Mente, linguagem e significado – SILVA FILHO (SS)

SILVA FILHO, Valdomiro. Mente, linguagem e significado. Organização de Waldomiro Silva Filho. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010. Resenha de: MARTINS, Paula Mousinho. Autoconhecimento e perspectivas externistas: o compatibilismo em debate. Scientiæ Studia, São Paulo, v.11, n. 2, p. 427-35, 2013.

O livro compõe uma instigante coletânea de textos dos quais – não obstante sua ampla variedade temática, e para salientar apenas seu viés epistemológico – uma das preocupações precípuas é discutir as consequências céticas do externismo em relação ao autoconhecimento. Com efeito, para além do contexto semântico ao qual esteve inicialmente referido,1 o ponto de vista externista cria obstáculos não só para a própria definição de mente, mas também, em sua versão mais radical, para a possibilidade desta última conhecer seus próprios estados intencionais de modo direto, transparente e infalível, tal como sempre defenderam as chamadas “filosofias da consciência” desde Descartes. Essa visão aguda do externismo inviabiliza, portanto, a “autoridade especial” que a primeira pessoa parece intuitivamente deter sobre o conteúdo de seus próprios pensamentos (sejam eles verdadeiros ou falsos), pois põe em xeque a capacidade de atribuirmo-nos e conhecermos de modo privilegiado estados cuja natureza e conteúdo dependem de condições que não podemos conhecer desse mesmo modo. Segue-se que, para ter ciência de minhas próprias crenças, desejos ou intenções, necessito da mediação empírica do mundo, já que o conteúdo intencional desses meus estados mentais depende, pelo menos em parte, das relações que estabeleço com o meu meio ambiente natural e social.

Mas isto não é tudo; além de pretender destruir o tradicional reduto autocognoscível da subjetividade, esta nova e desafiadora modalidade de ceticismo também rejeita a suposição de que meus estados intencionais sobrevenham localmente às minhas disposições físicas ou neurais individuais, isto é, sejam determinados por eventos do meu cérebro. Se a fisiologia cerebral de fato determinasse minhas ocorrências mentais intencionais, qualquer mudança nessas últimas implicaria mudança neurológica ou cerebral concomitante – mas isto é justamente o que o externismo radical recusa ao supor que elementos exteriores à fisiologia intracraniana possam causar a individuação (e a mudança) de conteúdos mentais intencionais. Logo, a estados cerebrais idênticos ou indiscerníveis nem sempre corresponderão pensamentos e crenças idênticos.

Contestar a autoridade de primeira pessoa, o autoconhecimento e a superveniência mente/cérebro foi justamente o alvo maior de Hilary Putnam ao construir, em 1975, o célebre experimento mental das “Terras gêmeas” para fundamentar sua hipótese de que o significado das palavras “não está na cabeça”.2 Putnam lançava, assim, as bases do “externismo natural”, segundo o qual a determinação dos conteúdos intencionais depende da estrutura fisico-química “essencial” (não fenomênica) da realidade material a que os atos intencionais se referem. Em outros termos, o sujeito ignorará o conteúdo ou referência das palavras que usa sempre que ignorar a composição molecular das substâncias naturais a que essas palavras se referem. Quatro anos mais tarde, Tyler Burge (1979), apoiando-se igualmente num experimento mental baseado em situação contrafactual, formula as principais características do “externismo social” (que ele preferiu chamar de anti-individualismo). Sua intenção era demonstrar que a individuação dos estados mentais, intencionais ou representacionais do sujeito depende, de um modo constitutivo, não da estrutura material profunda dos objetos como queria Putnam, mas das relações que tal sujeito mantém com seu entorno linguístico e social. Dos experimentos de Putnam e Burge, em todo caso, é possível extrair a mesma conclusão externista de que, se os meios sociais e naturais de cada um deles diferirem, a dois sujeitos dotados de estados psicofísicos indiscerníveis podem ser atribuídos significados e crenças distintos. Da mesma forma, se tais meios vierem a se modificar, os conteúdos ou significados dos pensamentos e crenças dos sujeitos neles inseridos necessariamente também se alterarão.

Burge, entretanto, não vai tão longe quanto Putnam no que tange à refutação do autoconhecimento. Para ele, os juízos do “tipo cogito”, isto é, os pensamentos de 2ª ordem autoverificáveis devido a sua forma autorreferencial (por exemplo: penso que estou pensando que a água é úmida) são casos inquestionáveis de autoconhecimento privilegiado, de modo que o aspecto externista dos conteúdos mentais deve poder compatibilizar-se com o acesso especial (não empírico, imediato ou direto) que o sujeito tem sobre seus próprios pensamentos, sem que isso todavia implique na adoção do modelo cartesiano.

Os artigos reunidos no livro Mente, linguagem e significado – organizados pelo editor em seis partes ou eixos temáticos: (1) Anti-individualismo, autoconhecimento e ceticismo; (2) compatibilismo e incompatibilismo; (3) do ponto de vista da primeira pessoa e verdade; (4) conteúdo, referência e normatividade; (5) consequências do antiindividualismo; (6) linguagem e consciência – debruçam-se todos, de um modo ou de outro, sobre os problemas epistemológicos acima mencionados e, nessa medida, posicionam-se no interior da polêmica que há mais de trinta anos divide os compatibilistas e os incompatibilistas em relação à questão do autoconhecimento.

Paulo Faria (“Anti-individualismo e autoconhecimento: uma exposição elementar”) inicia a primeira parte meditando, em tom aparentemente simples e pessoal mas que acaba revelando grande complexidade, sobre os paradoxos envolvidos em “se pensar e não se saber o que se está pensando”. Se, para saber o que penso quando penso que “há água nos arredores”, preciso saber de antemão que se encontram satisfeitas determinadas condições objetivas sem as quais, ao pensar “há água nos arredores”, eu não estaria pensando precisamente em água e sim em outra coisa, então de fato não sei o que eu mesmo penso. Entretanto, por que eu deveria supor que o antecedente (há água nos arredores) desse condicional é verdadeiro? Descartada a obrigatoriedade de uma tal suposição, resta que me é dado apenas querer que tal antecedente seja verdadeiro e, a partir de então, estipular a ocorrência de um “fato novo”, a ser explicitado por uma nova teoria etc. Dada a inevitável insuficiência do procedimento, o autor nos leva a concluir que a premissa externista incompatibilista em questão não pode determinarse sem dogmatismo. Plínio Junqueira Smith (“Ceticismo e autoconhecimento”) fecha a primeira parte mostrando, de modo muito claro e preciso, que um autêntico ceticismo pode perfeitamente aceitar o autoconhecimento e a autoridade de primeira pessoa, desde que coloque em xeque as diversas teorias filosóficas inventadas para explicálos. O exame dessas teorias não mostrará que o autoconhecimento é ilusório, mas sim como é difícil para a razão filosófica explicá-lo satisfatoriamente. A afirmação de que não sabemos o que estamos pensando ou desejando quando pensamos ou desejamos algo parece, de um lado, absurda, pois nega um fato óbvio de nossas vidas, e, de outro, comprometida com pressupostos filosóficos, uma vez que supõe o “externismo” – seja como teoria semântica do significado, seja como teoria de que o conteúdo mental depende do mundo. A inexistência de uma explicação filosófica satisfatória para o autoconhecimento e a autoridade de primeira pessoa não nos leva à conclusão que uma pessoa não sabe o que pensa.

