Gender and Diplomacy. Women and Men in European Embassies from the 15th to the 18th Century | Roberta Anderson, Laura Oliván Santaliestra e Suna Suner

1 En marzo de 2016 varios especialistas provenientes de diferentes casas de estudio de Europa y Rusia se reunieron en las instalaciones del Don Juan Archiv (Viena) para reflexionar en torno a la relación entre género y diplomacia entre los siglos XV y XVIII. El evento contó con la coordinación académica de Suna Suner, Laura Oliván Santaliestra y Reinhard Eisendle. El libro que reseñamos, publicado en 2021, recoge los trabajos presentados en el mencionado simposio. Se trata de una publicación de referencia que desarrolla una línea de investigación con notoria actualidad en el mundo académico: la historia diplomática de las mujeres. Leia Mais

Peuples exposés, peuples figurants – DIDI-HUBERMAN (A-EN)

DIDI-HUBERMAN, Georges. Peuples exposés, peuples figurants. Paris: Les Éditions de Minuit, 2012. Resenha de: EDUARDO, Jorge. Alea, Rio de Janeiro, v.22 n.1, jan./apr., 2020.

Um dos percursos possíveis para entendermos a presença de Aby Warburg nas operações críticas de Georges Didi-Huberman é seu estudo intitulado L’image survivanteHistoire de l’art et temps de fantômes selon Aby Warburg,1 de 2002. Podemos marcar a importância desse estudo para a exposição Atlas, ¿cómo llevar el mundo a cuestas?, montada inicialmente no Museu Reina Sofía, em Madrid, entre 26 de novembro de 2010 e 28 de março de 2011. Nessa exposição, o Atlas Mnemosyne, de Warburg, é um lugar, mais precisamente uma “mesa de orientação”,*1 onde a relação topográfica entre “tableau” (quadro) e “table” (mesa) marca a diferença entre aquilo que já está previamente fixo, designado pelo quadro, e uma possibilidade heurística de um trabalho em via de fazer-se, apontada pela mesa.

Mesmo sendo um topos importante para o pensamento de Georges Didi-Huberman ao longo de outros livros, a orientação de Warburg ficou ainda mais precisa na exposição Histoires de fantômes pour grandes personnes, exibida no Le Fresnoy entre 5 de outubro e 30 de dezembro de 2012. Nessa exposição, Georges Didi-Huberman faz um recorte do Atlas Mnemosyne, especificamente a prancha 42. O movimento do filósofo e historiador da arte francês atinge uma precisão, seguramente. Dessa precisão, observam-se ainda dois aspectos em ambas as exposições: como expor as fontes, que é também como pôr a história em cena, e ainda como apresentar o mecanismo museológico da montagem. Isso fica mais evidente no ensaio fotográfico de Arno Gisinger intitulado Atlas, suite e disposto na instalação Mnémosyne 42, concebida por Didi-Huberman, que faz parte de Histoires de fantômes pour grandes personnes. Sobre os dois primeiros aspectos, o texto de apresentação introduz uma discussão em torno das “fontes” e da “história”:

Mnémosyne 42 é uma prancha de atlas desmesurada (mais ou menos mil metros quadrados) e animada. Ela está “posta” sobre o chão da grande proa do Fresnoy e pode ser observada do corredor como o mar pode ser observado da popa de um navio. Seu tema é idêntico, mas os exemplos escolhidos foram o caminho que vai dos exemplos clássicos caros a Warburg até o cinema moderno (Eisenstein ou Dreyer, Pasolini ou Glauber Rocha) e contemporâneo (Paradjanov ou Jean-Luc Godard, Harun Farocki ou Zhao Liang), incluindo também alguns documentos tirados da atualidade política mais recente.*2

A medida é a desmesura. Nesses termos, ao abordar a escala do espaço expositivo, Didi-Huberman exibe um tema que lhe é caro e que se oferece como um fio condutor entre as imagens por ele expostas em Mnénosyne 42: a questão do excesso, do pathos, do sofrimento. Mas cada um desses momentos traz consigo suas nuances, que serão discutidas ao longo da leitura de Peuples exposés, peuples figurants, quarto volume da série intitulada O olho da história (L’œil de l’histoire). Essa série a qual pertence Peuples exposés, peuples figurants também compreende os livros Quand les images prennent position (2009), Remontages du temps subi (2010) e Atlas ou le gai savoir inquiet (2011).

Em Peuples exposés, peuples figurants, de 2012, Georges Didi-Huberman toma como démarche o valor de exposição dos povos. Uma vez colocada a questão da utilização de palavras isoladas como “homem” e “povo”, surge uma reflexão com a referência a Hannah Arendt: trata-se de os homensos povos. Além de uma história já manifestada nas mudanças econômicas, nas exigências sociais e nas maquinações políticas, existe uma história secreta nas próprias disposições interiores de um povo, como no caso do povo alemão evocado por Siegfried Kracauer, em De Caligari a Hitler.*3

Existe, no entanto, uma dinâmica que envolve o desaparecimento dos povos e sua manifestação sob as formas de vida expostas no cinema, seja por Eisenstein, seja por Charles Chaplin, historicamente discutidas como apostas estéticas distintas. Na leitura de Georges Didi-Huberman, os povos ganham as telas não apenas para ser um motivo nos filmes de ambos os cineastas citados, mas porque eles escolheram a autoexposição como o gesto revolucionário das manifestações ao longo do século XIX. (Ibidem: 30-31.) Isso nos leva a dizer que esse foi um lugar “conquistado”. Dessas manifestações, o autor escolhe um ponto crucial: trata-se das fotografias de Philippe Bazin, cujo conjunto de retratos possui um movimento elíptico da humanidade entre velhos e recém-nascidos. Se todo um aspecto do ciclo vital e biológico fica exposto, o fotógrafo, que é médico de formação e cuja prática profissional o conduziu a trabalhar o paradoxo da distância e da proximidade na fotografia, chama esse movimento de “animalidade”. Georges Didi-Huberman, ao tomar os retratos feitos por Bazin, toma essa palavra em meio ao conjunto de imagens para afirmar que existe um gesto que permanece em potência: “o que Bazin chama de ‘animalidade’ talvez seja esta humanidade concentrada na espécie do minimum vital no qual cada intensidade se bate contra a amorfia, cada gesto com sua própria impossibilidade de realização”. (Ibidem: 46.) Esse movimento acontece de forma sutil, quer dizer, é dos povos expostos que o filósofo e historiador da arte passa para os rostos, isto é, para os retratos feitos por Bazin, que ele chama ainda de “uma comunidade de rostos”.*4

Em uma espécie de arqueologia do popular, Peuples exposés, peuples figurants pode ser lido como uma investigação sobre o que é a espécie humana sob suas manifestações de comunidade, de pobreza contraposta mesmo às dimensões cívicas de um retrato de grupo ou do culto à personalidade do retrato, na qual é preciso recorrer a poemas, a gravuras que fazem dos povos formas de expressão que são, enfim, uma política de sua própria exposição. Nesse sentido, as mudanças entre diversos retratos de grupos “ameaçadores” exibem um encadeamento que vai da paranoia medieval das bruxas e feiticeiras, passando pelos contaminados pela peste até chegar atualmente a esses crimes escondidos ou anônimos na própria multidão, chamados de “terrorismo”.*5 Se isso de fato acontece com os grupos, acontece também com a exposição dos povos no que também já foi chamado de “arte degenerada”, ante os próprios totalitarismos da raça. Evidentemente, a cultura possui seus equívocos, como já escreveu Georges Bataille. No entanto, isso faz da tarefa de expor os povos algo ainda mais delicado; trata-se, ainda, de uma busca incessante de uma comunidade. Expor os povos é uma busca interminável da comunidade em que a partilha é um dom, isto é, uma dádiva, no sentido dado por Marcel Mauss até que uma partilha dos olhares e das vozes passa por uma alteração notada por Didi-Huberman como uma alteração do sentido e do aspecto que se desencadeia em uma desidentificação. Assim, a partir de Jean-Luc Nancy, Georges Didi-Huberman argumenta que “o dom do outro é, por essa razão, que faz com que a comunidade não se instaure por uma soma de ‘eus’, mas por uma partilha do ‘nós'”.*6

Em Peuples exposés, peuples figurants, existe a exposição de um mecanismo sutil que é como o espaço da imagem, antes predominado pelo culto da personalidade e pelo retrato cívico de grupo, passa a ser tomado pela presença dos povos com as revoluções e, mais precisamente, com a pobreza urbana, como a da Inglaterra do século XVII, nas pinturas e gravuras de Marcellus de Laroon. Mas será, enfim, Goya aquele que melhor expressará essa pobreza. Seus desenhos, gravuras e pinturas estão voltados para uma catalogação de gestos feita pelo pintor: desde o modo como as crianças brincam com os cães, passando pelos enterros, festas de casamento, pelos párias nos hospitais, pelos jogos de cartas, pelos risos até chegar aos fuzilamentos de pobres, enfim, esse “espaço de clamor” também é “sua grande cólera libertária”. (Ibidem: 120.) Em meio a essa passagem, tal estado de “desgraça” visto nas imagens de Goya, por exemplo, pode ser visto como uma “deformação patológica” naturalizada mais tarde, no fim do século XIX, por Jean Martin Charcot e Paul Richer, época inclusive em que a histeria surge como o marco de uma enfermidade, libertando o mundo de toda uma imagerie de possessões e de bruxarias.2

Na primeira metade do século XX, a exposição dos povos teria ainda toda uma topografia cara a Eugène Atget, próxima de uma erotização dos trajetos urbanos, como o faz André Breton com Nadja, (Ibidem: 130.) e com esse efeito o “documentário” se aproxima do “estilo”, que, ao contrário de propostas exclusivamente formais, ambos não se separam. Assim, é nesta lógica que as fotografias dos abatedouros do Parque da Villette feitas por Eli Lotar estão muito próximas não apenas do artigo “Abattoir“, de Georges Bataille, para a revista Documents, em 1929, como também podem ser vistas como a própria encarnação da imagem da carniça evocada nos versos de Charles Baudelaire.

Se Didi-Huberman se valeu de formas de sofrimento ou, para sermos mais coerentes com o vocabulário do filósofo, das “fórmulas de pathos” (Pathosformeln), de Aby Warburg, para a composição de sua prancha desmesurada no Le Fresnoy, em Peuples exposés, peuples figurants, após as fotografias de Bazin, é o trabalho de Pier Paolo Pasolini que ganha relevo. Prosseguindo com sua leitura do cineasta feita em Survivances des lucioles (2009),3 a parte “Poèmes des peuples” (“Poemas dos povos”) retoma a figuração de La sortie des usines Lumière, de 1895, em que desde as origens do cinema os atores estão na própria condição de povo, mais precisamente como os trabalhadores da fábrica onde os próprios patrões, os irmãos Lumière, se encarregam de pô-los em cena. Sobre esse filme, o cineasta alemão Harun Farocki (cuja obra é analisada no segundo volume de L’œil de l’histoireRemontages du temps subi) desenvolveu um filme-ensaio intitulado Arbeiter verlassen die Fabrik, de 1995, expondo politicamente todo o mecanismo emocional dos trabalhadores ao final de um dia de expediente.

Afinal, o que são os figurantes? E ainda de modo mais conciso: quem são os figurantes? Sobre esse estudo que marca a passagem dos povos em cena à sua simples figuração, isto é, o movimento de fundo, lemos que “o cinema não expõe os povos, ao que parece, senão pelo estatuto ambíguo de ‘figurantes’. Figurantes: palavra banal, palavra para ‘homens sem qualidade’ de uma cena, de uma indústria, de uma gestão do espetáculo dos ‘recursos humanos'”.*7 São eles, os figurantes, que constituem um movimento de fundo para a ênfase nos protagonistas, os heróis que seriam os atores da história. Os figurantes situam-se como uma massa humana informe, em movimento, emprestando seus rostos, seus gestos, enfim, seus corpos. O desafio, ao perguntar quem são os figurantes, é se aproximar daqueles que não são efetivamente os atores, observar seus gestos e ouvir suas palavras. O desafio posto no livro é uma repentina mudança de foco, onde um olhar estrangeiro como o do espectador pode discordar do movimento das lentas da câmera para ganhar autonomia no quadro, na cena, sendo esse um primeiro passo para aproximar-se dos não atores. Sendo assim, as formas sociais de exposição dos povos mudam assim como a estética dessa apresentação: se antes a “documentação” confrontava-se com o “estilo”, é com Pasolini que a exposição dos povos desafia todo o projeto de relegá-los ao pano de fundo.

