The Walking Qur’an: islamic education, embodied knowledge and history in West Africa / Rudolph Ware III

O crescimento dos estudos africanos no Brasil, nas últimas décadas, evidencia a necessidade de expandir os objetos de análise para além das relações históricas e culturais afro-brasileiras pautadas na escravidão. Neste processo de emancipação da História da África, um novo tema emerge na agenda dos pesquisadores brasileiros: o Islã. Abordado em publicações pontuais2, o estudo de práticas, crenças, experiências e relações sociais, culturais, econômicas e políticas muçulmanas mostra-se uma necessidade inescapável à compreensão de historicidades africanas, passadas e presentes. A demografia torna inquestionável o papel desempenhado pela África na comunidade islâmica global: a Nigéria possui uma população muçulmana maior que o Irã, maior que o dobro presente no Iraque e que o triplo da Síria; na Etiópia, há mais muçulmanos que na Arábia Saudita; no Senegal, há mais que na Jordânia e na Palestina juntas3. Um peregrino que sair de Dacar poderá cruzar o continente, de oeste a leste, até atingir as margens do Mar Vermelho, andando somente por terras muçulmanas. O Islã, portanto, não é um fenômeno externo à história da África.

Este é o tema central do trabalho de Rudolph Ware, atualmente professor na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos (EUA), cujo objetivo é evidenciar como a experiência da educação islâmica moldou aspectos da história da África Ocidental no último milênio. “The Walking Qur’na” cumpre a importante tarefa de chamar a atenção para esta realidade, muitas vezes desprezada tanto por pesquisadores de História da África quanto de História Islâmica: o Islã africano costuma ser visto como “orientalista” demais para interessar aos primeiros; “africanizado” demais para os segundos. Além disso, a mais importante contribuição do autor é oferecer-nos uma obra inaugural, na qual a educação e a produção de conhecimentos islâmicos ocupam posição de destaque.

Publicado em 2014, o livro é uma versão expandida da tese defendida por Ware em 2004, na Universidade da Pensilvânia (EUA). Nos 10 anos, ele transformou seu estudo sobre educação corânica no Senegal do século XX em importante volume amparado na longa duração, que defende a especificidade e o resguardo das tradições islâmicas na África Ocidental, desde o século XI até as transformações em curso a partir do período pós-1945. Organizado em cinco capítulos, o livro é composto por uma introdução teórica, seguida de um capítulo no qual os principais conceitos – educação, epistemologia islâmica e incorporação (embodiment) – são apresentados. Na sequência, Ware opta por uma organização cronológica para analisar os impactos da educação corânica no Senegal, evidenciando como a cronologia política dialogou com transformações sociais protagonizadas pelos muçulmanos.

Os capítulos abordam a formação de um clero islâmico (c.1000-1770); escravidão e revoluções marabúticas na Senegâmbia (1770-1890); sufismo e mudança social sob o colonialismo francês (1890-1945); reforma epistemológica ou “desincorporação” do conhecimento no Senegal pós-1945. Suas fontes são textos clássicos de tradições islâmicas concernentes à instrução religiosa, oralidades, notas de cientistas sociais do imperialismo europeu, narrativas ficcionais e documentos de arquivos senegaleses, ingleses e franceses, além de observações participantes no Senegal. O argumento fundamental da obra é que o corpo humano foi o vetor primordial dos saberes islâmicos no período clássico, nisto incluído o aprendizado esotérico como princípio ortodoxo do Islã. Daí deriva toda a narrativa: uma vez que o corpo é o Alcorão que anda, ou seja, o livro sagrado memorizado e integrante do corpo físico, toda violência sofrida pelos portadores da revelação seria encarada por seus correligionários como ataque à própria palavra de Deus.

Central na abordagem é o terceiro capítulo, no qual Ware analisa as guerras marabúticas, que marcaram a África Ocidental nos séculos XVIII e XIX. Em sua interpretação, elas corresponderam ao esforço de clérigos islâmicos para impedir a escravização dos muçulmanos. As relações raciais construídas nesse contexto seriam fundamentais à compreensão posterior do Islã praticado pelas populações negras, bem como à produção de discursos civilizadores europeus. Estes, por sua vez, clamariam pela primazia da abolição da escravidão no século XIX, apropriando-se de uma ideia produzida e desenvolvida pelos próprios marabus no final do século XVIII. Não obstante, ao analisar as relações entre Islã e escravidão, o autor produz certa essencialização de personagens africanos, como o Almaami ‘Abdul-Qadir Kan ou o cheikh Amadu Bamba, nutrida por apropriação entusiasmada de narrativas biográficas e tradições orais4. Contudo, isto não reduz o valor do trabalho realizado, uma vez que não compromete o centro da questão.

