Parto e nascimento: saberes, reflexões e diferentes perspectivas / História Ciências Saúde — Manguinhos / 2018

Este dossiê coloca em foco o processo de medicalização do parto e suas consequências. A partir das últimas décadas do século XIX, o parto ingressou no âmbito da medicina e, aos poucos, foi se transformando em um evento completamente medicalizado. Esse processo histórico se ampliou fortemente no decorrer do século XX, em diversas regiões do globo, trazendo consigo importantes vantagens relacionadas, principalmente, à diminuição dos índices de mortalidade materna e neonatal. No entanto, a intensificação da medicalização dos nascimentos também aponta para problemas, à medida que a excessiva tecnologização tem gerado críticas e insatisfações principalmente no que concerne às consequências clínicas, físicas e emocionais do excesso de intervenções.

No Brasil, desde o final do século XIX, quando a medicina deu início à escalada de medicalização dos nascimentos, um dos principais problemas relacionados ao parto se inscreveu nos diferentes tipos de cuidados ministrados às gestantes pobres e às mais abastadas. As primeiras, na maior parte das vezes, tiveram pouco acesso a cuidados médicos e hospitalares; as últimas tinham seus filhos no conforto de suas casas com médicos e serviçais, a quem era confiado o cuidado. Tal problema persiste até os dias de hoje, apesar da descomunal ampliação do acesso aos serviços médicos e das políticas públicas direcionadas a garantir às mulheres direitos reprodutivos e cuidados humanizados.

A medicalização também se traduziu em tensões e controvérsias no que tange às técnicas e tecnologias que aos poucos passaram a fazer parte da cena do parto. O uso inadequado ou desnecessário de diversos procedimentos cada vez mais é discutido por profissionais de saúde e mulheres na busca de um equilíbrio na utilização de intervenções e tecnologias no processo de nascimento. A cesariana é o maior exemplo desse problema. Desde 2013, mais da metade dos nascimentos no país foram feitos por meio dessa cirurgia. Embora a Organização Mundial de Saúde postule que a cesárea deva ser empregada em índices entre 10 e 15% da totalidade dos nascimentos (Betrán et al., 2015WHO, 2018), a espantosa incidência da cirurgia no Brasil tem inquietado diversos setores da sociedade, gerando múltiplos posicionamentos entre atores de diferentes campos profissionais e de usuários do sistema de saúde.

Não só a cesariana tem se mostrado como problema em relação ao parto medicalizado. O excesso de intervenções, tão criticado por diversos grupos de mulheres, é a contraface da falta de assistência adequada às mulheres mais pobres. Se as mulheres de classe média discutem a forma mais confortável ou “humanizada” de terem suas crianças, as mais pobres muitas vezes ainda têm dificuldades de acesso a analgésicos e anestésicos que diminuiriam seu sofrimento na hora de parir.

A organização do sistema de saúde, das práticas profissionais e dos movimentos sociais, bem como a forma de incorporação de tecnologias médicas pelos sujeitos são algumas das dimensões do processo de medicalização do parto no Brasil. Essa complexidade requisita olhares de diferentes disciplinas e metodologias para explorar a questão. Tais aspectos vêm sendo cobertos por diferentes estudos direcionados às práticas de parto, aos usos e abusos da cesariana, às questões referentes à escolha da via de parto e à violência obstétrica. Entre elas destaca-se a pesquisa “Nascer no Brasil: inquérito nacional sobre parto e nascimento”, realizada pela Fiocruz, com o objetivo de conhecer os determinantes, a magnitude e os efeitos das intervenções obstétricas no parto.1 O estudo trouxe à luz o complexo quadro de iniquidades relacionadas à medicalização do parto no Brasil, sendo crucial para a reflexão sobre as transformações nas práticas de parto e sobre a utilização cada vez mais intensa de intervenções.

Compartilhando as inquietações acima observadas, e buscando se integrar ao esforço de trazer novas perspectivas para a questão do parto e de seu processo de medicalização,2 o grupo interdisciplinar de pesquisadores do projeto Medicalização dos Nascimentos no Brasil (COC / Fiocruz) lançou a chamada para os artigos que compõem este número especial. Agradecemos aos autores que responderam e compartilham conosco o objetivo de subsidiar reflexões múltiplas sobre o assunto.

