Maternidades plurais: os diferentes relatos, aventuras e oceanos das mães cientistas na pandemia | Ana Carolina Eiras Coelho Soares, Camilla de Almeida Santos Cidade e Vanessa Clemente Cardoso

Não há como uma pesquisadora e mãe ler 824 páginas compostas por 134 relatos de outras mães e pesquisadoras sem criar uma conexão autoral e afetiva. Em alguns momentos era como se estivesse lendo a minha própria experiência como mãe e pesquisadora tendo que escolher entre o Lattes e o leite1, a maternidade2 e a ciência. Uma escrita afetiva que demonstra o poder feminista e coletivo de transformar o patriarcado com seus estatutos e normas violadores e a beleza de nossas lutas para reexistir como mães e cientistas que precisam mais do que um teto todo seu (WOOLF, V. 1929). Mas de ocupar todo o mundo!

E precisamos travar batalhas, pois, muitas de nós, mesmo as “estabelecidas” no mundo acadêmico e profissional, ainda precisam viver como se entre mundos, tendo que conciliar, escolher, desafiar, revirar, reclamar. Fazer dos lutos a substância das lutas, como disse na apresentação ao livro Marinete da Silva, mãe de Marielle Franco e manifestar a presença de nossas grafias de mulheres, sobre mulheres, sobretudo para mulheres, como prefaciou Manuela D´avila, mesmo que às mães os dias pareçam se escassear de tempo, mas não de exaustão e de cansaços. Leia Mais

Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia – DEL PRIORI (VH)

DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1993.  Resenha de: DANTAS, Mariana Libãnio de Rezende. Varia História, Belo Horizonte, v.10, n.13, p. 172-175, jun., 1994.

“Este estudo apenas tentou abrir uma janela para a história social da mulher. Nele, procurei desvendar os mais salientes papéis da mulher na colônia, para descobrir que sentido elas lhe davam. Ou ainda, avaliar como os tais papéis funcionavam para endossar a ordem social proposta pelas instâncias de poder, ou, no plano oposto, para promover mudanças nesse sistema. além de incentivar rupturas e resistências. ” [ Del Priore, 1993]

Como a própria autora especifica nesse trecho retirado da conclusão de seu livro, esta obra vai procurar delinear o modo como a mulher se inseria na realidade social do Brasil colônia, quais papéis ela assumia, qual era a sua função social – função esta ditada pelos discursos normativos presentes e conjugados neste dado momento histórico – e quais eram seus comportamentos, !alas e gestos que nos permitem entrever o seu posicionamento em relação a esta sua existência ( sua aceitação ou sua recusa e a maneira como os demonstrava ).

Ao se propor este objetivo a autora vai mostrar estar em ressonância com a tendência atual de uma historiografia ‘francesa (ou poderíamos estender isto a uma historiografia mundial?) que vem tratando da mulher. Como bem nos mostra Bernard LePetit na introdução que escreveu para uma série de quatro artigos que visam criticar a obra Histolre des Femmes en Occidenl – organizada por Geroges Ouby e Michelle Perrot – publicada em um dos últimos exemplares da Revista dos Annales, não cabe mais se limitar a tratar a mulher na história como parte abstrata de um contexto mais geral, ajustando a sua história a uma já configurada história econômica, política ou social essencialmente masculino. O que ele vai propor, e os demais autores vão reforçar, é que os historiadores que se  detiverem sobre esta questão devem buscar tratá-la estabelecendo como foco central a mulher – o que implica não somente elegê-la como objeto  estudo mas buscá-la como sujeito de sua própria história e procurar entendê-la e ao mundo que a cerca a partir da interação de ambos.

Tendo em vista esta “proposta” de trabalho podemos identificar ao longo da leitura do texto a apreensão, por parte da autora, de três papéis específicos estabelecidos para a mulher nesse período estudado por ela, que abrange os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX: o papel de esposa, o papel de mãe e finalmente, e em estreita relação com a concretização desses dois. o papel de transmissora e fixadora dos ideais e de uma moral católico-cristãos. Assim, partindo de dois discursos fundamentais, que a autora considera como tendo sido os dois musculosos instrumentos de ação acionados para O processo de adestramento pelo qual passaram as mulheres coloniais, o discurso sobre padr6es ideais de comportamento, difundido por moralistas, pregadores e confessores e fruto, em grande parte, das decis6es tomadas pela Igreja durante a reforma católica e de um projeto civilizatório que inundava a Europa renascentista; e o discurso normativo médico que, procurando discorrer sobre o funcionamento do corpo feminino, acaba por endossar e difundir uma concepção deste como destinado à procriação, a autora vai resgatando a maneira pela qual esta imagem da mulher vai sendo construída e firmada, não somente na mentalidade daquela sociedade como, também, na visão que a própria mulher tinha de si mesma.

