Os embates na construção do conhecimento histórico e a memória no Paraguai / Territórios & Fronteiras / 2019

O ano de 2019 marca duas efemérides de fundamental importância para a história do Paraguai e da região platina: primeiro o “ciclo de (re)memorações” iniciado no ano de 2014 em torno dos “150 anos da Guerra Guasu”, marco este que se findará no próximo ano: 2020, e segundo, os 30 anos da queda do ditador Alfredo Stroessner (1954-1989).

Nesse contexto este Dossiê que ora vem a público faz parte de um esforço coletivo de investigadores e investigadoras rio-platenses que tem se debruçado sobre o desafio de estudar o Paraguai e a região platina através de diferentes perspectivas, tanto da história, como da sociologia, da antropologia e outras áreas das ciências humanas.

Ressaltamos que até meados do século XX a produção historiográfica acerca do Paraguai centrava-se em análises de cunho positivista e alicerçada em documentos oficiais e / ou obras com cunho memorialístico. Com a queda do regime autoritário de Alfredo Stroessner os pesquisadores e pesquisadoras da área começaram a ter acesso a arquivos e documentação antes não disponibilizada; tal fato aliado à profissionalização acadêmica ocorrida no Paraguai e demais países vizinhos vem permitindo que vários temas e objetos de pesquisa sejam revisitados e reescritos, da mesma forma que o emprego de outras abordagens e metodologias fez com que aflorasse investigações que romperam com o viés positivista até então empregado na análise e construção da narrativa da história paraguaia.

Monumentos, movimentos sociais, textos escolares, as escritas de si, enfoques de gênero, imprensa e cotidiano, são alguns exemplos de abordagens que podemos apontar como parte integrante do movimento de renovação histórica e historiográfica vivida contemporaneamente.

O conjunto de Artigos que compõe este Dossiê demonstra o processo de renovação do qual falamos na medida em que apresenta uma gama diversa de temas que perpassam a análise da imprensa, de gênero, de aspectos relacionados a política externa entre Paraguai, Brasil e Argentina, as escritas de si e, por fim, duas fases da Guerra Guasú: a campanha de Mato Grosso e a da Cordilheiras; a temporalidade privilegiada também é extensa e contempla aspectos inseridos entre os séculos XIX e XX.

No Artigo intitulado “O ‘progresso’ e a ‘falta’: representações e relações Brasil- Paraguai no jornal O Globo durante a construção da Ponte da Amizade (1956-1965)”, Paulo Renato da Silva analisa as diversas representações tecidas em torno da construção da Ponte da Amizade que vinculou a Ciudad del Este, no Paraguai, com Foz do Iguaçu, no Brasil. O autor demonstra como essas representações divergem muitíssimo das atuais percepções que se tem em torno desse passo fronteiriço. Naquele momento, a construção da ponte sobre o rio Paraná foi enxergada como veículo de modernidade ao mesmo tempo que instrumento de luta contra o comunismo.

“De General a Visconde: José Antônio Correa da Câmara na Campanha da Cordilheira e na caçada final a Solano López” é o título da reflexão de André Atilas Fertig que versa sobre o percurso do General Câmara, que partiu de terras gaúchas para integrar as forças aliadas contra o Paraguai. Considerando elementos da história social e da microhistória, o autor tenta resgatar o sujeito do devir histórico considerando como fonte privilegiada seu epistolário para, desse modo, recuperar o olhar de Câmara sobre a política externa e os enfrentamentos bélicos na região do Prata, principalmente na fase final da Guerra Guasu.

Já em “Conflictividades impositivas y territoriales entre Paraguay y Corrientes (1852-1859)”, o autor Dardo Ramírez Braschi se debruça sobre as relações bilaterais entre o Paraguai e a província rio-platense de Corrientes, num período anterior à Guerra Guasu, quando ambos os Estados dirimiam suas diferenças econômicas, políticas e territoriais de forma direta, sem a intervenção de um Estado nacional argentino ainda difuso e quase inexistente. A complexidade dessas relações, expostas através de uma exaustiva pesquisa documental, permitem compreender os laços políticos e culturais que perduram entre ambas as regiões até a atualidade.

