Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial (Brasil, 1822-1889) – GONDRA (RBHE)

GONDRA, José Gonçalves. Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial (Brasil, 1822-1889). Vitória: EDUFES, 2011. Resenha de: PAULILO, André Luiz. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 12, n. 3 (30), p. 235-241, set./dez. 2012

As dificuldades da compreensão histórica do que foi a educação no Império brasileiro são muitas e vão desde o trabalho cotidiano nos acervos públicos e as dificuldades de acesso à documentação até a sofisticada crítica da memória, constituída posteriormente, que o tema exige. É verdade que atualmente a tradição historiográfica republicana, que produziu o enorme vazio a respeito da educação organizada e mantida durante o Império no Brasil, foi superada por um sistematizado esforço de pesquisa e análise. A articulação de grupos de pesquisadores, em torno do período em eventos, como os Seminários de Fontes para a Pesquisa em História da Educação do Século XIX, e a publicação das conclusões de estudos sobre o oitocentos brasileiro vêm mostrando, há mais de uma década e com muita intensidade, que a educação brasileira oitocentista é um período fértil tanto para a problematização de questões atuais do campo educacional quanto da produção historiográfica.

No entanto, ainda há bastante o que fazer, conforme atesta o livro Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial (Brasil, 1822‑1889). O mais recente esforço para pensar a educação e a instrução nas províncias e na Corte é a obra organizada por José Gonçalves Gondra e Omar Schneider, que reúne, em 15 artigos, uma plêiade de 23 especialistas no estudo da educação no tempo do Império, com o objetivo de “[…] visibilizar as experiências em termos de educação e instrução desenvolvidas na complexa malha provincial e na Capital do Império […]” (p. 13). Trata-se do terceiro volume da coleção Horizontes da Pesquisa em História da Educação no Brasil, iniciativa da editora da Universidade Federal do Espírito Santo e da Sociedade Brasileira de História da Educação. Embora o título delimite o período 1822-1889 como recorte, e a proposta de organização dos capítulos tenha se efetivado em função da abrangência das iniciativas regionais então projetadas e desenvolvidas, as histórias que este livro traz não se prendem aos limites da história institucional e político-administrativa.

As orientações diversas da escrita e a própria diversidade dos autores preservam uma pluralidade de perspectivas que contribui para a compreensão das possibilidades de análise hoje presentes na historiografia. Entre outros, estão presentes investimentos de pesquisa sobre a educação dos índios amansados, sobre o uso dos métodos, dos espaços e dos tempos escolares e acerca das estratégias populares de educação ou de resistência ao modelo oficial de instrução. Cotejar esses diferentes interesses revela um importante trabalho com as categorias da análise histórica. Sob esse aspecto, perpassam o livro desde abordagens ancoradas na utilização de categorias como cultura escolar e forma escolar até a elaboração de instrumentos de análise muito próprios como o de processo escolarizador.

Outra chave de entrada para a leitura é o escopo dos textos. Nos estudos que estão reunidos em Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial, há, por um lado, o esforço de síntese e interpretação e, por outro, a organização de inventários empenhados na discussão historiográfica da pesquisa acerca da educação no período. Sobretudo nos textos em que predomina o primeiro tipo de expediente, é possível acompanhar a construção de quadros compreensivos capazes de mostrar os principais resultados das iniciativas educacionais dos governos provinciais. Para as províncias do Amazonas e Pará, Ceará e Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, Sergipe, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, os autores indicam formas de abordar o processo de escolarização das suas sociedades e, principalmente, tecem relações entre o político e o cultural. De outro tipo é o entendimento que os mapeamentos da produção permitem ter. O levantamento dos estudos a respeito da história da educação no Maranhão e Piauí, no Rio de Janeiro, no Paraná, em Alagoas, em Goiás e Mato Grosso, e em Santa Catarina informa sobre a profusão dos objetos de pesquisa e dos meios de análise que vem sendo utilizada no trabalho com o oitocentos brasileiro. Por se tratar de uma diferença de ênfase e não de uma opção entre um expediente e outro, os 15 artigos reunidos neste livro auxiliam na tarefa de compreensão histórica, senão das realizações dos governos provinciais e da Corte, ao menos dos mecanismos explicativos que lhes indiciam as interpretações possíveis. Dessa perspectiva, o texto escrito por Maria Lucia Hilsdorf acerca de São Paulo é exemplar.