O artigo de Carlos J. Moya (“Reflexões sobre anti-individualismo e autoconhecimento”) abre a segunda parte, recordando os dois grandes problemas presentes no debate acerca do compatibilismo: (1) o problema do logro, ou de como conhecer de modo privilegiado conteúdos dependentes de condições que não podem ser conhecidas deste modo; e (2) o problema da consequência, ou a aparente (e paradoxal) necessidade de o compatibilista admitir que é possível conhecer a priori proposições (empíricas) sobre o entorno objetivo, dando ensejo a uma inaceitável “redução ao absurdo” do argumento compatibilista. Para o autor, o problema do logro parece a princípio poder resolver-se apelando-se para o “modelo de inclusão” defendido por Davidson, Burge e John Heil. Já o problema da consequência, foco principal do texto de Moya, pode ser enfrentado com êxito pelo compatibilista pela simples razão de que este último não tem por que se comprometer com a indesejada possibilidade de conhecer a priori seu entorno objetivo. O pretenso conhecimento a priori de fatos substantivos sobre o mundo é, na verdade, uma ilusão derivada dos pressupostos fortemente realistas implícitos nos experimentos mentais de Putnam e Burge, e são eles que nos conduzem ao erro de “pressupor o enunciado na conclusão”. O pretenso conhecimento a priori de fatos empíricos (a posteriori) nada mais é que o enunciado explícito de estados de coisa que não são a priori senão no sentido de que são pressupostos nos experimentos mentais que levam ao externismo e o sustentam.

No capítulo seguinte, Edgar Marques (“Conteúdo e autoridade da primeira pessoa”) analisa o externismo semântico enfatizando uma de suas intuições fundamentais: a postulação de um vínculo entre a determinação da identidade dos objetos dos pensamentos e crenças, por um lado, e a individuação dos pensamentos e crenças acerca desses objetos, por outro. O autor baseia-se em McKinsey (1998) para mostrar a inconsistência da pretensão compatibilista de Burge, que implica a indesejável tese de que fatos empíricos podem ser conhecidos a priori, ou seja, de que o sujeito pode saber a priori coisas relativas ao mundo objetivo pelo simples conhecimento direto dos conteúdos de seus pensamentos e crenças subjetivos. O argumento de McKinsey aponta para a necessidade de uma delimitação mais precisa do escopo do conteúdo dos pensamentos e crenças que o sujeito conhece a priori – uma estratégia de estreitamento desse conteúdo, a qual, todavia, para Edgar Marques, ainda permanece um tanto obscura. No último artigo da segunda parte, Cristina Borgoni (“Quando externismo e autoconhecimento são compatíveis”) trata da querela do compatibilismo em dois contextos privilegiados: os casos de transferência entre mundos e os argumentos de redução ao absurdo. O objetivo da autora é defender uma posição compatibilista que reconhece algumas exceções. Por um lado, a autora sugere que o incompatibilismo alcançado por meio dos experimentos mentais de transferência entre mundos pode sustentar-se apenas se mantivermos uma visão específica, porém problemática, acerca do autoconhecimento; por outro, o incompatibilismo alcançado por meio dos argumentos do tipo “redução ao absurdo” pode sustentar-se apenas se mantivermos uma visão estreita acerca do externismo. Em outras abordagens, o compatibilismo consegue resistir. Uma boa abordagem do autoconhecimento deve dar espaço tanto ao modo privilegiado de sua aquisição, como ao modo indireto e empírico segundo o qual conhecemos parte de nossas mentes. Esse duplo aspecto é ignorado pelo cartesianismo.

Ernesto Perini-Santos inicia o primeiro capítulo (“Da autoridade sobre os próprios atos”) da terceira parte observando que o abandono da imagem cartesiana de autoconhecimento, hoje corriqueiro, vem de par com a recusa da assimetria entre o ponto de vista da primeira pessoa e o da terceira pessoa sobre conteúdos de estados mentais. O que talvez não seja ainda tão corriqueiro é a aceitação de que o externismo leve ao abandono dessa assimetria, nem como ele o faria. A intenção do autor é explorar a conexão entre o domínio que o sujeito tem das próprias atitudes proposicionais e a estrutura da proposição apreendida. Nesse sentido procede à consideração de casos que evidenciam que o sujeito de fato domina um aspecto crucial de seus próprios estados mentais para, em seguida, isolar, na estrutura proposicional, este elemento sobre o qual não parecem se exercer pressões externistas. A teoria sobre a estrutura de proposições proposta pela semântica de situações é, em mais de um aspecto, compatível com essa assimetria na apreensão de elementos do que é avaliado como verdadeiro ou falso. O objetivo de Perini-Santos não é, contudo, argumentar em favor de uma tal semântica, mas ver como um traço da apreensão de proposições parece ser particularmente bem acolhido nesse quadro teórico. O segundo capítulo da terceira parte, de Hilan Bensusan (“Da primeira pessoa, porém não pessoal: pensando de re sobre si mesmo”), considera falsa a tese de David Chalmers (1996) segundo a qual há partes do mundo que são indexicais “até a medula”, não podendo ser acessadas senão em primeira pessoa. A tese de Chalmers interessa apenas na medida em que veicula a ideia de que o mobiliário do universo contém itens indexicais – que são posicionais sem serem “projeções de um sujeito”. Isto leva o autor a explorar, ainda que brevemente, a possibilidade de tais itens serem não subjetivos, isto é, não pessoais. Ele proporá a hipótese de um “eu mínimo” no qual a identidade pessoal não está pressuposta e deve ser, antes, produto de uma “conquista”. Não haveria em pensamentos e estados atribuídos a mim mais do que um eu que os agrega e compõe. Não tendo mais a identidade pessoal como suposição de base, o eu mínimo não constituirá um sujeito da dor, do medo ou da crença, ou seja, não comporá o constituinte inarticulado de expressões tais como “dói meu braço”, “dou-me conta da crença de que faz sol” etc. Nessa tese subsidiária à de Chalmers, portanto, o acesso à primeira pessoa pode ser levado a sério sem se pressupor uma tal primeira pessoa. O texto “Expressivismo, verdade e conhecimento”, de Alexandre N. Machado, conclui a terceira parte, argumentando que na medida em que, para o “expressivismo simples”, as “manifestações” (frases na primeira pessoa do singular com verbo psicológico no presente do indicativo que, quando pronunciadas sinceramente, veiculam autoconhecimento) não são apofânticas, é errado atribuir “expressivismo simples” a Wittgenstein. O caráter deflacionista do expressivismo wittgensteiniano permite manter o caráter apofântico das manifestações, já que dizer que uma frase é verdadeira ou falsa não implica nenhuma “tese epistêmica” específica sobre ela (não implica dizer que esse tipo de frase é de natureza cognitiva, isto é, potencial veiculadora de conhecimento). Na crítica ao neoexpressivismo de Bar-On e às teorias epistêmicas do autoconhecimento, Machado encontra razões para pensar que as manifestações não são mesmo cognitivas, e nesse caso o expressivismo de Wittgenstein parece superior ao neoexpressivismo, mantendo vivo o desafio deflacionista. Mas isto não significa dizer que o expressivismo de Wittgenstein é a melhor abordagem acerca das manifestações: ele também tem problemas, como o fato de não haver expressão natural para certos estados mentais.

