Casas importadoras de Santos e seus agentes. Comércio e cultura material (1870-1900) | Carina Marcondes Ferreira Pedro

Madame Pommery, personagem controversa de Hilário Tácito, começa no mundo dos negócios ilícitos da prostituição com sua chegada ao porto de Santos, nos primeiros anos do século XX.[1] O autor faz dela uma negociante esperta, de nacionalidade duvidosa, filha de um domador circense e de uma noviça espanhola. Como muitos outros imigrantes do período, inspiradores dessa personagem da literatura paulista, ela veio “fazer a América”, tentar a sorte numa nova terra cheia de oportunidades de negócios. A cidade de Santos era então a porta de entrada para um mundo rico, que vivia das exportações de café e das importações de mercadorias de luxo, que abasteciam São Paulo. É justamente a formação e consolidação de Santos como o local de negócios relacionados ao café, durante a Belle Époque, o tema da pesquisa, agora transformada em livro, da historiadora, Carina Marcondes Ferreira Pedro Casas importadoras de Santos e seus agentes. Comércio e cultura material (1870-1900).

Carina Marcondes Ferreira Pedro busca compreender a transformação de Santos no principal local de negócios de São Paulo no fim do século XIX, porto que exportava café e importava uma série de mercadorias, de objetos de consumo doméstico a materiais para construção. A chave para a análise dessas transformações passou pela construção da ferrovia que ligava o porto à cidade no alto da Serra. Inaugurada em 16 de fevereiro de 1867, a São Paulo Railway Company dinamizou as relações comerciais da província. A tão aguardada ligação da cidade de São Paulo com o mar não apenas possibilitou o escoamento das safras de café dos fazendeiros paulistas, e seu consequente enriquecimento, mas transformou a vida cotidiana e a sociabilidade de ambas as cidades. Além do dinheiro decorrente das exportações de café, novos hábitos também vinham no rastro da ferrovia e ligavam a então capital da província, vista como atrasada e caipira, ao resto do mundo.

A construção da ferrovia dinamizou o comércio de Santos, que já era um porto importante, mas se tornou fundamental com o trem, e ainda criou uma demanda por uma série de modificações urbanas tanto nas docas, como na própria cidade. A autora mostra em sua pesquisa como uma série de casas comerciais abriram as portas para negócios que envolviam somas consideráveis ao redor do mundo, eram os “agentes importadores” ou também chamados de “casas de importação”, que compravam mercadorias de outros países e exportavam principalmente café vindo do Oeste Paulista.

Outra chave essencial para o trabalho de Carina é entender o mundo do consumo no século XIX. Pouco estudado pela historiografia, o consumo de mercadorias importadas esteve sempre ligado à dinâmica do mundo capitalista no oitocentos. Para a antropóloga americana Mary Douglas, em seu livro clássico O mundo dos bens, a produção de mercadorias foi o que se estabeleceu como parâmetro para os estudos de economia.[2] O consumo seria relegado a uma segunda categoria de estudos, algo menor ou sem importância. Para antropóloga americana, tanto consumo como produção fariam parte de um todo, seriam dois lados de uma mesma moeda – o estabelecimento da revolução industrial e a expansão do capitalismo.

Ligado a esse novo mundo do consumo, Carina mostra como esses agentes estabeleciam contato com as casas exportadores de países produtores de mercadorias, como a Inglaterra, a Alemanha ou a França. Diz a autora: “A própria formação de um modo de vida burguês relacionado ao intenso consumo de produtos industrializados estrangeiros que foram introduzidos no país no século XIX e início do XX tem sido problemática tratada por poucos autores. No caso da região paulista, a lacuna se torna mais pronunciada em vista da própria importância que ela adquire nos processos de comércio internacional nesse período” (p. 13).

Tentar entender e fazer uma história do consumo não é fácil, já que a utilização de fontes ditas como estritamente econômicas não dá conta da complexidade do tema. Assim, o trabalho utiliza várias outras fontes para o embasamento da pesquisa. Foram analisados almanaques do período, jornais, anúncios, memórias de viajantes, legislação, correspondência diplomática, manuais de comércio e obras de propaganda governamental.

Os Almanaques são tratados de maneira especial pela autora e aparecem em quase todos os três capítulos do livro. Para a história do consumo, a utilização de almanaques como fontes de pesquisa é preciosa. Com eles, principalmente a partir das três últimas décadas do século XIX, vêm as primeiras propagandas de produtos e os primeiros anúncios. É possível assim, ver as casas importadoras, as chegadas e partidas dos navios, quem eram os negociantes de importação e exportação. Eles funcionam também como uma espécie de guia para a cidade, relevando endereços de médicos, empresários, pessoas importantes ou mesmo de lojas, escolas, hospitais.