Mesmo que, de fato, se beneficie dos diferentes interesses de pesquisa e da pluralidade das perspectivas de análise dos seus autores, Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial é daqueles casos raros de coletânea cuja força está no conjunto, no arranjo obtido pelo livro. Conforme os organizadores esclarecem no prefácio, solicitou-se aos autores que procurassem contemplar a bibliografia existente sobre educação na região, mapear o tipo de documentação disponível e pensar as perspectivas e desafios para a pesquisa em história da educação e instrução nas províncias e na Corte. Outra orientação geral do livro foi observar o emprego dos termos educação e instrução à época. Considerando que, então, a distinção entre as ações sobre os variados aspectos da conduta dos sujeitos sociais e as medidas voltadas para organizar e legitimar a escola na sociedade brasileira pautaram o debate acerca das modalidades de intervenção educativa, sugeriu-se rever e observar o uso dos termos educação e instrução na literatura pedagógica do período. O resultado conseguido, efetivamente, contribui para melhor entendimento da organização do ensino nas províncias e na Corte Imperial e das premissas teórico-metodológicas da sua historiografia. Uma leitura transversal, articulada e integrada, das contribuições que o volume colige mostra-o bem, sobretudo nos quatro pontos indicados pelos organizadores.

Primeiro, a varredura que os artigos realizaram da bibliografia acerca da educação nas províncias e na Corte mostra um importante acúmulo de reflexões. Trata-se de obras que são já clássicos de referência, como nos casos do que José Veríssimo, José Ricardo Pires de Almeida e Primitivo Moacyr publicaram. Há, igualmente, um conjunto de obras que, provenientes do campo da história, tornaram-se referência fundamental para o trabalho com a história da educação, como O Tempo Saquarema de Ilmar Rhollof de Mattos e os trabalhos de Sidney Chalhoub e Eni de Mesquita Samara. No campo específico da história da educação, as produções de, por exemplo, Oscar Thompson, Archimiro Mattos, J. L. Rodrigues, João Craveiro Costa, José Calasans, J. B. Mello, José Mendonça e Abelardo Duarte constituem referências significativas para a historiografia das províncias. Principalmente, chama atenção a profusão das novas produções. Maria Stephanou, Maria Helena Câmara Bastos, Elomar Tambara, Luciano Mendes de Faria Filho, Heloisa Villela e Tarcísio Mauro Vago são nomes que, na última década e meia, vêm consolidando a pesquisa sobre a educação oitocentista com suas publicações. Seus estudos são amplamente referenciados nos artigos editados nesta compilação. Também as teses e dissertações elaboradas nos programas de pós-graduação das universidades de diferentes estados brasileiros vão contribuindo com novas perspectivas de estudo. Nesse aspecto, o levantamento realizado da produção aponta que, de Norte a Sul, há trabalhos representativos da renovação dos estudos sobre o Império. Além da rede de referências que articulam, é relevante dizer que as contribuições reunidas neste volume foram produzidas por autores que igualmente têm publicado trabalhos fundamentais para o entendimento da história da educação oitocentista. Junto aos organizadores, José Gonçalves Gondra e Omar Schneider, colaboraram Adriana Feitosa, Adriana Maria Paulo da Silva, Alessandra Schueler, Berenice Corsetti, César Augusto Castro, Cynthia Greive Veiga, Elizabeth Siqueira, Fátima Neves, Ione de Souza, Irma Rizzini, José Carlos Silva, Leonete Schmidt, Maria das Graças Loiola, Maria Lucia Hilsdorf, Mauricéia Ananias, Samuel Castellanos, Sandra de Abreu, Sônia Maria Araújo e Terciane Luchese.

Depois, o mapeamento das fontes disponíveis para pensar a educação nas províncias e na Corte Imperial esclarece acerca dos caminhos da pesquisa histórica a respeito da escola oitocentista. Sob esse aspecto, Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial constitui um testemunho do quanto têm sido diversificadas as estratégias dos historiadores para definir seus objetos de pesquisa. Todo seu conjunto repõe a profícua discussão sobre as fontes da história da educação que, da última década e meia para cá, orientou grande parte da renovação historiográfica no país. Por um lado, a cuidadosa lembrança dos limites impostos pelas fontes ditas oficiais, como o são os relatórios das inspetorias provinciais e suas comissões, as estatísticas e recenseamentos, as atas e a legislação, não deixa esquecer a necessária crítica das fontes. Por outro lado, acompanha a reflexão sobre o uso de outros tipos de documentação a necessária crítica dos métodos e das categorias de análise empregadas. Assim, mostra-se que o trabalho com impressos, inventários, prestação de contas, listas de compra e de despesas com educação, livros, utensílios e boletins escolares, cartões-postais, fotografias, abaixo-assinados, anais de congresso, entre tantas mais, não tem renovado apenas os temas de pesquisa e sua abordagem, mas a própria elaboração metodológica que a interpretação dessas fontes implica.