De fato, a partir da leitura de Peuples exposés, peuples figurants, Pasolini possui um movimento dialético, pois ele expõe os povos ao mesmo tempo em que se expõe aos povos, onde o desejo e o perigo estão misturados, fato que realmente interferiu na sua vida: “expor os povos supõe expor-se à alteridade, quer dizer, uma afronta de si mesmo – enquanto se é poeta ou cineasta – em um ‘gueto’ no qual não se será protegido de modo algum”.*8 Assim, é no viés de uma exposição de si mesmo aos “povos” que se baseia toda a experiência na obra de Pasolini, que pode ser resumida em uma “beleza da resistência”, da sobrevida e da sobrevivência.*9 Pasolini assumia o risco do criador não apenas no plano experimental, mas no fato que ele se incluía na exposição dos povos, sendo ainda um cineasta que resistia dentro de fora da linguagem, afrontando o real, digamos, com um cinema de poesia, valendo-se no nível de catalogação dos gestos de Goya, com clamor e glória libertária. Não à toa ele tenha sintetizado esse risco no título de um artigo que diz que “fazer cinema é escrever sobre um papel que queima”. Isso seria ainda um outro modo de expor o que Gilles Deleuze escreveu em “Imanência, uma vida…”: “minha ferida existia antes de mim” ou próximo ainda do que Maurice Blanchot, a partir de Kafka, fala da “terceira pessoa”, o “ele” que destitui o sujeito.*10 Assim, o ato de expor os povos é também o risco de se expor ao perigo, gesto que está, inclusive, no étimo da palavra “experiência” e que está no limite do que Bataille escreveu em A experiência interior: “é preciso viver a experiência, ela não é facilmente acessível, e mesmo, considerada de fora pela inteligência, seria preciso ver aí uma soma de operações distintas, algumas intelectuais, outras estéticas, outras enfim morais, e todo o problema a retomar”.*11

Essa forma distinta de exposição dos povos encontra uma força de expressão, além de Pasolini, em filmes e obras de Chantal Aakerman, Béla Tarr, Glauber Rocha e ainda Wang Bing, a quem Georges Didi-Huberman dedica o epílogo do livro ao filme L’homme sans nom (O homem sem nome). E, nessa dinâmica entre o aparecer e o desaparecer, a exposição dos povos segue de forma incessante, praticamente dialética: “assim segue a exposição incessante dos povos, entre a ameaça de desaparição e a necessidade vital de aparecer, apesar de tudo”.*12

*1 (DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas, ¿cómo llevar el mundo a cuestas? Madrid: Reina Sofía, 2010: 187.         [ Links ])
*2 (Impresso da exposição Histoires de fantômes pour grandes personnes, concebida por Georges Didi-Huberman e Arno Gisinger para o Le Fresnoy – Studio national des arts contemporains – de 5 outubro a 30 de dezembro de 2012 –, Tourcoing, França.)
*3 (DIDI-HUBERMAN, Georges. Peuples exposés, peuples figurants. Paris: Les Éditions de Minuit, 2012: 26.         [ Links ])
*4 (Ibidem: 51.)
*5 (Ibidem: 67.)
*6 (Ibidem: 102.)
*7 (Ibidem: 149.)
*8 (Ibidem: 198.)
*9 (Ibidem: 211.)
*10 (Ibidem: 211.)
*11 (BATAILLE, Georges. A experiência interior. Trad. Celso Libânio, Magali Montagné, Antonio Ceschin. São Paulo: Ática, 1992: 16.         [ Links ])
*12 (DIDI-HUBERMAN, Georges. Peuples exposés, peuples figurants, op. cit.: 231.

1 Editado recentemente em português, História da arte e tempo de fantasmas segundo Aby Warburg. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
2 Quanto a esse aspecto, ver Invention de l’hystérie, de Georges Didi-Huberman, reeditado em 2012 pela Macula.
3 A edição brasileira Sobrevivência dos vagalumes (trad. de Vera Casa Nova e Márcia Arbex) foi publicada em 2011 pela Editora da UFMG.

Eduardo Jorge é mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutorando em Literatura Comparada pela UFMG e pela École Normale Supérieure – ENS.

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O aberto: o homem e o animal – AGAMBEN (SY)

AGAMBEN, Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes – 2 ed. – Edição revista – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Synesis, Petrópolis, v.10, n.2, p.181-187, ago./dez., 2018.

As obras de Giorgio Agamben (1942) vêm ganhando espaço na academia brasileira não só a partir da tradução das mesmas, mas também a partir da publicação de trabalhos, da realização de eventos e da organização de grupos de pesquisa que se propõem a debater as temáticas suscitadas por este autor. Pode-se afirmar, na verdade, que as obras de Agamben estão sendo lidas sob diferentes matizes, tais como o da filosofia, da política, do direito, da economia, da teologia e das ciências da religião. O conteúdo trazido por Agamben permite essas diferentes abordagens porque está intimamente associado à interpretação dos problemas presentes na contemporaneidade. O diferencial das obras de Agamben, no entanto, está na capacidade de realizar uma arqueologia da contemporaneidade, de modo que sua análise não fica somente na superfície do problema: o que lhe interessa, de fato, é buscar o cerne do problema, ou seja, sua intenção está muito mais direcionada à compreensão do próprio problema do que propriamente buscar uma resposta para o mesmo. Essa é uma característica fundamental para se compreender as obras de Agamben de maneira geral, à qual se associam os múltiplos matizes de interpretação: eles se justificam porque os problemas da contemporaneidade estão fundados, basicamente, sob o eixo filosofia, teologia, direito, isto é, sob o pensar (razão), crer (religião) e legislar (lei).

A obra O aberto: o homem e o animal não está cindida dessa dinâmica. Ela está assim estruturada: vinte capítulos, seguidos da bibliografia utilizada pelo autor. O principal objetivo da obra: compreender como é possível distinguir o homem do animal, a humanidade da animalidade. Note-se: seu propósito está muito mais direcionado à compreensão de como é possível afirmar tal distinção do que propor um parâmetro para que ela seja realizada. Nesse sentido, o método arqueológico de investigação permite ao autor um regresso às fontes da distinção. Contudo, o olhar de Agamben não está no passado, mas no contemporâneo: trata-se de uma arqueologia da contemporaneidade. O que isso significa? A princípio: o problema da distinção homem-animal não é algo superado, de modo que buscar compreendê-lo já é um exercício válido para se compreender o homem contemporâneo. Esse é o principal pressuposto de qual parte Agamben: a distinção entre homem e animal não é algo de todo resolvida.

Nesse sentido, a obra pode ser dividida em quatro partes: a primeira abarca o trecho entre os capítulos um e três, a segunda se dá entre os capítulos quatro e onze, a terceira entre o doze e o dezesseis, a quarta entre o dezessete e o vinte. Pode-se dizer, na verdade, que tal reorganização da obra pode ser realizada mediante quatro objetivos específicos propostos por seu autor: 1) expor seu pressuposto principal, a saber, a distinção entre humanidade e animalidade não é algo de todo resolvido; 2) a dificuldade de se afirmar algo como o ser humano; 3) investigar como é possível distinguir o homem do animal; 4) mostrar de maneira crítica os desdobramentos da afirmação da distinção entre homem e animal.

Interessa ainda perceber que as quatro partes possuem interlocutores diferentes: a primeira está em interlocução com uma iluminura presente em uma Bíblia hebraica do século XIII, na qual se “representa o banquete messiânico dos justos no último dia” (AGAMBEN, 2017, p. 10)1. A segunda parte está em interlocução com a possibilidade de distinguir o homem do animal: aqui se percebe com maior nitidez o uso do método arqueológico. Nessa segunda parte ainda se vê que, pelo fato de a discussão de Agamben estar direcionada à dificuldade de se fixar uma definição, há uma interlocução com vários autores, dos quais se destaca a figura de Aristóteles. A terceira parte se põe em interlocução com o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), do qual Agamben foi aluno em 1966 e 1968, nos seminários sobre Heráclito e Hegel. A interlocução com Heidegger se dá a partir da problemática da linguagem. Ela é trazida por Agamben ao final da segunda parte da obra como o ponto nevrálgico da distinção entre o homem e o animal. A quarta parte se inicia com o levantamento de alguns resultados da obra e conclui apontando para o fato de ainda se continuar pensando o homem como um ato de separação.

Atenta-se aqui para o fato de que essa divisão em quatro partes é assumida por essa resenha como uma chave de leitura para a obra O aberto: o homem e o animal. Abaixo, então, seguem alguns apontamentos a respeito dessas quatro partes, mostrando suas principais abordagens e como elas estão interligadas, perfazendo, assim, a obra como um todo.

Como dito acima, o principal objetivo da primeira parte da obra é apresentar a discussão a respeito da cisão entre animalidade e humanidade como um ponto nada pacífico. À interlocução com a iluminura do século XIII se soma a pergunta: como pensar o problema da cisão humanidade-animalidade nos dias atuais? A iluminura destacada pelo autor traz animais em formas humanas como sendo os justos que participam do banquete messiânico. A hipótese levantada por Agamben a partir disso: o artista tenta retratar uma reconciliação entre o homem e sua natureza animal (AGAMBEN, 2017, p. 12). Aqui se realiza um salto: Agamben traz, mesmo que brevemente, as figuras de Georges Bataille (1897-1962) e Alexander Kojève (1902-1968), mostrando diferentes modos de compreender (e, talvez, responder) a questão sobre o que resta do homem após o fim da história. O que é e como se dá o fim da história, porém, não é algo com o qual Agamben se ocupa aqui. Na verdade, o leitor não irá encontrar nada explícito a respeito disso; há somente indicações indiretas, tal como se pode ver mais adiante no capítulo dezesseis – Animalização (AGAMBEN, 2017, p. 119-122).

Note-se: a primeira parte da obra não busca esclarecer a cisão entre homem e animal, mas mostrar que, enquanto problemática, ela ainda é vigente. Dessa maneira, a primeira afirmação a respeito do homem é que ele existe de maneira histórica somente enquanto mantém essa tensão entre a humanidade que pretende afirmar e a animalidade que pretende negar. Leia-se: “ele pode ser humano apenas na medida em que transcende e transforma o animal antropóforo que o sustenta, somente porque, por meio da ação negadora, é capaz de dominar e, eventualmente, destruir a sua própria animalidade” (AGAMBEN, 2017, p. 24). Aqui se dá a passagem da primeira para a segunda parte da obra. Ela acontece quando se nota nas entrelinhas do texto a presença de uma pergunta: o que torna possível a afirmação da humanidade mediante a negação da animalidade?

A segunda parte do texto se inicia com uma constatação fundamental: o conceito de “vida” é aquilo que permanece como indeterminado na história do Ocidente, devendo, pois, ser sempre de novo articulado. Agamben destaca o texto De anima de Aristóteles como um momento decisivo: nele acontece a divisão entre os seres animados e inanimados. A partir de tal divisão se fazem outras: vida vegetal, animal, humana. O que é “vida”, porém, permanece sem definição. Define-se a vida humana mediante a divisão. Aí está o interesse de Agamben: pensar a afirmação do humano a partir da divisão, isto é, da separação com o animal. Pensar a separação permite, pois, pensar também a proximidade. Nesse sentido, se a noção de “vida” deve ser constantemente conquistada –definida sempre de novo, na verdade –, então, a arqueologia como método coincide com uma antropogênese. Em outras palavras: fazer uma arqueologia da vida é compreender o advento do homem se afirmando humano, logo, negando a animalidade. A arqueologia da vida é antropogênese.

Os capítulos cinco e seis se propõem a discutir a noção de identidade a partir de tratados medievais: há aí nas entrelinhas a tentativa de mostrar que a decisão a respeito do humano e do inumano – palavra que aparece pela primeira vez no texto – se aproxima, e muito, do conhecimento experimental de um campo de concentração. Esse ponto é decisivo para que no interior da segunda parte da obra apareça a dificuldade de uma classificação do que é o homem: “Homo sapiens não é, portanto, nem uma substância nem uma espécie claramente definida: é, sobretudo, uma máquina ou um artifício para produzir o reconhecimento do humano” (AGAMBEN, 2017, p. 48). O que é o humano, então? É um animal que, para ser humano, precisa se reconhecer em um não-humano. A pergunta ganha nova forma: o que distingue o humano do não-humano? A linguagem. Ela é a marca do humano (AGAMBEN, 2017, p. 55-63).

Decisivo, no entanto, é o modo como Agamben compreende a linguagem: não um dado natural, mas uma produção histórica. A linguagem, portanto, não pode ser associada nem à natureza animal, nem à natureza humana, dado que é uma construção. Suspender a linguagem significa, pois, suspender a diferença entre homem e animal. Pensar um homem pré-linguístico é pensar o animal, ou seja, a afirmação do humano implica em ter o próprio humano mesmo como pressuposto. Essa “máquina antropológica” (AGAMBEN, 2017, p. 61) funciona necessariamente por meio de uma inclusão e exclusão. A distinção entre humano e animal possui uma “zona de indiferença”. A segunda parte da obra caminha para seu fechamento afirmando que o animal é aquele que consegue sobreviver em um mundo ambiente (Umwelt), mas não se decide por ele.

O humano, assim, é aquele capaz da decisão, sempre rearticulada e atualizada. Aqui se faz a passagem para a terceira parte da obra, na qual o principal interlocutor será Heidegger. De antemão se adverte: Agamben não faz comentários à filosofia de Heidegger. Trata-se, na verdade, de perceber que Agamben está desenvolvendo sua obra de maneira autônoma, permitindo-se encontrar com Heidegger. A partir disso, pode-se dizer que há diálogo, confronto, tessitura de críticas, concordâncias e discordâncias. Querer encontrar em O aberto: o homem e o animalum comentário a Heidegger é reduzir a amplitude e a originalidade da obra.

Interessa ainda perceber o seguinte a respeito dessa terceira parte: o encontro com Heidegger se dá n]ao só a partir da noção de linguagem como uma construção histórica, mas também a partir da noção de tédio como uma disposição afetiva (Stimmung) própria do homem. Dessa maneira, Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão – preleções ministradas por Heidegger em 1929-1930 – é a principal obra do filósofo alemão mencionada, sendo decisiva para Agamben porque a partir dela o autor pode afirmar, de fato, que o aberto diferencia homem e animal: “o aberto nomeia o desvelamento do ente, somente o homem, e mais, apenas o olhar essencial do pensamento autêntico, o pode ver” (AGAMBEN, 2017, p. 92). E mais adiante: “o lugar dessa operação é o tédio” (AGAMBEN, 2017, p. 99).

O capítulo catorze – Tédio profundo – permite perceber que Agamben dá especial atenção à esfera da decisão, justamente porque nela está implicada a possibilidade. Disso se pode concluir que o aberto é o local da possibilidade. A possibilidade de escolha é o que diferencia homem e animal. Ter a possibilidade de escolha é estar no aberto. Estar aberto a quê, porém? A um fechamento, pois o animal não está no aberto: “aquele que observa no aberto vê apenas um fechar-se, apenas um não-ver” (AGAMBEN, 2017, p. 109). Essa abertura a um fechamento mostra, de acordo com Agamben, a luta entre o homem e o animal. Dessa maneira, estar no aberto não significa ser na condição humana de maneira decisiva: estar no aberto é ter a possibilidade da decisão.