No mesmo esforço de reunir variadas perspectivas sobre a temática, realizamos, nos dias 22 e 23 de outubro de 2018, no auditório do Museu da Vida (Fiocruz, Rio de Janeiro), o seminário internacional “Medicalização do Parto”. O seminário contou com a participação de pesquisadoras de diferentes cidades do Brasil e do mundo e com a presença de diferentes profissionais da assistência e representantes de movimentos de mulheres, que debateram a situação atual da assistência ao parto no Brasil. Em breve os temas discutidos no seminário serão organizados na forma de livro.

Para relembrar a historiadora Maria Lúcia Mott – homenageada em nosso dossiê –, “o nascimento não se restringe a um ato fisiológico, mas testemunha por uma sociedade, naquilo que ela tem de melhor e de pior” (Mott, 2002, p.399). A medicalização dos partos, dos nascimentos e da vida é parte da nossa sociedade, e olhar para essas questões é uma das formas de transformá-la.

Notas

1 Ver <http: / / www6.ensp.fiocruz.br / nascerbrasil / >.

2 Outros periódicos dedicaram números especiais ou dossiês à temática do parto, entre eles Civitas: Revista de Ciências Sociais (v.15, n.2, 2015; disponível em: <http: / / revistaseletronicas.pucrs.br / ojs / index.php / civitas / issue / view / 974>) e Revista Estudos Feministas (v.10, n.2, 2002; disponível em: <https: / / periodicos.ufsc.br / index.php / ref / issue / view / 318 / showToc>). Darwin et l’après-Darwin. Paris: Kimé. 1992.

Referências

BETRAN, Ana Pilar et al. What is the optimal rate of caesarean section at population level? A systematic review of ecologic studies. Reproductive Health, v.12. Disponível em: <http: / / reproductive-health-journal.biomedcentral.com / articles / 10.1186 / s12978-015-0043-6>. Acesso em: 19 nov. 2018. 2015. [ Links ]

MOTT, Maria Lucia. Parto. Revista Estudos Feministas, n.2, p.399-401. 2002. [ Links ]

WHO. World Health Organization. WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience. Geneva: World Health Organization. 2018. [ Links ]

Luiz Antônio Teixeira – Pesquisador, Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz; Brasil. Professor, Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: [email protected]

Andreza Rodrigues Nakano – Professora, Escola de Enfermagem Anna Nery / Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: [email protected]

Marina Fisher Nucci – Pós-doutoranda, Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz. Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: [email protected]


TEIXEIRA, Luiz Antônio; NAKANO, Andreza Rodrigues; NUCCI, Marina Fisher. Apresentação. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.25, n.4, out. / Dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Parto e maternidade / História – Questões & Debates / 2007

Desde a publicação dos livros de Simone de Beauvoir (O segundo sexo, 1949) e de Betty Friedan (Mística feminina, 1963), as relações entre os estudos feministas e a maternidade têm sido marcadas pela contradição e pela polêmica. Se o feminismo da primeira onda (finais do século XIX e primeiras décadas do século XX) foi majoritariamente maternalista – apesar de algumas vozes dissonantes –, o feminismo da segunda onda (1960-1970) dividiu-se em relação à maternidade. Ora explicada como uma experiência ética e valorizada, ora denunciada como uma peça fundamental da opressão feminina, sobre a maternidade não se pode dizer que pairou o silêncio ou a negligência intelectual, muito pelo contrário.

Entre as décadas de 1970 e 1980, multiplicaram-se os estudos sobre esse tema que abrangiam diferentes domínios das ciências humanas, o que resultou em artigos, livros e coletâneas nos quais a problematização da maternidade tinha entre seus objetivos criticar as interpretações históricas e deterministas, inserindo experiências como a sexualidade, a gravidez, o parto, a amamentação e a maternagem no terreno da cultura e da história. Esses estudos contribuíram para a desconstrução de verdades estabelecidas sobre o corpo feminino, bem como sobre temas espinhosos para o feminismo, como identidade e cultura femininas. As experiências do corpo, da reprodução, do nascimento e dos cuidados deixaram o terreno da biologia e dos instintos e adentraram no terreno das relações sociais, dos sistemas simbólicos e da dimensão temporal que possibilita pensar historicamente tais experiências.

