O Império do Direito: teoria política e sistema jurídico na sociedade moderna – NEUMANN (C-FA)

NEUMANN, Franz. O Império do Direito: teoria política e sistema jurídico na sociedade moderna. Tradução de Rúrion Melo. São Paulo: Quartier Latin, 2013. Resenha de: PROL, Marques Flavio. O Império do Direito e a liberdade: uma teoria crítica do direito e do Estado. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.21 Jan./Jun., 2013.

Foi publicada em português a tradução do livro O Império do Direito, de Franz Neumann. Escrito em 1936, na Inglaterra, para obtenção do segundo doutorado do autor, sob orientação de Harold Laski, a versão em livro foi publicada cinquenta anos depois, em 1986.

Alemão, Neumann foi advogado trabalhista e do Partido Social Democrata. Ao longo da década de 1920, ainda na Alemanha, escreveu sobre direito do trabalho e direito econômico, e os principais textos do período estão reunidos em duas coletâneas publicadas em italiano.1 Diante da ascensão do nazismo ao poder, em 1933, foi obrigado a se exilar.

Após a estadia na Inglaterra, dirigiu-se aos Estados Unidos, onde iria escrever o livro pelo qual é mais conhecido: Behemoth2, que apresenta um estudo do regime nazista. Nele, Neumann critica o conceito de capitalismo de estado, controvérsia estabelecida com Friedrich Pollock. Foi também nessa época que ele se tornou colaborador do Instituto de Pesquisas Sociais, estabelecido no exílio.3

A publicação de O Império do Direito ilumina uma parte relevante da obra de Neumann.4 Nesse texto, o autor apresenta uma interpretação específica a respeito do direito moderno, do Estado e da sua relação com a liberdade humana. Em termos críticos, essa preocupação com a liberdade talvez possa ser traduzida como interesse pela emancipação, embora Neumann não tenha afirmado isso explicitamente.

O livro apresenta quatro teses distintas a respeito do desenvolvimento do direito moderno. Ele se insere nos principais debates a respeito da natureza do direito, tanto da perspectiva filosófica, com críticas a Schmitt, Kelsen e Austin, como da perspectiva sociológica, com a referência central sendo Max Weber.

Para apresentar a relação estabelecida entre direito moderno e a realização da liberdade, este texto está organizado da seguinte forma: (i) inicialmente, apresento a estrutura geral do livro e suas principais teses; (ii) na sequência, ressalto como o vínculo que o autor estabelece entre direito e democracia permitiria a realização, ainda que parcial, da liberdade. Ainda nessa parte, demonstrarei como Neumann desenvolveu posteriormente sua concepção de liberdade.

1.Estrutura geral do texto e suas principais teses

Neumann divide o seu texto em três partes: ( i ) “introdução e a base teórica”; ( ii ) “soberania e império do direito em algumas teorias políticas racionais (o desencantamento do direito)”; ( iii ) “a verificação da teoria: o império do direito nos séculos XIX e XX”.

Na sequência dessa seção, apresentarei inicialmente o ponto de partida teórico do texto de Neumann, para só então apresentar as quatro teses que o autor defende ao longo do livro.

1.1 Sociologia do direito. Elementos contraditórios do Estado e do direito

O livro discute a relação entre direito, ciência política e economia, razão pela qual a sociologia do direito é o principal ponto de partida para análise. Por sociologia do direito, Neumann entende a compreensão das relações entre direito e a “subestrutura social”5

Afastando concepções meramente econômicas das instituições jurídicas, que reduziriam a subestrutura social do direito a uma análise economicista, Neumann entende que a tarefa central da sociologia do direito é demonstrar como o direito e o Estado possuem tanto um desenvolvimento histórico autônomo enquanto forma específica de ordenação das relações sociais, como um desenvolvi mento condicionado a determinações sociais oriundas da religião, da economia e da política.

Por Estado moderno, Neumann entende “toda instituição socio logicamente soberana” (p. 64). A soberania, por sua vez, corresponde ao poder jurídico mais elevado de determinar normas que valem coercitivamente para todas e todos em um determinado território. Ao afirmar que a soberania é, em última instância, um poder jurídico, Neumann tenta escapar tanto de um reducionismo jurídico, que equacione soberania e direito, como de um reducionismo político-sociológico, que identifique soberania e poder.

Ainda falta, contudo, esclarecer melhor o que o autor entende por direito e por poder. Para ele, o elemento de direito e o elemento de poder contidos em sua definição de soberania e de Estado moderno são contraditórios. Esta é a primeira tese do texto. A soberania absoluta, no sentido do poder irrestrito do Estado para emitir normas de qualquer conteúdo, não se reconcilia com a afirmação histórica de âmbitos de liberdade diante do Estado na forma jurídica (“Império do Direito”).

Para Neumann, a definição de direito deriva da contradição entre esses dois elementos. É por isso que teórica e historicamente percebe-se uma dupla noção de direito: uma política e outra material.

Segundo a noção política, qualquer decisão do Estado seria direito, fosse ela justa ou injusta. O direito e a lei seriam apenas voluntas.

Por outro lado, de acordo com a noção material, “as normas do Esta do são compatíveis com os postulados éticos definidos, sejam postulados de justiça, liberdade ou igualdade, ou qualquer outro” (p. 98).

Ou seja, deve haver identidade entre as normas emitidas pela autoridade estatal e certo conjunto de valores externo ao direito para afirmar que as normas emitidas pelo Estado são “direito”.