O trabalho de Ware carrega o grande mérito de evidenciar uma perspectiva epistemológica da educação islâmica com vistas à formação do indivíduo por completo – que envolve valores, comportamentos e conhecimento intelectual. Tal epistemologia, ausente na tradição racionalista ocidental e marcada por castigos físicos, memorização e exposição a situações humilhantes (como a necessidade de a criança peregrinar pelas ruas pedindo esmolas, atividade cuja justificativa é formação do caráter humilde), muitas vezes é entendida como violência, atraindo campanhas de organizações internacionais, governamentais e não governamentais, pela sua supressão. Este é o fio condutor da narrativa, com ênfase no processo de incorporação do Alcorão, performance corporal das práticas religiosas, educação do comportamento e valores, mais do que aprendizado asséptico de conhecimentos abstratos.

Ware analisa a epistemologia associada à incorporação de saberes e adesão ao poder atribuído à palavra do Alcorão, capaz de curas e proteção, cujo aprendizado é tanto intelectual como físico – a palavra deve, literalmente, ser ingerida na água que lava os quadros nos quais os estudantes escreveram suas lições. Ao afirmar que esta orientação decorre do Islã clássico, e não de um processo posterior de africanização, ele se posiciona contrário à tese que estabelece a supremacia árabe na condução e caracterização da comunidade islâmica. Tal tese, estabelecida no início do século XX a partir do colonialismo francês na África, na comparação entre o Islã no Senegal e na Argélia, atribuía caráter inferior ao Islam Noir, o Islã praticado pelos povos negros. Entretanto, ao combater tal interpretação, Ware acaba por inverter o prisma de sua análise. Trata-se, agora, de afirmar que, a despeito das transformações vivenciadas no restante da comunidade islâmica, a “África Ocidental continua a preservar a forma original de educação corânica e suas respectivas disposições corpóreas para o conhecimento”5. Tal afirmação parece estabelecer um novo essencialismo, semelhante àquele produzido pelos colonialistas, mas em direção oposta.

Decerto, sua interpretação é desafiadora e instigante, sobretudo por reequacionar o papel do Islã na África na comunidade global e trazer sua contribuição no campo dos saberes religiosos para o primeiro plano do debate. Contudo, sua premissa traz em si uma reapropriação das teses racialistas, que outrora viam o Islã na África como heterodoxo e inferior. Agora, caberia considerá-lo como indisputavelmente verdadeiro, superior àquele praticado pelos árabes (a quem muçulmanos mourides senegaleses afirmariam que Maomé teria feito grandes críticas6), tributário aos primeiros muçulmanos, visto que a religião teria chegado ao continente africano no ano de 616, antes mesmo do movimento da Hégira – migração de Meca à Medina, que marca o início do calendário muçulmano7. Eis, pois, uma perspectiva afrocêntrica que corre o sério risco de essencializar aquilo que busca historicizar8.

Ao longo do livro, papel importante é atribuído à forma de transmissão de conhecimentos: neste paradigma, uma pessoa não deve acessar um dado saber através de estudo individual, literal e amparado numa racionalidade externa ao sujeito. Antes, este procedimento é entendido pelo autor como decorrente da modernização cartesiana e da racionalidade iluminista, vistas como irreconciliáveis com a corporeidade, a mística e com a relação direta estabelecida entre mestre e discípulo na produção e divulgação de saberes muçulmanos, presentes num modelo clássico. Ware argumenta que a África foi a única região que conseguiu manter a forma clássica de educação corânica, abandonada pelo restante do mundo muçulmano em função da expansão dos valores racionalistas europeus. Portanto, atribui à Europa a gênese do que considera como traços fundamentais de movimentos como o salafismo e wahabismo: a ênfase em interpretações literais como supostamente autênticas, resistência ao Islã místico e às práticas de incorporação, vistas como expressões heterodoxas.

