A Origem dos Sentimentos Morais – RÈE (CN)

RÈE, Paul. A Origem dos Sentimentos Morais. Trad. André Itaparica e Clademir Araldi, São Paulo: Ed. da Unifesp, 2018. Resenha de: SALVIANO, Jarlee. O naturalismo moral e o pessimismo em A Origem dos Sentimentos Morais de Paul Rée. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.39 n.2  maio/ago. 2018.

Coleção Sendas & Veredasvem há dezoito anos se constituindo como um dos mais importantes veículos de divulgação do pensamento de Friedrich W. Nietzsche no país, através de trabalhos de renomados especialistas (brasileiros e estrangeiros) na obra do polêmico filósofo alemão, promovendo um espaço permanente de debate filosófico sobre as mais variadas abordagens e impactos da filosofia nietzschiana. Além das séries Ensaios e Recepção, a Coleção conta agora com a série Fontes. O primeiro livro, que dá início a esta série, é a excelente tradução de André Itaparica e Clademir Araldi de A Origem dos Sentimentos Morais, de Paul Rée. Coordenada pela professora Scarlett Marton, a Coleção inaugura também, com esta tradução, sua nova casa: a Editora da Unifesp.

Paul Rée escreve o livro em 1877. De uma intensa conversação em Sorrento com o amigo Nietzsche (que conhecera no período de Basel, após a publicação de O Nascimento da Tragédia) surgiram A Origem dos Sentimentos Morais e o Humano, Demasiado Humano de Nietzsche. A amizade entre os dois foi regada ao pessimismo de Arthur Schopenhauer, de quem Rée herdou os elementos filantrópicos de sua ética. Apesar de comungar com Nietzsche, contra Schopenhauer, a proibição de qualquer fundamentação metafísica da moral, a concepção do desinteresse altruísta da ética da compaixão schopenhaueriana marcou profundamente o pensamento e a vida de Paul Rée – além do naturalismo ético de Rée, que influenciou decisivamente a genealogia nietzschiana, noutro ponto ainda poder-se-ia notar a contravenção em relação a Schopenhauer: caso fosse comprovado, o suicídio de Paul Rée (tendo em vista a rejeição schopenhaueriana do suicídio, como escapatória à sua visão trágica da vida). Com o rompimento do triângulo intelectual-amoroso entre os dois e Lou von Salomé, e após o casamento de Lou com Friedrich Carl Andreas, Rée refugia-se em sua cidade natal promovendo ações filantrópicas através do conhecimento de medicina que adquiriu após a desistência da docência em filosofia. Em Nietzsche, o doloroso dessabor em relação a Lou Salomé originou a orgiástica explosiva poesia de Assim Falou Zaratustra.

A tradução de Itaparica e Araldi oferece ao leitor uma apresentação inicial em que são apontadas, com riqueza de detalhes, as aproximações e os distanciamentos de Paul Rée e Nietzsche, em toda a obra dos dois filósofos e em relação ao ensaio traduzido; bem como uma nota biográfica, ao final, sobre Rée.

A comparação feita de início pelo autor de A Origem dos Sentimentos Morais entre o geólogo e o filósofo da moral dá a dimensão da tarefa a ser empreendida. Assim como o primeiro inicialmente “inspeciona e descreve diversas formações” e só então parte para a investigação de suas causas, também o segundo participa do mesmo esforço genealógico: parte da experiência para a origem dos conceitos éticos (como a consciência moral, liberdade, justiça, castigo, caráter etc.). Sem uma pretensão de esgotamento sistemático do assunto. Antes uma lacuna, diz ele, que um tapa-buraco.

Num estilo direto, incisivo, sem meias palavras, e com a ajuda do evolucionismo de Darwin, Paul Rée quer reduzir o fenômeno moral a causas materiais e históricas. Em relação aos conceitos de Bem [gut] e Mau [böse] o autor procura mostrar que o egoísmo e o altruísmo são inerentes à natureza humana. São inatos, heranças de “nossos ancestrais animais”. O Mau se configura em diversas atividades egoístas, em especial na preservação, satisfação sexual e vaidade. A realização dos anseios do ego, em contraposição ao altruísmo, encontra naturalmente no outro um obstáculo a ser superado. O clímax deste impulso imoral se encontra no prazer da desgraça alheia ou alegria maligna [Schadenfreude]. Por outro lado, o instinto altruísta visa ao bem-estar no outro, sua promoção, ou o afastamento do infortúnio. Do mesmo modo, a complacência [Mitfreude] objetiva tão somente a felicidade do outro. São bem visíveis aí os traços da ética da compaixão de Schopenhauer. A novidade consiste na ideia da distinção entre a compaixão altruísta (a exemplo da ação da mãe perante a dor do filho) e a compaixão egoísta: diante da dor alheia e tendo em vista que esta dor causa sofrimento num espectador, este age compassivamente, ainda que em vista da eliminação do sofrimento próprio. A motivação, portanto, não parte do outro, mas de si mesmo.