A segunda tese do texto deriva dessa primeira. Para Neumann, a justificação secular e racional do Estado e do direito pode ter um aspecto revolucionário sob certas circunstâncias históricas. A superação histórica de justificações do Estado e do direito que se baseavam na religião ou no direito natural fortalece concepções de mudanças do status quo. Essa justificação secular e racional implica que o Estado e o direito “são simplesmente instituições humanas originadas da vontade ou da carência dos homens” (p. 73). Assim, a exigência da noção material de direito de uma justificação independente do direito e do Estado não pode depender senão de argumentos que se referem e são construídos pela própria sociedade.

Neumann então apresenta sua terceira e principal tese: a afirmação histórica e teórica de um Império do Direito garantidor da liberdade tem um efeito desintegrador em uma sociedade baseada na desigualdade (p. 40). A terceira tese é uma especificação da segunda: a justificação secular e racional do Estado e do direito, na modernidade, assume a forma da defesa de um Império do Direito geral. Este Império do Direito expressa o estabelecimento de certas esferas de liberdade em face do Estado. E essas esferas de liberdade permitem que os grupos minoritários ou desprivilegiados de uma sociedade desigual reivindiquem direitos por meio do próprio Império do Direito e de acordo com uma justificação secular e racional. Mas esse processo ameaça as posições de poder estabelecidas e, consequentemente, ou o poder aceita essas demandas ou ele abandona a justificação secular e racional. O exemplo da República de Weimar, mais abaixo, ilustra esse fenômeno.6

1.2 “Desencantamento do direito” e instituições jurídicas

As três teses são desenvolvidas ao longo de todo o texto. A segunda parte do livro apresenta o desenvolvimento da contradição entre soberania absoluta e Império do Direito na obra dos principais pensadores racionais do Ocidente – de Cícero a Hegel. Neumann analisa suas distintas teorias do Estado e do direito para demonstrar como a contradição está invariavelmente presente. Paralelamente, Neumann apresenta como progressivamente ocorre a superação teórica de justificações transcendentais do direito em favor de concepções que se baseiam nas vontades e nas carências dos homens – processo que ele chama de “desencantamento do direito”.

É também nessa parte do texto que Neumann apresenta sua quarta tese: “o reconhecimento da liberdade e igualdade em uma es fera leva ao postulado da liberdade e igualdade nas outras” (p. 118).

Para ele, a justificação secular e racional do Estado e do direito per mite e estimula o reconhecimento jurídico progressivo da liberdade e da igualdade, embora o risco de regresso seja constante.

Essa tese, junto às demais, será novamente objeto de estudo na terceira e última parte do livro, quando Neumann analisa a evolução histórica das instituições jurídicas na Alemanha e na Inglaterra dos séculos XIX e XX. Nesse ponto, Neumann estuda a relação entre direito, política e capitalismo.

Ele defende que a sociedade liberal e competitiva do século XIX, ao compartilhar uma concepção individual de liberdade política e econômica, determinava que o direito só fosse válido se exercido por meio de leis gerais aplicadas por juízes independentes por meio de um processo de subsunção lógico-formal.

Essa ideia formal de direito, por outro lado, pressupunha uma determinada estrutura econômica, social e política: uma economia não monopolizada, a inexistência de uma classe trabalhadora enquanto movimento independente que apresentava demandas ao Estado e ao direito e uma separação de poderes, no qual o direito era aplicado por um órgão independente do órgão de criação, sendo que um ou outro deveria ser dominado pela burguesia.

Contudo, quando o capitalismo se monopolizou e o proletariado passou a exigir o reconhecimento formal de direitos, ocupando lugar no Parlamento, essa estrutura jurídica formal entrou em xeque.

Neumann afirma que a justificação secular e racional do direito passou a ser reivindicada por uma nova classe social, organizada politicamente. E a possibilidade dessa classe exigir direitos formais democraticamente (a afirmação progressiva do Império do Direito por uma justificação secular e racional), entrou em contradição com o desenvolvi mento do sistema produtivo. A sociedade burguesa ficou ameaçada.

A solução encontrada na década de 1930, na Alemanha, foi o completo abandono de qualquer pretensão de racionalidade na justificação do Estado e do direito: a contradição entre soberania e Império do Direito foi resolvida em favor do primeiro elemento. Para Neumann, o direito da Alemanha nazista era uma simples técnica de transformação da vontade do líder em realidade constitucional. A característica própria do direito e do Estado, a contradição entre um momento de soberania e um momento de justificação racional e secular, foi deixada de lado em favor de uma justificação irracional e carismática do poder absoluto do Estado.

2.Vínculo entre direito e democracia.

Contudo, é possível defender, a partir de Neumann, que a “solução nazista” não era a única alternativa historicamente possível. Aqui talvez resida a maior contribuição do autor para o pensamento jurídico e político contemporâneo. Estabelecendo um vínculo entre democracia e direito, tanto da perspectiva teórica, a partir da análise de Rousseau, como da perspectiva histórico-institucional, a partir de sua análise sobre a República de Weimar, Neumann parece postular que seria possível garantir o contínuo reconhecimento de esferas de liberdade e igualdade por meio de um direito democrático, ainda que o risco de regressão estivesse presente.

Não há espaço para reconstruir o que interpreto como as duas linhas de análise sobre o vínculo de direito e democracia realizadas por Neumann. Por isso, apresentarei somente o que considero a sua compreensão sobre as transformações ocorridas na República de Weimar.

Neumann entende que a típica sociedade liberal do século XIX transformou-se radicalmente na Alemanha do início do século XX.