Há também a preocupação com as possibilidades e limites da pesquisa sobre os processos de escolarização durante o Império e os desafios que atualmente se impõem aos profissionais deste canteiro da história da educação. A varredura da bibliografia e o mapeamento das fontes que resultam do trabalho realizado para a composição do livro Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial delineiam-se numa espécie de estado da arte da investigação sobre os processos de escolarização do Brasil oitocentista. O avanço sobre os limites impostos pela historiografia produzida pelos renovadores escolanovistas e por uma certa história das ideias pedagógicas fica marcado tanto pela abrangência e natureza das fontes mobilizadas nas análises, quanto pela prática insistente da crítica historiográfica. No entanto, outras lacunas aparecem e, conforme orientação dos organizadores, são consideradas pelos autores. Não obstante a especificidade dos interesses e das expectativas de pesquisa em cada região, há preocupações muito gerais e indicativas dos espaços para a inovação. É recorrente, por exemplo, a constatação de que ainda se sabe pouco sobre a cultura material das escolas oitocentistas, compreende-se mal a história das redes de ensino constituídas fora das capitais e de que o conhecimento histórico sobre os processos de educação não formais continua precário. De outra parte, a pesquisa sobre a educação e os processos de aprendizagem entre escravos e libertos, as questões relativas aos povos indígenas, as dinâmicas educativas instituídas pelo viés do gênero, da etnia e da geração são igualmente campos ainda pouco lavrados. Também é significativo o número de relações que, segundo os autores, demandam investimento. Precisamente nesse sentido, reconhece-se o pouco que foi feito para se compreender, por exemplo, as relações entre as práticas prescritas e a atuação dos agentes do processo de escolarização; as táticas das populações consideradas escolarizáveis e as estratégias governamentais; a escolarização, a maçonaria e o ensino laico; e as relações das famílias e tutores com a questão da formação.

Finalmente, quarto ponto. A concepção do período em que a educação era um importante instrumento civilizador e a escola seu principal veículo se impõe às principais conclusões das pesquisas. Mesmo diante dos reduzidos números de atendimento escolar, foi por um hábil discurso acerca da educação que se procurou “superar a selvageria pela civilização” (p. 18), articular uma “estratégia civilizadora do povo” (p. 272) ou “promover os progressos civilizadores, materiais e políticos” (p. 446) da nação. E não só nos resultados, os estudos reunidos neste 3º volume da coleção Horizontes da Pesquisa em História da Educação expressam essa compreensão da época, a respeito das medidas tomadas para organizar as escolas e das ações efetuadas sobre a conduta de diferentes sujeitos sociais. Igualmente, os protocolos de leitura construídos pelos autores exploram o caráter civilizatório que então se queria dar à educação pública. A ênfase das análises nas iniciativas do poder público mostram sobretudo que a escola foi uma instituição constituída, justificada e disseminada no Brasil-Império como signo de civilização e progresso. Nesse sentido, além de delinear uma espécie de estado da arte da produção sobre a educação do período e apontar as ainda importantes lacunas da pesquisa, o livro organizado por Gondra e Schneider permite uma revisão das interpretações sobre as realizações da escola oitocentista no país. Trata-se, assim, de um livro útil tanto pelas referências de pesquisa e possibilidades de trabalho que sistematiza quanto pelas leituras que propõe.

