Do sentimento da natureza nas sociedades modernas e outros escritos | Élisée Reclus

In every object, mountain, tree, and star – in every birth and life,

As part of each – evolv’d from each – meaning, behind the ostent,

A mystic cipher waits infolded.[1]

Walt Whitman, Shakspeare-Bacon Cipher. Leaves of grass

Em 1866, o geógrafo francês Élisée Reclus (1830-1905) publicou na prestigiada Revue des deux mondes um de seus textos mais conhecidos, Do sentimento da natureza nas sociedades modernas. O texto fez um enorme sucesso e influenciou uma geração de pensadores e escritores do período, abordando temas que permeariam os escritos e as ideias no século XIX. O artigo foi traduzido e publicado em português numa primeira edição em 2010 e agora saiu reimpresso pela Intermezzo e pela Edusp, com ótima tradução e projeto editorial de Plínio Augusto Coelho.

Élisée Reclus foi um dos maiores viajantes do século XIX. Numa época em que as ciências humanas ainda não haviam se dividido em especializações, ele foi, sobretudo, um humanista, um intelectual, um ensaísta. Andava pelo globo, pensando em diferentes problemas, vendo sociedades distintas, celebrando a natureza em contraste com o que dizia ser a dura vida das cidades. No texto que dá título ao livro, “Do sentimento da natureza nas sociedades modernas”, publicado em maio de 1866, é a montanha que domina a paisagem e sua escrita. Para ele, a montanha, ou a subida e a conquista da montanha, seria a metáfora perfeita para exprimir seus ideais de solidariedade, fraternidade e liberdade entre os povos.

Mais tarde, em sua extensa obra escrita, Reclus escreveria um livro inteiramente dedicado à montanha, História de uma montanha, de 1880. Nesse livro, as ideias sobre a montanha se misturam com antigas mitologias – a montanha evocando um arquétipo abstrato, quase uma pirâmide sagrada. A montanha fez parte do imaginário europeu do século XIX e muitos pensadores se debruçaram sobre o tema no período. O filósofo alemão Friederich Nietzsche (1844-1900), por exemplo, escreveu sobre as raízes de uma montanha mágica, o Olimpo, em seu primeiro livro, O nascimento de uma tragédia no espírito da música, publicado em 1872.[2] Nietzsche contrapôs a calma e a serenidade clássicas aos espíritos dionísicos da mística, da música, da dança e da embriaguez do vinho. A montanha, na verdade, estava no centro do mito fundador da cultura grega e assim ela aparece nos escritos e desenhos de vários pensadores e artistas ao longo do século XIX – como tema, como personagem, como símbolo, como desejo de aventura.

A imagem da montanha esteve presente também em pensamentos e livros matemáticos como foi o caso do astrônomo escocês Charles Piazzi-Smith (1819-1900), que na época publicou seu livro de grande sucesso A Grande Pirâmide: seus segredos e mistérios revelados. Piazzi-Smith fez uma teoria matemática para provar que a Pirâmide de Gizé guardava uma relação geométrica e matemática especial de medidas.[3] Ao citá-lo em seu estudo, Reclus faz referência a uma espécie de matemática sagrada contida na natureza e nas montanhas.[4]

Aquele que escala uma montanha não será entregue ao capricho dos elementos como o navegador aventurado nos mares; bem menos ainda como o viajante transportado por ferrovia, um simples pacote humano tarifado, etiquetado, controlado, depois expedido a hora fixa sob a vigilância de empregados uniformizados. Tocando o solo, ele retomou o uso de seus membros e de sua liberdade. Seu olho serve-lhe para evitar as pedras da senda, medir a profundidade dos precipícios, descobrir as saliências e a anfractuosidades que facilitarão a escalada dos paredões.[5]

A natureza foi um tema clássico durante o iluminismo do século XVIII. Ao voltar-se para esse tema no texto que dá título ao livro, Reclus estava evocando diversas ideias e filósofos, como Voltaire e Rousseau, mas recolocando-os num novo contexto, o de sua época, com a forte influência romântica. O poeta inglês lorde Byron (1788-1824), George Gordon, é citado diversas vezes em sua obra como exemplo de revolucionário por sua atuação na Grécia, bem como Giuseppe Garibaldi (1807-1882), e as guerras de unificação da Itália.[6]