Agamben pretende mostrar, assim, que algo como o humano só pode advir na medida em que pode ser escolhido. Erradicar a animalidade é, pois, um fechar-se ao fechamento. O mesmo vale para a tentativa de uma humanização integral do animal que é o homem. A tensão entre animal e homem precisa ser mantida para que o aberto seja, de fato, o lócus do humano. A partir desse ponto a obra caminha para seu fechamento.

O capítulo dezessete inicia a quarta parte da obra fazendo um levantamento de alguns resultados até aqui alcançados. Percebe-se que esses resultados estão aí postos muito a partir da interlocução com Heidegger, o que leva a concluir que o filósofo alemão é uma peça decisiva para se compreender a obra O aberto: o homem e o animal como um todo. O capítulo dezoito – Entre – entra numa breve interlocução com Walter Benjamin (1892-1940) e está intimamente associado ao capítulo subsequente, no qual Agamben traz a imagem de duas pinturas –Ninfa e pastor e As três idades–para discutir, também de modo breve, a sexualidade. O último capítulo aponta que deixar ser o animal significa deixá-lo ser fora do ser, ou seja, deixar ser o animal significa estar em uma zona de não-conhecimento, que, por sua vez, “está para além tanto do conhecer quanto do não-conhecer […]. Mas aquilo que é deixado, assim, ser fora do ser não é, por isto, negado ou removido, não é, por isto, inexistente. É um existente, um real, que está para além da diferença entre ser e ente” (AGAMBEN, 2017, p. 743). Agamben retorna, ao fim, à iluminura com a qual se iniciou a obra: ela talvez aponte para a superação da máquina antropológica.

Afirma-se, então: a divisão aqui apresentada da obra O aberto: o homem e o animal em quatro partes pretende ser justamente uma chave de leitura, uma vez que, como se percebe pela leitura da obra, é difícil querer lê-la a partir de outro ponto específico que não o seu início. A divisão aqui apresentada não pretende tornar a obra mais “fácil” de se compreender, mas tão somente situar o leitor que se sinta mais próximo de algum capítulo específico. Por fim, recomenda-se a leitura dessa obra, pois somente assim o leitor irá se deparar com a profundidade da discussão trazida por Agamben, bem como irá perceber porque este pensador italiano suscita discussões em diferentes áreas. As obras de Agamben trazem, de fato, uma riqueza epistemológica que também pode ser percebida em O aberto: o homem e o animal seja respeito ao método de investigação, seja respeito ao conteúdo aí abordado. Além disso, O aberto: o homem e o animal pode servir como porta de entrada para a leitura e investigação das demais obras desse autor que vem ganhando espaço nas discussões acadêmicas brasileiras.

Nota

1 A presente edição revista da tradução brasileira traz a iluminura destacada por Agamben no verso da capa. A iluminura foi impressa em cores, o que facilita ao leitor perceber algumas características destacadas por Agamben em seu texto.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes – 2ª ed. – Edição revista – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017. 162p.

Luís Gabriel Provinciatto – Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8472704203242937. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética – BARROS (Ph)

BARROS, Roberto. Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética. Campinas: Editora Phi, 2016. Resenha de: MACHADO, Bruno Martins. Philósophos, Goiânia, v. 21, n. 2, p.351-359, jul./dez., 2016.

Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética, livro escrito pelo professor Roberto de Almeida Pereira de Barros da Universidade Federal do Pará (UFPA), publicado pela Editora Phi em 2016, é resultado de um rigoroso trabalho interpretativo.

Já na apresentação é possível vislumbrar essa situação, pois o professor Ernani Pinheiro Chaves (UFPA) destaca o nível de aprofundamento da pesquisa que o leitor terá em mãos. Ele ressalta que o trabalho de Roberto Barros alçou um desenvolvimento continuado desde as investigações na graduação, passando pelo mestrado, pelo doutorado e chegando ao seu formato atual, balizado por pesquisas recentes conduzidas na UFPA e em importantes centros da Alemanha.

Composto por uma apresentação, uma introdução, quatro capítulos (I- “A perspectiva trágica”; II- “Filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte”; III- “A fala poética em Assim falava Zaratustra”; IV- “O além-do-homem enquanto ideal estético”) aos quais se seguem as considerações finais, o livro tem o curso de suas divisões sustentado por duas linhas fundamentais. Elas foram extraídas do modo singular como Nietzsche, valendo-se de uma “compreensão valorativa inerente ao pensar” (p.18), empenhou seu “esforço filosófico” (p.18) para destacar o papel da “arte enquanto manifestação vital e antídoto (Heilmittel) contra o desafio apavorante do existir” (p.19).

A primeira linha gira em torno da concepção e consequências colocadas pelo conceito de além-do-homem. A escolha do conceito justifica-se pela sua centralidade tanto no modo como foi apresentado em Assim falava Zaratustra1, quanto na maneira como tomou forma no desenvolvimento da teoria nietzscheana. Para Roberto Barros, o conceito de além-do-homem exerce a função de “princípio atenuante do peso que a percepção e aceitação dos outros ensinamentos [de Zaratustra] trazem consigo” (p.18). No pensamento nietzscheano, a sua função geraria condições para que a gravidade trágica fosse incorporada à existência como uma perspectiva possível, ou seja, o conceito de além-do-homem abriria a possibilidade para que o peso da condição de verdade do conhecimento fosse transformando em um saber sobre a vida, abrindo as portas para uma “alegre ciência” (p.18).

Tais contornos proviriam de um continuado processo de maturação de pensamentos já expostos em O nascimento.da tragédia2. Nesse sentido, emblemáticas são as noções de dionisíaco, arte, tragédia, inspiração, verdade, conhecimento, função da história, vida, ciência. Concebendo, assim, uma espécie de dinamismo conceitual, é possível visualizar os traços que fomentam a segunda linha. Os aspectos extraídos da concepção de arte trágica defendida por Nietzsche em O nascimento seriam ressignificados em Humano, demasiado humano3, chegariam ao ápice em Zaratustra. Livro, este último, em que a arte se liga tanto à composição conceitual, quanto ao formato da obra, resultando em características específicas que lançam a filosofia nietzscheana para além da concepção de neutralidade do conhecimento típica dos modernos. A consequência extraída desse movimento aponta para o fato de que alguns problemas atribuídos à filosofia de Nietzsche, a exemplo de uma suposta falta de coerência lógico e semântica, poderiam ser resolvidos caso se observasse como a arte adquiriu uma posição de destaque no pensamento nietzscheano de maturidade.

Após esse primeiro panorama, proposto a partir das duas linhas citadas acima, é possível enunciar a ligação dos conceitos e das obras de acordo como foi apresentada pelo próprio Roberto Barros, certamente como umas das hipóteses centrais de seu livro: “ que se pressuponha o fato de que o anúncio do ensinamento do além-do-homem no prólogo de Assim falava Zaratustra e antecedendo o pensamento do eterno retorno, possa ser compreendido segundo os princípios utilizados por Nietzsche em seu primeiro livro para descrever os aspectos formadores da tragédia. Desse modo, o além-do-homem poderia ser entendido como ensinamento preparatório ao anúncio da visão dionisíaca do mundo implícita no ensinamento do eterno retorno. Isso pressuposto, o ensinamento do além-do-homem pode ser retomado como a bela imagem apolínea, posta previamente como forma de consolo e meio de suportar o pensamento dionisíaco do eterno retorno do mesmo” (p.136).

Passando a uma apresentação mais direta dos capítulos do livro, no primeiro, “A perspectiva trágica”, o autor evidencia que, ao escrever O nascimento, Nietzsche manteve em seu horizonte a intenção de expor aos seus contemporâneos uma “nova compreensão do verdadeiro conteúdo do sofrimento e da arte trágica dos gregos” (p.36). Seu propósito de mostrar que a compreensão da existência, com todas as suas possíveis desventuras e sofrimentos, poderia ser transfigurada em um “caráter estético afirmativo” (p.36), consistiria no sentido mais proeminente da arte trágica grega. Mas tal leitura só poderia ser efetivada desde que se olhasse para a proveniência dessa construção artística. O resultado foi a concepção da relação entre Apolo e Dionísio.

A interpretação dada por Roberto Barros para a leitura nietzscheana dos impulsos apolíneos e dionisíacos estrutura- se sobre uma percepção singular que servirá de lastro para os outros capítulos. Barros insere Nietzsche em uma tradição interpretativa que busca entender a arte grega “a partir de uma ‘interpretação’ naturalista” (p. 27). Um movimento que tem como representantes Winckelmann, Lessing, Herder, Goethe, Schiller e Hölderlin. Em todos eles, seria possível observar a tendência de “identificar uma forma natural de manifestação artística” (p.28). Considerando este aspecto, é possível entender um outro elemento que aumentaria a distância entre Nietzsche e os filólogos de sua época. Enquanto os últimos buscavam interpretar a arte grega como “uma mera forma de expressão artística” (p.32), Nietzsche considerava a arte grega como “manifestação dos impulsos artísticos naturais, procedentes da vontade, que, atuam no sentido de criar modos estéticos de representação do mundo, enquanto forma de justificação do sofrimento inerente à existência” (p.32).

Barros assinala que O nascimento atacou um problema não só dos filólogos, mas também de toda cultura de uma época: o massivo distanciamento da arte em relação aos problemas da existência. Tal diagnóstico, gerado pela excessiva “racionalização e moralização do sentido original da arte” (p. 44) decorreria, de acordo com Nietzsche, do desprezo pelas forças dionisíacas.

O dionisíaco seria um “impulso natural relacionado à inconsciência, ao esquecimento de si, à embriaguez e ao orgiástico” (p.41). Uma força oposta à apolínea que, por sua vez, destaca-se pelo transbordamento de consciência, edificando- se sobre o princípio de individuação. Nesses termos é importante identificar a base sobre a qual Roberto Barros identifica a elaboração de O nascimento: o livro seria a análise da tragédia a partir da “manifestação natural dos instintos, responsáveis por estados fisiopsicológicos, que atuam na superação da percepção direta da verdade da existência” (p.45). Também o ocaso da tragédia é lido por Barros como produto desmedido de um agente natural: o socratismo estético. Este empurra o homem para busca por clareza e moderação (aspirações apolíneas) através do emprego da racionalidade. Apropriando-se de todas as formas de conhecimento, através de uma suposta ideia de verdade, o socratismo torna-se a força hegemônica, destitui o dionisíaco. No lugar do desmedido, do insconsciente é instaurada a tirania da ciência com seus pressupostos de verdade alcançados a partir dos saberes conscientes. Ainda no primeiro capítulo, verifica-se o propósito do autor em mostrar conteúdos que denotam como as análises de Nietzsche já se erguiam sobre especulações extraídas da “relação entre saber e vida” (p.64).

No segundo capítulo, Barros passa pelas obras intermediárias de Nietzsche, seu foco é mostrar que a noção de arte adotada por Nietzsche em O nascimento sofreu um grande ajuste. Roberto indica a mudança como prenúncio à ideia da transvaloração dos valores, como se a nova mirada filosófica fomentasse uma nova concepção de arte. Tal mudança se iniciaria a partir de Humano, quando Nietzsche toma Wagner e Schopenhauer como inimigos declarados, pois eles representariam os “efeitos da percepção dos perigos da hegemonia da metafísica e da religião cristã oposta ao dionisíaco” (p. 67). Nesse capítulo, o dionisíaco é apontado como: (i) modo de Nietzsche avançar contra as categorias de valor da tradição metafísica e cristã e (ii) forma de embelezamento artístico do viver. Desse modo, Roberto pretende mostrar que o dinonisíaco não sucumbe no chamado período intermediário da filosofia nietzscheana. Pelo contrário, ele persiste, passando por uma reconfiguração que se apoiaria na ressignificação da noção de arte, efetivada sobre uma também nova mirada da concepção de ciência.

Os capítulos terceiro e quarto articulam uma leitura em conjunto do pensamento de Nietzsche, não como um corpo sistemático, mas como um agrupamento de construções conceituais fluidas, que transmutam através da obra, e ressignificam em virtude da busca de uma forma possível de afirmar e elevar a vida.

Fundamental nesse percurso é a forma como Barros explora as noções de eterno retorno do mesmo, grande saúde, morte de deus, transvaloração dos valores, além-do-homem, dionisíaco e arte. O eterno retorno do mesmo, o pensamento mais abissal de Zaratustra, já é anunciado desde A gaia ciência, em último grau, o pensamento do eterno retorno manifesta “uma pluralidade de contextualizações possíveis, que se desdobram em pretensões científicas, morais estéticas, cosmológicas” (p.103). Também denota uma experiência própria ao âmbito individual que se traduz psicofisiologicamente como afirmação ou negação da existência.

Frente ao eterno retorno, a grande saúde se mostra como “a capacidade de suportar os perigos e sofrimentos” (p.111) que a existência coloca ao homem e, mais ainda, o desejo de enfrentar tais condições para poder conseguir criar algo afirmativo. A morte de deus pode ser descrita como a face do niilismo que liberta o homem de seu apequenamento na moral, ela impulsiona o indivíduo para uma busca por superação. Esse o faz desde que consiga transvalorar os valores. Justamente aqui incide o alcance do conceito de além-do-homem, este é o símbolo da necessidade humana de superar a si mesmo, o termo estético com o qual o “ensinamento do eterno retorno pode ser interpretado a partir de sua significação afirmativa para a existência humana” (p.114). Sob tal configuração, o dionisíaco emerge como indicativo da crise dos fundamentos da tradição filosófico-científica e da religião – “ele é o ato decisivo de retorno da humanidade a si própria e que no autor faz carne e gênio” (p.114). A arte liga-se ao dionisíaco através da “postura heróica” (p.180) com a qual o homem entende a existência em sua tragicidade, empurrando-o em uma viagem épica movida pelo “desejo de conhecer com suas representações interpretativas” (p.180) as possíveis, novas e positivas valorizações da vida e da existência (cf. 180).