Mas, se por um lado temos o que se mostra como sendo o idealizado pela época, por outro temos o que era praticado na época. Mary Del Priore nos apresenta, portanto, um mundo dicotômico, polarizado, onde o que propunha (ou impunha) o discurso masculino (religiosos, civilizador ou médico) tinha como opositor a realidade social desse mundo colonial, fruto de uma grande miscigenação de culturas, crenças e comportamentos. testemunha de necessidades que muitas vezes não condiziam com o que procurava estabelecer tais discursos e aliado de práticas e costumes que fugiam a estes ditames. E dentro dessa realidade “a-ser-normatizada” surgia a própria atitude dessas mulheres: que se apresentava como uma resposta mais coerente às imposições dessa realidade do que seria aquela desejada, pregada ou recomendada pelos seus adestradores. O texto da autora vai se basear, portanto, nessa polaridade e, ao mesmo tempo em que procura mostrar a concretização da mulher ideal ela nos mostra o forjamento da imagem da mulher condenada, aquela que se nega a ser esposa, que exerce a maternidade de uma maneira distoante da desejada pela Igreja e pelo Estado e que é incapaz de transmitir uma tradição católico-cristã por ser ela própria urna transgressora desta tradição, em suma, ela procura mostrar como essa mesma sociedade, que procura estabelecer os moldes da mulher ideal, vai forjar a imagem da “puta” para, através desta polarização radical, poder impor mais eficientemente seu projeta de adestramento da mulher.

Enfim, procurando entender e captar essa mulher presente no Brasil colônia, Mary Del Priore envereda pela literatura narmatizadora de quatro séculos buscando nas escritos teológicos, moralizantes e médicos da Europa, como também alguns produzidos no Brasil, o olhar masculino sobre a mulher e as intenções masculinas com relação a este sexo implícitas nesse “olhar”. E numa tentativa de resgatar essa ”mulher” ela vai percorrer o que a passado nos largou de indícios sobre ela: os testamentos, os autos de divórcio, as receitas de “remédios”, as crenças e tradições femininas. os relatos de viajantes e demais testemunhas que tiveram algum convívio com ela.

Através desse seu rastreamento ela nos deixa um retrato que, apesar de pouco nítido, nos permite perceber uma mulher que aceitou ser uma esposa obediente e submissa. que se rendeu à sua função de mãe e, para tanto, sofreu imensamente as dores do pano, sentiu um enorme medo e uma grande insegurança, que viveu permanentemente entre a vida e a morte (seja a sua seja a de seus filhos), que teve que negar sua própria identidade em prol de seus rebentos, de seu marido, do recato e da boa conduta moral, que abriu mão da sua sexualidade e do prazer e que finalmente acabou se adequando ao que a Igreja e a sociedade exigiam dela. Mas se observarmos bem esse mesmo retrato vamos perceber que essa mesma mulher era dada a agir, de vez em quando, de uma maneira nada “recomendável”, que era protagonista de “histórias de ‘amor-demasiada”‘, que se permitia viver amancebada ou concubinada, que criava suas filhas para venderem seus corpos como ela o fazia, que era detentora e transmissora de um saber considerado como feitiçaria ou bruxaria, que se recusava a ser mãe e abortava, abandonava ou matava seus filhos e, enfim, que apesar de todos os esforços masculinos para a controlarem e adestrarem, era muitas vezes “senhora absoluta” de suas casa e de seu corpo.

É essa mulher que a autora procura apreender e é através dessa mulher que ela procura delinear a trajetória histórica que marcou a vida da mulher desde a fundação da col6nia até a sociedade oitocentista – quando o papel social da mulher se apresenta melhor delimitado e esta se mostra melhor adequada a ele e mais nitidamente situada na sociedade brasileira – e é através dela, ainda, que ela procura entender a origem de uma certa imagem de mãe e de mulher que se mostra presente no imaginário de milhões de brasileiros ainda nos nossos dias. Mas será que, no final das contas, este seu trabalho responde a questão que ela se propôs, ou seja, responde a pergunta “Quem somos nós”? A autora vai, indubitavelmente, “abrir uma janela para a história social da mulher” na medida em que instaura um questionamento a cerca da origem desta mulher brasileira, esposa e mãe, mas será que na tentativa de dar conta destas questões ela não cai numa generalização e numa abstração ao tentar resgatar uma imagem de mulher – acabando, inclusive, por endossar a inevitabilidade a configuração feminina? Assim, ao trabalhar com o discurso dominante e buscar o modo como este interage com a mulher ela vai delineando uma imagem, u um retrato, desta mulher que vai ser sustentada por exemplos ilustra1ivo., deixando sempre a impressão de que a autora pode estar certa ou ela pode  simplesmente, ter “topado” com os exemplos “certos” !