Além da transição do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista, o autor afirma que a estrutura política também foi substancialmente alterada, sendo que a Constituição de Weimar tentou equilibrar o conflito de classe entre proletariado consciente e burguesia com base na ideia de paridade e com o sufrágio universal. As instituições políticas democráticas permitiram que todas as forças sociais participassem ativamente da criação do direito e do exercício do poder político.

Nesse contexto, a estrutura formal do direito do século XIX também foi transformada. A estrutura econômica de monopólios, o proletariado se constituindo enquanto classe social ativa e a participação de diversas forças sociais na criação do direito fizeram com que começassem a surgir inúmeras normas mais abertas que o padrão tradicional. O conflito social não permitia que o legislador decidisse de antemão qual a solução a ser adotada em um caso concreto. Cláusulas jurídicas gerais passaram a dominar o ordenamento jurídico, como as exigências da “função social da propriedade”, “interesse público” e “boa-fé”, que permitiam uma decisão diferente para cada caso concreto.

Para Neumann, essas cláusulas gerais só garantiram o equilíbrio de forças sociais enquanto todas puderam participar do processo de justificação. Enquanto existiu esse equilíbrio em Weimar, as forças sociais puderam participar ativamente da formação do poder político, porque a elas também eram reconhecidas esferas de liberdade em face do poder do Estado. Contudo, a partir de 1930, as cláusulas gerais passaram simplesmente a ser utilizadas como justificativa para proteção dos interesses monopolistas e da vontade política do Führer. As esferas de liberdade foram sacrificadas em favor da soberania estatal7

2.1 O elemento jurídico da liberdade e a realização da liberdade humana.

A consequência desse diagnóstico, para Neumann, é a de que o reconhecimento formal e jurídico de âmbitos de liberdade em face do poder do Estado é essencial para garantir a realização da liberdade humana, ainda que não a garantam definitivamente.

Neumann entende que a liberdade jurídica se diferencia da liberdade sociológica e filosófica. Enquanto a primeira é a ausência de restrição, a liberdade sociológica seria a possibilidade individual de livre escolha entre duas alternativas iguais. Neumann entende que a liberdade jurídica, conectada a instituições democráticas e a uma justificação secular e racional, permite a progressiva realização da liberdade sociológica, ao dar atenção crescente às diferenças sociais entre os homens. A liberdade jurídica, contudo, não garante a liberdade sociológica.

Finalmente, a liberdade jurídica e a liberdade sociológica simples mente tornam possível a “autoafirmação humana, o fim da alienação de si do homem” (p. 83), inspirando-se na filosofia do direito hegeliana.

A tentativa de formular uma “teoria da liberdade humana” nunca foi abandonada por Neumann. Em texto posterior, de 1953, Neumann retornará à questão.8 Nesse texto, ele afirma que o conceito de liberdade política possui três elementos constitutivos: jurídico, cognitivo e volitivo. O elemento jurídico é o reconhecimento de uma esfera de liberdade do cidadão e de organizações privadas em face do Estado.

Neumann diferencia sociedade civil e Estado e afirma que a primeira deve ser independente do Estado para permitir que as demandas sociais se formem autonomamente.

Desenvolvendo a afirmação realizada antes, Neumann afirma mais uma vez que o elemento jurídico é insuficiente. Dessa vez, contudo, apresenta dois novos motivos: a liberdade concebida enquanto ausência de restrições não permite explicar porque a democracia é o sistema político que maximiza a liberdade; a fórmula da independência da sociedade civil em relação ao Estado ignora que a liberdade pode ser ameaçada no interior da própria sociedade civil.

Assim, ele desenvolve o elemento cognitivo e o elemento volitivo da liberdade política, que complementam o elemento jurídico. O elemento cognitivo reconhece que a sociedade humana acumula progressivamente conhecimento a respeito da natureza e do próprio homem. Nesse sentido, ele permite a realização efetiva da liberdade, ao possibilitar ao homem a compreensão das relações naturais e sociais nas quais está inserido. Ao mesmo tempo, também permite que o homem reforme a estrutura institucional para adequá-la ao conheci mento adquirido.

Por fim, o elemento volitivo (ou ativista) da liberdade é a vontade humana de ser livre. É por meio dele que se defende a superioridade da democracia enquanto forma histórica de realização da liberdade. O vínculo entre direito e democracia fica ainda mais evidente no texto de 1953, porque Neumann defende que somente a democracia institucionaliza a oportunidade do homem escolher livremente entre oportunidades iguais. E o cidadão – individualmente ou em grupo – só pode escolher livremente se tem esferas de liberdade reconhecidas juridicamente.

Em The concept of political freedom, portanto, Neumann desenvolve a teoria apresentada inicialmente em O Império do Direito. Os três ele mentos da liberdade – jurídico, cognitivo e volitivo – conformariam um desenho institucional e social mínimo para que uma sociedade moderna possa ser livre, ainda que o risco de regressão esteja presente. A análise da República de Weimar realizada nos últimos capítulos de O Império do Direito demonstra o risco do abandono do Império do Direito.

Nesse contexto, acredito que os estudos de Franz Neumann podem contribuir significativamente com a reflexão contemporânea a respeito do direito e da democracia. Sua análise sobre o desenvolvimento da racionalidade jurídica apontou para a superação da dicotomia direito formal-material, no sentido de um direito procedimental democrático.9 Por outro lado, Neumann também apontava para a necessidade de congregar outros elementos, além do jurídico, para a sociedade moderna realmente permitir a efetivação da liberdade.