Louvável decerto, a secura da prosa de Paul Rée origina, no entanto, em alguns momentos, uma atmosfera conceitual rarefeita, como no caso da apresentação da tese schopenhaueriana sobre o altruísmo. Rée fornece, no primeiro capítulo, uma versão um tanto caricaturada do filósofo pessimista. Ele toma primeiramente como referência o pequeno e não tão expressivo ensaio Sobre a Vontade na Natureza, que trata en passant da questão ética da compaixão. E comete um grave equívoco: utilizando-se da distinção kantiana entre princípio constitutivo e regulativo, diz ser a Vontade de vida de Schopenhauer (o conceito mais importante de sua filosofia, o princípio ontológico que ele faz equivaler à Coisa em si de Kant) um conceito meramente regulativo: termo utilizado por Kant para se referir ao uso das Ideias da Razão Prática, como Deus e alma imortal. Não se pode dizer, sobre a Wille zum Leben de Schopenhauer, que devemos tomá-la ao modo do “como se”.

Enfim, interessa a Rée neste primeiro capítulo a ultrapassagem desta fundamentação metafísica do altruísmo para se chegar sem demora à concepção darwiniana e historicista dos sentimentos morais. De Darwin ele toma a tese de que em várias espécies animais (como em nossos ancestrais símios) já se manifesta o instinto de sociabilidade, que se fortaleceu através da seleção natural, e que originará o sentimento de compaixão. E é justamente este instinto, ligado à compaixão e à complacência, que dará o ritmo da seleção.

A dualidade egoísmo-altruísmo que marca a filosofia moral de Rée não o levou, contudo, a lançar mão do conceito kantiano de interesse, presente também no ambiente filosófico pós-kantiano. O seu oposto, o desinteresse, aparece timidamente em alguns capítulos, sem um maior desenvolvimento.

Na esteira de Schopenhauer e Rousseau, e contra a deontologia de Kant, o princípio da moralidade tem a ver fundamentalmente com a intersubjetividade: com a relação com o outro – a despeito dos aspectos formais do agir (o respeito pela lei moral de Kant) ou da virtude ou vício do agente moral, importa a Paul Rée a consequência (maléfica ou benéfica) da ação para o outro. Daí o aspecto utilitarista de sua ética. E neste ponto se distancia de Schopenhauer, que já é representante de uma ética da virtude (santo e monge budista), de uma doutrina do caráter metafísico inato, e se contrapõe a toda ética consequencialista.

O egoísmo (mais natural que o altruísmo), através do medo do castigo e da troca comercial, originou o Estado. O conceito de bom, de ação boa, surge através do hábito de ajuizar uma ação como boa a partir de sua utilidade: posteriormente a ação passa a ser considerada boa em si, independente da constatação imediata de sua utilidade.

A didática preocupação do autor leva-o a concluir o primeiro capítulo sobre a origem dos conceitos de Bem e Mau com um procedimento inusitado: uma compacta “síntese do primeiro capítulo” (do mesmo modo, realiza o fechamento da obra com uma “recapitulação e conclusão”).

O segundo capítulo trata da origem da consciência moral. Servindo-se de Hume e do utilitarismo de John Stuart Mill, defende que a naturalidade com que associamos o egoísmo ao mau e o altruísmo ao bem se deve a que desde tenra infância observamos, no meio social em que nos desenvolvemos, serem frequentemente louvadas as ações altruístas e censuradas as egoístas. O altruísmo e o egoísmo são inatos ao homem, mesmo no “estado de natureza”, mas o louvor ou censura, no entanto, são resultados de hábitos culturais e históricos. Caso ocorresse o contrário (louvor ao egoísmo e censura ao altruísmo) então conectaríamos naturalmente o altruísmo ao mal e o egoísmo ao bem. A sensação dolorosa, determinada por tal hábito, pela percepção de ter cometido uma má ação, e a autocensura advinda daí, constitui o remorso.