Cidade e natureza, montanha e nacionalidade, sentimentos e geografia são ideias aparentemente distantes que se encontram tanto ao longo deste texto especificamente, e também em toda sua obra. Reclus escreveu suas impressões sobre a natureza e a sociedade, quase como se pintasse um quadro em que as pinceladas formam a paisagem se o quadro for visto de certa distância, um quadro impressionista. Na mesma época em que Reclus editou seu livro sobre a montanha, um de seus contemporâneos, o pintor Paul Cézanne (1839-1905), começou uma série de quadros sobre o Mont Saint-Victoire, na Provence. Se o geógrafo colocou o sentimento da natureza e o poder da montanha em livros, Cézanne traduziu esses sentimentos em quadros de paisagens.[7]

Reclus é um ícone para os geógrafos, estudado e publicado há muitas décadas – é uma espécie de pai fundador, ao lado de Vidal La Blache.[8] Sua influência é comparável à de Jules Michelet (1798-1874) para os historiadores, uma inspiração, um mito, um pensador profundo e genial para sua época. Os dois, Reclus e Michelet, provavelmente se conheceram já que uma irmã de Reclus se casou com um genro do historiador.[9]

Quando o texto sobre o sentimento da natureza saiu na Revue des deux mondes, Reclus começava seu período de maior prestígio intelectual, escrevendo para uma das mais influentes revistas do mundo.[10] Quarto filho de um professor e pastor calvinista nascido numa pequena cidade do interior da França, Sainte-Foy-la-Grande, Jean-Jacques Élisée Reclus teve vários irmãos igualmente influentes no século XIX, como etnógrafo Élie, o também geógrafo Onésime, o explorador Armand, o cirurgião Paul. Com o irmão Élie, que viria a ser seu parceiro intelectual, ele cursou dois anos na faculdade de teologia protestante de Montauban, quando desistiu de seguir os passos do pai. De lá partiu para Berlim, onde começou seus estudos de geografia e tornou-se rapidamente discípulo do geógrafo alemão Carl Ritter (1779-1859).

Eram os anos 1850 e a política fervia na França. Em 2 de dezembro de 1851, Luis Napoleão Bonaparte (1808-1873), sobrinho de Napoleão, dissolveu a Assembleia Nacional Francesa para estabelecer o Segundo Império. Sob o impacto dos acontecimentos e seduzido pelos ideais socialistas, Reclus voltou à França para se engajar na luta contra o império, pela república. A partir desse momento, o geógrafo passou a escrever com propósito político, para difundir seus saberes na tentativa de ilustrar o público e fazê-lo compreender os diversos problemas do globo. Para se entender o texto “Do sentimento da natureza nas sociedades modernas”, um dos mais conhecidos do geógrafo, é preciso compreender suas andanças pelo mundo. Além disso, é o texto inspirador dos ideais de viagens e viajantes do século XIX.

Exilado da França logo após o Segundo Império ter início, Reclus passou alguns anos em Londres – onde foi até a Irlanda, que o impressionou com a fome endêmica que, de 1847, ainda castigava o país. Em Londres ele trabalhou como professor, ganhando miseravelmente até que seguiu para a América como preceptor de uma família de fazendeiros ricos, dona de plantations, que seguia para a Nova Orleans, nos Estados Unidos. Na América do Norte, Reclus viveu por dois anos, entre 1853 e 1855, onde viu e escreveu sobre a escravidão.

Seus escritos sobre os Estados Unidos representam três textos do livro agora editado, “Da escravidão nos Estados Unidos: o código negro e os escravos” (1860), Da escravidão nos Estados Unidos: os plantadores e os abolicionistas” (1861) e “John Brown” (1867), os dois primeiros publicados na Revue e o último na revista La Coopération. A experiência dos anos em que viveu no sul do país foi marcante e Reclus tornou-se um ferrenho abolicionista.

É de se notar que os anos em que habitou a plantation foram de intensa discussão política e que, pouco depois, os Estados Unidos entrariam em conflito com a Guerra de Secessão (1861-1865), sendo que os textos foram publicados a quente, ou seja, com a guerra na iminência de começar e logo depois do início. O objetivo de Reclus era entender a guerra americana e apresentá-las para os leitores de todo o mundo, dada a enorme influência da Revue no mundo.