O livro está dividido em três capítulos. O primeiro, “Santos e o comércio de importação”, dá conta das transformações urbanas pelas quais passou a cidade de Santos no período. O crescimento da cidade é visto dentro do contexto das mudanças econômicas no mundo nas três últimas décadas do século XIX. A historiadora mostra como a região do Valongo foi se valorizando com a construção da ferrovia e atraindo negociantes, alterando significativamente o tecido urbano. Assim, na mesma época, muitas ruas se dessacralizaram, ou seja, mudaram seus nomes relacionados a santidades e ao catolicismo para nomes de personalidades brasileiras ou da região.

O segundo capítulo, “As casas importadoras e suas trajetórias empresariais”, aborda as casas de importação inglesas, como a Edward Johnston & C, considerada a segunda maior firma de exportação britânica do período – ela era também a representante da companhia hamburguesa de navegação Hamburg-Süd, que tem uma extensa atividade até os dias de hoje. São analisadas casas comerciais alemãs, francesas e portuguesas. As empresas se caracterizavam pela diversidade de artigos. Assim, as firmas alemãs, como a Zerrenner, Bulow & C., traziam para o Brasil um amplo leque de bens, como ferro, aço, lubrificantes, dinamite, carbureto de cálcio, bicicletas, vinhos, biscoitos finos, queijos. A francesa Karl Valis & C. acabou por se especializar em artigos alimentares de luxo e também no comércio atacado de materiais vidrados usados para obras de água e esgoto – evidenciado a necessidade de urbanização de São Paulo na época. Já as portuguesas, como a Ferreira & C., traziam ferro e outros materiais para construção e contavam com a facilidade da língua nos seus vendedores caixeiros-ambulantes.

Finalmente, o terceiro e último capítulo trata da infinidade dos objetos importados no período. Carina Pedro retoma a ideia do historiador francês Daniel Roche, autor de História das coisas banais, para mostrar que a cidade no século XIX pode ser entendida como o centro de uma organização econômica cujo comerciante é um dos principais agentes.[3] Para Daniel Roche, “A história das atitudes em relação ao objeto e à mercadoria em nossa sociedade é aqui capital; ela postula que uma história do consumo é uma maneira de reconciliar o sujeito com o objeto, a interioridade com a exterioridade”.[4] Assim, a introdução e distribuição das mais variadas mercadorias foi uma das marcas das transformações que ocorrem a partir da década de 1870 no país e que Florestan Fernandes vai chamar de Revolução Burguesa.[5]

Para o sociólogo um dos principais agentes transformadores da sociedade no período seria o negociante. Assim, o burguês teria surgido no Brasil como uma “entidade especializada, seja na figura do agente artesanal inserido na rede de mercantilização da produção interna, seja como negociante (não importando muito seu gênero de negócios: se vendia mercadorias importadas, especulava com valores ou com seu próprio dinheiro; as gradações possuíam significação apenas para o código de honra e para a etiqueta das relações sociais e nada impedia que o usurário, embora malquisto e tido como encarnação nefasta do burguês mesquinho, fosse um mal terrivelmente necessário)”.6 Em seu estudo, ainda que circunscrito à cidade de Santos, Carina Pedro consegue recuperar a figura do negociante nas décadas finais do século XIX, inserindo-o numa rede complexa de negócios estrangeiros voltados para o mercado local, dando vida e materialidade a esse personagem complexo e fundamental.

Notas

1. TÁCITO, Hilário. Madame Pommery. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

2. DOUGLAS, Mary e ISHERWWOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora da UFMG, 2014.

3. ROCHE, Daniel. História das coisas banais: nascimento do consumo, séculos XVIII-XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

4. Idem, p. 26.

5. FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1974.

6. Idem, p. 18.

Joana Monteleone – Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).


PEDRO, Carina Marcondes Ferreira. Casas importadoras de Santos e seus agentes. Comércio e cultura material (1870-1900). São Paulo: Ateliê, 2015. Resenha de: MONTELEONE, Joana. Um mundo de mercadorias na Belle Époque de Santos. Almanack, Guarulhos, n.11, p.868-870, set./dez., 2015.