A proposta deste volume determinou tarefas gerais a respeito do estudo da história da educação nas províncias e na Corte, que fizeram as análises individuais convergirem em pelo menos outros quatro aspectos. Por um lado, o trabalho de varredura e mapeamento se completa com a identificação dos grupos de pesquisa que atuam no estudo da educação no Império e dos arquivos e acervos que têm sido frequentados. Por outro, na reflexão sobre a história e a historiografia da educação à época, são insistentes a discussão da obra de Primitivo Moacyr e as preocupações com a distância entre o proclamado e prescrito em relação ao vivido e realizado. Assim, primeiro aspecto, o conjunto dos artigos compilados mostra uma rede de grupos de estudo e pesquisa, que indica a importância do trabalho coletivo na consolidação de um campo de investigação. Os relatos apontam que a atuação de pesquisadores vinculados ao GHIMEM/ MA, NEDHEL/MA, NEPHEPE/UFPE, GHENO/UFPB, HISTEDBR, CEDU/UFAL, GEPHE/UFMG, NEPHE/UERJ e GEM/UFMT, por exemplo, vem constituindo pontos de apoio e oportunidade de formação imprescindíveis para a consecução de investigações mais abrangentes e com capacidade comparativa. Decorre desse trabalho conjunto, um segundo aspecto das pesquisas sobre a educação oitocentista que os estudos demarcam com firmeza, o trabalho nos arquivos públicos estaduais. Os arquivos públicos de praticamente todos os estados do país são lembrados e têm uma parte do seu acervo analisada pelos autores. Terceiro aspecto: a obra de Primitivo Moacyr é presença marcante na análise de muitos dos artigos publicados neste livro. A compilação de fontes que ele produziu e as análises que articulou, num esforço de compreensão das iniciativas públicas na área da educação entre 1834 e 1889, são consideradas e discutidas em diferentes momentos e a propósito de diferentes províncias. Sobretudo, compreende-se, de diversas perspectivas, que as interpretações de Primitivo Moacyr precisam ser matizadas quando se quer analisar não só a história da educação no Império, mas também os programas a partir dos quais sua historiografia foi construída.

A respeito das preocupações com a sempre distante relação entre o prescrito e o realizado na educação brasileira, verificada em boa parte dos autores que colaboraram para as muitas realizações do livro Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial, um último comentário. Essa grade de leitura acerca da instrução do oitocentos é o que me pareceu mais próximo dos instrumentos de interpretação de uma história vista do centro, institucional e político-administrativa, presente no livro. Pretender compreender o alcance das iniciativas do poder público e as alterações nas práticas educativas a partir da análise da legislação, dos discursos da prática legislativa e de toda a série de documentos administrativos é operação que continua produzindo resultados. Ao lado do estudo das práticas e instituições da educação nas províncias e na Corte Imperial, o trabalho de reexame e de reescrita da história da educação daquele período atualmente em andamento, e de que este livro é um testemunho, tem sido feito em meio à abordagem desse tipo de documentação. No entanto, o trabalho com esse tipo de fonte não impede a elaboração de outras operações de leitura e interpretação. Nesse sentido e a título de exemplo, a reflexão acerca da relação que os vários grupos sociais que frequentavam a escola mantinham com seu funcionamento e com os mecanismos que aí estavam à disposição, ou sobre os que lhe resistiam, também visibiliza elementos tão fundamentais da situação concreta do fazer ordinário da escola, quanto os que foram manejados sob as vistas das instâncias do poder administrativo. Uma vez mais se trata de evitar a produção de um vazio, agora a respeito das tensões que se estabelecem na sociedade entre as suas várias instituições, entre diferentes grupos sociais e entre os múltiplos sujeitos que vivenciaram o cotidiano escolar.

No momento mesmo em que é revista, a história da educação e da escola oitocentista recebe, com a publicação de Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial, um tipo de contribuição que é característica dos períodos de reformulação dos problemas de pesquisa. Ao mesmo tempo em que insiste nos estados da arte e balanços, pratica modelos híbridos de compreensão dos objetos de investigação e sugere novos protocolos de análise e crítica.

André Luiz Paulilo – Professor na Faculdade de Educação Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected]

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História das Culturas Escolares no Brasil – VIDAL (RBHE)

VIDAL, Diana Gonçalves; SCHWARTZ, Cleonara Maria. História das Culturas Escolares no Brasil. Coleção: Horizontes da Pesquisa em História da Educação no Brasil, 1. Vitória- ES: Editora Edufes, 2011. Resenha de: PAULILO, André Luiz. Revista Brasileira de História da Educação, v. 11, n. 3 (27), p. 153-182, set./dez. 2011