Roberto Horácio de Sá Pereira inaugura a quarta parte com o artigo intitulado “O conteúdo exíguo segundo uma ótica anti-individualista”, no qual examina a legitimidade dos chamados “conteúdos exíguos” em filosofia da mente. O objetivo do autor é defender uma concepção de conteúdo exíguo segundo uma ótica anti-invidualista que, embora rejeite a suposição tradicional de que leis intencionais tenham que ser formuladas em termos de conteúdo exíguo, está convencida da importância de tais conteúdos para a explicação da conduta. De acordo com essa leitura, enquanto o conteúdo amplo da ocorrência mental “água” constitui a propriedade semântica de tal ocorrência de representar de dicto H2O como água, o conteúdo exíguo da mesma ocorrência mental constitui a propriedade semântica alternativa de tal ocorrência de representar de dicto tanto H2O como XYZ como substância aquosa em todos os indivíduos indiscerníveis a respeito de alguma propriedade neurológica relevante dos seus cérebros. No segundo capítulo, Jônadas Techio (“Anti-individualismo, autoconhecimento e responsabilidade”) tem por objetivo proceder a uma espécie de resgate das raízes linguísticas do anti-individualismo, pois, apesar de este pretender ser uma teoria da mente, a argumentação anti-individualista depende de um modelo particular de normatividade. A análise estará concentrada num único aspecto da posição anti-individualista que o autor considera problemático: a adoção do modelo impessoal de normatividade linguística, segundo o qual o fundamento de nosso acordo sobre o significado de nossos termos ou frases encontra-se no conhecimento (impessoal) de um conjunto de “fatos objetivos”. A identidade desse conjunto de fatos varia de autor para autor, mas a suposição de que o ônus da correção linguística (daquilo que o sujeito quer dizer com o que diz) incide sobre algum fator externo (tal como o mundo ou as convenções da comunidade) é assumida por todos os anti-individualistas. Para Techio, isto significa uma inversão no próprio modo de conceber o problema da correção linguística, cuja consequência imediata é retirar do sujeito individual, participante da comunidade linguística, a responsabilidade em dar sentido a suas próprias palavras e às palavras dos demais e, assim, fornecer condições para um acordo. O principal interesse do capítulo é esboçar uma imagem alternativa para se pensar a linguagem humana e a normatividade linguística, que esteja livre dos problemas do modelo impessoal adotado pelos anti-individualistas (mas também assumido por seus críticos) e, particularmente, do tipo de evasão que ele acarreta.

No último capítulo da quarta parte, Carlos E. Caorsi (“O argumento de Kripke sobre a linguagem privada: uma perspectiva davidsoniana”) recupera a reconstrução kripkeana do argumento de Wittgenstein contra a linguagem privada, segundo o qual falar uma linguagem é seguir um determinado conjunto de regras – entendendo por regra aquilo que dá significado a uma palavra por determinar o modo como esta deverá ser usada. Wittgenstein nega o “modelo privado” do que é seguir uma regra, porque esse ato não pode ser analisado em termos de fatos acerca de quem segue a regra e só dela: a referência à sua condição de pertencer a uma comunidade mais ampla é necessária. Kripke considera, todavia, que o caráter normativo da linguagem está dado pela comunidade de fala, e nisto ele se equivoca, pois quem realiza a interpretação do falante não é uma tal comunidade, conceito demasiadamente abstrato, e sim os intérpretes concretos. Para Caorsi, o que conta para a comunicação não é o falante e o intérprete usarem as mesmas regras, mas que o falante use as palavras como o intérprete esperaria usá-las. Se a situação é de “interpretação radical” (nos termos de Davidson), a expectativa do intérprete com respeito ao uso do falante dependerá dos usos anteriores da palavra por parte do falante que foram observados pelo intérprete. E o que determinará ao falante falar do modo que o faz será sua intenção de ser interpretado pelo intérprete, não sua intenção de seguir alguma regra em particular que o intérprete também segue. A intenção do falante é usar as palavras do modo que supõe poder o intérprete entendê-las.