São os Estados Unidos que servem de parâmetro para que o geógrafo entenda a América do Sul e mais especialmente o Brasil. A comparação é uma constante, como podemos notar no artigo “As repúblicas da América do Sul, suas guerras e seu projeto de federação”, publicado na Revue de 1866. No texto, a comparação com a Guerra do Paraguai (1864-1870) é direta e o geógrafo faz a mesma análise de províncias do Sul versus províncias do Norte. Da mesma maneira, o texto foi escrito a quente, no calor dos acontecimentos, e também tentava dar uma visão geral para o leitor da geografia, do povo e dos acontecimentos que se desenrolavam.

Eliesée Reclus voltou à França em agosto de 1857, quando ele encontra o pensador anarquista Mikhail Bakunin (1814-1876), de quem se tornou amigo, ao lado de seu irmão Élie. Juntos fundariam a sociedade secreta Fraternité Internationale. Entre 1867 e 1868, Reclus publicou a obra que lhe daria reconhecimento internacional, La Terre, description des phénomènes de la vie du globe. Mais tarde, esse volume se transformaria na sua maior obra, Nouvelle Geógraphie Universalle.

O livro agora publicado traz um apanhado da obra de Reclus e, entre os textos escolhidos, está um de seus mais conhecidos escritos anarquistas póstumos, “A evolução, a revolução e o ideal anarquista”. Nele o geógrafo resume sua filosofia política em escritos que estabelecem estreita ligação entre natureza, sentimentos, política e filosofia de vida – o geógrafo era vegetariano.

Elisée Reclus esteve no Brasil em julho de 1893.[11] Na ocasião, ele deu uma conferência na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (que se transformaria na Sociedade Brasileira de Geografia), fundada em 1883, pelo então senador imperial Manuel Francisco Correia (1831-1905).[12] Já era teórico mundialmente conhecido e a Sociedade fez sessão especial no dia 18 de julho apenas para recebê-lo. Reclus visitava o país para recolher subsídios para o 19º volume de sua Nouvelle Geógraphie Universalle.

A vinda de Reclus para o Brasil foi organizada e patrocinada pela editora francesa Hachette e foi a última de suas grandes viagens pelo continente americano. O Brasil realmente aparece no 19º volume da Nouvelle Geógraphie Universalle – a Amazônia e seus rios dominam a escrita e ajudam a formar o imaginário da época sobre região, com comparações com outros grandes rios de civilizações distantes, como o Nilo, no Egito. Os textos sobre a região já estavam entre as preocupações do geógrafo, que poucos anos antes havia escrito “O Brasil e a colonização: a Bacia das Amazonas e os indígenas”, para a Revue de deux mondes em 15 de junho, e “As províncias do litoral, os negros e as colônias alemãs”, em 15 de julho, ambos em 1862. Os dois textos fazem parte do volume agora editado. Poucos anos depois, em 1899, o Brasil passou a ser o personagem principal de um livro totalmente dedicado ao país, Estados Unidos do Brasil: geografia, etnografia, estatística.[13]

A influência de Reclus sobre o pensamento brasileiro do período foi grande. O geógrafo fez parte de um grupo de pensadores e cientistas estrangeiros que pensaram sobre a nação e a nacionalidade. Wilma Peres da Costa já abordou a existência desse primeiro nacionalismo brasileiro composto por uma narrativa erudita europeia de intelectuais franceses que chegaram ao Brasil com a Missão Francesa. Pouco mais tarde, a influência de viajantes e escritos de estrangeiros sobre o d. Pedro II era significativa a ponto de moldar um determinado discurso de grande impacto nos pensadores brasileiros.[14]

A maneira como o Reclus foi lido e entendido pelos brasileiros fez parte desse movimento e moldou a maneira como os próprios brasileiros se viam. Inspirado pelo romantismo, Reclus escrevia sobre um país de natureza exuberante, marcado pelas chagas da escravidão. Joaquim Nabuco certamente leu o geógrafo, bem como Euclides da Cunha. Este, por exemplo, falou da importância de Reclus para sua obra em uma carta para Coelho Neto em 30 de junho de 1908, enquanto preparava seu livro nunca realizado sobre a Amazônia, Um paraíso perdido.[15]

Para os historiadores, Reclus, o geógrafo, abre muitas portas de análise e possibilidades de conhecimento. Viagens e viajantes são a primeira a mais óbvia porta para o estudo de Reclus – mas muitas outras se entreabrem ao longo do extenso volume agora publicado, como o das relações entre Brasil e Estados Unidos, a do nascimento da geografia e das diferentes áreas humanidades, da história das cidades, das publicações e da importância da Revue des deus mondes, da história do marxismo e do anarquismo.

