja é apenas um elemento no interior de um conjunto mais vasto que compõe o campo religioso. Nesse, o imaginário mariano e os modelos de santidade emanados da instituição eclesiástica interagem com as identidades coletivas de romeiros, devotos e demais agentes sociais, adquirindo aqueles, a partir da referida interação, novos conteúdos e significados. Situando-se entre a história social e a cultural da religião, o conjunto dos estudos procura igualmente inserir-se no campo da história regional. Superando uma concepção estritamente geográfica do conceito de região, compreendido como práticas sociais inseridas no âmbito de determinado território, as pesquisadoras procuram defini-lo como “um espaço cultual e relacional”, que não é estritamente físico, econômico ou geográfico. A escala média de observação priorizada nos estudos afasta-se, como explicam as autoras, da perspectiva da microanálise, que enfatiza as tramas, as incertezas e os horizontes de expectativa de agentes individuais. A escala intermediária de observação foi escolhida como a mais adequada para: analisar a interação entre as práticas devocionais marianas produzidas em escala local e os agentes sociais que operam em cada região; compreender as estratégias políticas de construção de identidades nacionais a partir dos âmbitos local e regional; e estudar em uma perspectiva apropriada o modus operandi de uma instituição cujos agentes e doutrinas seguem diretrizes de um centro supranacional.

Os três objetivos mencionados são trabalhados nos cinco textos da coletânea que abordam, em diferentes perspectivas e temporalidades, o templo dedicado à Imaculada Concepção da Virgem Maria, em Luján, e o santuário construído em homenagem a Nossa Senhora do Rosário em San Nicolás. Seguindo uma sequência cronológica, aparece em primeiro lugar o estudo que Patricia A. Fogelman dedicou ao primeiro santuário. Em uma pesquisa minuciosa que abarca um período de dois séculos, o texto desvela diferentes estratégias sociais e políticas de construção de memórias e identidades coletivas. No primeiro plano da análise, encontra-se o padre Jorge María Salvaire, clérigo da Congregação da Missão, que em 1885 publicou em Buenos Aires a Historia de Nuestra Señora de Luján, su origen, su Santuario, su Villa, sus milagros y su culto. Em um período marcado pela forte ação secularizadora do Estado sobre a vida pública – em que aparecem medidas como a educação obrigatória e laica, a instituição do casamento civil, a ruptura de relações com o Vaticano -, a obra de Salvaire está inserida na estratégia da Igreja de reagir à política de caráter liberal. O início da construção da Basílica Nacional de Luján, templo edificado em estilo neogótico, cuja primeira pedra foi lançada em 1887, também aparece como parte desse movimento de reação. De maneira engenhosa, a autora propõe que tanto a obra de Salvaire quanto a nova basílica podem ser compreendidas como ex-votos ofertados à Virgem em retribuição a favores alcançados pelos protagonistas de tais realizações.

Analisando tanto o texto como as imagens presentes na obra de Salvaire, a autora investiga a operação seletiva de memória conduzida pelo sacerdote lazarista, que busca fortalecer o culto da Virgem de Luján, valorizando agentes que tiveram um papel-chave na promoção da devoção mariana. Foi o caso do rico devoto leigo don Juan de Lezica y Torrezuri, que em meados do século XVIII reconstruiu o templo da Virgem de Luján então em ruínas, e o cardeal Juan Mastai Ferreti, que em 1824 havia visitado o santuário argentino. Mais tarde, o mesmo cardeal sagrou-se como papa Pio IX, o mesmo que aprovou o dogma da Imaculada Conceição e que arquitetou a reação da Igreja à modernidade, no movimento conhecido como ultramontanismo.

Nos textos de Mariela G. Ceva e Silvina M. Olaechea estão presentes as tensões entre, de um lado, o nacional e o estrangeiro e, de outro, o nacional e o regional. A primeira autora destaca as peregrinações efetuadas pelos imigrantes italianos em Luján, no período da comemoração do centenário da independência argentina, em 1910. Mariela Ceva se preocupa primeiramente em contextualizar a ação que a Igreja Católica vinha desenvolvendo, desde aproximadamente 1870, no sentido de atrair e integrar aquele segmento da população por meio de rituais e atividades sociais. As peregrinações faziam parte, portanto, de um movimento mais amplo de inserção social e de evangelização. O santuário da Imaculada Concepção de Luján, para onde se destinavam aqueles imigrantes, há décadas já vinha acolhendo muitas levas de romeiros argentinos, sob o patrocínio de algumas autoridades civis e do clero, que buscavam conferir ao santuário uma projeção nacional. A inauguração da basílica de Luján em 1910, durante as comemorações do centenário da independência, e a elevação da Virgem de Luján à condição de padroeira da Argentina, do Uruguai e do Paraguai, em 1930, podem ser vistas como desdobramentos das iniciativas anteriores de promoção do culto mariano. Desfilando sob as bandeiras argentina e italiana, devotos provenientes de diferentes regiões da Itália encontravam durante a peregrinação ao santuário oportunidades de reviverem antigas identidades, agora redefinidas pela condição comum de imigrantes. Tais romarias foram efetuadas até a década de 1940.