A quinta parte inicia-se com o texto de César S. dos Santos (“Exilados da terra Gêmea: os experimentos mentais e a natureza da intencionalidade”), onde se busca caracterizar minimamente o que é um experimento mental e mostrar a estrutura dos principais experimentos mentais presentes nos debates sobre o externismo. Além disso, o autor procura avaliar se esses experimentos mentais foram bem construídos e aplicados, chegando à conclusão que a construção e a aplicação dos mesmos está em perfeita ordem. No capítulo seguinte, Waldomiro Silva Filho (“Deflacionando o antiindividualismo”) expõe duas idéias, encontradas em Gary Ebbs (1996), que lhe pareceram promissoras no debate sobre o anti-individualismo e o autoconhecimento: a interpretação deflacionista do anti-individualismo de Putnam e Burge e um tratamento minimalista do autoconhecimento. Com a primeira, Ebbs pretende desfazer a impressão equivocada de que o anti-individualismo pressupõe teses metafísicas acerca da natureza da relação das nossas mentes com o entorno. Seu deflacionismo é uma forma de antiessencialismo e uma crítica ao realismo metafísico e científico. Tudo o que o anti-individualismo requer é nossa perspectiva como participantes de uma comunidade de praticantes – comuns ou científicos – de uma linguagem. Quanto ao autoconhecimento, dado que para Ebbs o conhecimento é um aspecto trivial da competência no uso de uma linguagem, o único requisito para que um sujeito conheça os conteúdos dos pensamentos que expressa com nossas frases é estar habilitado a usar essas frases em discursos, realizar e avaliar asserções próprias e dos outros, fazer questões, descrever possibilidades, esclarecer confusões etc. A mesma atitude que nos leva a atribuir crenças e pensamentos a um indivíduo também mostra que ele conhece o conteúdo daqueles pensamentos e crenças.

No último capítulo da quinta parte, André Leclerc (“Do externismo ao contextualismo”) analisa a mudança mais recente na trajetória filosófica de Hilary Putnam: o momento em que este abraça o contextualismo, passando a ser um dos maiores críticos do funcionalismo que ele mesmo havia lançado. A principal tese contextualista é a de que o conteúdo de nossas enunciações, “o que é dito”, depende de vários fatores contextuais, e que exemplares (tokens) da mesma frase (type) podem determinar, em ocasiões diferentes, conteúdos vero-condicionais diferentes ou expressar diferentes proposições (ou pensamentos). Embora essa posição já possa ser encontrada em Putnam (1975), Leclerc mostra de modo bastante competente que o externismo não leva diretamente ao contextualismo, pois podemos chegar a este último a partir de uma posição claramente incompatível com o externismo.

Dando início à última parte do livro, João Vergílio Gallerani Cuter reflete sobre a questão dos conteúdos perceptivos que parecem ser independentes de nossas capacidades conceituais e, portanto, nos serem dados independentemente de nosso domínio linguístico. Como não só animais, mas também recém-nascidos são “cegos” para o aspecto conceitual de suas próprias percepções, o autor acredita que os conteúdos não conceituais foram abandonados em algum ponto de nossa trajetória, mais especificamente, perdemos acesso a eles a partir do momento em que aprendemos a falar. A conclusão é que ao aprender a falar ficamos cegos para objetos desvinculados de qualquer determinação, e isto significa que perdemos a memória dos objetos que ainda não podíamos identificar como isto ou aquilo. Fechando a sexta parte e finalizando o volume organizado por Waldomiro Silva Filho, Marco Rufino (“Constituintes proposicionais inarticulados”) debruça-se sobre os dois tipos de expressão linguística que se distinguem por seu mecanismo de significação: as chamadas “expressões eternas” (cuja extensão, uma vez fixadas suas regras de uso, não muda de acordo com o contexto de enunciação), e as “expressões indexicais” (cuja extensão e intensão podem mudar de contexto para contexto por força de suas próprias regras de uso; por exemplo: aqui, agora, hoje, este, eu etc.). Dado que os diferentes elementos da proposição expressa por uma sentença são valores semânticos de elementos gramaticalmente distintos presentes na sentença, há objetos e propriedades que correspondem a expressões eternas, assim como há objetos e propriedades que correspondem a expressões indexicais. Como a estrutura da proposição espelha a estrutura gramatical da sentença, a forma geral pela qual a linguagem funciona é a de que conteúdos não linguísticos sempre refletem a estrutura gramatical dos elementos linguísticos. John Perry (1986, 1998) chamou tal concepção de homomórfica e colocou-a em questão, considerando que há alguns casos em que a proposição expressa por uma sentença inclui algum elemento que não é o valor semântico de nenhuma expressão eterna ou indexical (ou seja, nenhum morfema). Rufino analisa não só a posição de Perry, mas também a de Stanley, Cappelen, Lepore e Recanati, concluindo que não há ainda uma posição satisfatória quanto aos constituintes inarticulados, seja para integrá-los em uma teoria semântica coerente, seja para fazê-los desaparecer de vez da mesma.

Notas

1 O externismo foi defendido explicitamente pela primeira vez por Hilary Putnam (1975). O externismo nasce como uma teoria em semântica filosófica e seu problema principal, como já indica o próprio título do artigo, é a questão da referência e do significado.

2 Esse experimento é minuciosamente examinado ao longo do volume organizado por Waldomiro Silva Filho.

Referências

BURGE, T. Individualism and the mental. In: French, P. A.; Uehling Jr., T. E. & Wettstein, H. K. (Ed.). Studies in metaphysics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1979. p. 73-121.

CHALMERS, D. The conscious mind: in search of a fundamental theory. Oxford: Oxford University Press, 1996.

EBBS, G. Can we take our words at face value?. Philosophy and phenomenological research, 56, p. 499-530, 1996.

FRENCH, P. A.; Uehling Jr., T. E. & Wettstein, H. K. (Ed.). Studies in metaphysics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1979. (Midwest Studies in Philosophy, v. 4).

GUNDERSON, K. (Ed.). Language, mind and knowledge. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1975. (Minnesota Studies in the Philosophy of Science, v. 7).

MCKINSEY, M. Anti-individualism and privileged access. Analysis, 51, p. 9-16, 1998. Perry, J. Thought without representation. Supplementary Proceedings of the Aristotelian Society, 60, p. 26383, 1986.

_____. Myself and I. In: Stamm, M. (Ed.). Philosophie in synthetischer Absicht. Stutgard: Klett-Cotta, 1998. p. 83-103. Putnam, H. The meaning of “meaning”. In: Gunderson, K. (Ed.). Language, mind and knowledge. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1975. p. 131-93.

Paula Mousinho Martins – Centro de Ciências do Homem. Laboratório de Cognição e Linguagem. Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Campos dos Goytacazes, Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa – JAQUET (CE)

JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução Marcos Ferreira de Paula e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. Resenha de: D ’AMBROS, Bruno. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 26, 2012.

