Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar – SPINOZA (CE)

SPINOZA, B. de. Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012. Prefácio de Marilena Chaui. Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Ericka Marie Itokazu. Tradução e notas de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva. Resenha de: ROCHA, Mauricio. Notícia da edição brasileira do Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar, de B. de Spinoza. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 28, 2013.

Esta tradução do Breve Tratado é a primeira em “português- brasileiro” e a primeira em português tout court do Korte Verhandeling van God, de Mensch en deszelfs Welstand. É outro feito editorial que assinala o impulso crescente das atividades de estudos sobre Spinoza no Brasil, e que se fortaleceu após a tradução da Ética por Tomaz Tadeu, em 2007 e das versões brasileiras das traduções de Diogo Pires Aurélio feitas em Portugal (Tratado Teológico-Político, 2003 e Tratado Político, 2009). Cabe assinalar a necessidade de “versões” do português para o “brasileiro”, pois ainda que ambas sejam as “últimas flores do Lácio”, por vezes são notáveis as diferenças entre a matriz ibérica e as transformações impostas pelo esplendor tropical ao idioma de Camões e Fernando Pessoa.

A presente edição é mais um volume da Série Espinosana, que integra a coleção de Filosofia da Editora Autêntica (que já publicou a obra de Chantal Jaquet, A unidade do corpo e da mente – Afetos, ações e paixões em Espinosa, e lançará outros títulos sobre o filósofo). Esta versão do Breve Tratado é de responsabilidade de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Luis César Guimarães Oliva (tradução e notas) e Ericka Itokazu (que escreve a introdução com Emanuel Fragoso), e conta ainda com um prefácio de Marilena Chaui. E não por acaso. O primeiro é editor da revista Conatus, que desde 2007 reúne estudos sobre o filósofo, e os dois últimos constituem o Grupo de Estudos Espinosanos da USP, coordenado por M. Chaui, que dispensa apresentações.

Esta última brinda o leitor com o relato das aventuras do célebre “manuscrito da Ética em holandês”, como teria sido apresentado pelo filho do livreiro Rieuwertsz aos viajantes germânicos Stolle e Halmann em 1703, naquele episódio que dá início a uma trama que em tudo se assemelha à ficção, não fosse verdadeira. Como se sabe, a trama enreda vários  personagens  (Rieuwertsz-Stolle-Halmann;  Boehmer-Muller- Monnikhoff; Van Vloten-Bogaers; Monnikhoff-Van der Linden-Deurhoff etc.) durante um século e meio (1703-1865), sempre em torno do primeiro manuscrito – e de um segundo manuscrito, encontrado em 1851, também em holandês, que acrescentará mais enigmas ao enredo: as duas caligrafias dos manuscritos holandeses, as notas à margem, a indagação sobre um manuscrito original em latim extraviado, a autoria da tradução do original latino para o holandês.

Enigmas que o trabalho de Filippo Mignini ajudou a desfazer em parte, com sua edição crítica do KV em 1986. Conforme Mignini, o Breve Tratado expõe as ideias do jovem filósofo (por volta de 1660) sobre metafísica e ética, por solicitação de amigos e discípulos. Ele teria sido composto em latim e traduzido para o holandês (por tradutor ainda incerto) e teria recebido acréscimos posteriores à primeira redação (os diálogos, as notas, as referências internas etc.). E a edição brasileira segue de perto o trabalho incontornável de Mignini, um dos responsáveis pelo estabelecimento do texto, traduzido por Joël Ganault, que consta do volume Premiers écrits das Oeuvres editadas sob a direção de Pierre-François Moreau a partir de 1999.