Destaca-se também a centralidade da tese sobre o renascimento do pensamento trágico na obra de Nietzsche.

Barros mostra como tal concepção ganha importantes traços a partir de A gaia ciência, a tragicidade inunda a filosofia com o ímpeto dionisíaco. Ela se traduz na aceitação incondicional da vida que é levada por Nietzsche a sua mais alta expressão através da escrita de Assim falava Zaratustra.

Uma obra onde o filósofo reconcilia seu pensamento com a natureza, a vida, o conhecimento, a arte e a afirmação de si.

O livro escrito por Roberto Barros é um trabalho robusto, no texto, obras e conceitos são articulados com coerência e originalidade mostrando um duplo caráter do pensamento nietzscheano – seu lado crítico e seu lado afirmativo.

Tudo isso realizado através de um claro fio condutor mantido do início ao fim da obra, a saber, a noção de além-do-homem. Enquanto trabalho interpretativo, restanos reafirmar o elogio escrito por Oswaldo Giacoia Júnior, para quem “o livro de Roberto A. P. Barros é um excelente guia de viagem para um fascinante percurso pela obra de um dos espíritos mais vigorosos de nossa tradição, tanto no rebelde ímpeto crítico-destrutivo quanto na extraordinária potência de criação e beleza”.

Notas

1 Doravante Zaratustra

2 Doravante O nascimento.

3 Doravante Humano.

Referências

BARROS, Roberto de A. P. Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética.Campinas: Editora Phi, 2016, pp.198.

Bruno Martins Machado – Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Aracaju, SE, Brasil. E-mail: [email protected]

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Experimentum humanum: civilização tecnológica e condição humana – MARTINS; SÁNCHEZ GARRAFA (HCS-M)

MARTINS, Hermínio; SÁNCHEZ GARRAFA, Rodolfo. Experimentum humanum: civilização tecnológica e condição humana. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012. 454p. Resenha de: KINOUCHI, Renato Rodrigues. O homem como experimento tecnológico de si. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.21, n.1 Jan./Mar. 2014.

Outros há, que quando buscam as ciências, nelas buscam tudo, não só interesse, louvor, e aprovação dos homens, mas também um quase domínio deles.

(Mathias Aires, 2005, p.124)

A crença na técnica como força transformadora do mundo representa uma espécie de truísmo compartilhado por vários pensadores dos mais diversos matizes ideológicos. As consequências práticas inferidas dessa crença, entretanto, variam dramaticamente. Grosso modo, no contexto do socialismo utópico do século XIX, o avanço técnico era visto como capaz de fornecer os meios para a melhoria “contingente” das condições de vida da população, em especial da classe mais pobre e numerosa, o que por fim dissolveria as estruturas opressivas da exploração do homem pelo homem. Num registro marxista, visão semelhante era defendida, com a diferença de que nesse caso a melhoria seria “necessária”, no sentido lógico da palavra, tendo em vista a própria inexorabilidade do materialismo histórico. Já para escolas de pensamento com inclinações mais totalitárias, a técnica era a mais significativa expressão da vontade de dominação do mundo, vontade que em última instância visa a si mesma como meta e como destino da humanidade. Finalmente, em tempos neoliberais, a tecnologia parece significar, no mínimo, uma melhor utilização do capital material disponível e, no limite, a própria substituição do capital material pelo capital imaterial – com o advento da economia do conhecimento – o que criaria um ciclo de enriquecimento jamais visto. Na maior parte das vezes, tais ideias são bastante sedutoras, desde que façamos vista grossa aos embaraçosos incidentes nos quais ocorre a destruição daquilo que desejávamos transformar. Mas talvez – sejamos complacentes – isso ocorra porque nenhuma delas tenha alcançado o estado de perfeição em suas aplicações, a mesma desafortunada situação das ideias promovidas pela Academia de Criadores de Lagado, satirizada por Jonathan Swift em As viagens de Gulliver, em 1726.

Além da crença na transformação técnica da natureza, uma crença análoga, e de alcance mais espantoso, merece especial atenção, a saber, a crença na transformação técnica do homem. É fundamentalmente sobre isso que trata o livro Experimentum humanum: civilização tecnológica e condição humana, de Hermínio Martins, recentemente publicado no Brasil pela Editora Fino Traço. Composta por 11 capítulos que podem ser lidos independentemente, mas que guardam estreita relação entre si, essa obra recobre uma constelação de questões teóricas e práticas sobre a tecnologia, entre elas: as vinculações ideológicas e políticas envolvidas nos discursos sobre a tecnologia; a emergência de uma síndrome cultural representada pelo gnosticismo tecnológico, e os reflexos disso em outros fenômenos culturais tais como a arte; os riscos ambientais e sociais associados aos mais variados aparatos tecnológicos, em especial o papel da biomedicina nas guerras tecnológicas; e o processo generalizado de aceleração exponencial das mudanças ocasionadas pelas novas tecnologias, com repercussões no próprio entendimento do que seja o ser humano, dado que, para algumas dessas visões, em breve efetuaremos a passagem do humano para o pós-humano – o que significaria o derradeiro experimento-sobre-o-homem-pelo-homem, que o autor denomina Experimentum humanum.

O livro divide-se em três partes. A primeira delas apresenta questões preliminares sobre a filosofia da técnica, de tal maneira que os capítulos aí incluídos são particularmente interessantes como material de estudo para cursos voltados para tal área da filosofia. Destaco aqui o segundo capítulo, “Tecnologia, modernidade e política”, no qual Martins detalha as duas grandes visões de técnica seguindo a tradicional distinção entre prometeicas e fáusticas. O que faz sua interpretação ser notável é a riqueza dos detalhes fornecidos ao longo do texto, pois essas duas imagens de técnica, longe de serem pintadas com traços marcados, são expostas por meio de minuciosas e sutis pinceladas, de tal modo que a paisagem teórica mostra-se em seus variados matizes. Nesse ínterim, cumpre assinalar a análise que Martins faz do papel ambíguo desempenhado pelos pensadores adeptos da teoria crítica, que, no entender do autor, nunca “esmiuçaram as teorias fáusticas da técnica com a mesma energia intelectual que devotaram a zurzir o positivismo” (p.58).

A segunda parte do livro versa sobre “o trágico tecnológico”. Abre essa seção o instigante capítulo “Risco, incerteza e escatologia”, no qual Martins investiga questões tanto teóricas como práticas das análises de risco na sociedade contemporânea. Nesse contexto, é de fundamental importância a análise que o autor faz “da insuficiência do conceito de risco” quando nos deparamos com limitações epistêmicas que impedem que logremos avaliar as consequências das aplicações das tecnologias disponíveis, de tal sorte que precisamos agregar também o conceito de incerteza, pois o risco é “essencialmente uma questão de probabilidade numérica cardinal onde as probabilidades são conhecidas ou pelo menos determináveis a partir das soluções praticadas pela indústria de seguros … enquanto que a incerteza, pelo contrário, não pode ser avaliada probabilisticamente, pelo menos em termos de probabilidades numéricas cardinais e as opções pertinentes não podem ser sustentadas pelo recurso aos seguros” (p.181). É a partir do conceito de incerteza que Martins, mais adiante, discute o Princípio de Precaução, a ser aplicado quando não podemos avaliar o alcance e a irreversibilidade dos impactos das novas tecnologias.

No capítulo seguinte, intitulado “Experimentos com humanos, guerra biológica e biomedicina tanatocrática”, a questão do trágico tecnológico se manifesta no papel desempenhado pelas ciências da vida quando orientadas para os fins da morte. O referido capítulo pode ser considerado uma sinopse do que se denominaria “História Trágico-médica, da ciência e da medicina como tragédia, e não só como épica, como também uma reflexão filosófica sobre a experimentação científica, ou alegadamente científica, sobre humanos” (p.249). Nesse ínterim, em particular, a descrição fornecida pelo autor sobre “as justificações eugenistas” que embasavam atrocidades perpetradas em escala industrial, antes e durante a Segunda Guerra Mundial, chega a provocar calafrios. O problema é que é difícil

explicar ou compreender como uma grande elite biomédica nacional pôde participar por tantos anos desta guerra ‘Santa’ (como lhe chamavam os partidários japoneses da Guerra Biológica), convertendo-se, como disse, numa espécie de corpo expedicionário tanatocrático, praticando regularmente nos seus centros de trabalho ‘experimentos’ e vivisseções sem anestesia em seres humanos vivos … ou investigar a inanição, a desidratação, as transfusões de sangue de animais para humanos, etc., assuntos laterais na Guerra Biológica (p.234; destaques no original).

A última parte da obra é a de natureza mais especulativa. Nela Martins discorre sobre os processos de aceleração do conhecimento científico, das tecnologias e de suas aplicações, o que em última instância culminaria em um ponto de viragem no qual o homem “poderá deixar de ser um mero homo faber … e tornar-se finalmente o faber hominis, o Homem construtor do Homem” (p.344). É a chamada “Singularidade”, ricamente discutida no capítulo “Aceleração, progresso e Experimentum humanum”. Talvez o leitor considere que algumas dessas ideias sejam fantasias típicas da ficção científica e das subculturas associadas. Nesse caso, o leitor poderá se espantar com o número de autores importantes que, se não subscrevem as mesmas ideias, inclinam-se na direção de pensamentos congêneres. E, aliás, a própria realidade consumada algumas vezes parece já se haver tornado bizarramente fantástica. A título de ilustração, vale mencionar que as tecnologias reprodutivas têm engendrado a criação de um mercado de óvulos nos EUA. Nesse mercado, há uma enorme valorização de óvulos vindos de coeds de universidades prestigiosas – por exemplo, os de estudantes de Harvard chegam a ser avaliados em U$50.000,00 –, de tal maneira que se pode traçar uma correlação entre a posição das universidades em rankings universitários e o respectivo preço dos óvulos. Em suma, quanto mais bem posicionada, maior o valor dos óvulos de suas coeds (conferir o anexo ao capítulo “Biologia e política: eugenismos de ontem e de hoje”). O que espanta não é a tecnologia empregada, nem o mercado circundante, pois isso já era visto no contexto do agrobusiness, no qual as matrizes desempenham função ligeiramente assemelhada. O que espanta, de fato, é a banalidade com que tais práticas se estenderam para a esfera das relações humanas. Cumpre ainda assinalar que a edição brasileira contém dois capítulos a mais do que a edição portuguesa, intitulados “Verdade, realismo e virtude” e “Dilemas da república tecnológica”, os quais também merecem atenção da parte de pesquisadores da filosofia, sociologia, história da ciência e áreas correlatas.

Desejo encerrar esta breve resenha com algumas considerações acerca do autor. Hermínio Martins nasceu em Moçambique, em 1934, mas “na altura de escolher onde prosseguir os seus estudos, optou por um percurso que se distanciava do que seria mais natural – ir para a África do Sul – determinado a não trocar uma estrutura de dominação racial por outra idêntica” (Garcia, 2006, p.13-14). Rumou para a Inglaterra e ingressou na London School of Economics, nos tempos áureos da instituição, que contava com professores tais como Karl Popper e Ernest Gellner, este seu orientador de pós-graduação. Em 1972, publicou em inglês o primeiro ensaio de um sociólogo sobre o livro The structure of scientific revolutions, de Thomas Kuhn, apenas dois anos após o célebre volume organizado por Imre Lakatos e Alan Musgrave, Criticism and the growth of knowledge. Colaborou com inúmeros pesquisadores ao longo de sua carreira nas universidades de Leeds, Essex e Oxford, com passagens pelas universidades de Pensilvânia e Harvard. Atualmente é Emeritus Fellow no St. Antony’s College da University of Oxford e investigador sênior no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Com efeito, há várias apreciações a respeito da carreira e do conjunto da obra de Hermínio Martins, dentre as quais destaco a bela entrevista feita por Helena M. Jerónimo (2011), além das recensões de José Viriato Soromenho-Marques (2012) e José Luís Garcia (2012). Não obstante, transcrevo a seguir uma passagem de João Bettencourt da Câmara (1996, p.12), na qual discorre sobre o estilo de Hermínio Martins: “Os textos de Hermínio Martins são por norma densos, compactos, estanques e escritos com uma elegância e luxo vocabulares que faz as delícias do leitor especializado, mas, também, por vezes, o desespero do neófito e do tradutor. São exemplos de uma economia de estilo que permite escrever em trinta ou cinquenta páginas o que outros escreveriam num livro de duzentas ou trezentas, e sem grandes folgas”. De fato, os ensaios contidos no livro Experimentum humanum são densos, invejavelmente eruditos e, ademais, completamente atuais. A despeito de tais características, são particularmente prazerosos pelo fato de o autor saber, como poucos, como fazer com que a “última flor do Lácio” desprenda seus aromas mais sofisticados. Levando-se em consideração que a edição brasileira, publicada pela Fino Traço, contém 454 páginas, o leitor pode estar certo de que o livro é diversão garantida, e por bastante tempo.

Referências

AIRES, Mathias. Reflexões sobre a vaidade dos homens: carta sobre a fortuna. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda. 2005. [ Links ]

CÂMARA, João Bettencourt da. Hermínio Martins ou o Sociologus Rex. In: Martins, Hermínio. Hegel, Texas e outros ensaios de teoria social. Lisboa: Edições Século XXI. p.7-15. 1996. [ Links ]

GARCIA, José Luís. A plenitude tecnológica em questão. Hermínio Martins e o Experimentum humanum: civilização tecnológica e condição humana. Análise Social, Lisboa, v.47, n.2, p. 483-489. 2012. [ Links ]

GARCIA, José Luís. Razão, tempo e tecnologia em Hermínio Martins. In: Cabral, Manuel Villaverde; Garcia, José Luís; Jerónimo, Helena Mateus. Razão, tempo e tecnologia: estudos em homenagem a Hermínio Martins. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. p.14-47. 2006. [ Links ]

JERÓNIMO, Helena Mateus. Entrevista a Hermínio Martins. Análise Social, Lisboa, v.46, n.3, p. 460-483. 2011. [ Links ]

SOROMENHO-MARQUES, Viriato. Hermínio Martins, pensador da crise contemporânea. Análise Social, Lisboa, v.47, n.2, p.479-482. 2012. [ Links ]

Renato Rodrigues Kinouchi – Professor no Mestrado em Ensino, História e Filosofia da Ciência e Matemática/Universidade Federal do ABC. E-mail: [email protected]

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Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito? – CANGUILHEM (AN)

CANGUILHEM, Georges. Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito? Tradução de Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Edições Ricochete, 2012. (Coleção Inominável). Thiago Fernando Sant’Anna. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 38, p. 443-448, dez. 2013.