Lançado na França em 2004, o livro de Chantal Jaquet chega ao Brasil em 2011, publicado pela editora Autêntica. A tese da união entre mente e corpo de Espinosa tem despertado o interesse de neurobiologistas e psicomotricistas pelo filósofo holandês. Porém, como toda popularização implica quase sempre numa simplificação, surge o receio de que possa haver tal simplificação de Espinosa. É neste intuito que surge o livro de Chantal Jaquet, como precaução de eventuais abusos e simplificações extremas da filosofia de Espinosa e também como um estudo aprofundado das relações entre a mente e o corpo “sob o prisma dos afetos.” (JAQUET 1, p.17)

O livro se divide em cinco capítulos, cujos títulos são: “A natureza da união do corpo e da mente”, “A ruptura de Espinosa com Descartes a respeito dos afetos na Ética III”, “A gênese diferencial dos afetos no prefácio do Tratado teológico-político e na Ética”, “A definição do afeto na Ética III”, “As variações do discurso misto.”

“A natureza da união do corpo e da mente”

Há muito tempo, desde Leibniz, os comentaristas de Espinosa sempre falaram na união psicofísica em termos de paralelismo entre o corpo e a mente. No entanto Chantal Jaquet sustenta que a doutrina do paralelismo não é adequada para compreender Espinosa.

A doutrina do paralelismo é nociva à compreensão da unidade psicofísica e não conduz à uma compreensão adequada do monismo de Espinosa porque “conduz a pensar a realidade com o modelo de uma série de linhas similares e concordantes que, por definição, não se encontram.” (JAQUET 1, p.25). A doutrina do paralelismo, ainda, supõe “homologias e correspondências biunívocas entre as ideias e as coisas, a mente e o corpo”; supõe que a natureza está “condenada à uma ecolalia sem fim, a uma perpétua repetição do mesmo em cada atributo”; supõe que a unidade é uniformidade; supõe  também “uma tradução sistemática dos estados corporais em estados mentais”; e, assim, que o paralelismo “mascára tanto a unidade quanto a diferença” da união psicofísica. (JAQUET 1, p.29 – 30).

Mais adequado do que a doutrina do paralelismo, para pensar Espinosa, é a doutrina da igualdade. O próprio Espinosa sustenta que há uma igualdade entre potência de pensar e de agir, tanto em Deus como no homem, usando o mesmo adjetivo latino æqualis, tanto para a potência de pensar e agir de Deus como para a do homem. Quando Espinosa diz ordo idearum ordo rerum ele quer dizer que a ideia de um sujeito é a expressão igual de alguma coisa externa, extensa, a este sujeito pensante. Portanto “a teoria da expressão em Espinosa é regida inteiramente pelo princípio da igualdade.” (JAQUET 1, p.32)

“A ruptura de Espinosa com Descartes a respeito dos afetos na Ética III”

Chantal Jaquet sustenta que Espinosa e Descartes não estariam tão distantes no que tange aos afetos, ambos têm alguns pontos de convergências. Podemos resumir as convergências entre Descartes e Espinosa em alguns pontos básicos, principalmente nas obras As paixões da alma e na Ética : em ambos há um esforço para superar o dualismo mente/ corpo, em ambos há uma abordagem física e mental dos afetos, ambos fazem uma abordagem dos afetos por um método físico-geométrico, em ambos há uma naturalização e racionalização dos afetos, para ambos as paixões são inerentes ao ser humano, para ambos há uma ordem causal por detrás da desordem das paixões, para os dois a mente tem poder sobre as ações e ambos fundam uma “ciência” dos afetos.

Mas, quanto às divergências sobre os afetos, elas se resumem a dois pontos: um concerne à causa das paixões; o outro, à “natureza do poder da mente sobre elas” (JAQUET 1, p.57). Descartes sustenta que a causa das paixões são as ações do corpo sobre a alma e da alma sobre o corpo, ou seja, para ele as paixões são movimentos ativos. Espinosa sustenta que a causa das paixões não está de forma alguma nas ações do corpo ou da alma, ou seja, para ele as paixões são movimentos passivos tanto do corpo quanto da alma, já que ambos são igualmente ativos ou passivos, conforme aquele “princípio de igualdade” das potências que nos fala Chantal. A proximidade entre Descartes e Espinosa, segundo Chantal, está em que ambos concebem corpo e mente em termos de relação psicofísica; mas a distância que os separa está em que Descartes, em última análise, atribui a causa das paixões a uma ação corpo (JAQUET 1, p.58), enquanto Espinosa a atribui à relação do corpo e da mente com a exterioridade, na qual as ideias na mente são determinados pelo exterior (ideias inadequadas). Mas, como lembra Chantal, esse diferente entre os dois filósofos acarreta uma outra, que concerne ao poder da alma sobre os afetos (JAQUET 1, p.60): Descartes acreditava num poder absoluto da alma sobre o corpo, já que ela era a detentora de uma vontade livre capaz de controlá-lo; Espinosa fala em moderação dos afetos a partir de seu conhecimento, isto é, a partir da formação de uma “ideia clara e distinta”, ou adequada, sobre o próprio afeto passivo que, então, deixa de ser passivo (JAQUET 1, p.63).

“A gênese diferencial dos afetos no prefácio do Tratado teológico- político e na Ética”

Chantal Jaquet trata de uma diferença significativa em duas obras de Espinosa, uma da juventude, o Breve Tratado (1660), e a Ética (1677) . No primeiro, a percepção do corpo pela mente é um efeito do corpo ainda; assim, há uma “ação recíproca da alma sobre o corpo” e vice- versa que configuraria um parentesco com Descartes. Na última, a percepção do corpo pela mente é um efeito das ideias das afecções do corpo; aqui ele “exclui toda causalidade recíproca e toma a forma de uma equivalência e de uma correspondência entre modos e atributos diferentes” estabelecendo uma ruptura completa com Descartes.

A questão, portanto, para Jaquet, é “saber se as diferenças são o índice de uma simples mudança de pontos de vista compatíveis entre si ou se elas revelam divergências que atestam uma mutação do pensamento de Espinosa.” (JAQUET 1, p.73).

Para compreender esta questão Chantal Jaquet vai para uma obra intermediária de Espinosa, que fica entre o Breve Tratado e a Ética, o Tratado teológico-político (1670), que, por sua localização intermediária entre as duas obras iniciais mostra a evolução do pensamento de Espinosa em direção à Ética.