Rée faz referência, no terceiro capítulo (que trata da responsabilidade e da liberdade da Vontade), a uma série de pensadores que negariam a liberdade da vontade. Entre essas referências, está o ensaio Sobre a Liberdade da Vontade de Schopenhauer: e aqui se nota outro equívoco: na verdade Schopenhauer rejeita a ideia do livre-arbítrio, a pretensa liberdade incondicional da consciência – nele, Vontade (irracional, metafísica, livre) e arbítrio (intelectual, determinado) são coisas distintas. Chegam os dois filósofos ao mesmo determinismo, mas por vias diferentes, amparados em concepções diversas do conceito de vontade. Consequentemente, responsabilidade e castigo (ainda que necessário para a manutenção da paz através do Estado) têm também origem no hábito e na ilusão da liberdade da vontade. Rée se contrapõe a Kant, quanto à tese da responsabilidade moral aplicada não à ação, mas ao caráter inato.

Ainda no que diz respeito ao remorso, pode-se entendê-lo de dois modos: arrependimento pelo ato cometido (operari) ou pelo caráter (esse) responsável pelo ato. Em ambos a causa deste desconforto moral é o acima mencionado hábito de associação do ajuizamento (bom/mau) com a valoração (louvável/censurável). Isto se dá em vários níveis, de acordo com o indivíduo e sua formação cultural.

No quarto capítulo, Paul Rée critica o “senso de justiça” (retaliação) por também ser fundado na ilusão da liberdade da vontade. Há aí, segundo ele, o esquecimento do sentido originário e legítimo do castigo: como repreensão que visa ao impedimento futuro de más ações. Rée concorda com os preceitos utilitaristas que afirmam que os fins justificam os meios e que de dois males é legítimo a escolha do menor mal: é “racional, bom e louvável”. Mas desde que o fim de fato seja bom. Ele critica aqueles que fizeram mau uso deste preceito.

O quinto capítulo faz uma descrição (guiada pelo utilitarismo e pelo pessimismo inerentes ao ensaio) fenomenológica da vaidade, tão essencial à natureza humana quanto o egoísmo. A vaidade é inata, assim como o egoísmo, e surge como um instinto hereditário. Desejamos inevitavelmente a boa opinião por nos ser agradável, portanto útil. Como resultado, devido ao malogro constante de tal intento, temos na vida muito mais desprazer que prazer. Ou a dor, ou o tédio (quando falta o ímpeto da ambição que impulsiona ao trabalho): eis a vida.

O egoísmo e a vaidade, no entanto, são constantemente acobertados, pois, segundo a máxima utilitarista, é agradável ser considerado bom; e doloroso ser considerado mau: hipocrisia inevitável, sem a qual se tornaria impensável qualquer sociabilidade. “As palavras pacíficas que dois homens trocam entre si são apenas postos avançados dos exércitos de sentimentos hostis acampados nos seus corações”.

Boa parte desse capítulo, em que Rée trata dos sentimentos que estão na base da vaidade, como o orgulho e o ciúme (numa discussão que envolve ilações sobre diferenças de gênero controversas para os dias atuais), são compostos de modo aforismático, o que muito deve ter agradado ao amigo-leitor, Nietzsche. Enfim, é preciso notar a importância da vaidade para a existência do Estado: sem ela, este seria impossível, tendo em vista ser essencial a ambição e sentimento de honra dos governantes, advindos da vaidade.

Quanto ao progresso moral, Rée afirma que tal progresso deveria se dar ou por seleção natural (no entanto se demonstra que não se conservam os povos nos quais predomina o altruísmo); ou pelo hábito, a experiência da frequência do altruísmo (igualmente malogrado, pois ocorrem poucos casos de experiência altruísta, e não se pode aumentá-los pela educação). Entretanto, é possível ainda pensar no progresso moral: pelo patriotismo, que se constitui inicialmente de maneira xenofóbica, mas que evolui aos poucos; através do fomento dos bons costumes; e pelo fato de os homens, no decorrer do tempo, se tornarem domesticáveis.

Rée fecha o ensaio analisando a relação entre bondade e felicidade. Mostra o autor que a despeito de todos os esforços é momentânea e superficial toda satisfação. Tanto o homem bom quanto o homem mau têm seu quinhão de sofrimento, seja pelo infortúnio causado pela compaixão, no caso do primeiro, seja pelo remorso, no caso do segundo. Conclui, ao modo schopenhaueriano, que a vida é uma oscilação entre árduo sofrimento e insuportável tédio. E que o homem, pela complexidade de sua constituição nervosa, é o mais sofrível dos seres. Contudo, a moralidade ainda é tomada como essencial, pois fomenta o bem-estar dos outros.