O texto de Silvina Olaechea, dedicado às peregrinações de bolivianos e gaúchos em Luján, traz à luz questões ligadas à afirmação de identidades nacionais e regionais. Os primeiros chegaram à Argentina a partir da década de 1950, para atuar principalmente como trabalhadores agrícolas. Cerca de trinta anos depois, as romarias de bolivianos a Luján foram organizadas pela ação pastoral da Igreja. Ao colocar em prática diretrizes, que foram mais tarde sistematizadas no Documento de Aparecida (2007), a instituição eclesiástica buscou promover a realização de romarias, vistas como instrumento de evangelização. A peregrinação anual dos bolivianos a Luján tem lugar no dia 5 de agosto, em que é venerada Nossa Senhora da Candelária de Copacabana, a padroeira da Bolívia. Na data assinalada, a imagem da Virgem de Copacabana vem ocupar um lugar de destaque no palco dos festejos principais defronte à basílica de Luján. O encontro das duas devoções marianas exibe novamente o caráter plástico do culto à Virgem, cuja multiplicidade de significados é proporcional à variedade de agentes sociais, etnias e grupos profissionais que atrai. O patrocínio da Virgem de Luján ao Movimento Tradicionalista Argentino é também sintomático a esse respeito. Desde a década de 1940, centenas e até milhares de peregrinos a cavalo, vestidos com a indumentária tradicionalmente associada a sua região, são atraídos para o lugar de romaria em foco.

O estudo de Claudia F. Touris introduz os leitores na efervescente conjuntura política e religiosa do final da década de 1960 e princípios dos anos 1970. Sob o impulso das transformações introduzidas pela Igreja Católica no Concílio Vaticano II, setores do clero argentino engajaram-se em ações pastorais de caráter acentuadamente popular. A autora analisa de modo específico a atuação do Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo (MSTM). Fundado em 1967, o Movimento em questão atuou nas periferias de centros urbanos, em especial, na região metropolitana de Buenos Aires. Nesse espaço, os locais preferenciais de participação foram as villas, assentamentos populacionais caracterizados pela informalidade e pela precariedade das condições de moradia. Sob a liderança de Carlos Mugica, os sacerdotes villeros denunciavam a instrumentalização do catolicismo por parte da elite e do episcopado tradicional, ao utilizarem a religião para sacralizar e legitimar relações de poder. Em 1969, na primeira peregrinação organizada pelos sacerdotes villeros ao santuário de Luján, os folhetos distribuídos na romaria continham súplicas à Virgem por trabalho e salário justos para a população das villas.

Sob o ponto de vista teológico, o movimento do clero villero abraçava as diretrizes da Teologia do Povo ou Pastoral Popular, uma das correntes da Teologia da Libertação. Considerava-se que as camadas populares eram portadoras de um catolicismo mais autêntico do que o das elites, devendo por isso ser qualificado como uma concreta encarnação do cristianismo. Carecia de legitimação considerar “evangelho degradado ou magia disfarçada” tal forma de religiosidade. Partindo desses pressupostos quase culturalistas, os sacerdotes villeros procuraram valorizar os rituais e as manifestações sacramentais próprias do catolicismo popular. Ainda que procurassem despertar a conscientização dos fiéis em face das demandas cotidianas, o clero já referido não sobrevalorizou os aspectos sociopolíticos, como praticaram outras vertentes da Teologia da Libertação. Não obstante, no início dos anos 1970, o movimento villero experimentou uma crescente politização, aproximando-se do peronismo e dos montoneros.

O último artigo da coletânea, de autoria do geógrafo Fabián C. Flores, analisa a emergência do culto mariano na cidade de S. Nicolás, um porto fluvial localizado às margens do rio Paraná, a cerca de 240 quilômetros de Buenos Aires. No pós-guerra, e de modo acentuado a partir de 1960, com a inauguração oficial da siderúrgica Sociedad Mixta Siderúrgica Argentina (Somisa), a localidade de San Nicolás atraiu grande contingente de trabalhadores para atuar no setor de transformação. O processo de industrialização foi capaz de redefinir a identidade local, pois San Nicolás passou a ser representada como a “cidade do aço”. Uma parte da mão de obra se fixou no bairro operário da Somisa, no interior do qual os trabalhadores estabeleciam relações de pertencimento coletivo à “comunidade do aço”. Outra parte se estabeleceu em villas precárias nos subúrbios de San Nicolás. Nessas villas periféricas, predominavam trabalhadores provenientes das províncias do noroeste argentino, e inclusive do Paraguai.