Notas

1.FRAENKEL, E.; KAHN-FREUND, O.; KORSCH, K.; NEUMANN, F.; SINZHEIMER, H. Laboratorio Weimar: conflitti e diritto del lavoro nella Germania prenazista. Roma: Edizione Lavoro, 1982, NEUMANN, F.Il diritto del lavoro fra democracia e dittadura. Bologna: Il Mulino,1983.

2.NEUMANN, F.Behemoth : the structure and practice of national socialism 1933 1944 (1942). New York: Harper Torchbooks, 1966. Versão atualizada do livro publicado originalmente em 1942.

3 A relação entre Neumann e o Instituto não é contínua. Sobre o assunto, ver JAY, M.The dialectical imagination : a history of the Frankfurt School and the Institute of Social Research. Boston: Little Brown, 1987.

4 A preocupação de Neumann com o direito foi analisada nos seguintes textos: RODRIGUEZ, J.Fuga do Direito: um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann, São Paulo: Editora Saraiva, 2009; PROL, F. e RODRIGUEZ, J. Franz L. Neumann: direito e luta de classes. In: RODRIGUEZ, J. e SILVA, F., Manual de Sociologia Jurídica, São Paulo: Editora Saraiva, 2013, pp. 61-79.RODRIGUEZ, J. Franz Neumann, o direito e a teoria crítica.Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo: CEDEC, v. 61, 2004. RODRIGUEZ, J.Franz Neumann: o direito liberal para além de si mesmo.In: NOBRE, M., Curso livre de teoria crítica. Campinas: Papirus, 2008. KELLY, D.The State of the political: conceptions of politics and the state in the thought of Max Weber, Carl Schmitt and Franz Neumann. New York: Oxford, 2003. SCHEUERMAN, W.Between Norm and Exception: the Frankfurt school and the rule of law. Cambridge: MIT Press, 1997.

5.Neumann se baseia nos estudos de Karl Renner. Ver: RENNER, K.The institutions of private Law and their social functions. Londres: Routledge & K. Paul, 1949.

6.Acredito que é a partir desta tese que Rodriguez afirma a atualidade do diagnóstico de Neumann, por meio da expressão “fuga do direito”. A afirmação histórica do Império do Direito e do reconhecimento de diversas esferas de liberdade jurídicas faz com que as forças produtivas e o exercício puro do poder assumam outra roupagem social, não jurídica. O direito moderno democrático impõe restrições ao exercício do poder. Para mais, ver RODRIGUEZ, J.Fuga do Direito.

7.Rodriguez diferencia a “forma direito” dos “modelos de juridificação”. A ideia de “forma direito” ele retira da própria tensão entre soberania e direito que Neumann afirma ser característica das sociedades modernas. Por “modelos de juridificação”, Rodriguez diferencia como cada sociedade concretiza essa tensão em sua organização específica. A “forma direito” ganha potencial emancipatório quando está conectada a um procedimento democrático.Justamente o que foi abandonado na Alemanha nazista. Para mais, ver: RODRIGUEZ, J. Fuga do Direito, pp. 69-85; p. 95-120; pp. 129-135.

8.NEUMANN, F. The concept of political freedom.Columbia Law Review, vol.53, n. 7, 1953, pp. 901-935.

9.Algo que Habermas, por exemplo, realiza em seus textos sobre direito e democracia. HABERMAS, J.Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2 vols.Tradução de Flávio Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

Referências

FRAENKEL, E.; KAHN-FREUND, O.; KORSCH, K.; NEUMANN, F.; SINZHEIMER, H. Laboratorio Weimar: conflitti e diritto del lavoro nella Germania prenazista. Roma: Edizione Lavoro, 1982.

HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade.2 vols. Tradução de Flávio Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

JAY, M.The dialectical imagination: a history of the Frankfurt School and the Institute of Social Research. Boston: Little Brown, 1987.

KELLY, D.The State of the political: conceptions of politics and the state in the thought of Max Weber, Carl Schmitt and Franz Neumann New York: Oxford, 2003.

NEUMANN, F.Il diritto del lavoro fra democracia e dittadura. Bologna: Il Mulino,1983.

_______.Behemoth: the structure and practice of national socialism 1933-1944 (1942). New York: Harper Torchbooks, 1966. Versão atualizada do livro publicado originalmente em 1942.

_______.O Império do Direito: teoria política e sistema jurídico na sociedade moderna. Tradução de Rúrion Melo. São Paulo: Quartier Latin, 2013.

_______. “The concept of political freedom”.Columbia Law Review, vol.53, n. 7, 1953.

PROL, F.; RODRIGUEZ, J. Franz L. Neumann: direito e luta de classes.

In: RODRIGUEZ, J.; SILVA, F. (orgs.).Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.

RENNER, K.The institutions of private Law and their social functions. Londres: Routledge & K. Paul, 1949.

RODRIGUEZ, J.Fuga do Direito: um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

_______. Franz Neumann, o direito e a teoria crítica.Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo: CEDEC, v. 61, 2004.

_______. Franz Neumann: o direito liberal para além de si mesmo. In: NOBRE, M., Curso livre de teoria crítica. Campinas: Papirus, 2008.

SCHEUERMAN, W.Between Norm and Exception: the Frankfurt school and the rule of law. Cambridge: MIT Press, 1997.

Flávio Marques Prol – Doutorando na Faculdade de Direito da USP e pesquisador do NDD-CEBRAP.