Assim, afirma que o Islã árabe foi corrompido pelo colonialismo europeu, uma vez que identifica os traços fundamentais de correntes como o islamismo, wahabismo e salafismo como decorrentes de um processo de desincorporação, expressão exotérica (voltada para fora do indivíduo, em oposição à esotérica, ocupada com a internalização dos saberes, seja através da memorização ou do consumo físico da palavra) e racionalizada, próprias do pensamento cartesiano e iluminista. Neste sentido, argumenta que a concepção racialista do Islam Noir foi, de forma irônica, salutar para preservar a identidade muçulmana da região. Os franceses, ao acreditarem que o Islã senegalês era inferior ao árabe e, do ponto de vista político, não oferecia riscos às pretensões coloniais, teriam limitado a circulação dos muçulmanos negros no exercício da peregrinação a Meca e estabelecido redes de censura à produção em língua árabe que chegava ao Senegal. Este processo, cujo objetivo era limitar ideias pan-islâmicas e anticoloniais na África Ocidental Francesa, teria resguardado a religiosidade islâmica na região ante a influência modernizante árabe, permitindo à religião e às formas de transmissão a manutenção de disposições corpóreas, vistas como fundamentais à prática9. O restabelecimento de comunicações entre a África Ocidental e os países de língua árabe, após 1945, teria acelerado o processo de desincorporação, iniciado com a oferta de educação colonial nas escolas francesas, e atribuído a ele novo sentido, agora estritamente religioso.

O autor considera a incorporação e a busca pela reprodução do comportamento de Maomé como características fundamentais e universais do mundo islâmico clássico, corrompidas pela modernização que se pretende ortodoxa. Operando um pensamento indutivo, Ware parte da análise das práticas decorrentes da escola de jurisprudência maliquita, largamente presente no Magrebe e na África Ocidental, e universaliza suas conclusões. Este processo permite-lhe atribuir tal modernização a uma suposta contaminação ocidental do Islã. Esta conclusão, contudo, carece de análise mais cuidadosa das relações de outras escolas de jurisprudência islâmica com a produção e exercício dos saberes religiosos. Uma vez que suas referências remetem à fiqh maliquita, pode-se perguntar se as orientações sunitas das escolas shafita, hambalita e hanafita seriam as mesmas10, além das disposições xiitas e ibaditas. De todo modo, sua explanação torna indubitável o desenvolvimento de uma nova epistemologia na África Ocidental, seja ela procedente da cultura ocidental ou de outra orientação islâmica.

“The Walking Qur’na” é um livro de grande importância aos estudos sobre o Islã na África. Elaborado a partir de grande diversidade documental, tem o mérito de conseguir realizar exatamente o que propõe: o estudo da educação islâmica ao longo de um milênio. Um grande desafio que Rudolph Ware consegue superar, trazendo novas e instigantes perspectivas ao debate da História da África diretamente atrelada ao Islã. O livro cumpre o papel de açular o leitor, levá-lo a refletir sobre categorias muitas vezes cristalizadas, fomentar curiosidades e estimular o debate sobre um tema tão fascinante quanto desprezado por grande parte da historiografia sobre a África. A inflexão epistemológica central à proposta torna-o parada obrigatória a todos os estudiosos do tema, ensinando que a história do conhecimento é fundamental ao conhecimento da História.

Thiago Henrique Mota – Doutorando em História em regime de cotutela entre UFMG e Universidade de Lisboa. Bolsista FAPEMIG. E-mail: [email protected].


WARE III, Rudolph T. The Walking Qur’an: islamic education, embodied knowledge and history in West Africa. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2014. 330p. Resenha de: MOTA, Thiago Henrique. Epistemologia islâmica como fio narrativo da História na África Ocidental. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.22, p.232-237, 2016. Acessar publicação original. [IF].

O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta | Beatriz Bissio

Nos últimos anos, o Brasil tem se inserido no mundo na condição de potência emergente, buscando consolidar-se no espaço internacional. Na academia, este processo tem se refletido na ampliação dos temas de pesquisas, destacadamente nas Humanidades. Notamse esforços em incorporar África e América Latina na agenda de estudos, produzindo diálogos e comparações úteis ao acréscimo do conhecimento e incorporação da diversidade. Entretanto, outras regiões do globo, como o mundo árabe-islâmico, permanecem menos exploradas. Entre os trabalhos dedicados a este tema, destaca-se a contribuição da professora do Departamento de Ciência Política da UFRJ, Beatriz Bissio, aqui resenhada.