Na introdução, os tradutores e editores brasileiros retomam o histórico da obra, sua descoberta, a polêmica sobre seu estatuto e lugar na evolução do pensamento de Spinoza e as conclusões, atualmente estabelecidas, sobre a autenticidade do KV e a autoria pelo filósofo polidor de lentes. A tradução acompanha a edição crítica de Mignini, mas recorreu à versão de Paul Janet (1878) e à inglesa de A. Wolf (de 1910, baseada em Sigwart, 1870). Além dessas, da outra versão em língua neolatina disponível, a espanhola de Atilano Dominguez (1990), são extraídas algumas lições sobre o estabelecimento e a divisão do texto em parágrafos (em particular no Capítulo XIX da Parte II do KV) – opções justificadas pela clareza e menor redundância.

Consta ainda da edição o Breve Compêndio (Korte Schetz) elaborado por Monnikhoff, a partir do original holandês encontrado por Boehmer tal como publicado na edição de Mignini em 1986, confrontado com a edição de Carl Gebhardt e cotejado com as versões de Atilano Domingues, Charles Appuhn, Madeleine Francês, e a mais recente de Mignini-Ganault. A edição brasileira contém uma extensa bibliografia e um glossário português-holandês da tradução.

Referências

SPINOZA, B. de. Breve tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012. Prefácio de Marilena Chaui. Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Ericka Marie Itokazu. Tradução e notas de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva.

Mauricio Rocha – Professor do Departamento de Direito da PUC Rio. Coordenador do círculo de leitura Spinoza & a filosofia (Rio de Janeiro).

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A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa – JAQUET (CE)

JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução Marcos Ferreira de Paula e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. Resenha de: D ’AMBROS, Bruno. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 26, 2012.

Lançado na França em 2004, o livro de Chantal Jaquet chega ao Brasil em 2011, publicado pela editora Autêntica. A tese da união entre mente e corpo de Espinosa tem despertado o interesse de neurobiologistas e psicomotricistas pelo filósofo holandês. Porém, como toda popularização implica quase sempre numa simplificação, surge o receio de que possa haver tal simplificação de Espinosa. É neste intuito que surge o livro de Chantal Jaquet, como precaução de eventuais abusos e simplificações extremas da filosofia de Espinosa e também como um estudo aprofundado das relações entre a mente e o corpo “sob o prisma dos afetos.” (JAQUET 1, p.17)

O livro se divide em cinco capítulos, cujos títulos são: “A natureza da união do corpo e da mente”, “A ruptura de Espinosa com Descartes a respeito dos afetos na Ética III”, “A gênese diferencial dos afetos no prefácio do Tratado teológico-político e na Ética”, “A definição do afeto na Ética III”, “As variações do discurso misto.”

“A natureza da união do corpo e da mente”

Há muito tempo, desde Leibniz, os comentaristas de Espinosa sempre falaram na união psicofísica em termos de paralelismo entre o corpo e a mente. No entanto Chantal Jaquet sustenta que a doutrina do paralelismo não é adequada para compreender Espinosa.

A doutrina do paralelismo é nociva à compreensão da unidade psicofísica e não conduz à uma compreensão adequada do monismo de Espinosa porque “conduz a pensar a realidade com o modelo de uma série de linhas similares e concordantes que, por definição, não se encontram.” (JAQUET 1, p.25). A doutrina do paralelismo, ainda, supõe “homologias e correspondências biunívocas entre as ideias e as coisas, a mente e o corpo”; supõe que a natureza está “condenada à uma ecolalia sem fim, a uma perpétua repetição do mesmo em cada atributo”; supõe que a unidade é uniformidade; supõe  também “uma tradução sistemática dos estados corporais em estados mentais”; e, assim, que o paralelismo “mascára tanto a unidade quanto a diferença” da união psicofísica. (JAQUET 1, p.29 – 30).