No Artigo denominado “A ocupação paraguaia em Mato Grosso durante a guerra do Paraguai” os autores Ana Paula Squinelo e Jérri Roberto Marin abordam a ocupação paraguaia na Província de Mato Grosso, analisando o contexto mato-grossense que antecedeu a guerra, a ocupação de Mato Grosso e suas fases até a retomada de Corumbá. Trazem no bojo de suas análises aspectos cotidianos, numéricos e demográficos do período de ocupação paraguaia que até então não haviam sido analisados; problematizaram ainda os efeitos da referida ocupação e como ocorreu a construção de uma narrativa memorialista no pós-guerra em Mato Grosso e, posteriormente, em Mato Grosso do Sul.

No texto “O Coronel Arturo Bray e a escrita de si”, o pesquisador Luiz Felipe Viel Moreira trabalha sobre a correspondência e as memórias deste militar e escritor paraguaio. A análise das cartas trocadas entre Bray e o liberal Justo Prieto recupera a percepção dos dois intelectuais do momento que antecedeu a chegada de Stroessner ao poder, fato que será rememorado por Bray em suas memórias escritas uma década mais tarde, no ocaso de sua vida e publicadas postumamente. Nestas, o militar traz seu olhar sobre a história nacional paraguaia da primeira metade do século XX, posicionando-se sobre os aspectos mais polêmicos e resgatando a importância de preservar a memória dos tempos democráticos em época de ditadura.

As autoras Lorena Zomer e Tamy Amorim, em “Perspectivas e reflexões sobre a história recente paraguaia: trajetórias de pesquisa e o debate de Gênero”, apresentam uma perspectiva do estudo da história das mulheres desde a história do tempo presente em uma mirada transnacional. Esta lupa-guia para focar os processos históricos apresenta uma novidade no campo de estudos do Paraguai, tendo em vista que se existem trabalhos sobre as mulheres, a perspectiva de gênero na historiografia configura-se como uma grande dívida das ciências sociais e humanas. Esta primeira caracterização do campo que propõem as autoras é, sem dúvida, um marco inicial para a inauguração de uma nova perspectiva investigativa.

Maria Alice Gabriel em “Lembranças da Guerra do Paraguai na obra do brasileiro Pedro Nava” também reflete sobre uma escrita de si que traz lembranças dispersas sobre a Guerra Guasu em diversos textos memorialísticos do autor. Destaca-se que essas lembranças de guerra não são diretamente pessoais, mas elas permanecem através da memória de personagens próximos do escritor, permitindo resgatar as diferentes reelaborações da Guerra Grande no imaginário coletivo de fins do século XIX primeiras décadas do XX.

Por fim, Luiz Eduardo Pinto Barros no Artigo “O Paraguai e sua Política Externa: os interesses do país em meio às divergências entre Brasil e Argentina sobre o aproveitamento hidro energético do Rio Paraná nos anos de 1960 e 1970” vem renovar as formas fechadas e / ou estagnadas de pensar as relações internacionais a partir de uma perspectiva que procura incorporar o diálogo interdisciplinar, favorecendo um olhar inovador. O resgate dos atores e dos conflitos a favor de modelos de desenvolvimento, permite visualizar uma trama que vai muito além das realidades dos Estados nacionais.

Neste Dossiê reunimos, portanto, um conjunto de pesquisadores e pesquisadoras rio-platenses que se dedicam há tempos a investigações sérias e comprometidas com a História do Paraguai; a estes autores e autoras nossos sinceros agradecimentos por partilharem dessa empreitada conosco. Em tempos bicudos como os que vivemos na América Latina o trabalho coletivo, combativo e engajado é essencial para a sobrevivência das ciências humanas e da educação pública, laica, humana e gratuita.

Ana Paula Squinelo – Professora Associada da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e professora no ProfHistória (UFMT) e PPGCULT (UFMS). Pós-doutora em Ciências da Educação na especialidade de Educação em História e Ciências Sociais (UMinho / PT). Doutora em História Social (USP). Grupo de Pesquisa “Historiografia e Ensino de História” (HEH). Ñande – Rede de pesquisadoras e pesquisadores sobre o Paraguay. E-mail: [email protected]

Lorena Soler – Doutora em Ciências Sociais (2012) pela Universidade de Buenos Aires. Pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica (CONICET), sediada no Instituto de Estudos da América Latina e Caribe (IEALC). Professora da Faculdade de Ciências Sociais (UBA). Ministra cursos de pós-graduação de América Latina em várias universidades nacionais e estrangeiras. Autora de La Larga Invención del golpe. El stronismo y el orden político paraguayo (Imago Mundi, Buenos Aires, 2012) e coeditora de Franquismo em Paraguay. El golpe. (El 8vo. Loco Ediciones, Buenos Aires, 2012). E-mail: [email protected]