O livro O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta é marcado pela trajetória da autora. Uruguaia naturalizada brasileira, Bissio atuou muitos anos como jornalista. Cobriu guerras de libertação nacional em Angola e em Moçambique, registrou o apartheid sul-africano e noticiou conflitos no Oriente Médio. Ao percorrer os países islâmicos, diz-nos que ficou profundamente marcada pela errônea tese de que existe uma profunda alteridade entre o mundo árabe-islâmico e o Ocidente. Munida desta inquietação, graduou-se em Ciências Sociais (PUC-RJ) e doutorou-se em História (UFF). Fruto de pesquisa realizada no doutorado, o livro analisa a civilização árabe-islâmica no século XIV, destacando o espaço como categoria apta à integração do mundo muçulmano, num período de fragilização política e cultural do Magrebe.

Afastando-se da perspectiva orientalista que circunscreve o mundo árabe-muçulmano à condição de exótico [2], Beatriz Bissio busca compreendê-lo a partir de dois de seus próprios pensadores: Ibn Battuta e Ibn Khaldun. O primeiro foi um viajante marroquino nascido em Tânger, em 1304, autor de Através do Islã, um relato de suas extensas viagens, aproximadamente 120 mil quilômetros percorridos em quase três décadas. O outro, Ibn Khaldun, era historiador e também viajante, nascido em Túnis, em 1332, autor do Livro das Experiências, em cuja primeira parte, Muqaddimah (ou Os prolegômenos da história universal) está o foco da autora, que complementa suas análises com as outras partes da obra, a História dos Berberes e a Autobiografia.

Dividido em duas partes e sete capítulos, o livro traz a preocupação de quem escreve sabendo que grande parte de seu público tem pouco domínio do assunto sem, no entanto, frustrar aqueles já versados no tema. Nos três capítulos da primeira parte, Bissio apresenta o mundo árabe-islâmico, localiza o leitor no Mediterrâneo do século XIV (com vários mapas) e apresenta suas personagens e fontes. A segunda parte é formada por quatro capítulos, dedicada à verticalização da análise das representações do espaço no medievo islâmico. A autora analisa o conceito de civilização presente nas obras, sobretudo na Muqaddimah, o papel da viagem na compreensão e internalização do espaço no mundo árabe-muçulmano, suas formas de representação na cartografia e nos saberes científicos da época e a hierarquização do espaço: o urbano, em função da mesquita; o território em função de Meca.

No século IX, desenvolvia-se na Espanha e no Magrebe islâmicos um gênero literário dedicado a descrever o espaço: os relatos de viagem. Decorrentes da exigência religiosa de realizar a peregrinação a Meca, aplicável a todo fiel saudável e com condições financeiras, os relatos foram produzidos por vários agentes: viajantes, espiões, mercadores, embaixadores. A palavra rihla, termo árabe para viagem, périplo, logo se tornou o nome do gênero. No século XIV, a rihla de Ibn Battuta tornava-se excepcional: saindo do Marrocos, o autor percorreu Egito, Palestina, Síria, Iraque, Irã, península Arábica, China, Índia, Afeganistão, Turquia, Rússia, Iêmen, Omã… motivado pela busca por conhecimento ao longo espaço islâmico.

O espaço é definido através da oposição entre os territórios do islamismo (dar alIslam) e aqueles ocupados pelos infiéis (dar al-kfur) e dedicados à guerra (dar al-harb), cuja incorporação nas terras do islã, acreditava-se, aconteceria mais cedo ou mais tarde. Essas definições acerca da natureza do espaço são importantes para a compreensão das obras de Khaldun e Battuta. O primeiro, modelo de sábio erudito islâmico, dedica-se na Muqaddimah a compreender as leis universais da sociedade – ciência que afirma ser sua criação – através do estudo e da viagem pelos espaços islâmicos, tendo o Magrebe como seu grande laboratório. Já Battuta dedica-se a analisar e vivenciar a unidade formada neste espaço. Apesar de cultural e historicamente heterogêneo, a fé islâmica e a língua árabe fizeram dele um território.

Recorrendo a edições dos textos de Battuta e Khaldun em diferentes idiomas, embora não no árabe, Bissio destaca o papel do espaço e da viagem na caracterização da identidade muçulmana do século XIV e anteriores, apontando a valoração atribuída pela religião islâmica à busca do conhecimento. Através da expansão muçulmana, desde o século VII, formou-se um extenso tecido social que, embora forjado sobre diversos ecossistemas e integrando povos culturalmente muito distintos – desde a Índia até a Espanha – manteve elementos de uma identidade comum: o idioma árabe, considerado sagrado e perfeito por ter sido a escolha de Deus para anunciar sua mensagem ao mundo, através de Maomé; e a fé islâmica, responsável pela unidade dos fiéis no corpo da Umma, a comunidade muçulmana que supera fronteiras políticas e étnicas diante da supremacia religiosa.