A reflexão acerca do conceito de cultura escolar e seu uso na abordagem histórica do campo educativo foi a primeira beneficiada com a iniciativa da Sociedade Brasileira de História da Educação, em associação com a Edufes, de mapear o que vem sendo produzido na área durante a última década. A publicação do livro organizado por Diana Gonçalves Vidal e Cleonara Maria Schwartz, compondo o volume de abertura da coleção “Horizontes da Pesquisa em História da Educação”, sintetiza muito deste propósito no que diz respeito ao emprego de uma categoria de análise. Os estudos então reunidos sob o título História das Culturas Escolares no Brasil abordam, de diferentes perspectivas, vários dos aspectos que constituíram a escola e legitimaram-na como instituição social de características muito próprias e marcantes. Nesse sentido, é bastante clara a ênfase do empreendimento na compreensão das “formas de produção, circulação e apropriação de saberes operadas na/pela escola brasileira” e das “práticas de diferentes sujeitos que, ao (re) produzirem gestos, ações, fazeres, em seus espaços de atuação, ilustram formas diferenciadas com que o contexto educacional fora pensado e apropriado” (p. 11). Parte importante dos protocolos de leitura que organizam o livro são indicativos disto. No prefácio e em muitos dos títulos dos capítulos, o foco nessas formas e práticas explicita o investimento dos autores na análise da “cultura que se constrói na escola” (p. 21).

O leitor que se deixar fiar por esses protocolos será bem conduzido. O livro é “armado” de modo a dar visibilidade aos esforços de entendimento das práticas instauradas no interior da escola e das tensões entre as expectativas de diferentes grupos sociais sobre a função desta instituição ao longo da história. Sobretudo aquilo que as organizadoras definem como as questões e os eixos articuladores da obra, no capítulo inicial, vão sendo esmiuçados pelos outros catorze estudos. Assim, as cinco principais questões de pesquisa que são delineadas – espaços escolares, sujeitos da educação, tempos escolares, disciplinas escolares e cultura material escolar – incidem sobre a análise: da cultura material da escola paraibana no Oitocentos e dos processos de escolarização no Rio Grande do Norte no início do século passado, da escola graduada no Rio Grande do Sul, dos patronatos agrícolas de Sergipe e da educação rural e da escola técnica agrícola, das práticas de higienização em São Paulo, de disciplinamento em Belo Horizonte e de formação moral e cívica no Mato Grosso. O estudo das características das escolas de imigrantes em Campinas, das festas escolares no Paraná, da formação de professores em Santa Catarina, do ensino da educação física em Minas Gerais e dos cadernos escolares completa os veios de trabalho explorados no livro.

Ainda conforme o que fica esclarecido desde o capítulo inicial deste volume, as abordagem das questões são articuladas em torno de dois eixos. Por um lado, o funcionamento interno das instituições é principalmente estudado a partir da materialidade da escola e dos dispositivos que empregava para instaurar suas práticas de ensino e educação. Por outro, as relações que a escola estabelece com a sociedade têm diversas das suas facetas investigadas, com ênfase especial na atuação dos sujeitos sociais. Assim, as organizadoras têm razão quando afirmam que ao longo dos capítulos “a própria unidade conferida à escola foi desconstruída no reconhecimento de que as práticas instauradas no seu interior eram permeadas por conflito e que a cultura escolar não era estável” (p. 25). Não obstante a especificidade de níveis e modalidades de ensino analisadas, a leitura de História das Culturas Escolares no Brasil adverte que a escola foi uma construção difícil e cheia de tensão. Sobretudo nesse sentido, trata-se de uma história de interpretações e apropriações das demandas político-administrativas e de constituição dos fazeres ordinários das escolas. O empreendimento problematiza as reformas educativas tanto quando escrutina sua imposição pelas autoridades, como ao perguntar a respeito da sua recepção pelos sujeitos. Também sugere que a escola e o seu entorno se enlaçam em mais de um modo na forma pela qual “os sujeitos sintetizam, acolhem e subvertem os preceitos pedagógicos e os conteúdos prescritos” (p. 27).