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Sobre a Constituição da Europa – HABERMAS (C-FA)

HABERMAS, Jürgen. Sobre a Constituição da Europa.Tradução de Denilson Luis Werle; Luiz Repa e Rúrion Melo. São Paulo: Editora da UNESP, 2012. Resenha de: BRESSIANI, Nathalie. Habermas em português. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.20, Jun./Dez., 2012.

Os leitores de Jürgen Habermas em português contam, desde o segundo semestre de 2012, com uma tradução brasileira do mais recente livro do autor, Sobre a Constituição da Europa. A boa notícia não se restringe, contudo, ao importante fato de que, com isso, o público brasileiro passa a ter acesso a um livro de Habermas logo após sua publicação original, em alemão. A cuidadosa tradução de Sobre a Constituição da Europa, feita por Denilson Luis Werle, Luiz Repa e Rúrion Melo é também a primeira de uma série e marca o início da mais nova coleção da Editora UNESP, que publicará quase que integralmente as obras de Habermas em português.

Coordenada pelos três tradutores e por Antonio Ianni Seggato, a coleção representa o início de um longo trabalho de tradução que disponibilizará, nos próximos anos, tanto textos inéditos como livros de Habermas já vertidos para o português, dando sempre prioridade a seus trabalhos mais recentes e aos que não possuem tradução, bem como àqueles cuja tradução seja de difícil acesso ou não satisfaça os padrões já alcançados pela pesquisa acadêmica no Brasil (p. IX).

Dentre os próximos títulos a serem publicados pela coleção, estão Teoria e Prática e Fé e Saber, até hoje inéditos em português, e novas traduções de Conhecimento e Interesse e Mudança Estrutural da Esfera Pública, com o novo prefácio escrito pelo autor na ocasião dos 30 anos da publicação do livro.

Reconhecendo a importância de Habermas para diversos campos do conhecimento e a consolidação de seus estudos no Brasil, a coleção da Editora UNESP certamente permitirá que a recepção de suas obras seja ainda mais ampliada, bem como contribuirá para a sedimentação – já em curso – de um vocabulário habermasiano em português, indispensável para que o trabalho do autor seja melhor compreendido em seus diversos momentos e para que suas influências e ressonâncias no debate atual sejam percebidas com maior clareza.

Tendo isso em vista, a escolha de Sobre a Constituição da Europa como primeira publicação da coleção é bastante feliz. Composto por dois ensaios e um adendo, no qual constam dois breves artigos e uma entrevista, este é um livro heterogêneo, em que Habermas discute várias questões de perspectivas distintas. Sem se limitar a uma análise especialista de viés jurídico, econômico ou político do processo de constituição da União Europeia ou de abrir mão da postura crítica fundamentada que caracteriza seu trabalho, neste livro Habermas lança mão do conhecimento sedimentado em diversas áreas para fazer um diagnóstico crítico do tempo atual.

No primeiro ensaio, intitulado “O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos”, o autor se debruça sobre questões mais propriamente filosóficas, relativas à fundamentação dos direitos humanos e sua relação com a moral, ressaltando o vínculo estrutural existente entre a violação da dignidade humana e a gênese dos direitos humanos. No segundo ensaio, por sua vez, Habermas se volta a questões de diagnóstico de época e apresenta uma interessante compreensão sobre a atual crise econômica, política e democrática pela qual passa a Europa. Tema que constitui também o objeto dos dois artigos e da entrevista que compõem o adendo. Assumindo, nesses textos, um tom visivelmente mais otimista face aos potenciais democráticos da União Europeia depois da ratificação do Tratado de Lisboa, 1 Habermas ressalta a possibilidade de que os novos desenvolvimentos dessa instituição permitam a ampliação e a garantia dos direitos humanos para além do Estado-nação e façam frente às forças econômicas sistêmicas, que até então haviam ditado as prioridades e os rumos da UE.

O vínculo entre as duas partes do livro, de resto bastante distintas, parece estar exatamente na importância que o autor confere, em ambas, aos direitos humanos. Afinal, se, no primeiro ensaio, Habermas procura reconstruir a origem moral dos direitos humanos, com o objetivo de fundamentar a tendência à sua efetivação universal, na segunda, ele passa a discutir essa mesma efetivação de um outro ponto de vista, isto é, a partir do caso europeu. Retomando, nesse momento, diversos elementos de sua teoria social dualista, Habermas desenvolve um diagnóstico dos processos de unificação da Europa, por meio do qual explicita os diferentes projetos de Europa em jogo atualmente e identifica as tendências e os bloqueios existentes para sua realização.

Mesmo sem lançar mão textualmente da distinção entre sistema e mundo da vida, Habermas a retoma implicitamente ao identificar a tendência do sistema econômico globalizado em escapar das regulações estatais e ao problematizar o déficit de legitimação decorrente da dificuldade dos Estados nacionais em lidar com tal tendência.2 Segundo Habermas, tendo desencadeado a atual crise, o processo de globalização econômica em curso representa a volta de uma forma de neoliberalismo que afasta a economia da regulação democrática dos Es tados nacionais, ao mesmo tempo que aprofunda as desigualdades econômicas, tanto entre os países quanto em seu interior. Como afirma ele, “os mercados financeiros, principalmente os sistemas funcionais que perpassam as fronteiras nacionais, criam situações problemáticas na sociedade mundial que os Estados individuais – ou as coalizões de Estados – não conseguem mais dominar” (p. 5).