Mas, independentemente de qualquer critica que possamos formular a esta obra · fica a certeza de sua indiscutível importância pois ao procurar desvendar a origem e formação desse estereótipo Mary Dei Priore nos fornece o conheci menta necessário ao entendimento de certos fatores que até os nossos dias vêm marcando negativamente o destino da mulher brasileira. Nos remetendo ao nosso passado a autora nos permite entender melhor os elementos que compusseram e continuam compondo a nossa condição de mulher ~· assim. nos permite compreender como somos, na verdade, uma construção fruto de ideais de uma época passada, e, assim, ela acaba nos entregando a possibilidade de nos “reconstruirmos”.

Mariana Libãnio de Rezende Dantas – Bolsista de iniciação científica do CNPq. Aluna do curso de História da UFMG.

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[DR]

Ao Sul do Corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidade no Brasil Colônia / Mary Del Priori

A obra Ao Sul do Corpo. Condição feminina, matemidades e mentalidades no Brasil Colônia, de autoria da historiadora Mary DEL PRIORI, publicada por J o s é Olympio e EdUnB, em 1993, cobre uma enorme lacuna existente para o estudo da condição feminina na Colônia, povoada sobretudo por “mestiças” e marcada pelo entrecruzamento de etnias diversas, caracterizadas pela alteridade: brancas, negras e índias. Além de demonstrar grande trânsito com a bibliografia internacional, a autora realizou excelente pesquisa de documentos, muitos deles certamente inéditos: fontes manuscritas e impressas (Arquivo Nacional e do Estado de São Paulo e da Cúria Metropolitana de S ã o Paulo; Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e de Lisboa; Arquivo Nacional da Torre do Tombo).

DEL PRIORI referencia sua reflexão no processo civilizatório europeu de normatização da mulher que atinge toda a cristandade ocidental, sobretudo a partir do Concilio de Trento (1545-1563), e que é elemento central do movimento de reorganização das funções do corpo, dos gestos e dos hábitos, traduzidos em condutas individuais, as quais deveriam refletir a pressão organizadora moderna dos jovens Estados burocráticos sobre toda a sociedade. Ou seja, tratava-se da privatização do eu e, simultaneamente, da apropriação privada dos meios de produção. Esta nascente ética sexual assentada no adestramento, sobretudo da mulher, fez-se, nos trópicos, a serviço do processo de colonização.

Tratava-se de organizar as gentes e o povoamento da Colônia marcada nos três primeiros séculos pelos fluxos e refluxos humanos, isto é, por uma convulsiva mobilidade, especialmente dos homens. Em lugar de condutas individuais (noção de privacidade do eu), identifica-se, no p e r í o d o , uma enorme disponibilidade sexual contaminada pela exploração sexual do escravismo, por um amolengamento moral e, como diria Caio Prado Jr. em Formação do Brasil Contemporâneo, por “falta de nexo moral” e “irregularidade de costumes”. Predomínio de ligações consensuais, chamadas de “tratos ilícitos”, de filhos gerados em amasiamento de brancos com í n d i a s e em concubinato (trazido pelos portugueses e amplamente divulgado nas classes subalternas) e de famílias matrifocais: a mãe integradora de seu fogo doméstico, ou seja, mantenedora, gestora e guardiã dos seus e de outros filhos ilegítimos.