Outro aspecto de compreensão deste primeiro volume da coleção “Horizontes da Pesquisa em História da Educação” que fica esclarecido desde a leitura da introdução do livro tem a ver com os limites da utilização de uma categoria de análise. Com razão, argumenta-se que como fórmula, esvaecida em seus significados e vazia de conceituação, cultura escolar pode transformar-se em um mero slogan (p. 33). A advertência alerta sobre a capacidade que uma categoria de análise deve ter de “oferecer índices para o entendimento da ação dos homens no seu trânsito histórico pelo mundo”. A operacionalidade da noção de cultura escolar é, assim, viabilizada de modo exemplar em cada novo estudo, a partir das suas questões específicas e em torno de perspectivas adequadas ao tema abordado. Muitas análises, partindo de fontes resultantes da administração e controle da educação pública, elaboram formas de ler essa documentação capazes de escapar das amarras da versão oficial, buscando nos jornais e em textos memorialísticos uma nova possibilidade de interpretação. Os estudos sobre as instituições escolares, e acerca dos momentos estruturantes da cultura escolar e de consolidação dos seus principais dispositivos têm alargado suas fontes de pesquisa de modo a experimentar outros olhares sobre a história da escola. Também no caso das análises a respeito da elaboração de saberes e disciplinas escolares e da materialidade associada às práticas do ensino e da educação, as operações de leitura das fontes é constitutiva das investigações. Vistos como parte decisiva das soluções aos desafios da vida escolar ou das demandas por regulação, as festas, os cadernos, as práticas de higiene e toda sorte de recursos de organização dos fazeres ordinários da escola definem áreas de interesse e pesquisa que não só valorizam a ação dos sujeitos da educação como levam em conta a materialidade com que convivem.

Tudo isso dá força de conjunto ao livro, revelando êxito na articulação do propósito de mostrar algo dos processos pelos quais a escola se reinventou em diversos momentos da sua história no país. No entanto, há mais do que se tirar proveito. Depreende-se da leitura uma história da vida cotidiana na escola, com as nuanças locais e as realidades que a modelaram. Do mesmo modo que, assim, é possível se aperceber dos dispositivos em ação no dia a dia da escola, testemunha-se a variedade dos atores responsáveis pela configuração das culturas escolares no Brasil. Nesse sentido, os estudos que História das Culturas Escolares no Brasil reúne não só esclarecem acerca do funcionamento interno de diferentes instituições educativas, mas, sobretudo, enfatizam os aspectos do fazer de diferentes segmentos dos contingentes escolares.

As análises se valem de tipos variados de fontes para perceber a escola no detalhe das práticas. Vestígios de atitudes e processos muito comuns às atuais representações que temos sobre a escola têm sido apreendidos nas pesquisas compiladas por Vidal e Schwartz. O ir e vir de pedidos, a divisão dos alunos em classes, os preconceitos que sustentam as práticas de avaliação, as festas, o tempo balizado pelo relógio, os jogos de esporte e as lições e práticas de escrita são o foco de uma detida atenção aos usos e costumes da escola. Também há a preocupação com os indícios de iniciativas que já não são as da escola atual, embora sejam parte importante das representações do que ela já foi um dia. Entre descrições dos artifícios didáticos do disciplinamento dos alunos, das práticas de inspeção médica, da mobilização de métodos de ginástica e da presença dos jogos na escola, todo um conjunto de referências da história da escolarização é esmiuçado. A participaçãonas atividades de ginástica e nos exercícios militares, as práticas cívico-nacionalistas, a medição do peso, da estatura e da capacidade respiratória e o uso dos cadernos de caligrafia estão entre as experiências que os estudos problematizam. Também as operações mais rotineiras das escolas do país permitiram apurar algo de como os conhecimentos eram transmitidos em aula. Principalmente, a cópia, os exercícios de enumerar e completar, as atividades de composição, as questões para relacionar e as tarefa de definir, analisar, resumir, redigir, calcular e resolver deixaram registros cuja relevância histórica o emprego da noção de cultura escolar permite apurar e compreender melhor.

Dessa perspectiva de pesquisa, o interesse pela atuação das autoridades de ensino passa ao largo da história político-administrativa e a história da profissão docente e a da infância mostram ter outras facetas quando pensadas a partir da cultura escolar. Na leitura não se vai obter notícias das autoridades, propriamente, ou de seus feitos, mas do mais cotidiano dos seus encargos. Assim, ficar-se-á principalmente sabendo que permitir ou indeferir licenças, designar professores ou indicar seus substitutos, controlar o cumprimento dos horários e, sobretudo, descrever e relatar foram aspectos constitutivos do exercício da autoridade no dia a dia da escola. Do mesmo modo, a prática da docência é compreendida nos seus fazeres de todo dia, nas suas táticas para superar descontentamentos. Observa-se então o vai e vem de pedidos, os usos e apropriações dos novos dispositivos educativos das escolas e das pautas pedagógicas da ocasião e a inventividade das formas de punir que os professores impunham à rotina e aos constrangimentos do seu ofício. Por outro lado, as análises reunidas por Vidal e Schwartz em História das Culturas Escolares no Brasil mostram alguns detalhes das rotinas das crianças na escola. Os interesses de pesquisa cobrem desde as adversas condições sociais em que viviam os alunos até os seus brinquedos, brincadeiras e traquinagens e a precariedade do mobiliário e instalações das escolas que frequentavam para compreender a experiência escolar das crianças. A leitura informa sobre os tipos de castigos infligidos às crianças pelos professores, os dispositivos de exame e registro das características individuais do aluno e os objetos que se manipulava em sala de aula. As análises também alcançam parte daquilo que os castigos repreendiam, os dispositivos de controle procuravam conformar e a cultura material da escola rejeitava. A desobediência e algazarra, as moléstias e a falta de asseio, assim como a vara de marmelo, cascas de frutas ou aparas de lápis foram aspectos da vida cotidiana da escola que essas análises não deixam de assinalar.