O objetivo de Habermas na segunda parte de Sobre a Constituição da Europa não é, contudo, apenas mostrar os resultados recentes dos desenvolvimentos de uma economia que se autonomizou, mas também o de apontar para as forças que se opõem a esse processo. Uma dessas formas de oposição, descartada por ele rapidamente, é a proposta daqueles que, céticos frente à possibilidade da consolidação de instituições democráticas transnacionais, continuam a insistir nos Estados nacionais como os principais atores políticos. Ressaltando o caráter irreversível do processo de globalização da economia mundial, Habermas recusa essa posição e defende que hoje não é mais possível se esquivar da necessidade de criar instituições democráticas cosmopolitas para lidar com o novos desafios gerados pela economia globalizada.

Tomando tal irreversibilidade como ponto de partida, o que está em causa na análise de Habermas é, na verdade, o caráter e os funda mentos das instituições transnacionais. Segundo o autor, estamos hoje diante de dois projetos distintos de Europa (cf. p. 49). O primeiro deles, problematizado por Habermas, equivale à tentativa de fazer da UE um Conselho Europeu, no qual os 17 chefes de Estado dos países membros decidiriam sobre os mais diversos assuntos e, esvaziando de importância os parlamentos nacionais, criariam um sistema de federa lismo executivo que corresponderia a “um modelo de exercício de dominação pós-democrática” (p. 2). Habermas entende que, escondendo-se atrás de um discurso supostamente não político, tal projeto prevê que as principais decisões políticas fiquem na mão de burocratas ou especialistas, fazendo com que a formação política da vontade se torne supérflua. Se, para o autor, esse projeto perdeu parte de sua força, isso não o impediu de fazer com que os cidadãos europeus tenham ainda hoje a sensação de impotência frente a um sistema político e econômico que parece ter descolado da democracia.

Em Sobre a Constituição da Europa, no entanto, Habermas não aposta na tendência de consolidação da UE como um sistema pós -democrático de dominação política, pelo contrário. De acordo com ele, “o sonho de ter ‘mecanismos’ que tornariam supérflua a formação da vontade política comum e que manteriam a democracia sob controle se estilhaçou” (p. 1). O Tratado de Lisboa, a pressão pela efetivação dos direitos humanos e pela institucionalização de uma democracia cosmopolita e o projeto de uma constituição europeia (ainda que congelado), fazem com que Habermas defenda que a UE não se encontra hoje “tão longe da configuração de uma democracia trans nacional” (p. 3). Para ele, portanto, o potencial democrático da UE não apenas não está bloqueado, como também se opõe às tendências funcionais que o ameaçam.

Os conflitos entre sistema e mundo da vida, bem como a disputa entre eles em torno do direito permitem então a Habermas desenvolver um interessante diagnóstico da situação atual da Europa de acordo com o qual, de um lado, temos a ameaça de que os sistemas econômico e político se descolem das instituições democráticas e, de outro, a tendência de institucionalização de uma democracia cosmopolita, que pode não só regular os sistemas, como também garantir a efetivação dos direitos humanos para além das fronteiras nacionais.

3 Partindo do caso europeu, Habermas diagnostica então as tendências emancipatórias que apontam na direção da consolidação de instituições democráticas transnacionais, bem como seus obstáculos, ligados à possibilidade de que essas instituições se tornem formas pós-democráticas de dominação política. A importância dada por Habermas aqui ao caso europeu não é, contudo, fortuita. Se a UE é central na análise do autor é porque ela permite a explicitação dos conflitos próprios ao atual contexto de globalização e, além disso, porque ela “pode ser concebida como um passo decisivo no caminho para uma sociedade mundial constituída politicamente” (p. 40).

Se o agravamento da crise na zona do euro em dezembro de 2011 faz com que o otimismo de Habermas nesse livro pareça hoje exagerado, seu claro posicionamento em defesa de uma democracia cosmopolita mundial permanece, contudo, atual. Dentre outros motivos, porque, com ele, Habermas parece resolver uma importante ambiguidade em seu trabalho, problematizada por diversos críticos até então, 4 para os quais, apesar de destacar a incapacidade dos Estados nacionais em regular a economia globalizada e de denunciar o déficit democrático das instituições transnacionais existentes, Habermas permaneceria tomando o Estado-nação como o único âmbito adequa do para o exercício da democracia.5 Ao defender agora a importância de uma constituição europeia e afirmar que a legitimidade de instituições transnacionais reside em sua capacidade de garantir a participação e a influência dos indivíduos – tanto enquanto cidadãos de seus países como enquanto cidadãos europeus (ou ainda como cidadãos do mundo) –, Habermas dissolve essa ambiguidade e apresenta, de modo mais claro, sua posição em prol da institucionalização de uma democracia mundial.

Dessa forma, mesmo que retome, em Sobre a Constituição da Europa, questões já abordadas em trabalhos anteriores – como o processo de unificação da Europa, a possibilidade e os obstáculos existentes à consolidação da democracia e de instituições jurídicas transnacionais e, em particular, ao estatuto e gênese dos direitos humanos –, Habermas o faz explicitando e até alterando algumas das posições que havia defendido. E, isso, não só no que diz respeito ao seu otimismo frente aos rumos da UE ou mesmo à possibilidade de uma democracia cosmopolita. Como ressalta Alessandro Pinzani em sua “Apresentação à edição brasileira”, Habermas parece também mudar sua posição no que se refere à forma de justificar os direito humanos. Para Pinzani, em Sobre a Constituição da Europa, “haveria uma aproximação entre direito e moral bem mais forte do que na obra anterior de Habermas” (p. XV), na qual este recusa o estatuto moral normalmente atribuído aos direitos humanos e defende a separação entre moral e direito.6

Defendida por Habermas pelo menos a partir de Direito e Democracia, a separação entre direito e moral é central em sua compreensão do direito moderno. De acordo com ele, em sociedades modernas, já diferenciadas, os direitos fundamentais não devem ser vistos como o resultado da positivação de algo previamente dado e anterior à deliberação, tais como direitos naturais de caráter moral. Embora sejam condições necessárias para o exercício da autonomia pública, os direitos fundamentais que os cidadãos se atribuem mutuamente seriam o resultado da prática política de autodeterminação.7 Para Pinzani, se essa é de fato a tese defendida por Habermas até então, ao vincular a gênese dos direitos humanos à noção moral de dignidade humana, ele teria mudado de posição e reestabelecido uma relação de subordinação dos direitos humanos à moral.