O Tratado teológico-político tem muitas diferenças em relação à Ética; as principais tangem aos afetos, que são diferentes dos apresentados na Ética. Uma distinção importante é que no Tratado teológico-político não há, ainda, a distinção entre afetos ativos e passivos. Ali os afetos são vistos como passivos sempre. Aquilo que mais tarde a Ética vai chamar de afetos ativos estão agrupados sob a categoria de fortitudo, subdivididos em animositas e generositas.

Outro ponto que é ressaltado por Jaquet é que no Tratado teológico-político o apetite e o desejo são opostos à razão. O Tratado teológico-político não tem a intenção de fazer uma teoria dos afetos, seu objeto é outro, por isso ele não contém explicitamente uma teoria dos afetos e quando cita os afetos, cita-os sempre como paixões, não mencionando que há afetos ativos. Já na Ética há uma virada em Espinosa. Nela o afeto é definido como fruto de uma causalidade adequada ou como fruto de uma causalidade inadequada: no primeiro caso o afeto é ativo, no segundo é passivo; ou seja, os afetos ativos são ações e os afetos passivos são paixões. Os três afetos básicos – desejo, alegria e tristeza – são decorrentes desta definição. A distinção entre afetos ativos e passivos é uma inovação da Ética. Na Ética há uma “razão apetitiva e um apetite racional.” (JAQUET 1, p.93). A Ética oferece assim “uma visão mais unificada do homem, o qual não é dotado senão de uma única natureza apetitiva que se declina seja sob um modo passivo, seja sob um modo ativo.” (JAQUET 1, p.93). Na Ética “a razão torna-se essa potência ativa capaz de engendrar afetos que coíbem as paixões tristes.” (JAQUET 1, p.94).

Portanto, há uma evolução do pensamento de Espinosa, em direção à Ética, que “confirma essa orientação do sistema rumo a uma concepção mais e mais dinâmica do potência de agir.” (JAQUET 1, p.96).

“A definição do afeto na Ética III”

Uma primeira questão que aparece na Ética é referente à palavra affectus. Chantal Jaquet aponta que, dentre as várias palavras latinas à disposição – emotio, passio, commotio – Espinosa utiliza a palavra affectus e que dentre as várias traduções – emoção, paixão ou sentimento – a mais adequada é afeto.

Quanto à definição de afeto, na parte III da Ética há duas definições, uma no início (SPINOZA 2, III, def.3) e outra no final (SPINOZA 2, III, def. geral). Na primeira o afeto é ativo e passivo. Na segunda o afeto é somente passivo. Esta segunda definição é a mais problemática, porque ela é uma definição geral dos afetos e, no entanto, restringe o afeto ao seu aspecto de passividade e mental.

O problema da segunda definição do afeto é que ela é uma definição geral (generalis) e está no final da parte III, o que induz a pensar que ela é uma definição genérica que tenta abranger todos os afetos. Porém ela foca só o aspecto mental e passivo dos afetos, excluindo os ativos. Chantal Jaquet diz que ela é uma definição generalis no sentido de gênero e não de genérico, por isso ela enfatiza o aspecto passivo e mental do afeto porque desta forma, prestando atenção às características genéricas das paixões, pode-se determinar sua força, sua utilidade, sua nocividade e a potência da mente para contrariá-las: “ela é dita geral pois remete todas as paixões a um só gênero, a ideia confusa, e permite em seguida compará-las em função de sua aptidão a aumentar ou diminuir a potência de agir do homem.” (JAQUET 1, p.115)

Espinosa diz que os afetos são afecções corporais que aumentam e ajudam ou  diminuem e contrariam a potência de ação deste corpo e também que os afetos são as ideias destas afecções do corpo (SPINOZA 2, III, Def.3, p.98). Nesta definição, o afeto é definido primeiro em relação ao corpo e depois em relação à mente.

A primeira questão que o aspecto corporal do afeto implica é sobre a distinção entre afeto e afecção. Todo afeto é uma afecção corporal mas nem toda afeção corporal é um afeto, portanto, o que distingue afetos de afecções? O critério de diferenciação é a potentia agendi do corpo, ou seja, “uma afecção é um afeto se e somente se tem um impacto sobre a potência de agir do corpo.” (JAQUET 1, p.129). Desta forma os afetos se diferenciam das afecções porque eles tem a capacidade de fazer variar a potentia agendi.

Tudo tem uma potentia agendi porque a potentia agendi é uma vis existendi. Portanto, devemos entender a potência de agir como força de existir e a verdadeira potência de agir é a que tem a ver com as ações, pois repousa sobre um conhecimento adequado, porque aumenta a potência como força de existência. As ações, isto é, aquilo que um sujeito ativo faz, é causa adequada dos efeitos corporais, aumentando a potentia agendi como vis existendi.

Há quatro tipos de afetos que impactam a potentia agendi : os que aumentam ou diminuem e os que ajudam ou coíbem. Chantal Jaquet sustenta que há uma diferença entre os que aumentam/diminuem e os que ajudam/coíbem, dizendo que o segundo grupo não é somente um recurso de insistência, mas que há uma diferença de grau e natureza entre eles. O segundo grupo, que ajuda/coíbe a potência, são afecções que não aumentam nem diminuem a potência de agir do corpo, mas que “só fazem neutralizar as forças contrárias ou favoráveis.” (JAQUET 1, p.142).

Então, Chantal Jaquet elenca cinco tipos de afecções que ajudam ou coíbem a potentia agendi: 1) ajuda ou coíbe o que se opõe à destruição do que se ama ou à conservação do que se execra; 2) ajuda ou coíbe que a imagem da alegria do que se ama seja vista como causada por nós; 3) ajuda ou coíbe sentimentos que mudam de hostis à amigáveis ou de amigáveis a hostis; 4) ajuda ou coíbe alguém que faz o bem ao outro ou não; 5) ajuda ou coíbe a concepção adequada ou inadequada da impotência humana.

O afeto também é definido em relação ao atributo pensamento, à mente. Os afetos são as afecções corporais, mas também são ao mesmo tempo (et simul) as ideias destas afecções corporais, e estas ideias são modos certos e determinados da atividade eterna e infinita do atributo pensamento.

Chantal Jaquet diz que há três maneiras de compreender o advérbio et simul, que se refere à simultaneidade das afecções corporais e mentais. Primeiro, et simul significa que os afetos são psicofísicos. Segundo, et simul significa que os afetos são psíquicos. Terceiro, que eles são físicos. Desta forma há três categorias de afetos, os psíquicos, os físicos e os psicofísicos.