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O intelecto em Ibn Sina (Avicena) – ATTIE FILHO (RFA)

ATTIE FILHO, Miguel. O intelecto em Ibn Sina (Avicena). Cotia: Ateliê, 2007. Resenha de: NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro do. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.21, n.28, p.255-258, jan./jun., 2009.

Aquele que conhecemos simplesmente como Avicena, tinha um nome digno de um persa (nasceu em Bukhara em 980 e morreu em Hamadan em 1037) de cultura árabe, já que não havia ainda paulistas de quatrocentos anos: Abu ‘Ali Al-Hussein Ibn ‘Abd Allah Ibn Al-Hassan Ibn ‘Ali Ibn Sina. Foi, como se diz, um homem dos sete instrumentos: médico, exerceu o cargo de vizir (ao pé da letra “aquele que carrega o fardo”, na falta de um piano, naturalmente), deixo uma extensa obra (os catálogos enumeram mais de 270 títulos a ele atribuídos) e ainda viajou pela sua terra natal e foi preso…

Entre os livros que escreveu, pelo menos dois tiveram uma importância extraordinária tanto no mundo de língua árabe como no Ocidente latino: o Canon de medicina, que foi (como o próprio título indica) canônico no estudo da arte médica, pelo menos do século XII ao XVI na Europa latina) e a enciclopédia Al-shifa (A cura) que os latinos utilizaram, parafrasearam, copiaram e pilharam de todos os modos possíveis e imagináveis. Esta pretendia reunir o que havia de melhor em matéria de conhecimentos científicos e filosóficos, no que dizia respeito “a todas as coisas cognoscíveis e mais algumas outras,” isto é, o conhecimento da organização e dos procedimentos próprios do pensamento humano (lógica), o conhecimento das coisas materiais (ciência da natureza ou física), os conhecimentos matemáticos (aritmética, geometria, música e astronomia – o quadrívio da Antiguidade Tardia e da Idade Média) e aquele campo de conhecimentos que Aristóteles tinha denominado filosofia primeira ou teologia, isto é, a metafísica. A lógica constitui uma espécie de propedêutica. As três grandes áreas seguintes, compunham o conhecimento teórico, vindo depois delas o estudo da praxis humana (ética e política). Assim como Avicena adota na organização do estudo da lógica a ordem dos escritos do Organon aristotélico, segue também, no que se refere ao estudo da natureza a ordem dos tratados aristotélicos a respeito (METEOROLÓGICOS, Liv. I, c. 1 ). Isto não significa que Avicena se restrinja a comentar os textos de Aristóteles. Inspirandose deste e de outras fontes, procede a uma reelaboração do que Aristóteles dizia. O estudo da natureza tem início com a formulação das condições gerais dos seres dotados de matéria e sujeitos à mudança, seguindo-se o estudo dos seres inanimados e dos animados, isto é, vivos, pois dotados do princípio vivificante, a alma (al-nafs, em árabe). Deste modo o Livro da alma (Kitab alnafs) é um estudo de abertura do que diz respeito aos vegetais e animais, ocupando o sexto lugar na sequência dos tratados; daí o nome que recebeu muitas vezes na tradução latina “Liber Sextus de Naturalibus”.

O “Livro da alma” ou o De anima de Avicena ou o “Livro sexto a respeito do que é natural” tem também, grosso modo, uma organização paralela ao Peri Psychés de Aristóteles, mas Avicena inova em vários pontos. Entre outros, na definição da alma como subsistente por si mesma; no detalhamento da teoria dos sentidos internos – tema da dissertação de mestrado do professor Miguel Attie Filho na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), publicada sob o título Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena). Porto Alegre: Edipucrs, 2000; no estatuto e funcionamento do intelecto humano. Este terceiro tema é que dá título ao livro do Professor Miguel e foi, antes de se tornar livro, o assunto de sua tese de doutorado defendida no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP).