Antecipando essa possível leitura, Habermas chega a afirmar, em nota, que a nova justificação dada ali aos direitos humanos não tem como consequência uma modificação de sua posição no que se refere “à introdução originária do sistema de direitos” (nota 19, p. 19). Segundo ele, o vínculo estabelecido entre a violação da dignidade humana e a gênese dos direitos fundamentais não significa que estes sejam morais. Os direitos fundamentais, afirma ele, permanecem distintos dos direitos morais pois, ao contrário destes, estão voltados a uma institucionalização. Apesar dessa ressalva, a carga moral atribuída por Habermas à dignidade humana e a importância assumida por ela em sua reconstrução da gênese dos direitos humanos têm suscita do diversas discussões.

Para autores kantianos, como Rainer Forst, 8 que defendem que o direito não pode ser compreendido sem ser remetido à moral, a suposta aproximação empreendida por Habermas pode ser vista como um ganho frente a seus escritos anteriores. Para autores 9 que, ao contrário, defendem que a forma do direito moderno já implica direitos de liberdade que não precisariam, portanto, de uma fundamentação moral, o novo texto de Habermas pode ser interpretado como um retrocesso em direção à pré-modernidade. Embora divirjam frontalmente em suas posições, poucos parecem ser os leitores de Habermas que poderão se manter indiferentes perante às várias passagens do livro em que ele reforça a origem moral dos direitos humanos, nas quais afirma, por exemplo, que:

em contraposição à suposição de que foi atribuída retrospectivamente uma carga moral ao conceito de direitos humanos por meio do conceito de dignidade humana, pretendo defender a tese de que, desde o início, mesmo que ainda primeiro de modo implícito, havia um vínculo conceitual entre ambos os conceitos. (pp. 10-1)

Ou ainda, logo em seguida, que:

a dignidade humana… é a ‘fonte’ moral da qual os direitos fundamentais extraem seu conteúdo. (pp. 10-1)

O fortalecimento do vínculo entre moral e direitos fundamentais, como atestam essas passagens, parece inegável. De qualquer forma, a divergência na interpretação de seus interlocutores e a própria ressalva de Habermas explicitam que cabe ainda discutir quais são exatamente as consequências desse vínculo e se ele, de fato, implica uma relação de subordinação ou de identidade entre direitos morais e direitos humanos. As primeiras reações ao livro já indicam assim que, embora não seja problematizado pelo próprio autor, o estatuto da relação entre moral e direito nos diferentes escritos de Habermas permanece em questão e, certamente, ainda será objeto de muitos e interessantes debates.

A importância (ou não) da moral na fundamentação habermasiana dos direitos humanos é, certamente, um dos pontos mais controversos do livro. Contudo, a ênfase dada nele à dignidade humana, cujas violações constituiriam o impulso para a efetivação dos direitos humanos em todo o mundo, aponta ainda para um segundo elemento que consideramos importante ressaltar. Afinal, ao sustentar que “o apelo aos direitos humanos alimenta-se da indignação dos humilhados pela violação de sua dignidade humana” (p. 11), Habermas se volta mais diretamente à motivação dos conflitos sociais do que em trabalhos anteriores. A ênfase no sentimento de humilhação frente à violação da dignidade humana como o motor dos conflitos sociais e impulso do processo de ampliação e garantia dos direitos humanos parece corresponder a uma tentativa de Habermas de lidar com um problema colocado a ele por Axel Honneth em Crítica do Poder, a saber, o déficit motivacional de seu trabalho.10

Além disso, é o vínculo entre a violação da dignidade humana e a gênese dos direitos humanos aquilo que parece permitir a Habermas afirmar, sem recair em uma postura meramente transcendente, que estes mesmos direitos são uma utopia realista. A presença do primeiro ensaio cumpriria, nesse sentido, o papel de mostrar que a defesa da ampliação e da garantia dos direitos humanos não é meramente transcendente, mas se ancora em uma tendência inscrita na dinâmica dos próprios conflitos sociais. É exatamente isso o que parece estar em causa quando Habermas afirma, ainda no prefácio, que “as experiências de dignidade humana violada promovem uma dinâmica conflituosa de indignação que dá um impulso renovado à esperança de uma institucionalização global dos direitos humanos, ainda tão improvável”(p.5). Se a suposta aproximação entre moral e direito, abordada anterior mente, parece indicar uma aproximação de Habermas a uma posição kantiana, sua ênfase na origem conflituosa dos direitos e em sua motivação moral parece aproximá-lo também de uma posição hegeliana e, em particular, das contribuições de Axel Honneth.11 Aproximações e deslocamentos que, como as outras questões apontadas aqui, fazem do novo livro de Habermas uma das mais interessantes publicações dos últimos anos.