Dada a amplitude desta ocupação, a análise de referenciais da geografia cultural é central à discussão de Bissio. Conceitos como espaço social e lugar, aplicados à concepção da identidade, permeiam sua discussão, marcando o pertencimento e a exclusão na sociedade islâmica. Centrada no processo de urbanização, a fé muçulmana encontrou local privilegiado para sua divulgação nas cidades, organizando o espaço e caracterizando as relações sociais ali estabelecidas. A cidade construiu-se em torno da mesquita, onde coabitavam profissão de fé, exercício do poder político e jurídico e práticas educacionais. No plano territorial, o desenvolvimento da cartografia manteve-se ativo durante a expansão muçulmana, vistas as exigências dos Cinco Pilares do islamismo [3], dentre as quais se destacam a necessidade de orar cinco vezes ao dia na direção de Meca e realizar, ao menos uma vez na vida, a peregrinação aos lugares sagrados do Islã. O domínio do espaço era condição para exercício da fé e foi a comunhão religiosa sobre o espaço que garantiu a continuidade da Umma.

O exercício da justiça árabe-muçulmana fazia-se a partir do Corão, o livro sagrado, e da Sunna, a compilação dos ditos e feitos do Profeta. Com o aumento da complexidade social árabe-islâmica, fazia-se necessário coletar o máximo de informações úteis à construção da jurisprudência, visto esta basear-se nos exemplos advindos da vida e obra de Maomé. O objetivo inicial da viagem, portanto, era a coleta dos hadiths: atitudes, decisões e silêncios de Maomé, que compõem a Sunna e caracterizam o exercício da justiça islâmica na xaria. Através da viagem, buscava-se reconstruir as experiências do Profeta, pela coleta de tradições junto aos familiares daqueles que conviveram com ele. A viagem levava ao conhecimento.

Além do acesso ao saber, a escrita geográfica trazia à luz a grandiosidade do mundo construído pelos muçulmanos. Este, entretanto, vivia momentos de crise. No século XIV, o Mediterrâneo árabe caia diante dos impactos da Peste Negra e da fragmentação política. Com este pano de fundo, Bissio aborda o contexto histórico vivenciado por Khaldun e Battuta, importantes na configuração de suas obras. A autora argumenta que se vivia um período no qual o passado glorioso era mais importante que o incerto futuro, inspirando os escritores muçulmanos a produzir textos que garantissem à posteridade o conhecimento daquele momento histórico.

Ibn Khaldun, sobre quem já se disse ter sido o criador da Sociologia, se propôs a produzir uma obra de História peculiar à época: os homens eram o sujeito histórico e o objeto de estudo era a sociedade muçulmana. Partindo da trajetória de vida deste autor, o impacto da Peste Negra em sua formação e sua atuação política no Magrebe, na Espanha (Al-Andaluz) e no Egito, Bissio destaca a contribuição de Khaldun às Ciências Humanas, pouco estudada na tradição ocidental. O deslocamento da História para o mundo dos homens, em detrimento de ser realização da vontade divina; a compreensão da unidade do gênero humano e a explicação do desenvolvimento das civilizações através da geografia, ecologia e biologia caracterizam grande ruptura com a epistemologia vigente no período, muito embora alimentada pelas concepções muçulmanas acerca do mundo.

Documentos produzidos para serem monumentos4 de uma sociedade em decadência, os textos de Battuta e Khaldun apontam o uso pragmático da escrita como recurso à integração dos espaços e entendimento da sociedade, aproximando homens e Estados que, embora não mais organizados numa estrutura política única, o califado, seguiam na comunhão de uma identidade linguístico-religiosa (apesar das dissidências, como sunitas e xiitas). Um dos conceitos desenvolvidos por Ibn Khaldun – assabiyya, o espírito do corpo político – decorre de suas experiências ao percorrer o Magrebe neste momento, dado à derrocada de Estados e ao sentimento, captado por ele, de deslocamento do eixo civilizacional, que se movia do sul para o norte, com a emergência da Cristandade europeia e a redução das cidades muçulmanas, outrora as mais populosas, urbanizadas e ativas do período.