“As variações do discurso misto”

Espinosa faz três divisões concernentes aos afetos: ações e paixões, primitivos e compostos e bons e maus. Desta forma ele não visa uma enumeração exaustiva dos afetos porque os afetos, de um modo geral, se reduzem à três, o desejo, a alegria e a tristeza. Os outros afetos compostos são decorrentes destes afetos primitivos.

Mas Chantal Jaquet estabelece três categorias de afetos, segundo a referência seja mais o corpo, a mente ou ambos, embora todo afeto conserve uma natureza psicofísica. Primeiro há os afetos que se referem ao corpo e à mente, simultaneamente: são os propriamente psicofísicos, que têm “uma realidade psicofísica, sendo objeto de um discurso misto exprimindo a mente e o corpo em paridade.” (JAQUET 1, p.168). Dentro dos psicofísicos, estão os três afetos originários – desejo, tristeza e alegria – e alguns derivados, como o orgulho, a humildade e o amor a Deus. Depois, há os afetos propriamente corporais e Espinosa põe a carícia, a hilaridade, a dor e melancolia como afetos corporais também porque eles “têm um impacto sobre a potência de agir e a fazem variar” (JAQUET 1, p.172). Além destes há também o fastio e o tédio. Por fim, há os afetos mentais. Chantal Jaquet elenca o amor intelectual de Deus, a glória, o arrependimento e a saudade como afetos propriamente mentais.

Diz Espinosa que “Se uma coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de agir do nosso corpo, a ideia dessa coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de pensar de nossa mente.” (SPINOZA 2, III, prop.11). Desta forma, todo discurso sobre os afetos, sejam eles mentais ou corporais, é “de essência psicofísica.” (JAQUET 1, p.176). Apesar de a ordem das ideias ser a mesma que a ordem das coisas, nem todo afeto concerne à mente e ao corpo da mesma maneira. Isso remete à tese de Chantal Jaquet de que o monismo espinosano deve ser concebido como igualdade de potência e não paralelismo. “O corpo e a mente são apreendidos ao mesmo tempo sem ter necessariamente o mesmo tempo” (JAQUET 1, p.181, grifo da autora). Por isso o discurso sobre os afetos é sempre misto, nunca é só corporal nem só mental.

Desta forma Espinosa “convida a romper com uma concepção simplista da igualdade entre a potência de pensar e de agir que faria dela a resultante de uma atividade análoga no corpo e na mente ou o reflexo idêntico do que se passa em cada um dos objetos.” (JAQUET 1, p.183). Isto quer dizer, a título de conclusão, que a doutrina da expressão de Espinosa  não supõe paralelismo nem causalidade recíprocas, mas, sim, igualdade, que é antes de tudo uma igualdade de potência; e esta é a tese central de Chantal Jaquet. A mente tenta sempre ver paralelismo e causalidade recíproca entre o corpo e a mente, mas, na verdade, eles não existem, a não ser como pensamentos. A igualdade da potência de pensar e de agir não elimina, contudo, as desigualdades de expressão da mente e do corpo, porque eles exprimem atributos que são diferentes (pensamento e extensão, donde a desigualdade expressiva), mas que constituem a essência de uma mesma Substância (donde a igualdade de potência).

“Conclusão”

É importante ressaltar que o livro da filósofa francesa Chantal Jacquet está em diálogo com o livro do neurocientista português António Damásio Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos . Nesta sua obra, o neurocientista resgata o filósofo holandês para justificar a atualidade de seu monismo sobre o dualismo cartesiano dentro da neurociência contemporânea.

No entanto, ao ver de Chantal Jaquet, o neurocientista português “não está sempre à altura de seu modelo e carece às vezes de rigor, porque continua a falar de emergência da mente a partir do corpo, de passagem do neural ao mental.” (JAQUET 1, p.188). Esta crítica da filósofa francesa se confirma no trecho onde o próprio Damásio diz que “é preciso compreender que a mente emerge de um cérebro ou de um cérebro situado no corpo propriamente dito com o qual ela interage; que, devido à mediação do cérebro, a mente tem por fundamento o corpo propriamente dito.” (DAMÁSIO 3, p.91). Para Jaquet, Damásio tende a pensar a mente em termos de emergência a partir do corpo, quer dizer, do cérebro. Para Damásio o cérebro causaria a mente – a alma, a consciência, o pensamento – porque ele pensa a relação psicofísica em termos de paralelismo. António Damásio erra ao apresentar a unidade do corpo e da mente “sob a forma de um paralelismo.” (JAQUET 1, p.189). Do estudo dos afetos em Espinosa, Chantal Jaquet extrai duas lições. A primeira lição é “banir toda busca de interação, de influência ou de causalidade recíproca entre a mente e o corpo para pensar unicamente em termos de correspondência e de correlação.” (JAQUET 1, p.187). A segunda lição é que “o modelo espinosista da união psicofísica não repousa sobre um paralelismo, mas sobre uma igualdade.” (JAQUET 1, p.188). Dessas duas lições sobre o estudo dos afetos conclui-se que há uma identidade entre a ordem e a conexão das ideias e das coisas; mas que tal identidade não “deve mascarar a diferença de expressão própria aos modos de cada atributo.” (JAQUET 1, p.190).

Referências

  1. JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução Marcos Ferreira de Paula e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
  2. SPINOZA, Benedictus de. Ética . Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
  3. DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das letras, 2004.

Bruno D ’Ambros – Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina.

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An Enquiring Mind: Studies in Honor of Alexander Marshack – BAHN (DP)

BAHN, Paul G. (Ed.) An Enquiring Mind: Studies in Honor of Alexander Marshack. Oxford; Oakville: Oxbow Books. 332p. Resenha de: PRIJATELJ, Agni. Documenta Praehistorica, v.37, 2010.

This volume represents a tribute to Alexander Marshack – an eminent science journalist and photographer who came into the field of Palaeolithic research in 1963 at the age of forty-five as a self-taught outsider with the idea that “certain marks, etched in patterns on bone, represented a calendrical system” (p. 3). In the next forty years, Alexander Marshack contributed enormously to the field of Palaeolithic art research; particularly through his work on the cognitive abilities of early humans and themes such as notational systems, female imagery, finger flutings and net-like motifs, archaeo-astronomy, but also by introducing the new techniques of infrared, ultraviolet and fluorescence light into examining cave paintings.

