Hannah Arendt e a modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira – CORREIA (RFA)

CORREIA, Adriano. Hannah Arendt e a modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. Resenha de: MELLEGARI, Iara Lúcia. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.26, n.39, p.917-924, jul./dez, 2014.

Hannah Arendt é uma importante e polêmica pensadora política contemporânea. Sua obra pode ser compreendida como uma resposta ao que ela considerou o problema mais crucial do seu tempo, o fenômeno totalitário. Esse evento, sem precedentes históricos, teria ocasionado, segundo ela, uma ruptura com a tradição filosófica, uma vez que colocou em questão os critérios morais e políticos tradicionais para opor-lhe “antídotos eficazes” (DUARTE, 2000, p.25). Arendt constatou, nesse evento, a instauração de uma nova forma de governo e dominação, baseado na organização burocrática de massas, no terror e na ideologia, que demandava uma extrema dificuldade de compreensão, em razão da lógica de paradoxos contida em sua estrutura. Movida pelo sentimento de compreender o que teria possibilitado a ocorrência de tal fenômeno, era preciso repensar toda a tradição no sentido de encontrar os recursos teóricos que permitissem sugerir algumas alternativas políticas à catástrofe totalitária.

Contudo, à diferença da maioria dos filósofos, ela não se preocupou em elaborar um sistema teórico rígido, inflexível. Sua teoria política, como um todo, defende a importância da diversidade de opiniões e procura evitar a repressão do livre intercâmbio das ideias, comum em governos totalitários. Por isso, ao enfatizar a importância de perspectivas novas e diferentes que surgem continuamente no mundo, sua teoria é um constante esforço em entender a multifacetada natureza da vida política.

Mencione-se, ainda, que distintamente de renomados filósofos de seu tempo, que usavam uma linguagem tipicamente filosófica, Arendt era uma escritora de linguagem clara que, com frequência, escrevia para o público em geral, não se restringindo aos leitores do mundo acadêmico, tornando, assim, muitas de suas ideias apreciáveis pelos recém-chegados ao seu pensamento. Entretanto, por ser uma escritora extremamente fértil, que tratou de diversos temas, é quase impossível a compreensão rápida da visão do seu pensamento (FRY, 2009, p.11) Nesse sentido, Adriano Correia propicia com seu livro, Hannah Arendt e a Modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira, um importante instrumento de auxílio para a compreensão da teoria política de Arendt, passando, assim, a fazer parte do elenco daqueles autores cujas obras tornam-se leitura indispensável para quem deseja conhecer e, sobretudo, entender o pensamento arendtiano.

O livro que ele nos apresenta, composto de oito capítulos, em suas duzentas páginas, trata com muita propriedade de temas fundamentais da teoria política de Hannah Arendt. Com erudição e muito fiel ao espírito arendtiano, examina questões como o liberalismo e a prevalência do econômico; a biopolítica; a diluição da distinção entre a esfera pública e a esfera privada com a consequente ascensão do social; o conceito de poder; as análises das Revoluções Modernas sob o prisma da liberdade política, tão cara a Arendt; os sistemas de conselhos; entre outros. Mas o foco principal do livro são os temas da alienação e perda do mundo, e a vitória do animal laborans, reflexões centrais de Arendt em sua obra A Condição Humana. Preocupada com a desestabilização do mundo e com o progressivo desinteresse do homem moderno pela ação política, ela propõe, em A Condição Humana, “refletir sobre o que estamos fazendo” (ARENDT, 2008, p.13). A hipótese geral de Correia é que o movimento final dessa obra de Arendt, notadamente no que concerne ao que ela denomina a “vitória do animal laborans”, conserva seu vigor para uma critica do presente, e que certos fenômenos, a exemplo da prevalência do consumo cada vez mais intenso na definição das formas de vida, fazem parte do movimento de alienação do mundo (CORREIA, 2014, p.XXX).