Quanto aos fazeres dos sujeitos que contribuíram para a história das instituições escolares e dos seus espaços, temporalidades, ritos e rotinas, os estudos compilados nesse volume suscitam ainda outro tipo de reflexão. A história que os textos apresentam não só mostra a variedade cultural das escolas, mas, fundamentalmente, adverte que a cultura escolar é obra coletiva e plural. Nessa direção, compreender a atuação cotidiana das autoridades de ensino e professores e as formas da criança estar na escola confere outro sentido à análise dos propósitos de reforma do ensino e das carreiras construídas na área da educação. Por um lado, como, aliás, sublinham as organizadoras, o desafio que se apresenta é tanto descortinar “os modos como os sujeitos compreendem o processo de escolarização e atuam conferindo sentido às suas experiências no âmbito da escola e sua relação com a sociedade” (p. 32) quanto construir “inteligibilidades sobre o passado e o presente da escola, seus sujeitos e a materialidade com que convivem” (p. 33). Por outro, trata-se de interrogar o modo como os mais diversos grupos sociais produziram e negociaram sentidos, práticas e horizontes próprios de atuação no interior da escola. Sob essa perspectiva, além das autoridades de ensino, dos professores e dos alunos, vê-se que as análises igualmente percebem os papéis de médicos, religiosos, engenheiros agrônomos, estatísticos, psicólogos e sociólogos na definição das formas adotadas pelas escolas no país. Os referenciais teóricos que orientam os estudos reunidos neste primeiro volume da coleção fundamentam análises capazes de fornecer boas coordenadas sobre as redes de compromisso, as expectativas e os processos de interação organizados em torno do cotidiano das instituições escolares. Não obstante as dificuldades metodológicas de pensar as ligações das pessoas com a escola e o mundo material que as cercam, também a relação que diferentes segmentos sociais da população mantiveram com a educação é uma questão levantada pelos estudos reunidos em História das Culturas Escolares no Brasil.

A propósito dos referenciais teóricos que articulam os quinze textos do livro, uma última consideração. Na construção da noção de cultura escolar como categoria de análise e como objeto de estudo, predominam as referências francesas e espanholas às anglo-saxãs. Esse traço adverte acerca do tipo de inserção que tem sido realizado pela pesquisa a respeito da cultura escolar no país, sobretudo atenta à corporeidade dos sujeitos e ao papel da organização do tempo e do espaço institucional na configuração da escola. Os resultados apresentados neste primeiro volume da coleção “Horizontes da Pesquisa em História da Educação no Brasil” apontam a inventividade das interpretações e mostram que, principalmente, o recurso a Julia, Chervel, Forquin, Viñao Frago e Escolano foi profícuo para a compreensão de uma série de questões da história da escola e da escolarização postas pela historiografia da educação no Brasil. No entanto, isso não ocorreu sem implicações. A ênfase nas inflexões da operacionalização das práticas escolares e, assim, na apreciação das mudanças, ainda que as de escala reduzida, são características do modo como se têm indagado as relações da escola com a sociedade e a cultura que os estudos compilados por Diana Vidal e Cleonara Schwartz refletem. Tanto pelo que tematiza acerca do passado e do presente da educação no país quanto por aquilo que esclarece a respeito dos limites do atual mergulho da historiografia no funcionamento interno da escola, o livro História das Culturas Escolares no Brasil é um útil alerta aos pesquisadores da área, um esforço sério de divulgação de pesquisa e um caprichado convite à leitura.

André Luiz Paulilo – E-mail: [email protected]

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