As historiadoras têm contribuído para esse debate. A história da maternidade é um domínio relativamente recente, mas tem produzido vários trabalhos individuais e coletivos nos dois lados do Atlântico. As abordagens são bastante diversificadas, como a história social, a história cultural, a história política, mas também o recorte cronológico, com estudos que se inserem na longa duração e outros de recorte mais contemporâneo e conjuntural. O dossiê Parto e Maternidade, que apresentamos na revista História: Questões & Debates, visa contribuir com os estudos sobre essa temática numa perspectiva interdisciplinar e de maior amplitude temporal. Instituição que presta serviços de atendimento a famílias em dificuldades, localizada na ilha d’Yeu (França). Fernanda analisa especificamente o que significam a gravidez e o parto para as mulheres que vivem nessa instituição.

Parto e maternidade são analisados neste dossiê como experiências que, para além da dimensão subjetiva – corporal e psicológica –, constituem pontos críticos de interseção do indivíduo e da sociedade, da racionalidade e dos sentimentos, das práticas sociais e das ideologias. Convidamos os leitores a compartilhar destas reflexões.

Neste número também contamos com três artigos que abordam questões referentes ao espaço urbano e à memória, além de práticas políticas e conhecimento. O artigo de Fernando Gaudereto Lamas aborda o contrato das entradas para as Minas Gerais no século XVIII, tanto sob a ótica administrativa quanto sob a econômica. O autor defende que um estudo sobre a ação dos contratadores esclarecerá as peculiaridades do sistema colonial português, bem como as particularidades da economia das Minas Gerais. Também sobre o século XVIII, o artigo de Clarete da Silva Paranhos analisa as Viagens filosóficas do naturalista João da Silva Feijó, correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa. A autora se debruça sobre o levantamento dos recursos naturais realizado pelo naturalista em viagem à Capitania do Ceará em 1799. Já o artigo de Edmilson Santos apresenta uma reflexão sobre os campos de várzea, como espaços urbanos de lazer popular.

Iniciamos com a tradução do artigo da historiadora italiana Claudia Pancino sobre a produção iconográfica dos fetos e nascituros desde a época dos anatomistas renascentistas até a contemporaneidade da transparência dos corpos pela tecnologia das imagens médicas. A autora nos mostra como se constrói a relação entre conhecimento e imaginário, levantando questões bastante instigantes sobre as relações entre o corpo materno e os fetos no processo de produção das imagens anatômicas.

Das imagens da vida e da morte, passamos para o artigo de Georgiane Garabely Heil Vázquez a respeito do aborto. A autora aborda essa questão a partir do conhecimento médico, da interpretação e das reações dos médicos a respeito das mulheres que por motivos diferentes tiveram que recorrer a essa prática para interromper uma gravidez indesejada, senão impossível, para aquele momento de suas vidas.

O artigo escrito pelas pesquisadoras do Instituto de Saúde de São Paulo e da PUCSP aborda a temática do parto e da maternidade através da profissão exercida pelas parteiras diplomadas que atuaram em São Paulo entre 1878 e 1920. Esse artigo é também uma contribuição para a historiografia da imigração, por divulgar fontes pouco conhecidas sobre as parteiras estrangeiras que exerceram seu ofício no país.

As relações entre médicos e mães são o tema do artigo de Ana Laura Godinho Lima, que analisa os manuais de puericultura escritos pelos médicos brasileiros na primeira metade do século XX com o intuito de ensinar as mães a bem cuidar dos filhos sob a égide do saber médico-higienista da puericultura. Terreno de conflitos, pois de um lado está o saber médico amparado nos conhecimentos das ciências biológicas; de outro lado, as práticas e os saberes femininos colocados em suspeição e mesmo condenados pelos pediatras. Desses conflitos, Ana Laura nos apresenta o esforço de aculturação empreendido pelos médicos e seus manuais de bem cuidar das crianças.

A educação também é o tema do artigo de Maria Simone Vione Schwengber. Fundamentada nas contribuições teóricas do pós-estruturalismo, a autora analisa o processo de educação dos corpos grávidos. Utilizando como fonte principal a revista Pais & Filhos no período de 1968 a 2004, Maria Simone estuda os processos de subjetivação através do que se tem denominado de politização da maternidade.

Fechando este dossiê, temos o artigo de Fernanda Bittencourt Ribeiro, no qual são analisados os dados de uma pesquisa etnográfica realizada numa

Ana Paula Vosne Martins – Organizadora do dossiê.


MARTINS, Ana Paula Vosne. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.47, n.2, jul./dez., 2007. Acessar publicação original [DR]

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