Referências

GRUPO DE ESTUDOS NIETZSCHE. Sendas e veredas. Disponivel em: <Disponivel em: http://www.gen.fflch.usp.br/sendasveredas >. Acesso em 26/06/2018 [ Links ]

RÈE, PaulA Origem dos Sentimentos Morais. Trad. André Itaparica e Clademir Araldi. São Paulo: Ed. da Unifesp, 2018. [ Links ]

Jarlee Salviano – Professor de filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA, Brasil. E-mail: [email protected]

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Metafísica do sofrimento do mundo: o pensamento filosófico pessimista – REDYSON (V-RIF)

REDYSON, Deyve. Metafísica do sofrimento do mundo: o pensamento filosófico pessimista. João Pessoa: Editora Idéia, 2009. Resenha de: SANTOS, Marcelo. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.1, n.1, p.160-162, 2010.

Tratar de um modo de pensar pessimista é tarefa que exige, além de ampla  erudição, um peculiar entusiasmo. O pessimismo metafísico esmiuçado pelo professor  doutor Deyve Redyson, do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade  Federal da Paraíba, nas páginas de seu livro Metafísica do sofrimento do mundo: o  pensamento filosófico pessimista, evoca um filosofar livre de ranços tradicionalistas e  ‘manualescos’. Nesse sentido, pensar o aspecto péssimo da existência humana no  mundo é encarar o desafio do transcendental e do ôntico, olhando pelo prisma de uma  categoria filosófica que vem se mostrando extremamente poderosa, principalmente após  a contraproposta de Schopenhauer ao parecer otimista de Leibniz acerca de nossas  vivências e de nosso mundo. Contudo, o livro em questão buscou expressões  pessimistas já na sua gênese grega e perpassou as épocas da filosofia de uma maneira  crítica e direta, isto é, não se deteve, senão naquilo que era indispensável e digno de  nota. De Lichtenberg e Leopardi, a Unamuno e Cioran, nenhum grande vulto do  pensamento foi deixado de fora, no que tange à temática do presente discurso que aspira  decifrar o enigma do mundo a partir do sofrimento universal, examinando o sentido  trágico da existência e a filosofia debruçada sobre a dor. De fato também este livro  surge como o primeiro texto sobre os autores pessimistas em conjunto, antes os que  pretendiam estudar o pessimismo filosófico teriam que vasculhar as obras dos referidos  autores e neste livro podemos visualizar um conjunto de textos que dão uma boa  introdução ao tema, além de apresentar uma bibliografia ampla sobre o assunto em  língua alemã, inglesa e espanhola.

Mas, porque o mundo sofre e o quê é sofrer? Como conceituar a dor, esta  suprema positividade num mundo que tenta inutilmente negá-la? São questões que se  apresentam no livro.

Como se pode notar, o leitor terá pela frente exposição clara de uma  problemática fulcral da filosofia de todas as épocas. Contudo, não deverá olvidar-se de  que, a clareza, neste caso, não implicará em mero utilitarismo prático, uma vez que o  assunto pode ser um tanto paradoxal, estratosférico, impalpável e indigesto para muitos.

Talvez, sobre isto, dispararia Nietzsche: filosofia é para espíritos ruminantes. No  melhor sentido deste ruminar, somos incitados aqui a nos informar melhor sobre o  assunto e a refletir sobre o sentido do sofrer que salta do texto e que pode nos atingir de  cheio, que sai do meramente literal, formal e acadêmico e pode nos inquietar.

Felicidade, salvação, liberdade, deixar de sofrer! Mas como, sem recorrer a  vivências estritamente ritualísticas, religiosas e espiritualistas? O modo pessimista de  filosofar pode parecer cruento, duro, insípido, desértico e os filósofos evocados nesta  obra podem, igualmente, parecerem monstros aterradores da maldade, escritores sem  prazer e sem coração. Isto, numa primeira abordagem, caso se trate de leitor ainda pouco  acostumado ao estilo desafiador dos vários pensadores chamados ao debate aqui, alguns  ainda “marginais” ou pouco famosos. Contudo, o mais importante jamais deixará de  estar em evidência ao longo do texto, isto é, a matéria central, a “massa crítica”: uma  ciência de primeiros princípios, neste caso, ciência do sofrimento universal, ciência que  independe de cálculos e de aparelhos para auferir graus, repetições do mesmo fenômeno  e/ou coisas afins.