Precisas as palavras de Georges Canguilhem sobre Michel Foucault no texto “Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito?”, publicado no número 242 da Revista Critique, em julho de 1967, as quais argumentaram que “[…] o êxito de Foucault pode ser justamente entendido como recompensa pela lucidez que permitiu a ele enxergar este ponto para o qual, diferentemente dele, outros foram cegos” (CANGUILHEM, 2012, p.9). Canguilhem tece, no texto, com palavras afiadas, uma defesa do pensamento edificado por Foucault em seu projeto arqueológico de explorar a rede epistêmica a partir da qual emergiram “certas formas de organização do discurso” (CANGUILHEM, 2012, p.22-23), subvertendo a devoção ao curso progressista da história e interditando “toda ambição de reconsti tuição do passado ultrapassado” (CANGUILHEM, 2012, p. 15). Irônicas, suas palavras desafiavam aos detratores de Foucault: “Humanistas de todos os partidos, uni-vos” (CANGUILHEM, 2012, p. 09)? Profundas teriam sido as relações entre Canguilhem e Foucault.

Nos anos 1960, Canguilhem, no relatório escrito para a avaliação da tese “Loucura e Insânia”, durante o doutoramento de Foucault, declarou ter sentido “um verdadeiro choque” (ERIBON, 1990, p. 130) diante de suas ideias que se inscreviam, indubitavelmente, no espaço da vanguarda acadêmica. Difícil também seria dimensionar a amplitude da inspiração que foi Canguilhem para Foucault quando nos deparamos com as palavras usadas por Eribon (1990, p. 131) para se referir ao reconhecimento do primeiro pelo segundo em seus trabalhos arqueológicos, como lugar onde estaria “gravada a sua marca”.

Conhecido por não publicar “grandes volumes, mas contribuições delimitadas” (ERIBON, 1990, p. 130), Georges Canguilhem, nascido em 1904, no sudoeste da França, e sucessor de Bachelard, na Sorbonne, em 1955, publicou, em 1967, o que Eribon (1990, p. 131) considerou como um “artigo muito vigoroso e muito notado”: um comentário sobre As palavras e as coisas. Canguilhem estaria “irritado com as críticas dos sartrianos contra Foucault” (ERIBON, 1990, p. 131), já que As palavras e as coisas “[…] foi recebida com hostilidade nos meios de esquerda”, acusada pelos comunistas como “um manifesto reacionário” que negava a história, a historicidade e servia aos “interesses da burguesia” (ERIBON, 1996, p. 101).

Esse referido texto, responsável por “[…] tirar Georges Canguilhem da sua tradicional reserva” (ERIBON, 1996, p. 104), é “[…] quase inteiramente consagrado a rebater as críticas que foram feitas a Foucault a propósito da história”, já que o arqueólogo propõe uma analítica que se diferencia das análises dos historiadores da biologia, principalmente no que diz respeito às “relações de continuidade e descontinuidade entre Buffon, Cuvier e Darwin.” (ERIBON, 1996, p. 105). Ao longo do breve e denso texto, objeto desta resenha, dividido em cinco partes, Canguilhem destacou a importância e o alcance da abordagem de Foucault, ao operar ferramentas, ancoradas numa incontornável experiência histórica, que possibilitaram à sua arqueologia perceber “indícios de uma rede epistêmica”, em resumo, descrever uma “episteme” (CANGUILHEM, 2012, p. 19).

Daí, ser inegável, aqui, reconhecer a importância das refl exões realizadas em As palavras e as coisas, onde Foucault entrecruza filosofia e historicidade. Machado (2005, p. 100) destacou bem as palavras de Canguilhem, para quem esse texto, aqui resenhado, significava a “[…] impugnação do fundamento que certos filósofos creem encontrar na essência ou na existência do homem”. Impugnação essa denunciadora da falência da filosofia moderna em “[…] manter a distinção entre o empírico e o transcendental, ao tomar o homem das ciências empíricas, o homem que nasceu com a vida, o trabalho e a linguagem, como o modo de ser do homem da modernidade” (MACHADO, 2005, p. 100). O próprio Canguilhem já havia reconhecido quando de sua relatoria sobre a tese de Foucault, que este “[…] leu e explorou pela primeira vez uma quantidade considerável de arquivos”; que “[…] um historiador profissional não deixaria de ser simpático ao esforço feito pelo jovem filósofo” ao analisar docu mentos em primeira mão; e que “[…] nenhum filósofo poderá censurar a M. Foucault ter alienado a autonomia do juízo filosófico pela submissão às fontes da informação histórica” (ERIBON, 1990, p. 133). Como poderíamos compreender esse fenômeno – Foucault – à luz de suas críticas às perspectivas tradicionais a partir das quais se escreve história e na direção de sinalizar para inversões outrora tão distantes de serem compreendidas por aqueles que o atacavam? Tais afirmações conduzem-nos a reconhecer que emoldurar em um quadro o contexto dos anos 1960/1970, e ali inscrever o pensamento de Michel Foucault, sinalizar-nos-ia equívocos. Impreciso também seria se, nesse enquadramento, optássemos por anunciar a fixação de alguma teoria foucaultiana à propalada crise dos paradigmas, quando, no plano geral, os modelos explicativos, orientados por conceitos de “ordem”, “evolução”, “linearidade”, “racionalidade”, “progresso” e “verdade inquestionável” não respondiam satisfatoriamente às questões colocadas às Ciências Humanas; a mesma coisa se deu em um plano específico, quando se emergiu uma revisão e desestabilização das certezas no interior da disciplina da História, confrontada com a suspeita quanto ao seu estatuto de inteligibilidade diante da ampliação de seu campo temático, de suas abordagens e de seus objetos, enfim, de ruptura com as metanarrativas.

Não seria menos insuficiente dizer que aqueles anos fundaram o pensamento de Foucault em um contexto de dissolução da sociedade burguesa, de crescente uniformização da cultura de massas e de questionamento da posição de “centro” por parte daqueles movimentos sociais como os movimentos feministas, negro, gay etc.

Inegável, por outro lado, seria reconhecer que a transgressão do paradigma iluminista, moderno, racionalista, cartesiano foi possível com as histórias das pessoas inomináveis de Michel Foucault e a contestação da construção discursiva da História na qual os acontecimentos ganhavam sentidos, desconstruindo a ideia de “verdade” impressa nos documentos. Atualmente, o pensamento de Foucault imprimiu, no campo de estudos da História, uma subversão incontornável, o que tornaria qualquer desprezo a essa incursão uma ingenuidade, na mesma direção que seria percebida se tentássemos rotular suas problematizações em qualquer outro tipo de enquadramento. O pensamento de Michel Foucault, ou melhor, o seu estilo de pensamento não é um bloco monolítico a ser apreendido, domesticado dentro dos limites de uma teoria, ou sequer enquadrado em qualquer contexto social, econômico ou cultural a priori.

A esquiva destes aprisionamentos discursivos que contextualizam e tipologizam masmorras do pensamento pode ser percebida na leitura do texto de Georges Canguilhem sobre o livro As palavras e as coisas.

O que Michel Foucault quis dizer com o conceito de episteme quando o escreveu, ao longo do livro, As palavras e as coisas? Trata- -se de problemática que permeia as refl exões de Georges Canguilhem em “Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito?”, traduzido agora para a língua portuguesa pelas Edições Ricochete, inaugurando a Coleção Inominável, coordenada por Marlon Salomon.

Canguilhem assinalou o texto de Foucault com pistas que fizessem surgir “um ponto” de abertura de uma “avenida” (CANGUILHEM, 2012, p. 09), que indicasse uma analítica sobre a constituição do “homem” como objeto de investigação das ciências humanas, distante de uma história social de uma ciência, e próxima, por outro lado, de uma rede de enunciados. O texto decifra os contornos de uma chave, usada e elaborada simultaneamente pelo filósofo francês para abrir sentidos em textos, diga-se de passagem, originais, empoeirados e desprezados por estudiosos. Chave essa da qual o leitor de Foucault pode lançar mão para encontrar não o seu proprietário ou inventor, não para revelar algo ou fenômeno escondido, à espera da iluminação. Mas uma chave a ser forjada no movimento de seu uso, a ser decriptada na direção de sinalizar para “a sucessão descontínua e autônoma das redes de enunciados fundamentais”, sucessão essa que “[…] interdita toda ambição de reconstituição do passado ultrapassado” (CANGUILHEM, 2012, p. 15).

A essa altura, podemos afirmar, conforme o texto de Canguilhem, que já não é mais possível recusar a incontornável presença da historicidade na constituição da cultura, em recusa a qualquer isolamento de Foucault a um tipo de pensamento que sonhasse naturalizar a cultura ou que aspirasse a superar, progressivamente, uma contradição (CANGUILHEM, 2012, p. 11). A analítica deste arqueólogo exuma descontinuidades radicais – fronteiras entre pensamentos possíveis de serem pensados e pensamentos que não podem mais ser pensados – sem receios em retomar pontos já abordados ou suspender o tráfego por questões não apropriadas naquele momento em que tecia As palavras e as coisas. Como a lâmina de uma katana de samurai, Foucault, que “[…] não tinha medo da morte […]” (VEYNE, 2009, p. 149), exercita a perigosa prática de pensar, “[…] correndo o risco de espantar-se e até de aterrorizar- -se consigo mesmo […]” (CANGUILHEM, 2012, p. 29), corta as palavras, decepa evidências, desentranha “condições práticas de possibilidades” (CANGUILHEM, 2012, p. 30) que constituíram o homem como objeto do saber e denuncia, com isso, o “sono antropológico” daqueles que tomavam o homem como um objeto dado para, daí em diante, fazer progredir, uma ciência.

Canguilhem, por sua vez, afia ainda mais a lâmina de Foucault em sua obra traduzida por Fábio Almeida. José Ternes e Marlon Salomon afinam-se, respectivamente, no prefácio e na gestão da coleção inaugurada pela Edições Ricochete. Os cinco estudiosos aqui citados nos permitem abdicar do recurso do contexto como explicador de um fenômeno. Longe disso, possibilitam uma transgressão do pensamento ao percorrer a rede de enunciados proposta pela episteme de Foucault, de forma a recusar as raízes, a origem ou a iden tidade fixa do objeto. Os referidos estudiosos elucidam a percepção de um “ponto”, um caminho, uma “avenida”, para além das estruturas engessadas, para além dos personalismos, mas na direção das descontinuidades, das rupturas, dos entrecruzamentos nos processos que o constituem. Foucault não se inscreve, portanto, em um quadro, mas o analisa no mesmo movimento em que o constitui, através 447 Thiago Fernando Sant’Anna. da sua “técnica de incursão reversível” (CANGUILHEM, 2012, p.19). Ele não lê um mundo previamente dado como um texto, mas o observa como quem observa o quadro inscrito, simultaneamente, em seu processo de pintar. Canguilhem afia o estilo de pensamento de Foucault, enfatizando, como um argumento em contra-ataque, o “sono antropológico” – termo de Michel Foucault – que definia “[…] a segurança tranqüila com a qual os promotores atuais das ciências humanas tomam como objeto dado aí antecipadamente para seus estudos progressivos o que, de início, era apenas seu projeto de constituição” (CANGUILHEM, 2012, p. 29). Em seu artigo, Canguilhem destaca a importância do conceito de episteme no livro As palavras e as coisas, em que o filósofo analisa, constitui, elabora uma “técnica laboriosa e lenta” (CANGUILHEM, 2012, p. 16), que percorre por Borges, Velásquez, passando por Cervantes, na reconstituição de uma rede de saberes que faz emergir as Ciências Humanas e o homem como sujeito e objeto deste saber, anunciando a morte do homem e o esgotamento do Cogito, em um mesmo ataque.

Referências

CANGUILHEM, Georges. Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito? Tradução de Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Edições Ricochete, 2012. (Coleção Inominável)

ERIBON, Didier. Michel Foucault e seus contemporâneos. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

______. Michel Foucault (1926-1984). Lisboa: Livros do Brasil, 1990. (Coleção Vida e Cultura) MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. 3 ed. Rio de Janerio: Zahar, 2005.

VEYNE, Paul. Foucault. O pensamento, a pessoa. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2009.

Thiago Fernando Sant’Anna –  Doutor em História pela Universidade de Brasília, com pós-doutorado em Arte e Cultura Visual, pela Universidade Federal de Goiás. Professor do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual, Universidade Federal de Goiás/ Faculdade de Artes Visuais. Docente do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Goiás/ Campus Cidade de Goiás. E-mail: [email protected].

Humanismo do outro homem – LÉVINAS (ARF)

LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993. 131p. Resenha de: CARVALHO, José Maurício de. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 9 jan./jun. 2013.

A tradução deste livro de Emmanuel Lévinas nasceu de seminário sobre o autor realizado no programa de mestrado da PUCRS. Ele reúne três ensaios e foi publicado em 1993. Embora seja publicação relativamente antiga, o autor não é bem conhecido dos estudantes de Filosofia e a temática abordada é atual frente às dificuldades que enfrenta o humanismo em nossos dias. O próprio autor sugere que o termo humanismo não significa o mesmo que há algumas décadas, o que exige encontrar novas justificativas para o conceito. Por outro lado, o crescente reconhecimento do mérito intelectual do filósofo aumentou, nos últimos anos, o interesse por conhecê-lo.