Mais adequado do que a doutrina do paralelismo, para pensar Espinosa, é a doutrina da igualdade. O próprio Espinosa sustenta que há uma igualdade entre potência de pensar e de agir, tanto em Deus como no homem, usando o mesmo adjetivo latino æqualis, tanto para a potência de pensar e agir de Deus como para a do homem. Quando Espinosa diz ordo idearum ordo rerum ele quer dizer que a ideia de um sujeito é a expressão igual de alguma coisa externa, extensa, a este sujeito pensante. Portanto “a teoria da expressão em Espinosa é regida inteiramente pelo princípio da igualdade.” (JAQUET 1, p.32)

“A ruptura de Espinosa com Descartes a respeito dos afetos na Ética III”

Chantal Jaquet sustenta que Espinosa e Descartes não estariam tão distantes no que tange aos afetos, ambos têm alguns pontos de convergências. Podemos resumir as convergências entre Descartes e Espinosa em alguns pontos básicos, principalmente nas obras As paixões da alma e na Ética : em ambos há um esforço para superar o dualismo mente/ corpo, em ambos há uma abordagem física e mental dos afetos, ambos fazem uma abordagem dos afetos por um método físico-geométrico, em ambos há uma naturalização e racionalização dos afetos, para ambos as paixões são inerentes ao ser humano, para ambos há uma ordem causal por detrás da desordem das paixões, para os dois a mente tem poder sobre as ações e ambos fundam uma “ciência” dos afetos.

Mas, quanto às divergências sobre os afetos, elas se resumem a dois pontos: um concerne à causa das paixões; o outro, à “natureza do poder da mente sobre elas” (JAQUET 1, p.57). Descartes sustenta que a causa das paixões são as ações do corpo sobre a alma e da alma sobre o corpo, ou seja, para ele as paixões são movimentos ativos. Espinosa sustenta que a causa das paixões não está de forma alguma nas ações do corpo ou da alma, ou seja, para ele as paixões são movimentos passivos tanto do corpo quanto da alma, já que ambos são igualmente ativos ou passivos, conforme aquele “princípio de igualdade” das potências que nos fala Chantal. A proximidade entre Descartes e Espinosa, segundo Chantal, está em que ambos concebem corpo e mente em termos de relação psicofísica; mas a distância que os separa está em que Descartes, em última análise, atribui a causa das paixões a uma ação corpo (JAQUET 1, p.58), enquanto Espinosa a atribui à relação do corpo e da mente com a exterioridade, na qual as ideias na mente são determinados pelo exterior (ideias inadequadas). Mas, como lembra Chantal, esse diferente entre os dois filósofos acarreta uma outra, que concerne ao poder da alma sobre os afetos (JAQUET 1, p.60): Descartes acreditava num poder absoluto da alma sobre o corpo, já que ela era a detentora de uma vontade livre capaz de controlá-lo; Espinosa fala em moderação dos afetos a partir de seu conhecimento, isto é, a partir da formação de uma “ideia clara e distinta”, ou adequada, sobre o próprio afeto passivo que, então, deixa de ser passivo (JAQUET 1, p.63).

“A gênese diferencial dos afetos no prefácio do Tratado teológico- político e na Ética”

Chantal Jaquet trata de uma diferença significativa em duas obras de Espinosa, uma da juventude, o Breve Tratado (1660), e a Ética (1677) . No primeiro, a percepção do corpo pela mente é um efeito do corpo ainda; assim, há uma “ação recíproca da alma sobre o corpo” e vice- versa que configuraria um parentesco com Descartes. Na última, a percepção do corpo pela mente é um efeito das ideias das afecções do corpo; aqui ele “exclui toda causalidade recíproca e toma a forma de uma equivalência e de uma correspondência entre modos e atributos diferentes” estabelecendo uma ruptura completa com Descartes.

A questão, portanto, para Jaquet, é “saber se as diferenças são o índice de uma simples mudança de pontos de vista compatíveis entre si ou se elas revelam divergências que atestam uma mutação do pensamento de Espinosa.” (JAQUET 1, p.73).

Para compreender esta questão Chantal Jaquet vai para uma obra intermediária de Espinosa, que fica entre o Breve Tratado e a Ética, o Tratado teológico-político (1670), que, por sua localização intermediária entre as duas obras iniciais mostra a evolução do pensamento de Espinosa em direção à Ética.