In accordance with the various research interests of the late Alexander Marshack, twenty seven contributors in twenty two chapters elaborate on such diverse themes and topics as mnemonic systems, rituals, evolution and human cognition, and Palaeolithic art.

Their expertise in various fields, ranging from archaeology, anthropology, ethnography, astronomy and economics, along with their personal acknowledgements of the inspiration of Marshack’s work, testify to his great legacy. Although the papers in this volume are organised alphabetically, this short overview presents them in four sections as recognised by themes they share.

The first thematic section in the volume comprises two papers (Soffer, Tattersall) that seek to explore evolution and human cognition. Soffer, who is concerned with the ‘Neanderthal enigma’, argues against interpreting the Middle to Upper Palaeolithic transition as a revolution, and against the use of environmental determinism for the last Neanderthal niches, since

“it is not only Neolithic or Bronze Age “man” that made “himself” but so did “his and hers” Middle and Upper Paleolithic predecessors – creating both their cultures and biologies through day to day decisions and their intended and unintended consequences” (p. 303).

If Soffer stresses as the principal element of modernity “institutionalized interdependence – the various social ties that create permanent inter-sex bonds between adult individuals through such grouping principles as marriage, kinship, and descent ideologies” (p. 290), Tattersall seeks to explore modernity through the advent of symbolic cognition in Homo sapiens. The author elaborates on the view that the symbolic intellect is

the result of a qualitative rather than a quantitative revolution in hominid cognition: something equivalent in scale developmentally to the unanticipated and apparently abrupt appearance of the essentially modern hominid body skeleton much earlier in hominid evolution” (p. 320–321).

Four papers in the volume (Aveni, Hudson, Krupp and Schmandt-Besserat) are concerned with mnemonic systems. While Hudson tracks the evolution of counting systems from the Palaeolithic to the earliest city-states and stresses the continuous importance of calendrical systems for social structures, Schmandt- Besserat compares and contrasts two major symbolic systems of art and writing to conclude that not only did “The two communication systems had a different origin, history and evolution” but also “art became a universal phenomenon, writing remained the privilege of a few societies” (p. 266). Aveni contributes to the topic by presenting a particular type of Mesoamerican petroglyph – pecked crosses, whose various uses were connected to celestial phenomena and calendars. A paper by Krupp, on the other hand, explores an ancient Greek constellation myth that captures the seasonality of the rains.

The third thematic section in the volume consists of two chapters (Frank, Lorblanchet) that are concerned with rituals. While Frank examines masked figures visits in Europe during winter and links them to bear ceremonialism, Lorblanchet analyses various types of human traces in caves, some of which tend to imitate claw marks. The author interprets them as ritual remnants and “evidence for ritual activity in the heart of the paleolithic sanctuaries” (p. 165). By far the most extensive section in the book comprises chapters examining Paleolithic and rock art.

The contributors present diverse case studies, ranging from portable and parietal art from European and Near Eastern Paleolithic contexts (Belfer-Cohen & Bar-Yosef, Bosinski & Bosinski, Delluc & Delluc, d’Errico, Martin, Mussi, Otte, Pettitt & Bahn & Züchner, Sharpe & Van Gelder) to Altai Bronze age petroglyphs (Okladnikova) and Australian aboriginal rock art (Clegg). The paper by Belfer-Cohen and Bar-Yosef thus focuses on abstract and figurative art in the Near East which is dated to the late Pleistocene. The authors argue that some of the abstract Natufian markings, previously interpreted as decorations, might be notation marks, perhaps “markers of specific groups” (p. 32). While Bosinski and Bosinski analyse the representations of seals from the Magdalenian site of Gönnersdorf and interpret them as evidence of the long-range mobility of the group occupying a site 500 km away from the ocean, D’Errico re-examines plaquette 59 from the very same site with the oldest depiction of childbirth. The author draws attention to several new components of the engraved composition, most importantly to a third female figure.

According to the author, the depiction of childbirth in an upright position assisted by other women indicates that “relationships between women had attained a degree of complexity comparable to that of traditional societies in which these practices have been documented” (p. 107). Delluc and Delluc examine a particular aspect of Paleolithic art – depictions of animal and human eyes to illuminate the mind of Palaeolithic artists. Otte, on the other hand, focuses on the semantic qualities of cave art by an interesting comparison of Paleolithic signs with modern road markings and graffiti. The author aims to penetrate the codified meanings of parietal art by, first, examining primary units or ‘morphemes’ consisting of “drawings, outlines, colors and textures” (p. 229) and, second, by analyzing complex compositions and their relationship with the space and the viewer. While Martin publishes for the first time a detailed study of the engraved and carved block from the cave of Guoy, Mussi, on the other hand analyses the Upper Paleolithic Venus figurine of Macomer from Western Sardinia. Pettitt, Bahn and Züchner question the dating of Chauvet art to the Aurignacian and Gravettian periods as proposed by the Chauvet excavation team and convincingly argues on the basis of features, motifs and techniques ascribable to the later phases of the Upper Paleolithic, problems connected with the radiocarbon dates obtained, and the lack of parallels in the decorated caves of the region that “while one cannot rule out the possibility of a limited amount of Aurignacian art in Chauvet, by far the greater amount of its parietal figures should be attributed to the Gravettian, Solutrean and Magdalenian” (p. 257). Lastly, Sharpe and Van Gelder discuss various types of finger flutings – “the lines that human fingers leave when drawn over a soft surface” (p. 269) – which have been frequently overlooked in interpretations of Paleolithic art. By differentiating several forms of finger fluting on the basis of body movement and the number of fingers used, as documented in Rouffignac Cave, they open a new avenue for investigations of this particular type of sign.

I put this book down with mixed feelings. Reading through the collection of papers, I did not have the sense of a well integrated volume, primarily for two reasons: first, the quality of the papers varies (which is alluded to also by the editor; cf. p. x). Second, the alphabetical organisation of chapters enhances the sense of thematic incongruity. While it is not uncommon for Festschrifts to compile heterogeneous themes, it is also common to present the personal recollections of an honoured scientist (in this volume Marshack, Lamberg-Karlovsky) and a complete bibliography of the person whom the book is honouring.

Unfortunately, Marshack’s bibliography is missing from this volume. Nevertheless, several well-balanced, theoretically firmly grounded pieces made my reading enjoyable. In spite of the vast range of themes covered, I believe this is a book which will be read primarily by people working in the field of Paleolithic art.

Agni Prijatelj – Durham University

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