Como o filósofo pensa em fundamentar o humanismo num tempo que questiona os parâmetros do ocidente? Ele o estabelece na descoberta do outro, o que justifica do seguinte modo:

É ali na alteridade que abriga infinitamente grande tempo num entretempo intransponível. O um é para o outro um ser que se desprende, sem se fazer contemporâneo do outro, sem poder colocar-se a seu lado numa síntese, expondo-se como tema, um- -para-o-outro como um guardião-de-seu-irmão, como um responsável- pelo-outro. (p. 15).

A descoberta do outro suscita uma meditação de raiz fenomenológica sobre “a não-indiferença da responsabilidade.” (p. 15). É esta responsabilidade pelo outro que amarra a fraternidade universal, estando nela a raiz do novo humanismo proposto por Lévinas. A presença do outro não se revela na percepção transcendental, ou melhor, a percepção que dele se tem não apresenta o que o outro é verdadeiramente, fato que pede uma crítica da experiência fenomenológica como fonte de sentido. O outro em sua infinitude não chega pela percepção transcendental porque o outro se mostra a partir do seu rosto – que não está encerrado na forma do aparecer – nu, despojado de sua forma, desnudado de sua presença que o marcaria ainda como seu próprio retrato; pele enrugada, vestígio de si mesmo. (p. 16).

A alteridade do próximo aponta para um vazio escondido atrás do seu rosto cujos vestígios o sujeito apenas vislumbra. O outro não se revela inteiramente no rosto fenomênico. A identidade do outro nasce de um sinal, sem figura, sem presença, fora da civilização. Assim o filósofo conclui o prólogo julgando que a descoberta do outro representa as bases de um novo humanismo.

Seguem-se três ensaios independentes e subdivididos. São eles: A significação e o sentido; Humanismo e anarquia e Sem identidade. O primeiro é o maior e examina o significado oculto que transcendente a percepção transcendental do outro. Os conteúdos ausentes no ato dão a ele significado, apontando a distância que há entre o percebido e a realidade.

Esta condição humana se esclarece quando contraposta à condição divina, como ele explica: “Para Deus, capaz de uma percepção ilimitada, não haveria significação distinta da realidade percebida, compreender equivaleria a perceber.” (p. 22). A condição humana é desafiada pelo uso da metáfora, pois ela é capaz de sugerir uma realidade para além da percepção. O significado ganha sentido quando inserido num horizonte cultural “com tudo o que de aventura e de já feito comporta – que é o lugar em que, consequentemente, se situa a significação.” (p. 24). A linguagem amplia a experiência da percepção que não se limita a elementos isolados presentes nos dados perceptivos. Diz o filósofo que “a significação precede os dados e os clareia.” (p. 26). A linguagem mostra e interpreta o mundo. O ato de ler, neste contexto, fornece uma hermenêutica, traz uma exegese do dado. Assim ele interpreta as meditações de Martin Heidegger e o que “ele quis dizer quando nos ensinou que a linguagem é a casa do ser.” (p. 27).

No segundo item o autor amplia o estudo da cultura afirmando que nela se encontra a noção de ser, vista como totalidade existente além do dado percebido. Afirma: É por esta referência da totalidade clareadora do gesto criador da subjetividade que se pode caracterizar a originalidade da noção da significação, irredutível à integração de conteúdos dados.

(p. 29).

Esta totalidade passa pela linguagem, mas também pelos sentidos, ou pela corporalidade, como dizia Merleau-Ponty. A visão da realidade se estrutura em objetos culturais, que são reunidos em grupos ou totalidades que “exprimem ou iluminam uma época.” (p. 32). O pensamento é parte da cultura e é nela que a criação verbal descobre uma nova forma de descrever o ser. A atividade cultural revela o ser através do sujeito que se torna seu servo e guia. Este é o esquema da fase final do pensamento heideggeriano e influencia o pensamento contemporâneo no esforço de superar a relação sujeito-objeto.

O item seguinte traz uma crítica à metafísica platônica a partir da noção de totalidade que a Filosofia pretende estabelecer. Ela não pode ser fixada, contudo, como no mundo das ideias de Platão o é, de uma vez para sempre. Ao contrário, ele esclarece: “o inteligível não é concebível fora do devir que o sugere.” (p. 37). Nisto consiste a grande contribuição da fenomenologia ao aproximar “a função transcendental da espessura concreta de nossa existência corporal.” (p. 39). Dito de outro modo, a significação não se separa do modo como é concebida.

O quarto item trata da significação econômica dos bens, inserindo- -a num contexto cultural amplo: “Toda necessidade humana é, desde logo, interpretada culturalmente.” (p. 43), esclarece.

No item seguinte Lévinas afirma que a totalidade expressa na linguagem cultural não é reconhecida da mesma forma em todo o mundo.

Para entender o significado de totalidade para o europeu e para o chinês é necessário aprender a linguagem de ambos e outros referentes culturais que eles empregam em sua descrição. Assim, a mundialização da comunicação instaura uma crise de sentido melhor sentida nas diferentes concepções sobre Deus presentes nas diversas regiões do mundo. Ele afirma: “a crise do sentido é ressentida pelos contemporâneos como uma nova crise do monoteísmo.” (p. 47). A ideia bíblica de Deus perdeu a força entre os homens de hoje. Isto sugere o seguinte desafio: “é a análise do sentido que deve ensejar a noção de Deus que o sentido encobre” (p. 48).

O item VI trata da busca do sentido encoberto na relação intersubjetiva.

O elemento determinante na intersubjetividade é o outro. O movimento que vai da consciência do sujeito ao outro é denominada de obra. E o que é mesmo a obra? Trata-se do movimento que vai até o outro, mas não retorna à consciência mesma. Isto traz para a consideração o ser para além de mim e de minha morte pessoal, porque o processo não depende do retorno à consciência de si para ser elaborado. É um ir que fica inconcluso. Obra representa o valor da esperança e o sentido de nobreza expresso na preocupação com o outro concretizada na mudança de atitude para com o futuro. Afirma que a atitude esperançosa não se justifica se ficamos apenas no presente. Ele escreve: Um homem na prisão continua a crer num futuro não revelado e convida a trabalhar no presente, para as mais distantes coisas às quais o presente é irrecusável desmentido. (p. 54).

No item VII o autor aprofunda o significado deste outro: ele não é adversário como pensou Hobbes, nem o complemento natural das relações humanas sugerido por Platão. O outro aparece na consciência como orientação e busca de sentido. A presença do outro na existência recebe luz da cultura e representa um tipo de relação diferente da realizada com outros seres: “a epifania do outro comporta significação própria, independente da significação recebida do mundo” (p. 58). Este outro aparece para mim como rosto desnudo. Rosto que questiona a consciência e o que dele penso: “A epifania do absolutamente outro é o rosto com que o outro me interpela.” (p. 61). A emergência deste outro é pautada pela ética, considerando- se que a relação com ele deva ser guiada pela retidão.

No penúltimo item deste ensaio, o autor destaca a relação da ética com a cultura. Ele a emprega como referência objetiva para julgar e comparar culturas numa circunstância difícil e complexa da história, numa época em que várias culturas querem se mostrar válidas. Este momento multicultural gera confusão e, adicionalmente, questiona a excelência da cultura ocidental, considerando-a historicamente determinada. Ao tratar das normas morais como elemento comparativo ele descobre no humanismo que nasce do reconhecimento do outro como valor com peso universal.

No último item Lévinas trata do vestígio, concebendo-o como sinal que remete e traz até nós uma realidade oculta. Ele usa o conceito de vestígio para representar algo escondido no rosto do outro que aparece para mim de modo residual. Um rosto mostra algo ausente e para além do que revelam as manifestações fenomênicas. Assim o diz: “o outro é um puro buraco do mundo.” (p. 72). O rosto do outro me coloca em contato com o transcendente sem destruí-lo, um transcendente que vai além do fenômeno sem anulá-lo. Nisto consiste o vestígio, ele revela mais do que o sinal mostra, ele inclui todo o passado do ente que emitiu o sinal. A noção de Deus veiculada na tradição judaico-cristã vem permeada por esta noção de vestígio, ela “conserva todo o infinito da consciência que está na ordem pessoal própria.” (p. 80). Deus apenas se mostra nos vestígios que deixa.

No ensaio seguinte denominado Humanisno e anarquia, o filósofo volta ao tema da crise de civilização, cuja raiz é a “ineficácia humana posta em acusação pela própria abundância de nossos meios de agir e pela extensão de nossas ambições.” (p. 82). Para o fato também contribuiu a destruição da consciência, que na forma meditada por René Descartes e aceita até então foi posta em cheque pela psicanálise e pela fenomenologia ao instaurar a subjetividade transcendental. O resultado da crise é o aparecimento de uma civilização que não é nem humana nem inumana. Sua superação, na avaliação do filósofo “depende do surgimento do ente na matriz do algo ou do modelo do uno no seio do ser, ou seja, no seio do que se chama o ser do ente.” (p. 87).

No segundo item do ensaio, Lévinas lembra que o conteúdo da consciência é o presente, ainda que parte de seu conteúdo seja formado pela memória. O eu exercita a liberdade ao pensar além de si. Ele é confrontado com limites como a morte, mas é questionado pelo outro e por ele é acusado. Diante dos limites descobre uma liberdade originária na forma de lidar com as coisas, uma liberdade que se apresenta antes das escolhas que faz.

No item seguinte examina o componente anterior à escolha e observa que ser dominado pelo bem “não é escolher o bem a partir de uma neutralidade axiológica. O conceito de tal bipolaridade já se refere à liberdade.” (p. 96). Esta é a relação que Deus tem com o bem, ele não escolhe praticar o bem, ele está no bem. Além disto, Deus revela uma responsabilidade pelo outro que não tem origem nas escolhas. Portanto, Deus aparece nesta meditação como um Outro privilegiado diante de mim.

No quarto item mostra que o contato com o bem originário pode ser intuído por uma alma encarnada. No entanto, obedecer ao bem antes de fazer escolhas não é algo possível ao homem, pois “a responsabilidade pré-original pelo outro não se mede pelo ser, não é precedida de uma decisão e a morte não a pode reduzir ao absurdo.” (p. 101). Isto obriga cada indivíduo a construir o sentido da própria vida sem medi-lo pela ontologia. Trata-se de chegar ao sentido construído e aberto ao transcendente que chega pelo outro e em meio aos limites existenciais e da cultura.

O último dos ensaios, dividido em cinco itens é denominado Sem identidade. Nele o autor recorda o desafio humano de construir o sentido.

O grande problema é que a construção do sentido não atinge o significado real da liberdade e introduz o problema da verdade. A questão do sentido inverte a busca pela verdade, “não é mais o homem, por vocação própria, que procura a verdade, é a verdade que suscita e possui o homem.” (p. 111).

No item seguinte o autor examina a contribuição de Martin Heidegger para o assunto. Diz que o filósofo alemão associa a noção de subjetividade transcendental da fenomenologia com a metafísica. Assim, o esquecimento do ser apregoado por Heidegger significa que o homem “enclausura-se como uma mônada; ele se faz alma, consciência, vida psíquica” (p. 114). É preciso superar tal forma do pensamento para entender a filosofia de Heidegger e acompanhando a destruição da subjetividade compreender o motivo pelo qual “o poema ou a obra de arte guarda o sistema, deixa de ser a essência do ser, como o pastor guarda seu rebanho.” (p. 114).

O item seguinte examina como se dá a abertura da consciência às coisas e outros eus. Lévinas entende que a abertura ao ser significa uma forma de considerar a consciência do ser e do contato com o outro.

É nestas aberturas que o sujeito expõe a fragilidade da sua pele exposta à dor e à ofensa. Trata-se de fraqueza “que todo ser em sua altivez natural teria vergonha de confessar.” (p. 119), especialmente quando é agredido e recebe bofetadas. É a forma como se refere ao sofrimento recebido, lembrando que se expor ao ultraje está além do razoável para o homem comum.

No item IV, Lévinas trata do processo de esquecimento do ser sugerido por Martin Heidegger na releitura que fez do pensamento platônico.

No último item menciona as aspirações da juventude de mudar o mundo dizendo que elas dispensam reflexão sobre a subjetividade. Reporta-se ao movimento de 1968 na França como a procura da autenticidade e o vê como espaço de aproximação com o outro e expressão da humanidade do homem.

O livro de Lévinas é especialmente importante por recolocar a questão do humanismo como assunto central da meditação nos tempos de diálogo entre culturas. Ele justifica o humanismo na descoberta do outro que surge para o sujeito como um infinito diante do qual sua consciência se amplia e se depara com o significado da experiência intersubjetiva.

Espera, desta forma, superar a justificativa do valor do homem pela falta de justificação convincente da excelência ocidental. Falta-lhe, contudo, perceber que, enxergar o outro como sendo entrada para o infinito só significa dignidade pelo reconhecimento de seu valor na cultura ocidental ou numa crença religiosa. O reconhecimento do outro como valor só se torna a base de um humanismo se tivermos a cultura ocidental como referência ou admitirmos a crença religiosa como elemento universal.

José Maurício de Carvalho – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Del Rei (UFSJ). E-mail:: [email protected].

Acesso permitido apenas pela publicação original

Stufen des Wir Gemeinschaft als Basis personalen Handelns – SEDDONE (D)

SEDDONE, G. Stufen des Wir – Gemeinschaft als Basis personalen Handelns. Frankfurt am Main, Berlin, Bern, Bruxelles, New York, Oxford, Wien: Ed. Peter Lang, 2011. Resenha de:  COSTA, Danilo Vaz- Curado R. M. Níveis de nós- a comunidade como base da ação pessoal. Dissertatio, Pelotas, v.37, 2013.