O Tratado teológico-político tem muitas diferenças em relação à Ética; as principais tangem aos afetos, que são diferentes dos apresentados na Ética. Uma distinção importante é que no Tratado teológico-político não há, ainda, a distinção entre afetos ativos e passivos. Ali os afetos são vistos como passivos sempre. Aquilo que mais tarde a Ética vai chamar de afetos ativos estão agrupados sob a categoria de fortitudo, subdivididos em animositas e generositas.

Outro ponto que é ressaltado por Jaquet é que no Tratado teológico-político o apetite e o desejo são opostos à razão. O Tratado teológico-político não tem a intenção de fazer uma teoria dos afetos, seu objeto é outro, por isso ele não contém explicitamente uma teoria dos afetos e quando cita os afetos, cita-os sempre como paixões, não mencionando que há afetos ativos. Já na Ética há uma virada em Espinosa. Nela o afeto é definido como fruto de uma causalidade adequada ou como fruto de uma causalidade inadequada: no primeiro caso o afeto é ativo, no segundo é passivo; ou seja, os afetos ativos são ações e os afetos passivos são paixões. Os três afetos básicos – desejo, alegria e tristeza – são decorrentes desta definição. A distinção entre afetos ativos e passivos é uma inovação da Ética. Na Ética há uma “razão apetitiva e um apetite racional.” (JAQUET 1, p.93). A Ética oferece assim “uma visão mais unificada do homem, o qual não é dotado senão de uma única natureza apetitiva que se declina seja sob um modo passivo, seja sob um modo ativo.” (JAQUET 1, p.93). Na Ética “a razão torna-se essa potência ativa capaz de engendrar afetos que coíbem as paixões tristes.” (JAQUET 1, p.94).

Portanto, há uma evolução do pensamento de Espinosa, em direção à Ética, que “confirma essa orientação do sistema rumo a uma concepção mais e mais dinâmica do potência de agir.” (JAQUET 1, p.96).

“A definição do afeto na Ética III”

Uma primeira questão que aparece na Ética é referente à palavra affectus. Chantal Jaquet aponta que, dentre as várias palavras latinas à disposição – emotio, passio, commotio – Espinosa utiliza a palavra affectus e que dentre as várias traduções – emoção, paixão ou sentimento – a mais adequada é afeto.

Quanto à definição de afeto, na parte III da Ética há duas definições, uma no início (SPINOZA 2, III, def.3) e outra no final (SPINOZA 2, III, def. geral). Na primeira o afeto é ativo e passivo. Na segunda o afeto é somente passivo. Esta segunda definição é a mais problemática, porque ela é uma definição geral dos afetos e, no entanto, restringe o afeto ao seu aspecto de passividade e mental.

O problema da segunda definição do afeto é que ela é uma definição geral (generalis) e está no final da parte III, o que induz a pensar que ela é uma definição genérica que tenta abranger todos os afetos. Porém ela foca só o aspecto mental e passivo dos afetos, excluindo os ativos. Chantal Jaquet diz que ela é uma definição generalis no sentido de gênero e não de genérico, por isso ela enfatiza o aspecto passivo e mental do afeto porque desta forma, prestando atenção às características genéricas das paixões, pode-se determinar sua força, sua utilidade, sua nocividade e a potência da mente para contrariá-las: “ela é dita geral pois remete todas as paixões a um só gênero, a ideia confusa, e permite em seguida compará-las em função de sua aptidão a aumentar ou diminuir a potência de agir do homem.” (JAQUET 1, p.115)

Espinosa diz que os afetos são afecções corporais que aumentam e ajudam ou  diminuem e contrariam a potência de ação deste corpo e também que os afetos são as ideias destas afecções do corpo (SPINOZA 2, III, Def.3, p.98). Nesta definição, o afeto é definido primeiro em relação ao corpo e depois em relação à mente.

A primeira questão que o aspecto corporal do afeto implica é sobre a distinção entre afeto e afecção. Todo afeto é uma afecção corporal mas nem toda afeção corporal é um afeto, portanto, o que distingue afetos de afecções? O critério de diferenciação é a potentia agendi do corpo, ou seja, “uma afecção é um afeto se e somente se tem um impacto sobre a potência de agir do corpo.” (JAQUET 1, p.129). Desta forma os afetos se diferenciam das afecções porque eles tem a capacidade de fazer variar a potentia agendi.