Fruto de um confronto atento com novos acontecimentos, críticas e autores, Sobre a Constituição da Europa mostra como o trabalho Habermas, longe de ter parado no tempo, continua apresentando um complexo e crítico diagnóstico das sociedades contemporâneas. Mesmo que parte das críticas dirigidas a Habermas apontem para limites em sua teoria, a força de sua compreensão das recentes crises na Europa e em grande parte do mundo, bem como o potencial dos processos de democratização destacados por ele fazem com que o trabalho de Habermas permaneça sendo a principal referência, mesmo para aqueles que visam desenvolver teorias sociais críticas distintas da dele.

A tradução de Sobre a Constituição da Europa e a coleção da UNESP são, nesse sentido, muito bem-vindas não só para aqueles que buscam compreender o pensamento de Habermas em toda sua complexidade, mas também para aqueles que, em confronto com ele, procuram dar continuidade à crítica social em português.

Notas

1 Em Ach, Europa, publicado após a recusa da França e da Holanda de ratificarem o “Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa”, depois deste ter sido recusado pela população em plebiscitos, Habermas se posiciona mais criticamente frente à UE e seus potenciais de democratização. Cf. HABER MAS, J. Ach, Europa.Frankfurt am Main, Suhrkamp, 2008.

2 No contexto atual, afirma Repa sobre o diagnóstico habermasiano, “ocorre uma nova sobreposição de imperativos sistêmicos sobre o mundo da vida sem que nem ao menos os mecanismos sistêmicos tenham uma base de legitimidade no mundo da vida”. REPA, L. O direito cosmopolita entre a moral e o direito. Texto inédito.

3 Se as críticas ao dualismo habermasiano, mesmo em sua forma mitigada, fi zeram com que muitos autores recusassem como um todo o diagnóstico de patologias sociais desenvolvido por Habermas, a compreensão apurada feita por ele da situação atual e do que está em jogo na UE parece mostrar que ele talvez tenha sido descartado apressadamente. Cf. BRESSIANI, N. Redistri buição e Reconhecimento. Nancy Fraser entre Jürgen Habermas e Axel Honneth. In: Cadernos CRH, v. 24, 2011.

4 Cf. FINE, R; SMITH, W, Jürgen Habermas’s Theory of Cosmopolitanism.In: Constellations.Vol. 10, Nº 4, 2003.

5 HABERMAS, J. Die postnationale Konstellation und die Zukunft der Demokratie. In: Die postnationale Konstellation. Frankurt am Main: Suhrkamp, 1998

6 Cf. HABERMAS, J. Faktizität und Geltung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992.Sobre isso, cf. também: MELO, R. HULSHOF, M. KEINERT, M. Diferen ciação e complementaridade entre direito e moral. In: NOBRE, M.; TERRA, R. (Orgs.).Direito e democracia. Um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros editores, 2008, pp. 73-90. MELO, R.O uso público da razão. Pluralismo e democracia em Jürgen Habermas.São Paulo: Edições Loyola, 2011, caps. 2 e 3.

7.Sobre a relação entre direitos fundamentais e direitos políticos ou autonomia privada e autonomia pública em Habermas, cf. SILVA, F. G.Liberdades em disputa: a reconstrução da autonomia privada na teoria crítica de Jürgen Habermas. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia da UNICAMP, 2010

8 Cf. FORST, R.Das Recht auf Rechtfertigung. Elemente einer konstruktivistischen Theorie der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2007.

9 MAUS, I. Verfassung oder Vertrag. Zur Verrechtlichung globaler Politik. In: NIESEN, P.; HERBORTH, B. (Orgs.).Anarchie der kommunikativen Freiheit.Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2007, p. 350 e ss

10 HONNETH, A. Kritik der Macht. Reflexionsstufe einer kritischen Gesellschaftstheorie. Frankfurt am Main: Surkamp, 1989.Cf. também: NOBRE, M. Luta por Re conhecimento: Axel Honneth e a Teoria Crítica. In: HONNETH, A.Luta por Reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.

11 Ao afirmar que as lutas por direitos possuem uma motivação moral, a saber, o sentimento de humilhação resultante da violação da dignidade humana, Habermas se aproxima da posição defendida por Honneth em Luta por Reconhecimento. Apesar disso, ele não parece aqui assumir a distinção entre três esferas de reconhecimento, restringindo-se talvez, como Rainer Forst, a ressaltar a importância da segunda delas, regida pelo princípio do respeito igual, que Honneth atrela ao direito.

Referências

BRESSIANI, N. Redistribuição e Reconhecimento – Nancy Fraser entre Jürgen Habermas e Axel Honneth. In: Cadernos CRH, v. 24, p. 331352, 2011.

FINE, R.; SMITH, W. Jürgen Habermas’s Theory of Cosmopolitanism. In: Constellations.Vol. 10, Nº 4, 2003.

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NOBRE, M. Luta por Reconhecimento: Axel Honneth e a Teoria Crítica. In: HONNETH, A. Luta por Reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.

PINZANI, A. Apresentação à edição brasileira. In: HABERMAS. J.Sobre a Constituição da Europa. São Paulo: UNESP, 2012, pp. XI-XXI.

REPA, L. O direito cosmopolita entre a moral e o direito. Texto inédito.

SILVA, F. G. Liberdades em disputa: a reconstrução da autonomia privada na teoria crítica de Jürgen Habermas.Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia da UNICAMP, 2010.

Nathalie Bressiani – Doutoranda em Filosofia pela USP.

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