No livro Níveis do Nós, Guido Seddone estabelece uma intrigante pesquisa para descortinar as diversas etapas de constituição da problemática da ação centrada na prioridade da perspectiva social e não no reducionismo do eu agente, já assumindo de entrada que é o social e não a estrutura transcendental do eu a base e o pressuposto da compreensão da cognição humana e da ação1.

Para Seddone (p. 9) a proposta de um projeto que vise reconstruir os níveis ou etapas do nós fincado na comunidade como base da ação pessoal, deve primeiramente levar em consideração as já diversas tentativas levadas a cabo por autores como Hegel e a perspectiva, por ele desenvolvida, do “eu que é um nós e do nós que é um eu” (Ich, das Wir, und Wir, das Ich ist), Heidegger e seu “nós despedaçado” (das zerbrochene Wir), assim como filósofos contemporâneos tais como Robert Brandom e sua postura do “Dizer Nós” (das Wir sagen), Sellars, Searle, Tomasello e Tuomela e suas distintas perspectivas acerca da função normativa do nós, como a “intencionalidade do nós” (Wir-Intentionalität), a “autoridade do nós” (Autorität des Wir), entre outras.

Em última instância a introdução da obra nos lega a tese de que a proposta de Sedonne é a afirmação de que a natureza social do homem e da irredutibilidade da ação social tem de ser respondida em consonância com a pergunta, de corte kantiano, sobre o que é o homem? No seio da tentativa reconstrutiva proposta por Guido Seddone o leitor deve estar atento para assumir a importante advertência de Sedonne que tanto a ação social como a pergunta pelo homem, não resultam de uma justaposição mecânica ou de tipo numérico-quantitativo, pois, para o autor2, o indivíduo deve tanto ser considerado no contexto das relações interpessoais, como é preciso reconhecer que há uma autoridade do social na qual o eu se determina.

Nesta perspectiva, o Nós não é reduzido a uma mera soma de indivíduos ou ao grupo no qual um agente se insere, mas sim é algo do qual o eu não pode fugir totalmente. Claro que uma tese tal como a defendida no presente livro que se resenha tem de deparar-se com a crítica das teorias mentalistas e a perspectiva cartesiana e se colocar para além delas no nível de uma base prática capaz de relacionar cognição, linguagem e conhecimento3.

Para a consecução do seu desiderato, Sedonne divide sua obra em uma introdução e 04 (quatro) capítulos respectivamente intitulados, numa tradução livre, de: 1. Linguagem, contexto e intersubjetividade; 2. Hegel e a filosofia do nós; 3. A Ação do Nós no agente já formado; e 4. Formação das competências pessoais desde uma estrutura profunda do nós.

Seguiremos a tessitura da obra de modo a buscar apresentar as linhas gerais que guiam os capítulos oportunizando ao leitor o percurso descritivo e reflexivo desenvolvido pelo autor.

1 – Linguagem, contexto e intersubjetividade

No primeiro capítulo4, Seddone busca demonstrar as bases para como uma Filosofia do nós pode tornar-se capaz de conquistar as competências cognitivas e lingüísticas hábeis aos contextos intersubjetivos. Neste intento, o primeiro ponto a ser superado é a tendência moderna de constituição do mental que ancora numa perspectiva individualista.

A proposta é mostrar os índices já presentes na contemporaneidade que apontam para a superação tanto do individualismo cognitivo como o que lhe é pressuposto, o individualismo metodológico.

Para a reconstrução e crítica da perspectiva metodológica e cognitiva centrado no indivíduo o autor remonta do empirismo lógico até o segundo Wittgenstein, apoiando-se na virada lingüística como prenúncio de que as competências lingüísticas esgotam uma ancoragem da compreensão do mental desde uma perspectiva individual.

Na continuidade do primeiro capítulo o autor serve-se das contribuições de Richard Rorty, especialmente as desenvolvidas em Filosofia e o espelho da natureza, e Robert Brandom, em seu monumental, Making it Explicit, para alicerçar sua tese da prioridade do Nós sobre o eu e a inconsistência5 de uma teoria do mental ancorada na perspectiva metodológica do eu.

2 – Hegel e a filosofia do nós

No segundo capítulo intitulado Hegel e a filosofia do nós (Hegel und die Philosophie des Wir)6, toda a problemática de apresentação da filosofia hegeliana7, enquanto percussora da socialidade como base das competências explicitadoras da ação, assenta-se na perspectiva de tomar o sujeito como estando sempre referido em relações reciprocamente universais, logo, intersubjetivas.

Um tal ponto de partida implica assumir que o nós é a atividade da unidade intencional do indivíduo no seio mesmo dos seus contextos de efetivação e em tensão com a tradição, formas de vida e a práxis.

Seddone (p. 45) em defesa de sua tese de uma socialidade do nós afirma que a proposição especulativa de Hegel é a retomada e desenvolvimento do juízo reflexivo kantiano e que esta assunção de Kant por Hegel é a base da compreensão de sua tese acerca do Espírito (Geist).

O eu como Espírito8 é a tese forte de partida de Seddone neste capítulo. Segundo o autor, a constituição do espírito dá-se na irredutibilidade do movimento histórico do Selbst, da relação entre pluralidade e unidade, eu e nós, e que sem a experiência da pluralidade o eu não pode se constituir.

O projeto da Fenomenologia do Espírito de assumir a totalidade das configurações históricas como médium capaz de explicitação do eu sempre em contextos práticos de interação suprassubjetivos é segundo Seddone9 a afirmação de que o eu apenas pode se reconhecer enquanto tal como parte do todo, em outros termos, para Seddone, Hegel afirma a irredutibilidade do eu a processos monológicos de constituição.

Para a explicitação da irredutibilidade do Selbst a processos de constituição monológica, Seddone (p. 55 e segs) desenvolve em toda a sua potencialidade a teoria do reconhecimento presente na Fenomenologia hegeliana e a amplia à Filosofia do Direito, colocando-se como problema central o processo de estranhamento (Entfremdung) e sua relação com a reconciliação (Versöhnung).

Neste percurso emerge a tese central da filosofia hegeliana do eu que é um nós e do nós que é um eu, em outros termos e na perspectiva da reconciliação, tal como desenvolvida por Hegel de que o eu apenas pode reconhecer-se como parte do Todo.

Neste contexto de interpretação, a filosofia hegeliana desenvolve a exposição do desenvolvimento da subjetividade no seio mesmo da pergunta pelo Nós, colocando assim as condições reais de tematização da intersubjetividade10 como pré-condição da subjetividade, da anterioridade do Nós sobre o Eu.

Na perspectiva aqui desenvolvida, Hegel já desenvolve as bases do que se pode designar pela comunidade da ação enquanto base para explicitação do sujeito cognoscente.

E é desde esta perspectiva hegeliana da compreensão especulativa da relação entre o eu e o nós, o indivíduo e a comunidade, capaz de esclarecer os pressupostos que orientam lógicas institucionais nas quais o sujeito é coerentemente compreendido à luz de uma identidade autônoma, mas não dualista ou solipsista, que Hegel se coloca como fonte perene na reflexão de Seddone11.

3A ação do Nós no agente já formado

O núcleo duro do capítulo concentra-se na tese de Robert Brandom, tal como exposta no primeiro capítulo de Making it Explicit e que pode se resumir na expressão Saying We, na tradução do autor para o alemão Das Wir-Sagen, que em português optamos por traduzir em o Dizer o Nós, que se caracteriza por demarcar o ato especificamente humano de expressão afirmativa do eu não na perspectiva da afirmação do mental por oposição ao não-mental, mas da primalidade do nexo comunitário como fonte das enunciações que explicitam o eu.

Afirmar e Dizer o nós implica delimitar o especificamente humano daquilo que não é humano, por uma distinção de primeira pessoa que tem por nota específica as várias comunidades nas quais os agentes são reciprocamente não delimitados pela individualidade epistemologicamente deslocada.

Este modo de compreensão assentado na primeira pessoa do plural, o nós, permite a conjugação dos aspectos pragmáticos12 e semânticos, pois as ações devem ser tomadas tanto como práticas sociais, assim como enquanto práticas lingüísticas.

A força da tese de Seddone é que ele prioriza um discurso centrado na primeira pessoa, todavia, a do plural como condição de expressão daquela do singular, por oposição a grande parte da tradição filosófica que partindo da primeira pessoa do singular atingia a primeira pessoa do plural.

O nexo desta relação se condensa na perspectiva de que o pragmatismo se interessa pelas regras que se estruturam no seio mesmo das práticas comunitárias e o aspecto semântico se foca no potencial normativo dos conceitos em explicitar estas mesmas práticas no jogo mesmo de dar e pedir razões.

Esta união entre pragmatismo e semântica autoriza no seio das práticas comunitárias a que cada membro seja obrigado a justificar as suas reivindicações e as suas ações, as quais por sua vez, determinam a natureza do pensamento, cuja validade se faz verificar no espaço da práxis intersubjetiva13.

Seddone neste capítulo esforça-se e com êxito na empreitada de exprimir a novidade do Wir-Sagen que é a articulação da pragmática normativa, da semântica inferencial e dos empenhos discursivos, momentos os quais são centrais para a compreensão do projeto de Brandom em Making it Explicit de  um Saying We, onde o Dizer o Nós rompe a barreira do prescritivo, inaugurando uma tensão na qual um estado intencional se identifica com um normativo, ou seja, o propósito se expressa na e mediante a ação.

No conjunto da filosofia de Brandom, Seddone acentua um aspecto importante e que lhe é fundamental na sua tese da delimitação das etapas do nós, que é a conclusão de que não é de uma propriedade natural do pensamento, uma espécie de a priori, que permite as normas explicitarem o sentido da ação, mas é do próprio caráter institucional da práxis14.

Importa ainda o acentuar que esta ideia não é um privilégio de Brandom mas a retomada de uma antiga tematização de Sellars em Empirismo e filosofia da mente no seio de uma perspectiva intersubjetiva do pensamento.

A proposta de Sedonne15 assume que o nós tal como desenvolvido no texto implica que os membros estejam reciprocamente obrigados a realizarem determinadas ações para atingir certos fins e determinados objetivos.

Uma tal obrigação ou dever posto pela perspectiva da primeira pessoa do plural – o nós – não resulta de um acordo ou união, mas do reconhecimento a autoridade dos grupos e da comunidade sobre a perspectiva particular.

O grupo e ou a comunidade é a modo através do qual e mediante a cooperação dos membros, as tarefas, deveres e direitos são institucionalizados, onde a prioridade do nós demarca o campo do eu.

Seddone assume o ponto de vista de que sempre os indivíduos estão em perspectiva relacional, sejam dos indivíduos entre si, sejam de suas intenções ou mesmo de seus usos. Tal ponto de vista já pode ser visualizado em Wittgenstein, mas é através de Raimo Tuomela que tal tese ganha força e é através dele que Seddone se nutre.

Em Raimo Tuomela16 ocorre uma extensão da tese de Sellars acerca da prioridade da comunidade sobre o indivíduo que ancorava na perspectiva da linguagem e agora se amplifica no sentido de que também as intenções são co-participadas antes de serem capazes de explicitação.

A posição do Wir-Sagen não se estrutura na perspectiva de um modo de dizer o nós que tem por substrato um sujeito ontológico, mas um sujeito intencional17. Ao modo de uma simples atitude que pode descrever os sujeitos particulares, mas não pode esclarecer de que modo o Nós é constitutiva para o eu18.

E é tal limitação da perspectiva do We-intentionality que incita a Guido Sedonne à passagem ao próximo capítulo da obra, através de uma reconstrução ontológica do nós19.

4 – Formação das competências pessoais desde uma estrutura profunda do nós.

O presente capítulo inicia com a pergunta pela originariedade do nós e de sua natureza pré-reflexiva. E para tanto, Sedonne aduz que a harmonia não é a condição nem necessária, nem suficiente para uma análise do nós. Se o nós é tratado como a estrutura profunda da ação, por exemplo, como unidade original e intencionalmente constitutiva, é necessário, compreender a complexidade da ação partilhada.

Para se atingir a compreensão de uma estrutura pré-reflexiva do nós Sedonne aglutina à sua pesquisa a postura fenomenológica heideggeriana de Ser e Tempo ancorada no Miteinanderseins, ou, ser-com-o-outro.

O ingresso do Miteinanderseins se dá na medida em que tal conceito é pré-flexivo, pois não se configura nem como uma autorreferência cognitiva e, nem tampouco reflexiva, além de não ser ou estar desde já pré-determinada.

Interessante é que no intento de delimitar a estrutura profunda do nós, Seddone após se utilizar do conceito fenomenológico do Miteinanderseins de Heidegger, retoma a pesquisa de Hegel e se pergunta pelos conteúdos práticos e a problema da formação em Hegel .

O pensador idealista alemão é retomado, pois, para Seddone, é deveras importante a posição assumida por Hegel de que a verdade repousa no todo. Tal asserção é interpretada por ele no contexto de que toda a filosofia hegeliana é um projeto de explicação da multiplicidade dos fenômenos assumindo que a compreensão do todo (Das Ganze) é o único modo da compreensão da parte.

Tal postura repropõe a questão da normatividade fazendo a mesma sair da perspectiva kantiana de uma espontaneidade da razão, deslocando-se para o reconhecimento do jogo de dar e pedir razões, lingüístico, intencional e por isto social.

De Hegel à Wittgenstein, eis o percurso que Seddone constitui. Tal mudança de rumo se põe na medida mesmo em que Wittgenstein permite reconstruir a comunidade a partir dos jogos de linguagem e numa perspectiva prática e intersubjetivista.

Com Wittgenstein, Seddone transita de uma perspectiva meramente semântica, na qual o sujeito e sua interação com a linguagem se davam desde a perspectiva de um sujeito observado que era capaz de descrever o mundo, para uma outra, na qual o sujeito é parte dos jogos lingüísticos, que o mesmo já os encontrou operante por trabalho da tradição, e na qual o indivíduo enquanto membro é obrigado a interagir como sujeito que dá e pede razões, responsabilizando-se, gerando compromissos e assumindo responsabilidades.