Notas

1. Em cada montanha, árvore e estrela – em cada nascimento/ e vida/ integrando cada sentido/ e se desdobrando dele, por trás da/ manifestação/ uma cifra mística espera dobrada.

2. Bradbury, Malcolm. O mundo moderno: dez grandes escritores. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 97-119.

3. Crease, Robert. A medida do mundo: a busca por um sistema universal de pesos e medidas. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 139-147. O astrônomo Piazzi-Smith fez sua teoria para se contrapor ao estabelecimento do sistema métrico francês. Foi seu livro que deu subsídios para que se criassem diversas sociedades antimétricas no século XIX.

4. Duarte Horta, Regina. “Natureza e sociedade, evolução e revolução: a geografia libertária de Elisée Reclus”. Revista Brasileira de História, vol. 26, n. 51, janeiro-junho 2006. Consulta 21/07/2016. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882006000100002

5. Reclus, Élisée. Do sentimento da natureza nas sociedades modernas e outros escritos. São Paulo: Intermezzo/ Edusp, 2015, p. 52.

6. Clark, John P. e Martin, Camile. Anarchy, geography, modernity: the radical social thought of Elisée Reclus. Lanham: Lexington Books, 2004, p. 247.

7. Atanassoglou-Kallmyer, Nina. Cezanne and Provence: the painter in his culture. Chicago: Chicago University Press, 2003.

8. Ver, entre tantos outros livros sobre a história da geografia, a recente publicação de Larissa Alves de Lira. O Mediterrâneo de Vidal de La Blache. São Paulo: Alameda Editorial, 2015.

9. Atanassoglou-Kallmyer, Nina. Cezanne and Provence: the painter in his culture. Chicago: Chicago University Press, 2003, p. 284.

10. Na mesma época ele também passou a fazer guias de viagem para a editora Hachette, patrocinadora de muitas de suas viagens.

11. Cardoso, Luciene Carris. “A visita de Élisée Reclus à sociedade de geografia do Rio de Janeiro”. Revista da Sociedade Brasileira de Geografia, vol. 1, n. 1, 2006 (ISSN 1980 – 9387). Consulta em 18/7/2016. (http://www.socbrasileiradegeografia.com.br/revista_sbg/luciene%20p%20c%20cardoso.html)

12. As diferenças e os conflitos entre a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) foram explorados por Luciene Carris Cardoso no artigo “Notas sobre o papel da sociedade de geografia do Rio de Janeiro e sua contribuição sobre o saber geográfico no Brasil.” Revista Fenix de História e Estudos Culturais. Vol VII, ano 7, n.2. Consulta 19/7/2016. http://www.revistafenix.pro.br/PDF23/ARTIGO_12_LUCIENE_PEREIRA_CARRIS_CARDOSO_FENIX_MAIO_AGOSTO_2010.pdf

13. Reclus, Élisée. Estados Unidos do Brasil: geografia, etnografia, estatística. Tradução e breves notas de barão de F. Ramiz Galvão e anotações sobre o território contestado pelo barão do Rio Branco. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1899.

14. Costa, Wilma Peres. Narrativas de viagem no Brasil do século XIX: formação do Estado e trajetória intelectual. In: RIDENTI, Marcelo; BASTOS, Elide; ROLLAND, Denis (Org.). Intelectuais e Estado. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2006

15. Nogueria, Nathália Sanglard de Almeida. Margear o outro: viagem, experiência e notas de Euclides da Cunha nos sertões baianos. Rio de Janeiro: tese de doutoramento, Universidade Federal Fluminense, 2013, p. 39.

Joana Monteleone – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo SP, Brasil. E-mail: [email protected]


RECLUS, Élisée. Do sentimento da natureza nas sociedades modernas e outros escritos. São Paulo: Intermezzo/Edusp, 2015. Resenha de: MONTELEONE, Joana. Elisée Reclus, o geógrafo impressionista. Almanack, Guarulhos, n.14, p. 296-302, set./dez., 2016.