Tudo tem uma potentia agendi porque a potentia agendi é uma vis existendi. Portanto, devemos entender a potência de agir como força de existir e a verdadeira potência de agir é a que tem a ver com as ações, pois repousa sobre um conhecimento adequado, porque aumenta a potência como força de existência. As ações, isto é, aquilo que um sujeito ativo faz, é causa adequada dos efeitos corporais, aumentando a potentia agendi como vis existendi.

Há quatro tipos de afetos que impactam a potentia agendi : os que aumentam ou diminuem e os que ajudam ou coíbem. Chantal Jaquet sustenta que há uma diferença entre os que aumentam/diminuem e os que ajudam/coíbem, dizendo que o segundo grupo não é somente um recurso de insistência, mas que há uma diferença de grau e natureza entre eles. O segundo grupo, que ajuda/coíbe a potência, são afecções que não aumentam nem diminuem a potência de agir do corpo, mas que “só fazem neutralizar as forças contrárias ou favoráveis.” (JAQUET 1, p.142).

Então, Chantal Jaquet elenca cinco tipos de afecções que ajudam ou coíbem a potentia agendi: 1) ajuda ou coíbe o que se opõe à destruição do que se ama ou à conservação do que se execra; 2) ajuda ou coíbe que a imagem da alegria do que se ama seja vista como causada por nós; 3) ajuda ou coíbe sentimentos que mudam de hostis à amigáveis ou de amigáveis a hostis; 4) ajuda ou coíbe alguém que faz o bem ao outro ou não; 5) ajuda ou coíbe a concepção adequada ou inadequada da impotência humana.

O afeto também é definido em relação ao atributo pensamento, à mente. Os afetos são as afecções corporais, mas também são ao mesmo tempo (et simul) as ideias destas afecções corporais, e estas ideias são modos certos e determinados da atividade eterna e infinita do atributo pensamento.

Chantal Jaquet diz que há três maneiras de compreender o advérbio et simul, que se refere à simultaneidade das afecções corporais e mentais. Primeiro, et simul significa que os afetos são psicofísicos. Segundo, et simul significa que os afetos são psíquicos. Terceiro, que eles são físicos. Desta forma há três categorias de afetos, os psíquicos, os físicos e os psicofísicos.

“As variações do discurso misto”

Espinosa faz três divisões concernentes aos afetos: ações e paixões, primitivos e compostos e bons e maus. Desta forma ele não visa uma enumeração exaustiva dos afetos porque os afetos, de um modo geral, se reduzem à três, o desejo, a alegria e a tristeza. Os outros afetos compostos são decorrentes destes afetos primitivos.

Mas Chantal Jaquet estabelece três categorias de afetos, segundo a referência seja mais o corpo, a mente ou ambos, embora todo afeto conserve uma natureza psicofísica. Primeiro há os afetos que se referem ao corpo e à mente, simultaneamente: são os propriamente psicofísicos, que têm “uma realidade psicofísica, sendo objeto de um discurso misto exprimindo a mente e o corpo em paridade.” (JAQUET 1, p.168). Dentro dos psicofísicos, estão os três afetos originários – desejo, tristeza e alegria – e alguns derivados, como o orgulho, a humildade e o amor a Deus. Depois, há os afetos propriamente corporais e Espinosa põe a carícia, a hilaridade, a dor e melancolia como afetos corporais também porque eles “têm um impacto sobre a potência de agir e a fazem variar” (JAQUET 1, p.172). Além destes há também o fastio e o tédio. Por fim, há os afetos mentais. Chantal Jaquet elenca o amor intelectual de Deus, a glória, o arrependimento e a saudade como afetos propriamente mentais.