Na era moderna, ocorre o que Arendt entende por alienação de mundo, na medida em que a tecnologia, o progresso científico e a introspecção, conjugados com o primado do trabalho, acarretarão a perda do senso comum. A alienação acontece em duplo sentido: tanto no do abandono da Terra, desencadeado a partir da invenção do telescópio, que impulsionou a conquista do espaço e descobertas para além dos limites da Terra, quanto no da alienação do homem para o interior de si mesmo, iniciada por Descartes, que teria aberto o caminho para uma relação intrínseca entre certeza e introspecção, sendo levada a cabo pela Reforma Protestante “na sua alienação em direção a um mundo interior, coroando a desterritorialização com a universalização do indivíduo humano enquanto ser racional” (CORREIA, 2014, p.46). Arendt chama a atenção para o fato de que, nesse cenário moderno, a ação humana não ocorrerá mais no campo político, mas no âmbito técnico-científico e na crescente esfera social, ditada pelas necessidades privadas. Correia perpassa, com acuidade, o percurso arendtiano que conduzirá à perda de mundo e à vitória do animal laborans, que vão se operar, na visão de Arendt, na articulação entre a condição humana, o surgimento da sociedade e a prevalência de uma mentalidade atrelada ao mero viver por meio do trabalho e do consumo (CORREIA, 2014, p.71).

Animal laborans é a expressão utilizada por Arendt para designar a condição humana, cujas atividades correspondem ao processo biológico do corpo humano, no qual o crescimento espontâneo, o metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades do processo vital. Tal atividade, presa ao ciclo da natureza, não humaniza, não singulariza nem transcende a necessidade natural de sobrevivência, de modo que o homem nessa condição não passa do animal humano. Distintamente, a condição humana do trabalho, correspondente à atividade do homo faber, relaciona-se à fabricação, ao artifício humano que constrói coisas que servem de uso para os homens, traduzindo, por sua vez, a capacidade propriamente humana de edificação de mundo. Corresponde, assim, à condição humana da mundanidade, na qual é possível reconhecer vidas individuais e não apenas a vida da espécie (CORREIA, 2014, p.87). Nessa atividade, bem observa Adriano, não se trata mais de sintonizar o ritmo da existência ao ritmo da natureza, como naquela do animal laborans, mas de dispor da natureza para extrair dela material para a edificação do mundo. O homo faber, portanto, já vive uma vida humana, mesmo que não na plenitude de suas potencialidades, uma vez que esta somente será alcançada no mundo politicamente organizado, no qual a aparição das singularidades, por meio da ação e do discurso, promove o intercâmbio das diferentes perspectivas que constituem o sentido do mundo (CORREIA, 2014, p.88). A ação é, pois, para Arendt, a única atividade política por excelência, uma vez que ela é exercida diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria. Ela corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens — e não o homem — habitam o mundo. Dessa forma, a pluralidade é a condição específica de toda a vida política (ARENDT, 2008, p.15).

Entretanto, o moderno movimento em direção à desqualificação da vida contemplativa, na passagem da ordem do Ser para a do Conhecer, associada à inversão de posições entre a ação e a fabricação, resultará na vitória do animal laborans sobre o homo faber. Ditado pelo progresso e impelido pelo avanço da tecnologia em um mundo capitalista em ascensão, o engenho do homo faber será canalizado para o ciclo produtivo, no qual a exigência do desejo de consumo e de produção se ampliará com uma velocidade ímpar, fazendo com que a condição do homo faber, de sujeito do processo de produção, transforme-se em instrumento desse processo. O animal laborans, na medida em que incorpora a engenhosidade do homo faber, vê ampliado o horizonte de suas necessidades e carências, bem como o da sua produtividade, por intermédio da divisão do trabalho e da mecanização. Com a emancipação do trabalho proporcionada pelo homo faber, o animal laborans, transfigurado pelo uso da técnica, vai promover constantemente “o crescimento artificial do natural”. Nesse movimento, labor e consumo voltados para a sobrevivência e satisfação seguirão um ao outro em um processo contínuo e serão apenas dois estágios do ciclo incessante da vida biológica. Assim, os ideais de permanência, estabilidade e durabilidade do homo faber serão vencidos pelo ideal de abundância, que o animal laborans compreende como felicidade (CORREIA, 2014, p.97). Correia elucida como o conceito de processo foi devastador para uma atividade que extrai o seu sentido da relação meios-fim. A diluição da fronteira entre uso e consumo e a consequente ilimitabilidade de um consumo desatrelado das necessidades vitais imediatas, em um “modo de vida” artificialmente natural, promove a desertificação do mundo do homo faber de modo análogo ao do terror, no âmbito da dominação totalitária, com o mundo comum do homem de ação (CORREIA, 2014, p.103).