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Casas importadoras de Santos e seus agentes. Comércio e cultura material (1870-1900) | Carina Marcondes Ferreira Pedro

Madame Pommery, personagem controversa de Hilário Tácito, começa no mundo dos negócios ilícitos da prostituição com sua chegada ao porto de Santos, nos primeiros anos do século XX.[1] O autor faz dela uma negociante esperta, de nacionalidade duvidosa, filha de um domador circense e de uma noviça espanhola. Como muitos outros imigrantes do período, inspiradores dessa personagem da literatura paulista, ela veio “fazer a América”, tentar a sorte numa nova terra cheia de oportunidades de negócios. A cidade de Santos era então a porta de entrada para um mundo rico, que vivia das exportações de café e das importações de mercadorias de luxo, que abasteciam São Paulo. É justamente a formação e consolidação de Santos como o local de negócios relacionados ao café, durante a Belle Époque, o tema da pesquisa, agora transformada em livro, da historiadora, Carina Marcondes Ferreira Pedro Casas importadoras de Santos e seus agentes. Comércio e cultura material (1870-1900).

Carina Marcondes Ferreira Pedro busca compreender a transformação de Santos no principal local de negócios de São Paulo no fim do século XIX, porto que exportava café e importava uma série de mercadorias, de objetos de consumo doméstico a materiais para construção. A chave para a análise dessas transformações passou pela construção da ferrovia que ligava o porto à cidade no alto da Serra. Inaugurada em 16 de fevereiro de 1867, a São Paulo Railway Company dinamizou as relações comerciais da província. A tão aguardada ligação da cidade de São Paulo com o mar não apenas possibilitou o escoamento das safras de café dos fazendeiros paulistas, e seu consequente enriquecimento, mas transformou a vida cotidiana e a sociabilidade de ambas as cidades. Além do dinheiro decorrente das exportações de café, novos hábitos também vinham no rastro da ferrovia e ligavam a então capital da província, vista como atrasada e caipira, ao resto do mundo.

A construção da ferrovia dinamizou o comércio de Santos, que já era um porto importante, mas se tornou fundamental com o trem, e ainda criou uma demanda por uma série de modificações urbanas tanto nas docas, como na própria cidade. A autora mostra em sua pesquisa como uma série de casas comerciais abriram as portas para negócios que envolviam somas consideráveis ao redor do mundo, eram os “agentes importadores” ou também chamados de “casas de importação”, que compravam mercadorias de outros países e exportavam principalmente café vindo do Oeste Paulista.

Outra chave essencial para o trabalho de Carina é entender o mundo do consumo no século XIX. Pouco estudado pela historiografia, o consumo de mercadorias importadas esteve sempre ligado à dinâmica do mundo capitalista no oitocentos. Para a antropóloga americana Mary Douglas, em seu livro clássico O mundo dos bens, a produção de mercadorias foi o que se estabeleceu como parâmetro para os estudos de economia.[2] O consumo seria relegado a uma segunda categoria de estudos, algo menor ou sem importância. Para antropóloga americana, tanto consumo como produção fariam parte de um todo, seriam dois lados de uma mesma moeda – o estabelecimento da revolução industrial e a expansão do capitalismo.

Ligado a esse novo mundo do consumo, Carina mostra como esses agentes estabeleciam contato com as casas exportadores de países produtores de mercadorias, como a Inglaterra, a Alemanha ou a França. Diz a autora: “A própria formação de um modo de vida burguês relacionado ao intenso consumo de produtos industrializados estrangeiros que foram introduzidos no país no século XIX e início do XX tem sido problemática tratada por poucos autores. No caso da região paulista, a lacuna se torna mais pronunciada em vista da própria importância que ela adquire nos processos de comércio internacional nesse período” (p. 13).

Tentar entender e fazer uma história do consumo não é fácil, já que a utilização de fontes ditas como estritamente econômicas não dá conta da complexidade do tema. Assim, o trabalho utiliza várias outras fontes para o embasamento da pesquisa. Foram analisados almanaques do período, jornais, anúncios, memórias de viajantes, legislação, correspondência diplomática, manuais de comércio e obras de propaganda governamental.

Os Almanaques são tratados de maneira especial pela autora e aparecem em quase todos os três capítulos do livro. Para a história do consumo, a utilização de almanaques como fontes de pesquisa é preciosa. Com eles, principalmente a partir das três últimas décadas do século XIX, vêm as primeiras propagandas de produtos e os primeiros anúncios. É possível assim, ver as casas importadoras, as chegadas e partidas dos navios, quem eram os negociantes de importação e exportação. Eles funcionam também como uma espécie de guia para a cidade, relevando endereços de médicos, empresários, pessoas importantes ou mesmo de lojas, escolas, hospitais.