A política de afastamento do Estado do setor de transformação, que se esboçou ao longo da década de 1980, se intensificou em 1991, com a privatização da Somisa. Logo, na cidade de San Nicolás, se tornaram visíveis os efeitos da desindustrialização, sendo um dos mais evidentes a redução do contingente de trabalhadores, cujas vagas foram substituídas por precárias ocupações no setor de serviços. Em 1983, em meio a tal processo, se verificaram as primeiras aparições da Virgem Maria em San Nicolás. Gladys Quiroga da Motta, uma mulher que vivia em uma das villas periféricas, considerava-se portadora de diversas mensagens enviadas pela Virgem, que lhe teria revelado inclusive o local onde seria construído um novo santuário em sua homenagem. O apoio da municipalidade à cessão dos terrenos para a construção do templo e a atração exercida sobre a população local pelas aparições foram responsáveis, em duas décadas, por substantivas redefinições das identidades locais. A antiga representação da “cidade do aço” cedeu aos poucos espaço para a emergência de uma nova imagem local, “a cidade de Maria”. O templo sob o patrocínio da Virgem do Rosário de San Nicolás tornou-se lugar de peregrinação, ocupando uma parte da população local na atividade do turismo religioso.

Um dos méritos trazidos pelo enfoque metodológico da história regional aplicado aos estudos mencionados diz respeito à superação da escala local para a observação dos processos em análise. Os estudos de santuários locais, sob o ponto de vista da pesquisa histórica1 ou antropológica2 priorizaram as trocas simbólicas estabelecidas entre os fiéis e as imagens sagradas. Isto é, a oferta de dons materiais e a realização de promessas por parte dos romeiros corresponderia à realização de milagres e intercessões efetuadas pelos advogados celestes. Nesse tipo de análise, não se torna muito visível a operação de determinados grupos de interesses e de instituições, que se apropriam do conteúdo simbólico das imagens e das aparições, conferindo-lhes novos significados. Sob este ponto de vista, a coletânea aqui resenhada se aproxima do estudo de Carlos Alberto Steil,3 no qual a base local de observação leva em conta a ação da instituição eclesiástica que, dirigindo-se por objetivos mais universais, redefine e atribui novos significados ao catolicismo dos devotos da região.

Não obstante, a obra coletiva aqui resenhada poderia ganhar mais fôlego aproximando-se de outras contribuições historiográficas dirigidas à análise do culto mariano na ibero-américa, particularmente as obras de Jacques Lafaye e de David Brading.4 Ainda que não estejam inseridas no campo da história regional, as duas obras mencionadas contemplam questões que emergem nas análises acerca do santuário de Luján, em especial as identidades étnicas e o problema comum da identidade nacional. No que tange à América portuguesa e ao Brasil independente, os estudos acerca da devoção mariana se encontram ainda em patamar mais incipiente, apesar de Nossa Senhora da Conceição ter sido considerada, em 1640, padroeira do Reino de Portugal e, mais tarde, do Império brasileiro. Nesse sentido, os estudos reunidos na coletânea podem fornecer novos subsídios a comparações entre diferentes formas de devoção mariana na ibero-américa. Em particular, as análises que Juliana Beatriz Almeida de Souza dedicou à Virgem da Conceição Aparecida,5 cuja imagem lembrava as características da Virgem de Guadalupe mexicana; assim como o estabelecimento de Nossa Senhora da Conceição Aparecida como padroeira do Brasil em 1931, segundo a análise de Rubem César Fernandes,6 praticamente na mesma época em que a Virgem de Luján recebera idêntica honraria em relação à Argentina, ao Uruguai e ao Paraguai.

1 Ver, por exemplo, CHRISTIAN JR., William. Local religion in sixteenth century Spain. Princeton: Princeton University Press, 1981.

2 Ver SANTALÓ, C. Álvarez; BUXÓ, Maria Jesús e BECERRA, S. Rodríguez (Coords.). La religiosidad popular: hermandades, romerías y santuarios. Madri: Anthopos, 1989.

3 STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias: um estudo antropológico sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa – Bahia. Petrópolis: Vozes, 1996.

4 LAFAYE, Jacques. Quetzalcóatl et Guadalupe. La formation de la conscience nationale au Mexique (1531-1813). Paris: Gallimard, 1974; BRADING, David. La virgen de Guadalupe. Imagen y tradición. México: Taurus, 2002.

5 SOUZA, Juliana Beatriz de Almeida. Virgem mestiça: devoção à Nossa Senhora na colonização do Novo Mundo. Tempo: Revista do Departamento de História da UFF, Niterói, v. 6, n. 11, p. 77-92, jul. 2001.

6 FERNANDES, Rubem César. Romarias da paixão. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

Wiliam de Souza Martins – Doutor em história social pela Universidade de São Paulo, professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].