Na concepção de Arendt, o princípio da utilidade que prevalecia nos primórdios da modernidade, cuja condição de meio servia para a produção de coisas no mundo, foi substituído pelo princípio da felicidade, representado pela priorização da produção e consumo. A redução do espaço público pela conquista de interesses dessa natureza e o desaparecimento das atividades propriamente políticas da ação e do discurso abriram caminho para dominações totalitárias, que são a ausência de política. A promoção de uma vida radicalmente antipolítica — aquela do trabalhador consumidor — fomentou essa dominação. Por essa razão, Arendt é contra e nunca acreditou no liberalismo. Ao defender a liberdade em seu sentido negativo — como não impedimento — o liberalismo separa a liberdade da política, concepção que se opõe ao conceito de liberdade defendido por Arendt, que pensa a liberdade como um fenômeno eminentemente político, representado pela ação livre dos indivíduos no espaço público.

A vitória do animal laborans, segundo Arendt, está relacionada à promoção do trabalho decorrente do advento social, quando o antigo abismo entre o restrito domínio do lar e o elevado domínio político foi progressivamente preenchido por uma “organização pública do processo vital”. Com a diluição da divisão entre a esfera privada e a pública, as questões sociais e interesses privados adquirem relevância pública, ou seja, o privado e o público dissolvem-se no coletivo, no qual não se espera por ação, mas por comportamentos, uma vez que se impõem “inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a ‘normalizar’ os seus membros, a fazê-los comportarem-se, de modo a excluir a ação espontânea ou a façanha extraordinária” (ARENDT apud CORREIA,. 2014, p.89). Nessa perspectiva, a vitória do animal laborans, não coincide com “classe social” alguma, mas com uma “mentalidade”, ou ainda, na indicação de Correia, com um paradoxal “modo de vida” extraído das condições do mero viver. Por isso, para compreender a relação entre economia e política na era moderna, é preciso atentar para esse outro sentido da expressão animal laborans como “modo de vida”, assim como no do produto de uma sociedade atomizada.

A ascensão do social e a prevalência do econômico no espaço público têm como resultado a redução da ação política livre, que passa a ter como foco a administração de questões oriundas da esfera privada. Isso destoa da concepção de política de Arendt, pois para ela uma ação genuinamente política não envolve questões de natureza social ou econômica, uma vez que estas estariam restritas aos assuntos do âmbito privado. E aqui surge uma questão polêmica na teoria de Arendt, que Adriano Correia enfrenta com muita honestidade: a dificuldade da filósofa “na compreensão dos vínculos estreitos entre economia e política no âmbito do capitalismo” (CORREIA, 2014, p.100). Apesar de reconhecer nas questões sociais as necessidades dos mais pobres, Arendt não deixa claro qual o mecanismo ou o procedimento pelos quais essas questões seriam admitidas no domínio político sem provocar a sua ruína ou se converter em uma usurpação do espaço público por interesses privados. De forma coesa, Adriano promove um diálogo com os críticos de Arendt, visando elucidar tais problemas.