O livro está dividido em três capítulos. O primeiro, “Santos e o comércio de importação”, dá conta das transformações urbanas pelas quais passou a cidade de Santos no período. O crescimento da cidade é visto dentro do contexto das mudanças econômicas no mundo nas três últimas décadas do século XIX. A historiadora mostra como a região do Valongo foi se valorizando com a construção da ferrovia e atraindo negociantes, alterando significativamente o tecido urbano. Assim, na mesma época, muitas ruas se dessacralizaram, ou seja, mudaram seus nomes relacionados a santidades e ao catolicismo para nomes de personalidades brasileiras ou da região.

O segundo capítulo, “As casas importadoras e suas trajetórias empresariais”, aborda as casas de importação inglesas, como a Edward Johnston & C, considerada a segunda maior firma de exportação britânica do período – ela era também a representante da companhia hamburguesa de navegação Hamburg-Süd, que tem uma extensa atividade até os dias de hoje. São analisadas casas comerciais alemãs, francesas e portuguesas. As empresas se caracterizavam pela diversidade de artigos. Assim, as firmas alemãs, como a Zerrenner, Bulow & C., traziam para o Brasil um amplo leque de bens, como ferro, aço, lubrificantes, dinamite, carbureto de cálcio, bicicletas, vinhos, biscoitos finos, queijos. A francesa Karl Valis & C. acabou por se especializar em artigos alimentares de luxo e também no comércio atacado de materiais vidrados usados para obras de água e esgoto – evidenciado a necessidade de urbanização de São Paulo na época. Já as portuguesas, como a Ferreira & C., traziam ferro e outros materiais para construção e contavam com a facilidade da língua nos seus vendedores caixeiros-ambulantes.

Finalmente, o terceiro e último capítulo trata da infinidade dos objetos importados no período. Carina Pedro retoma a ideia do historiador francês Daniel Roche, autor de História das coisas banais, para mostrar que a cidade no século XIX pode ser entendida como o centro de uma organização econômica cujo comerciante é um dos principais agentes.[3] Para Daniel Roche, “A história das atitudes em relação ao objeto e à mercadoria em nossa sociedade é aqui capital; ela postula que uma história do consumo é uma maneira de reconciliar o sujeito com o objeto, a interioridade com a exterioridade”.[4] Assim, a introdução e distribuição das mais variadas mercadorias foi uma das marcas das transformações que ocorrem a partir da década de 1870 no país e que Florestan Fernandes vai chamar de Revolução Burguesa.[5]

Para o sociólogo um dos principais agentes transformadores da sociedade no período seria o negociante. Assim, o burguês teria surgido no Brasil como uma “entidade especializada, seja na figura do agente artesanal inserido na rede de mercantilização da produção interna, seja como negociante (não importando muito seu gênero de negócios: se vendia mercadorias importadas, especulava com valores ou com seu próprio dinheiro; as gradações possuíam significação apenas para o código de honra e para a etiqueta das relações sociais e nada impedia que o usurário, embora malquisto e tido como encarnação nefasta do burguês mesquinho, fosse um mal terrivelmente necessário)”.6 Em seu estudo, ainda que circunscrito à cidade de Santos, Carina Pedro consegue recuperar a figura do negociante nas décadas finais do século XIX, inserindo-o numa rede complexa de negócios estrangeiros voltados para o mercado local, dando vida e materialidade a esse personagem complexo e fundamental.

Notas

1. TÁCITO, Hilário. Madame Pommery. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

2. DOUGLAS, Mary e ISHERWWOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora da UFMG, 2014.

3. ROCHE, Daniel. História das coisas banais: nascimento do consumo, séculos XVIII-XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

4. Idem, p. 26.

5. FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1974.

6. Idem, p. 18.

Joana Monteleone – Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).


PEDRO, Carina Marcondes Ferreira. Casas importadoras de Santos e seus agentes. Comércio e cultura material (1870-1900). São Paulo: Ateliê, 2015. Resenha de: MONTELEONE, Joana. Um mundo de mercadorias na Belle Époque de Santos. Almanack, Guarulhos, n.11, p.868-870, set./dez., 2015.

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