Marcela Cristina Quinteros – Doutora (2016) em Ciências, na área de História Social, na Universidade de São Paulo (USP). Concluiu o Pós- Doutorado em História na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), dando continuidade à pesquisa em História Intelectual, Identidades Latino-americanas e Guerra Fria Cultural iniciada no doutorado. Pós-doutorado na Universidade Federal da Grande Dourados (2019). É integrante e fundadora da Rede de Pesquisadoras e Pesquisadores sobre o Paraguay Ñande, criada em 2017 para a discussão e difusão das pesquisas desenvolvidas no Brasil sobre a História, Sociedade e Cultura do Paraguai. E-mail: [email protected]


SQUINELO, Ana Paula; SOLER, Lorena; QUINTEROS, Marcela Cristina. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.12, n.2, ago / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Mundo Rural / Estudos Históricos / 2015

Este número de Estudos Históricos consagra-se à temática do mundo rural. Os artigos destacam o processo histórico brasileiro, ainda que a realidade paraguaia seja examinada por um dos textos publicados.

Pode-se dizer que a História e as Ciências Sociais surgiram no país tomando o mundo rural como um de seus objetos centrais. Lugar no qual viveu a maioria da população brasileira na maior parte da história, o campo converteu-se em tema de reflexão acadêmica associado ao atraso. Suas supostas expressões religiosas (como o messianismo), formas políticas (como o coronelismo) e conformação econômica (guardando semelhanças com o feudalismo) atestavam o arcaísmo que intelectuais de variadas colorações ideológicas desejavam fosse superado como condição para o desenvolvimento do Brasil. Ao longo do tempo, essa perspectiva foi se atenuando, abrindo espaço para a análise de fenômenos recentes, compreendidos não necessariamente na chave do atraso, tais como a consolidação de movimentos sociais vigorosos e de um capitalismo sustentado pelo agronegócio. O presente número de Estudos Históricos pretende contribuir para o esforço de uma compreensão matizada e mais abrangente do mundo rural, sem deixar, contudo, de jogar luz sobre suas mazelas e contradições.

O primeiro artigo, “Transformações na legislação sesmarial, processos de demarcação e manutenção de privilégios nas terras das Capitanias do Norte do Estado do Brasil”, analisa as vicissitudes do instituto da sesmaria na colônia, especificamente, entre fins do século XVII até meados do seguinte.

O segundo artigo, “O colonato na região serrana fluminense: conflitos rurais, direitos e resistências cotidianas”, acompanha o desenvolvimento desse regime de trabalho na cafeicultura e seu impacto sobre os trabalhadores a ele submetidos. “Quem é mais útil ao país: aquele que planta ou o que fica na cidade só comendo?: os trabalhadores rurais fluminenses e a luta por desapropriação de terras (1962-1963)”, debruça-se igualmente sobre o mundo do trabalho no campo, ao examinar a mobilização de posseiros de Magé (Rio de Janeiro). Os trabalhadores rurais, mais particularmente os canavieiros, também são estudados em “Cultura, política e direitos no canavial da ditadura militar brasileira”.

Por sua vez, em “O pobre solo do celeiro do mundo: desenvolvimento florestal e combate à fome na Amazônia”, a problemática tratada é a atuação de duas agências internacionais, a UNICEF e a FAO, na Amazônia nos anos 1950 e 1960. “As transformações socioambientais da paisagem rural a partir de um desastre ambiental (Paraná, 1963)” concentra-se num incêndio de grandes proporções ocorrido em 1963 para refletir sobre as mudanças experimentadas pela paisagem rural paranaense no período.

O artigo “Estado e mercado na reforma agrária brasileira (1988-2002)” tem como tema a política de reforma agrária no período posterior à promulgação da atual Constituição, privilegiando a interação entre Estado e mercado na elaboração dessa política. Finalmente, “Capitalismo agrário e os movimentos campesinos no Paraguai” analisa a formação e o desenvolvimento de uma economia agrária nesse país baseada na grande propriedade e voltada ao mercado externo, a partir da ditadura Stroessner.

Luciana Heymann Quillet – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Os editores


HEYMANN, Luciana Quillet; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.28, n.56, jul. / dez. 2015. Acessar publicação original [DR]

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