Nesse contexto, a política se transforma em biopolítica, uma vez que suas atividades voltam-se exclusivamente ao gerenciamento de questões relativas à sobrevivência da vida em suas necessidades biológicas e de consumo. Tema que Correia aborda sob a ótica das teorias de Arendt, Foucault e Agamben, traçando as proximidades e distâncias entre esses autores. Nesse sentido, lembra as reflexões de Michael Foucault ao apontar o processo por meio do qual, nos limiares da Idade Moderna, a vida natural começa a ser incluída nos mecanismos e nos cálculos do poder estatal, e a política se transforma em biopolítica:

por milênios o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente (AGAMBEN, 2004, p.11).

Para Foucault, a sociedade civil torna-se o correlativo da tecnologia liberal de governo, pois na medida em que o soberano, pautado pela tese liberal de que o Estado deve manter distância da economia, ele não pode governar o homo economicus. Por essa razão, a governabilidade só pode ser garantida no campo da sociedade civil. As conclusões de Correia sugerem que Foucault e Arendt, ainda que por caminhos argumentativos distintos, julgam que a modernidade pode ser compreendida politicamente como o primeiro período na história em que o mero estar vivo assume relevância política e é alvo da gestão estatal.

Em sua parte final, após tratar do conceito de poder em que articula um diálogo com a concepção de Arendt e Habermas, o livro trata de questões como a liberdade política, direitos humanos e o sistema de conselhos, capaz de proporcionar a participação de todos os cidadãos na vida política. A questão da liberdade, aqui tratada, está inserida no contexto das Revoluções Modernas, principalmente a americana e a francesa, as quais Arendt analisa destacando suas diferenças, seus aspectos comuns positivos e seus fracassos. Tomando como ponto de partida a afirmação “a tradição revolucionária e seu tesouro perdido”, feita por Arendt em Sobre a revolução, bem como sua concepção de que a liberdade política só pode significar a efetiva participação no governo, Adriano Correia vai reconstruir o pano de fundo dessas convicções, examinando, sobretudo, os vínculos entre liberdade, engajamento e participação (CORREIA, 2014, p.175). Como um ponto comum entre as revoluções, cita que em ambas a ideia central da revolução é a de fundação da liberdade, isto é, a “fundação de um corpo político que garante o espaço onde a liberdade pode aparecer” (ARENDT apud CORREIA, 2014, p.179). Um de seus fracassos, contudo, estaria relacionado à sua incapacidade de converter em forma de governo a experiência do sistema de conselhos, vale dizer, “um novo espaço público para a liberdade que se constituía e se organizava durante o curso da própria revolução” (CORREIA, 2014, p.206). Esse novo tipo de organização política permitiria eventualmente a todos os cidadãos participar ativamente do governo.

A despeito de todas as razões e dificuldades, que segundo Arendt impediram a efetivação plena do espírito revolucionário, ela nunca duvidou da capacidade de resistência à opressão. Nesse sentido, Correia observa que “os movimentos recentes em várias partes do mundo em grande medida reverberam a convicção arendtiana de que a paixão pela liberdade e pela felicidade públicas pode ainda inspirar o engajamento político para além das demandas estritamente econômicas e sociais, ainda que frequentemente provenham delas” (CORREIA, 2014, p.195). As análises e interpretações efetuadas por Adriano Correia trazem à luz e revelam a atualidade do pensamento de Arendt, e reavivam a promessa de que a liberdade pode ser restituída como uma experiência política e se afirmar em oposição à prevalência de uma vida que não almeja sair do estrito âmbito da satisfação das necessidades.

Referências

AGAMBEN, G. Homo sacer I: o poder soberano e a vida nua. Tradução de H. Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

ARENDT, H. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

CORREIA, A. Hannah Arendt e a modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

DUARTE, A. O Pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

FRY, K. A. Compreender Hannah Arendt. Tradução de Paulo Ferreira Valério. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

Iara Lúcia Mellegari – Doutoranda em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

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