Para Seddone, após as contribuições de Heidegger20, Hegel21 e Wittgenstein22 é fácil concluir que é a ontologia social o último nível de uma filosofia do Nós. Poder dizer e saber como membro de uma comunidade, ou “a pertença a um Nós é, por conseguinte o resultado de fenômenos complexos que não podem ser explicados pela mera aplicação do princípio da concordância e pelas teorias da promessa ou das obrigações”23.

A ontologia social como último nível do nós se pauta, para Seddone, ante o fato de que esta capacidade que nós temos de designar a Wir- Intentionalität realiza-se como pertença ontológica a determinadas formas da práxis que constituem a matriz de nossas razões subjacentes, por exemplo, de nossa exposição enquanto ser-com-os-outros24.

À guisa de conclusão

O livro de Guido Seddone coloca-se numa perspectiva inovadora e extremamente ousada, pois tem como alvo de sua pesquisa a busca das capacidades humanas para a compreensão da ação desde a perspectiva da anterioridade de uma pertença centrada no nós.

O nós enquanto estrutura profunda da práxis demonstra, na obra de Seddone, que a experiência, a eticidade e a relação cognitiva são coisas que não se reduzem a perspectivas ou padrões conceituais ancorados em noções individualísticas, pois o indivíduo apenas o é por lhe ser antes dado desde formas de ações comunitárias, intencionais e práticas.

A obra que se resenha com certeza se colocará ao lado dos textos obrigatórios para a compreensão da ação humana em contextos complexos.

Notas

1 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 15. No original “Diese Arbeit versucht, das Soziale als Voraussetzung der menschlichen Kognition und daher allen Handelns zu erläutern”.

2 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 10. “Dieser Arbeit verteidigt nicht nur de Idee, dass das Individuum im Kontext seiner zwischenmenschlichen Umgebung zu betrachten ist, sondern auch jene, dass es einer primitive Autorität des Sozialen gibt, durch dia das Ich bestimmt wird. In dieser Weise ist das Wir keine blosse Summe von Individuen und auch nicht die Gruppe der Mitmenschen zusammen mit mir, sondern es ist eher etwas, dem sich das Ich nicht völlig entziehen kann”.

3 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 15. “Eine solche Rekonstruktion erfordert, über die typischen individualistischen Aspekte der Theorien des Mentalen Hinauszugehen. Der cartesianische Ansatz versucht, die Erfahrung auf angeborene und individuelle Fähigkeiten zurück zu beziehen. Aber damit vernachlässigt er, dass sich Kognition, Sprache und Erkenntnis auf eine praktische Basis stützen.”

4 SPRACHE, Kontext und Intersubjektivität, p. 21-42.

5 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 15. No original: “Eine Philosophie des Wir erkennt hingegen, dass der Erwerb kognitiver und sprachlicher Fähigkeiten nur durch die Teilnahme an praktischen und intersubjektiven Kontexten möglich ist. Deswegen ist die Idee, dass der mensch angeborene kognitive Fähigkeiten besitz, durch eine Revision der individualistischen Auffassungen der Kognition zu überwinden”.

6 O capítulo estende-se da página 43 até a página 82.

7 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 46. No original: “In unserem Projekt einer Philosophie des Wir spielt die Philosophie Hegels eine wichtige Rolle, da er die Vernunft und das Normative als Tatsachen erklärt, die auf Interaktion basieren”.

8 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 46. No original: “Er beschreibt daher die Auseinendersetzung unter Subjekten, deren Verhältnisse eine Wir-Struktur der Erfahrung und des Handelns darstellen”.

9 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 46, defende esta tese através de todo o subcapítulo “Fenomenologia do Espírito e a formação prática do Conceito através da interação” (Phänomenologie des Geistes und die praktische Bildung des Begriffs durch die Interaktion).

10 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 80: “Hegels Philosophie im Rahmen der Frage nach dem Wir stellt eine interessante Analyse der Entwicklung der Subjektivität in Richtung der Intersubjektivität durch den Erwerb sowohl der Sitten als auch der Pflichten dar”.

11 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 81: “Dennoch bleibt Hegel für unser Thema zentral, da sein spekulativer Ansatz zum Verhältnis zwischen Ich und Wir bzw. Individuum und Gemeinschaft vieles über die Logik der Gruppen erklärt und weil er als Erster dem allgemeinen Willen eine kohärente und selbständige Identität gibt”.

12 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 87: “Für eine Philosophie des Wir ist daher die Idee der Pragmatisten wichtig, nach der die Wahrheit eine gerechfertige Überzeugung und due Rechtfertigung nur in einer öffentlichen und normativen Dimension möglich sei”.

13 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 87: “Jedes mitglied ist verpflichtet, seine Behauptungen und seine Handlungen zu rechtfertigen, und dies wiederum bestimmt die Natur des Denkes, dessen Gültigkeit im Bereich der intersubjetiven Praxen überprüft wird”.

14 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 87: “Die Normen bekommen ihren Status nicht von einer natürlichen Eigenschaft des Überlegens, sondern vom institutionellen Charakter der Praxen, welche seitens der Teilnehmer bestimmte Pflichten forden”.

15 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 101: “Im Wir-Modus sind die Mitglieder gegenseitig verpflichtet, bestimmte Handlungen auszuführen und bestimmte Ziele zu erreichen. Diese Verpflichtung ist nicht das Ergebnis einer Vereinbarung, sondern der Anerkennung der Autorität, die Gruppe gegenüber den Einzeln ausübt”.

16 Sedonne cita abundantemente Raimo Tuomela, The philosophy of sociality, 2002.

17 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 103: “Es ist eher ein intentionales und nicht ontologisches Subjekt, das durch den Wir-Modus entsteht”.

18 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 103: “Aber der Wir-Modus, der eine Blosses Haltung ist, die den einzelnen Subjekten zugeschrieben werden kann, kann nicht erklären, auf welche Weise das Wir konstitutiv gegenüber dem Ich ist”.

19 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 106: “Deswegen erfordert das Wir eine ontologische Rekonstruktion, die das Thema des nächsten und letzten Kapitels ist”.

20 Com estrutura pré-reflexiva do Miteinanderseins e sua teoria das formas de vida contra a perspectiva solipsista.

21 E sua tese da verdade como o todo e a prioridade da reciprocidade do social sobre o individual.

22 E os avanços postos pelas perspectivas do pragmatismo lógico do seguir um regra, da reconstrução da comunidade e do significado de regra.

23 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 148: “Die Zugehörigkeit zu einem Wir ist folglich das Ergebnis von komplexen Phänomenen, welche nicht durch die blosse Anwendung des Prinzips des Einklangs und in den Theorien des Versprechens oder der Verpflichtung erläutert werden können”.

24 Cf. SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 149.

Referências

SEDDONE, G. Stufen des Wir – Gemeinschaft als Basis personalen Handelns. Frankfurt am Main: Ed. Peter Lang, 2011. (Philosophie und Geschichte der Wissenschaften – Studien und Quellen)

Danilo Vaz-Curado R. M. Costa – Universidade Católica de Pernambuco

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Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar – SPINOZA (CE)

SPINOZA, B. de. Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012. Prefácio de Marilena Chaui. Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Ericka Marie Itokazu. Tradução e notas de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva. Resenha de: ROCHA, Mauricio. Notícia da edição brasileira do Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar, de B. de Spinoza. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 28, 2013.

Esta tradução do Breve Tratado é a primeira em “português- brasileiro” e a primeira em português tout court do Korte Verhandeling van God, de Mensch en deszelfs Welstand. É outro feito editorial que assinala o impulso crescente das atividades de estudos sobre Spinoza no Brasil, e que se fortaleceu após a tradução da Ética por Tomaz Tadeu, em 2007 e das versões brasileiras das traduções de Diogo Pires Aurélio feitas em Portugal (Tratado Teológico-Político, 2003 e Tratado Político, 2009). Cabe assinalar a necessidade de “versões” do português para o “brasileiro”, pois ainda que ambas sejam as “últimas flores do Lácio”, por vezes são notáveis as diferenças entre a matriz ibérica e as transformações impostas pelo esplendor tropical ao idioma de Camões e Fernando Pessoa.

A presente edição é mais um volume da Série Espinosana, que integra a coleção de Filosofia da Editora Autêntica (que já publicou a obra de Chantal Jaquet, A unidade do corpo e da mente – Afetos, ações e paixões em Espinosa, e lançará outros títulos sobre o filósofo). Esta versão do Breve Tratado é de responsabilidade de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Luis César Guimarães Oliva (tradução e notas) e Ericka Itokazu (que escreve a introdução com Emanuel Fragoso), e conta ainda com um prefácio de Marilena Chaui. E não por acaso. O primeiro é editor da revista Conatus, que desde 2007 reúne estudos sobre o filósofo, e os dois últimos constituem o Grupo de Estudos Espinosanos da USP, coordenado por M. Chaui, que dispensa apresentações.

Esta última brinda o leitor com o relato das aventuras do célebre “manuscrito da Ética em holandês”, como teria sido apresentado pelo filho do livreiro Rieuwertsz aos viajantes germânicos Stolle e Halmann em 1703, naquele episódio que dá início a uma trama que em tudo se assemelha à ficção, não fosse verdadeira. Como se sabe, a trama enreda vários  personagens  (Rieuwertsz-Stolle-Halmann;  Boehmer-Muller- Monnikhoff; Van Vloten-Bogaers; Monnikhoff-Van der Linden-Deurhoff etc.) durante um século e meio (1703-1865), sempre em torno do primeiro manuscrito – e de um segundo manuscrito, encontrado em 1851, também em holandês, que acrescentará mais enigmas ao enredo: as duas caligrafias dos manuscritos holandeses, as notas à margem, a indagação sobre um manuscrito original em latim extraviado, a autoria da tradução do original latino para o holandês.

Enigmas que o trabalho de Filippo Mignini ajudou a desfazer em parte, com sua edição crítica do KV em 1986. Conforme Mignini, o Breve Tratado expõe as ideias do jovem filósofo (por volta de 1660) sobre metafísica e ética, por solicitação de amigos e discípulos. Ele teria sido composto em latim e traduzido para o holandês (por tradutor ainda incerto) e teria recebido acréscimos posteriores à primeira redação (os diálogos, as notas, as referências internas etc.). E a edição brasileira segue de perto o trabalho incontornável de Mignini, um dos responsáveis pelo estabelecimento do texto, traduzido por Joël Ganault, que consta do volume Premiers écrits das Oeuvres editadas sob a direção de Pierre-François Moreau a partir de 1999.

Na introdução, os tradutores e editores brasileiros retomam o histórico da obra, sua descoberta, a polêmica sobre seu estatuto e lugar na evolução do pensamento de Spinoza e as conclusões, atualmente estabelecidas, sobre a autenticidade do KV e a autoria pelo filósofo polidor de lentes. A tradução acompanha a edição crítica de Mignini, mas recorreu à versão de Paul Janet (1878) e à inglesa de A. Wolf (de 1910, baseada em Sigwart, 1870). Além dessas, da outra versão em língua neolatina disponível, a espanhola de Atilano Dominguez (1990), são extraídas algumas lições sobre o estabelecimento e a divisão do texto em parágrafos (em particular no Capítulo XIX da Parte II do KV) – opções justificadas pela clareza e menor redundância.

Consta ainda da edição o Breve Compêndio (Korte Schetz) elaborado por Monnikhoff, a partir do original holandês encontrado por Boehmer tal como publicado na edição de Mignini em 1986, confrontado com a edição de Carl Gebhardt e cotejado com as versões de Atilano Domingues, Charles Appuhn, Madeleine Francês, e a mais recente de Mignini-Ganault. A edição brasileira contém uma extensa bibliografia e um glossário português-holandês da tradução.

Referências

SPINOZA, B. de. Breve tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012. Prefácio de Marilena Chaui. Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Ericka Marie Itokazu. Tradução e notas de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva.

Mauricio Rocha – Professor do Departamento de Direito da PUC Rio. Coordenador do círculo de leitura Spinoza & a filosofia (Rio de Janeiro).

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Advinhas do tempo: êxtase e revolução – MATOS (ARF)

MATOS, Olegária Chain Féres. Advinhas do tempo: êxtase e revolução. São Paulo: Hucitec, 2006. 128p. Resenha de: MAGALHÃES, Rogério Silva de. Argumentos – Revista de Filosofia, n.6, p.165-167, 2011.

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O Homem, o Estado e a Guerra: uma análise teórica | Kenneth N. Waltz

Um dos desafios que põe à prova acadêmicos de Relações Internacionais desde o término da II Guerra Mundial é a elaboração de teorias que combinem alcance explicativo, coerência e parcimônia. Kenneth Waltz, um dos mais destacados pensadores de Relações Internacionais ainda vivo, é lembrado por ter tentado superar esse desafio – especialmente com Theory of International Politics. Com essa obra, Waltz tentou formular uma teoria sistêmica das Relações Internacionais, ficando reconhecido por ser fundador da corrente de pensamento que se convencionou chamar neo-realismo. Prova do valor de seu trabalho é o fato de o Professor Emérito da Universidade de Califórnia, Berkeley, ter sido agraciado com o prêmio James Madison – concedido pela American Political Science Association – por sua contribuição à ciência política.

O Homem, o Estado e a Guerra, cuja primeira edição data de 1959, é a publicação da dissertação de doutorado, Man, the State and the State System in Theories of the Causes of War, defendida em 1954 na Universidade de Columbia. Segundo o próprio Waltz, esse livro não apresentou uma teoria das Relações Internacionais, mas assentou as fundações para que uma fosse elaborada. A intenção não foi construir modelos a partir dos quais fosse possível a dedução de políticas em prol da paz, mas a de fazer um exame dos pressupostos em que modelos existentes estão baseados. Partiu-se do princípio de que, para se explicar como alcançar a paz, deve-se compreender as causas da guerra. Essas causas são explicadas em três níveis de análise. Leia Mais