Diz Espinosa que “Se uma coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de agir do nosso corpo, a ideia dessa coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de pensar de nossa mente.” (SPINOZA 2, III, prop.11). Desta forma, todo discurso sobre os afetos, sejam eles mentais ou corporais, é “de essência psicofísica.” (JAQUET 1, p.176). Apesar de a ordem das ideias ser a mesma que a ordem das coisas, nem todo afeto concerne à mente e ao corpo da mesma maneira. Isso remete à tese de Chantal Jaquet de que o monismo espinosano deve ser concebido como igualdade de potência e não paralelismo. “O corpo e a mente são apreendidos ao mesmo tempo sem ter necessariamente o mesmo tempo” (JAQUET 1, p.181, grifo da autora). Por isso o discurso sobre os afetos é sempre misto, nunca é só corporal nem só mental.

Desta forma Espinosa “convida a romper com uma concepção simplista da igualdade entre a potência de pensar e de agir que faria dela a resultante de uma atividade análoga no corpo e na mente ou o reflexo idêntico do que se passa em cada um dos objetos.” (JAQUET 1, p.183). Isto quer dizer, a título de conclusão, que a doutrina da expressão de Espinosa  não supõe paralelismo nem causalidade recíprocas, mas, sim, igualdade, que é antes de tudo uma igualdade de potência; e esta é a tese central de Chantal Jaquet. A mente tenta sempre ver paralelismo e causalidade recíproca entre o corpo e a mente, mas, na verdade, eles não existem, a não ser como pensamentos. A igualdade da potência de pensar e de agir não elimina, contudo, as desigualdades de expressão da mente e do corpo, porque eles exprimem atributos que são diferentes (pensamento e extensão, donde a desigualdade expressiva), mas que constituem a essência de uma mesma Substância (donde a igualdade de potência).

“Conclusão”

É importante ressaltar que o livro da filósofa francesa Chantal Jacquet está em diálogo com o livro do neurocientista português António Damásio Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos . Nesta sua obra, o neurocientista resgata o filósofo holandês para justificar a atualidade de seu monismo sobre o dualismo cartesiano dentro da neurociência contemporânea.

No entanto, ao ver de Chantal Jaquet, o neurocientista português “não está sempre à altura de seu modelo e carece às vezes de rigor, porque continua a falar de emergência da mente a partir do corpo, de passagem do neural ao mental.” (JAQUET 1, p.188). Esta crítica da filósofa francesa se confirma no trecho onde o próprio Damásio diz que “é preciso compreender que a mente emerge de um cérebro ou de um cérebro situado no corpo propriamente dito com o qual ela interage; que, devido à mediação do cérebro, a mente tem por fundamento o corpo propriamente dito.” (DAMÁSIO 3, p.91). Para Jaquet, Damásio tende a pensar a mente em termos de emergência a partir do corpo, quer dizer, do cérebro. Para Damásio o cérebro causaria a mente – a alma, a consciência, o pensamento – porque ele pensa a relação psicofísica em termos de paralelismo. António Damásio erra ao apresentar a unidade do corpo e da mente “sob a forma de um paralelismo.” (JAQUET 1, p.189). Do estudo dos afetos em Espinosa, Chantal Jaquet extrai duas lições. A primeira lição é “banir toda busca de interação, de influência ou de causalidade recíproca entre a mente e o corpo para pensar unicamente em termos de correspondência e de correlação.” (JAQUET 1, p.187). A segunda lição é que “o modelo espinosista da união psicofísica não repousa sobre um paralelismo, mas sobre uma igualdade.” (JAQUET 1, p.188). Dessas duas lições sobre o estudo dos afetos conclui-se que há uma identidade entre a ordem e a conexão das ideias e das coisas; mas que tal identidade não “deve mascarar a diferença de expressão própria aos modos de cada atributo.” (JAQUET 1, p.190).

Referências

  1. JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução Marcos Ferreira de Paula e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
  2. SPINOZA, Benedictus de. Ética . Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
  3. DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das letras, 2004.

Bruno D ’Ambros – Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina.

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