A reflexão sobre o processo de normatização e adestramento da mulher na Colônia é feita, sobretudo, a partir da análise dos discursos e práticas da Igreja e dos médicos. A ação moralizante da Igreja após o século XVI, que teve como alvo o combate às sexualidades alternativas, o concubinato, as religiosidades desviantes e a valorização do casamento e da austeridade familiar, vai se erigir na Colônia por razões do Estado: necessidade de povoamento das capitanias, de segurança e de controle social. As mães, em sua função social e psicoafetiva, transformam-se no período em estudo, num projeto do Estado e principalmente a Igreja encarregarse- á de disciplinar as mulheres da Colônia, fazendo-as partícipes da cristianização das índias. Os filhos nascidos fora do casamento comprometiam a ordem do Estado Metropolitano, pois implicavam no incremento de “bastardos” e “mestiços”, colocados pelo p r ó p r i o sistema nas fímbrias da marginalidade social As mães, chefes da maioria das casas e das famílias – mantenedoras de seus fogos domésticos -, foram eleitas como responsáveis pela interiorização dos valores tridentinos. O casamento insolúvel, a estabilidade conjugai, a valorização da família legítima – espécie de fermento da cristandade -, apresentadas como recompensa e reconforto frente à generalizada situação de abandono por parte dos homens-maridos-companheiros- pais.

O modelo europeu é trasladado à Colônia, pois aqui, no “trópico dos pecados”, morava por excelência, o Diabo. Daí a maior necessidade de ordenação e de normatização. O alvo preferido foram as mães solteiras pois estas não conheciam as benesses do casamento.

A maternidade passa a ser a remissão das mulheres e o preço da segurança do casamento o “portar-se como casada”. A identidade da mulher que se constituía de uma gama de múltiplas funções (mãe de filhos ilegítimos, companheira de um bígamo, manceba de um padre, etc.), deveria passar a introjetarse apenas nas relações conjugais.

A Igreja contou, para a implantação de tal projeto, com a fabricação generalizada da culpa (Pastoral de culpabilização dos fiéis), do medo (Pedagogia do medo), da vitimidade e da intensificação da polaridade mãe-santinha X puta. Esta última tornou-se o bode e x p i a t ó r i o do projeto de normatização, enquadrável enquanto tal toda a mulher que não se “portasse como casada” e como “mãe-santinha”: ambigüidade dos papéis de lascívia e pobreza que confundiam a vida sexual irregular com prostitutas, identificadas ainda no século XIX pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro com “cancro”, “chaga”, “úlcera” e “gangrena”.

As não casadas e o aborto associados à luxúria, ao de mônio, ao inferno. O parto sem dor como parto sem pecado: maior devoção, melhor parto. O filho imperfeito, resultado da prática do sexo em dias proibidos ou com animais, ou então resultado da “imaginação feminina”. Os filhos gerados fora do casamento, comparados à “imperfeição da cristandade” e “aleijados da natureza”.

Destacam-se a eloqüência dos sermões difundindo a idéia de mulher como naturalmente sereia, diaba e perigosa e impondo a devoção a Nossa Senhora com vistas a comportamentos ascéticos, castos, pudibundos e severos, a l ém do culto à virgindade e o confessionário como instrumento potente de controle de intenções.

Por sua vez, o discurso normativo médico sobre o funcionamento do corpo feminino apoiava o discurso da Igreja na medida em que indicava como função natural da mulher, a procriação. Fora desta, restava-lhe o lugar da exclusão: a melancolia ou a luxúria. Ao estatuto biológico da mulher, o discurso médico procurava associar outro, moral e metafísico: esta tem um temperamento comumente melancólico, é um ser débil, frágil, de natureza imbecil e enfermiça.

O critério do útero como regulador da saúde física e mental da mulher irradiava-se da Europa do Antigo Regime, difundindo a mentalidade de que a mulher era física e mentalmente inferior ao homem. A concepção e a gravidez como rem é d i o para todos os “achaques femininos”. A medicina comprazia-se, ainda no século XVIII, em enxergar nos males físicos, sinais de transgressão sexual. Assim, histeria guardou o nome grego de ú t e r o (hyster) e um corpo h i s t é r i c o era denotativo de desordem moral.

A menstruação era associada à magia, transformações e veneno, atualizando as proposições de Santa Hildegarda de que aquela era um castigo decorrente do pecado original. Este sangue envenenado tinha o poder de estragar o leite, vinho, colheitas e metais: pelo excesso de secreções e odores a mulher devia se isolar em seu cotidiano.

Se menstruada a mulher era ameaçadora e grávida vulnerável, conclui-se pela urgência de novas matemidades. A autora localiza, inclusive, anotações médicas indicando o mal-estar dos homens diante das feiticeiras, capazes de adoecê-los, mas também de curá-los com seu sangue poderoso.

Só a partir de 1750 os médicos vão substituir o temor pelo cuidado. Apenas no final do século XVIII identificam-se modestos avanços da medicina no sentido de identificar outras razões para enfermidades femininas que não o clima ou a vida pecaminosa – os terríveis males da “madre”.