Avicena reinterpreta o livro III, capítulos 4-5 do Peri Psychés dentro de um quadro cósmico, em que o intelecto humano aparece como a última de uma hierarquia de inteligências ligadas às esferas dos astros. O intelecto humano de que cada indivíduo é portador é simplesmente receptivo em relação ao que, em liguagem plotiniana, é denominado o “doador das formas”. Este recebe tal nome porque, sendo a inteligência imediatamente superior ao intelecto humano, ligada à esfera da Lua, infunde as formas na matéria terrestre, para que as coisas deste mundo existam e no intelecto passivo humano para que sejam conhecidas. Mas, para que isto se realize é necessária uma preparação que é constituída por todo o procedimento, denominado na tradição aristotélica de “abstração da matéria sensível e das condições materiais”, que parte da atividade dos sentidos externos, prossegue com a dos sentidos internos e dispõe o intelecto passivo para que este se volte para a inteligência agente ou doador das formas. Assim sendo, é possível dizer que Avicena procede a uma síntese da tradição aristotélica com um arcabouço neo-platônico. Daí, inclusive, a imagem, por ele utilizada, das “duas faces da alma”, uma volta para o mundo material e outra para o mundo não-material ou espiritual, consistindo a plena realização da alma humana (felicidade) em sua união com a inteligência agente e, através desta, com a inteligência primeira.

O livro, que o professor Miguel dá a público, O intelecto em Ibn Sina (Avicena), retraça o que foi aqui resumido, em sua Introdução e capítulo 1º, tratando mais detalhadamente do intelecto nos capítulos 2º e 3º. Apresenta também em anexo uma tradução do texto de Avicena sobre a inteligência ativa e a inteligência passiva (LIVRO DA ALMA, liv. III, seção 5), feita diretamente do texto árabe e acompanhada da tradução latina medieval. É proposta uma interpretação original desta passagem, na medida em que o intelecto passivo não estaria retido exclusivamente ao papel de puro receptor do inteligível, já dado como tal na inteligência agente, mas a ele se atribuiria uma participação mais ativa no processo de intelecção e se entenderia a participação da inteligência agente acentuando sua analogia com o papel da luz na visão sensível e não como uma fornecedora de formas inteligíveis inteiramente acabadas.

O livro do professor Miguel aponta no seu capítulo 3º para as discussões sobre os intelectos agente e passivo após Avicena, tendo atingido sua culminância na Universidade de Paris no século XIII. No final da década de 60 e no início da década seguinte deste século, tal debate movimentou as Faculdades de Artes e de Teologia, nele participando alguns mestres de ambas (Boaventura, Tomás de Aquino, Siger de Brabante, Boécio de Dácia). Este debate girou em torno de Averrois (Ibn Rushd, Córdova, 1126-Marrakech, 1198), que sustentava uma concepção sobre o intelecto, podendo ser considerada mais radical do que a de Avicena, pois afirmava que, tanto o intelecto possível como o agente eram instâncias transcendentes aos indivíduos humanos, sendo estes dotados apenas dos sentidos externos e internos. Mas, antes de se avirem com Averrois, os mestres da Faculdade de teologia tiveram de enfrentar a tese aviceniana de que cada indivíduo humano é dotado de um intelecto receptivo, mas que o intelecto produtor do inteligível não é individual e sim uma substância não material, transcendente aos indivíduos e única para toda a humanidade.

Talvez, ao percorrer os avatares das teorias sobre o intelecto, de Aristóteles a Avicena e Averrois e à Universidade de Paris no século XIII, alguém possa dizer: muito bem, tudo isso são águas passadas, quando muito um passeio por entre ruínas do passado ou por um cemitério de ideias e doutrinas. Seria, no entanto, permitido duvidar, sem necessariamente pretender ser paradoxal. Relembremos apenas que Boaventura e, particularmente, Tomás de Aquino se opuseram, neste tópico, tanto a Avicena quanto a Averrois, para defender a tese de que cada indivíduo humano é que pensa, sendo então dotado da capacidade, tanto de produzir o universal inteligível, quanto de recebê-lo e exprimi-lo num conceito ou numa proposição afirmativa ou negativa. Assim sendo, como o professor Alain de Libera tem insistido, numa “hermeneutica do sujeito” é preciso reservar um lugar, não só para Agostinho (sempre citado), mas também para a polêmica medieval sobre a “unidade do intelecto” (quase nunca lembrada). O livro do professor Miguel é, então, uma excelente apresentação, tanto deste debate, como de aspectos importantíssimos que o condicionaram e lhe deram origem. Trata-se de um trabalho maduro, de alguém que se ocupa com o tema já há um bom tempo, tendo escrito não só o livro já citado sobre Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena), mas também uma apresentação mais geral da Falsafa, A filosofia entre os árabes e tem no prelo uma tradução, diretamente do original árabe do Livro da alma de Avicena. Além do mais, o leitor será premiado com um trabalho editorial impecável e uma prosa elegante e agradável. Salam!

Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento – Doutor em Filosofia pela Universidade de Montreal, Canadá. Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP – Brasil. E-mail: [email protected]

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