Na teoria das civilizações de Khaldun, o conceito umran tem sentido em civilização, seja na universalidade da sociedade humana ou na concretude de uma população sobre um território. A vida em sociedade é condição da existência humana, conforme Khaldun, e sua essência está na complementaridade entre o polo rural e o urbano. No primeiro residem os valores como força, lealdade, temperança, que fortalecem o espírito político (assabiyya); no segundo está o luxo, os excessos e prazeres, que o enfraquecem. Contudo, o urbano é o espaço central da vida social e religiosa. O equilíbrio se constitui na trajetória cíclica da história, com ascensão e queda de impérios que conquistam as cidades, se apoderam delas e se enfraquecem nelas. A umran é transmitida de um império a outro, resultando num sistema de civilização bipolar, cíclico e relativamente estável.

Enquanto Khaldun busca compreender as leis que regem a sociedade, Battuta aponta a unidade da umma como ponto central de sua análise. Ao longo da rihla na qual descreve o périplo realizado, o viajante marroquino dedica-se a apresentar a universalidade da umma. Sua narrativa, exposta por Bissio, conjuga as necessidades do saber com a atenção dedicada ao mundo do islã, seus prazeres, aromas e sabores. A manifestação da fé muçulmana nos lugares pelos quais passou, a solidariedade amparada no pertencimento à comunidade religiosa e a peregrinação como lugar do encontro são destacados por Battuta. Meca é o centro da umma e, para os muçulmanos do século XIV, as terras do islã eram a única parte do mundo que importava, pois nelas estava a verdade da revelação a ser levada a outros lugares ao redor do globo. Não obstante a desagregação política do califado abássida, a unidade linguístico-religiosa foi capaz de manter-se, tendo a referência ao espaço como eixo central de sua organização, na vida diária – através da mesquita – e na umma, por meio de Meca.

O sentido das viagens realizadas por Khaldun e Battuta pode ser melhor compreendido se colocado em termos da teoria do conhecimento do islamismo. Diferentemente do cristianismo, que prega separação entre mundo temporal e espiritual, o islã define a unidade entre essas realidades. O Corão incita os fiéis a olharem o mundo com curiosidade, pois nele se expressa a palavra de Deus. A religião estimula a ciência e, no período do medievo, a produção científica muçulmana era enorme, legando às estantes da Cristandade a maior parte das traduções da filosofia grega, que chegaram à língua latina através do árabe. A incorporação dos conhecimentos e sua transformação, buscando atender às necessidades da comunidade muçulmana, geraram um período de grande riqueza intelectual, expressa no universalismo científico e religioso da umma.

Ao romper estereótipos e preconceitos acerca do islamismo, Beatriz Bissio convidanos a um novo olhar sobre o Oriente. Ao dialogar com Ibn Khaldun, repete-lhe as conclusões: “o mundo parece estar mudando de natureza” [5], bem como é preciso que mudemos a natureza de nosso olhar sobre ele. Sua leitura apresenta-nos a possibilidade de reflexão sobre mundo além do panóptico europeu. Relações que se tecem e se reproduzem sem, necessariamente, ter o Ocidente como causa ou objeto. Somos apresentados ao islã com olhar de proximidade, de encanto e encontro. Unidos na natureza humana, mas também herdeiros do legado árabemuçulmano que nossa cultura ocidentalizante insiste em invisibilizar, vislumbramos um mundo criativo, dinâmico, parte de nossa formação histórica. Um mundo que vai muito além da sombra do Ocidente.

Notas

1. Doutorando em História na Universidade Federal de Minas Gerais com bolsa oferecida pela Fapemig, agência a qual o autor remete seus agradecimentos. Contato: [email protected].

2. SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras. 1990.

3. PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização, Uma Abordagem Antropológica. Aparecida: Santuário, 2010.

4. LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp. 2003.

5. BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p.292.

Thiago Henrique Mota1 – Doutorando em História na Universidade Federal de Minas Gerais com bolsa oferecida pela Fapemig, agência a qual o autor remete seus agradecimentos. Contato: [email protected]


BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.  Resenha de: MOTA, Thiago Henrique. Além da sombra do Ocidente: o mundo árabe que nós desconhecemos. Aedos. Porto Alegre, v.7, n.16, p.502-507, jul.,2015. Acessar publicação original [DR]