A importância da lactação passa a ser percebida tanto por doutores, quanto pela Igreja como um dever moral, desde o século XVI. A partir daí instaura-se o combate às amas-deleite: cada vez mais o aleitamento torna-se um dever e parte fundamental do processo de sacralização do papel da mãe.

Assim, no século XVIII localiza-se uma nova representação da Nossa Senhora do Bom Parto: uma mulher feliz com filhos nos braços e não mais grávida.

Por sua vez, se a puta era o bode expiatório do projeto de normatização, a partir do século XIX será o bode expiatório também do processo de higienização da sociedade. Tratava-se de higienizar a noção de sexualidade: exaltação da sexualidade conjugai, na medida em que o prazer em excesso e a ausência de finalidade reprodutora passam a ser condenados pela medicina como doença física e moral.

Fundamental no processo, localizar o papel do marido: cabeça da mulher, que cuida para que ela cumpra os encargos da profissão cristã. Para evitar as tentações ela devia ser obrigada a obedecê-lo por preceito divino, nem cabelo cortar sem sua autorização. As mulheres deveriam ser fiéis, submissas, recolhidas e sobretudo fecundas. O marido passava a ser o único elo de ligação com o mundo. Assim, aquele torna-se uma espécie de porta-voz das demandas de adestramento propostas pela Igreja, a l ém de ser motivo para um sutil processo de culpabilização, pois em torno dele se mostraria uma estratégia de gratidão escravizante. Os maridos deveriam ser dominadores, voluntariosos, insensíveis e egoístas no exercício da vontade patriarcal.

Assim, pode-se pensar que o processo de adestramento, ao colocar os maridos, os filhos e os pais ocupando determinadas posições em relação às mulheres, disciplina o próprio gênero masculino, construindo, conseqüentemente, uma nova identidade masculina. Por sua vez, ainda que a autora destaque o projeto matrimônio-maternidade enquanto concebido como espaço normatizador, n ã o aponta a sua contra face que é a ligação com a paternidade, matrimônio-paternidade. O silêncio das fontes sobre a paternidade é denunciador da própria incerteza e da dificuldade de naturalização da mesma. Isto se deve, em boa medida, pela sinonimização que é feita da categoria de g ê n e r o ora por sexo, ora por mulher. Neste sentido, o conceito é desvirtualizado, pois não se remete à dimensão relacionai, fundante do mesmo.

Outro aspecto a considerar é a questão da misoginia. Na verdade a autora atribui às mentalidades populares a missão “…de guardiã da misoginia” (pg.334). No entanto, no conjunto mesmo do texto, percebe-se que a misoginia é transversal a todos os segmentos sociais. Todos os saberes que as bruxas tinham sobre o corpo feminino causavam pânico, e foram responsáveis pela instauração da Caça às Bruxas. Obviamente a condenação das mesmas deveu-se à Igreja e à nobreza e n ão às classes populares. Ao contrário, estas recorriam, nas suas necessidades fundamentais, às feiticeiras, simultaneamente chamadas de fadas, quando seus conhecimentos e práticas davam resultados.

Assim, a misoginia n ã o pode ser atribuída fundamentalmente às mentalidades populares, conforme exprime a autora. Ao contrário, apesar de se referir inúmeras vezes ao Diabo, parece n ã o considerar que a T o l i t i z a ç ã o do Diabo” deu-se na Europa, simultaneamente, como mecanismo de resistência dos oprimidos e como mecanismo de dominação por parte da Igreja e das elites, processo de lutas que eclodirá na Caça às Bruxas, sobretudo nos séculos XVI e XVII. Assim, a proximidade da q u e s t ã o referida à misoginia, bem como do p r ó p r i o processo de normatização da mulher, com a questão das feitiçarias, do Diabo e da Caça às Bruxas é evidente. Porém disto a autora n ã o se ocupou.

Enquanto historiadora, poderia ter realizado uma excelente análise, ainda que para melhor referenciar-se, do próprio movimento desencadeado na Europa no p e r í o d o estudado: o Racionalismo, colocando todos os homens e mulheres como iguais e que seguirá convivendo com a misogina ancestral.

A mulher continuará pecadora, lasciva, demoníaca, etc, embora igual ao homem perante Deus e perante a Lei. O projeto de normatização e adestramento, objeto de estudo da pesquisadora, é o exemplo mais bem acabado desta ambigüidade.

Esta lacuna é de certa forma compreensível, quando a autora não se permite falar pela maioria: n ã o explicita os segmentos sociais a que se remete. Isso faz supor que fale por todos, mas é a partir do lugar das elites que sua fala é construída.

Pode-se exemplificar através da atribuição que Del Priori indi ca (p.37) às mães no que tocava à responsabilidade pelo ensino das primeiras letras aos filhos. N ã o se pode esquecer que a maioria da população, no p e r í o do considerado pelo estudo, era analfabeta.

Neste sentido, observa-se ainda que a autora, embora expresse conhecimento exaustivo da literatura francesa, e uma lógica narrativa enunciativa foucaultiana, não cita este autor (Foucault), em sua bibliografia, e ao mesmo tempo, n ã o consegue realizar, à semelhança do mesmo, o estudo processual da construção e da expansão nos diferentes segmentos sociais do projeto que trata de se tornar hegemônico.

A virtude mais frutífera da obra para a historiografia da mulher é a comprovação de “… que existiam, sim, fontes para a história da mulher no p e r í o do colonial…” (p.15). Essa comprovação implicou num volumoso trabalho de busca e organização de novas fontes, bem como uma originalidade expressiva no tratamento das fontes j á conhecidas.

Também descreve com agudez a rede de solidariedades e de micro poderes e saberes que as mulheres desenvolvem e se envolvem durante o p e r í o do colonial, mas não consegue perceber as tensões geradoras de resistências neste processo.

Desta forma, Del Priori reforça o pensamento tradicional, ainda dominante, do feminino e das mulheres incorporadas historicamente como objetos e não como sujeitos.

É lamentável, portanto, que o olhar que localiza e investiga as mulheres continue a ser o olhar que vê e fala pelas mulheres dando luz às suas passividades, n ã o visibilizando nem buscando (pg.335) suas opções, práticas, gritos e projetos.

Nesta direção, exemplificando, podemos lembrar que a pesquisadora não assume a promiscuidade e as relações não legítimas como projetos possíveis de resistência por parte de uma grande maioria de mulheres. Simultaneamente, não consegue explicitar como estas assumem o matrimonio-maternidade como projeto próprio, sendo que, segundo ainda a própria autora, o destino das mulheres-mães casadas era quase trágico (pg. 63).

A “irregularidade de costumes”, o fluxo contínuo, sobretudo de homens, as mulheres mantenedoras de seus fagos domésticos, mães de filhos de muitos pais, nunca deixou de ser uma constante, principalmente entre os pobres aqui e em outras colônias. Na atualidade, na América Latina, h á 25 milhões de lares chefiados por mulheres.

O fato do projeto normatizador ter se tornado hegemônico para as elites e as classes médias brasileiras com linhagens e/ou patrimônios a salvaguardarem não nos permite pensar que estes milhões de mulheres chefes de família foram “deixadas para trás” e a elas atribuir unilateralmente a solidão, a humilhação, o abandono e a violência (noções que transversalizam todo o texto).

E o olhar católico que parece não permitir o olhar e a análise críticos do dado destacado pela investigadora (pg. 51 e repetido na pg. 175), de que em Minas Gerais no século XIX ainda havia um predomínio de famílias matrifocais – cerca de 45% do total, sendo que 83% destas nunca haviam se casado.

A promiscuidade e o casamento não sacramentado podem ter sido e continuar a ser um projeto para muitas mulheres. Por que não? Por que olhá-las apenas a partir da vitimidade? Neste sentido, o olhar da autora coincide com o olhar do projeto normatizador da Igreja-Estado, apoiados pela j u r i s p r u d ê n c i a e pelo discurso médico. E que é, por excelência, o olhar masculino racional-universalizante. E um dos inú meros avanços possibilitados pela perspectiva de g ê n e r o é a construção de outros olhares e de outros lugares de fala, que rompam com aquele, ainda hegemônico no pensamento ocidental moderno.

Deis Siqueira – Doutora em Sociologia e professora na UnB, Lourdes Bandeira – Doutora em Sociologia e professora na UnB e Silvia Yannoulas – Mestre em Sociologia.


DEL PRIORI, Mary. Ao Sul do Corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidade* no Brasil Colônia. Brasília, Rio de Janeiro: Editora da UnB, José Olímpio, 1993. Resenha de: SIQUEIRA, Deis; BANDEIRA, Lourdes; YANNOULAS, Silvia. Textos de História, Brasília, v.2, n.3, p.148-157, 1994. Acessar publicação original. [IF]