Não será exagero constatar que o livro supera a proposta inicial de fazer um  apanhado histórico-filosófico representante das inúmeras significâncias do pessimismo,  pois o texto se conecta a outras áreas de especulação que consideram a dolorosa  condição humana na existência, a saber: psicologia, antropologia teológico-filosófica e  de aspectos sociológicos daquela condição.

Em um pano de fundo tão péssimo, o desespero surge ameaçador e como que  inevitável. Com ele assomam o sentimento de angústia e a iminência do niilismo. A  moral tradicional é afrontada e os fundamentos éticos de uma visão de mundo ótimo e  iluminado pela razão são ridicularizados em várias vozes, em diversos estilos de  escrever filosofia trágica, pensamentos que denunciam a decadência do homem em seu  mundo ilusório de opiniões e perspectivas turvadas pelo engodo de Maia.

Por fim, a morte desponta como o grande prêmio ao fim de uma existência sob  o sol, mas, paradoxalmente sombria. Como se o filosofar in toto, fosse incapaz de  superar sua natureza de nada saber e nada ser além de preparação para o fim dessa vida  de andanças do pó sobre o pó, nessa infinitude sempre amparada pela finitude de todo e  de cada homem doente.

Resenhar uma obra que já foi muito bem introduzida de forma sumária por seu  autor pode soar como um correr atrás do vento. Por isto, estas palavras pretendem tão  somente destacar alguns nuances mais atrativos, pinçar alguns aspectos do rico material  constituinte da Metafísica do Sofrimento do Mundo de modo a, sem ser repetitivo e sem  antecipar grosseiramente as inúmeras passagens surpreendentes e reveladoras, dar o tom  específico e uma prova do teor filosófico atual e relevante que o pessimismo metafísico  vem propondo crescentemente ao pensamento e ao mundo contemporâneos, isto é, uma  proposta de como enfrentar a vida de forma desperta e amadurecida, rejeitando  “filosofias” infantilizadas e fórmulas ilusórias de viver e de morrer imerso na eterna  consciência de rebanho.    Quem encara intermitentemente o pior estado de coisas, com naturalidade  saberá como ninguém fruir, ainda que fugazmente, qualquer melhoria fortuita. Portanto,  filosofia pessimista, pessimismo bíblico, pessimismo metafísico, pessimismo prático,  pessimismo absoluto e melancolia, são exemplos de categorias filosóficas que devem  ser examinadas com cautela ao logo do texto do professor Deyve Redyson, de modo a  não incorrer o leitor em pré-conceituações sempre desfavoráveis à salutar e prudente  reflexão filosófica que este livro propõe.

Marcelo Santos – Mestre em Filosofia – UFPB.

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[DR]

Metafísica do sofrimento do mundo: o pensamento filosófico pessimista – REDYSON (V-RIF)

REDYSON, Deyve. Metafísica do sofrimento do mundo: o pensamento filosófico pessimista. João Pessoa: Editora Idéia, 2009. Resenha de: SANTOS, Marcelo. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.1, n.1, p.160-162, 2010.

Tratar de um modo de pensar pessimista é tarefa que exige, além de ampla erudição, um peculiar entusiasmo. O pessimismo metafísico esmiuçado pelo professor doutor Deyve Redyson, do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal da Paraíba, nas páginas de seu livro Metafísica do sofrimento do mundo: o pensamento filosófico pessimista, evoca um filosofar livre de ranços tradicionalistas e ‘manualescos’. Nesse sentido, pensar o aspecto péssimo da existência humana no mundo é encarar o desafio do transcendental e do ôntico, olhando pelo prisma de uma categoria filosófica que vem se mostrando extremamente poderosa, principalmente após a contraproposta de Schopenhauer ao parecer otimista de Leibniz acerca de nossas vivências e de nosso mundo. Contudo, o livro em questão buscou expressões pessimistas já na sua gênese grega e perpassou as épocas da filosofia de uma maneira crítica e direta, isto é, não se deteve, senão naquilo que era indispensável e digno de nota. De Lichtenberg e Leopardi, a Unamuno e Cioran, nenhum grande vulto do pensamento foi deixado de fora, no que tange à temática do presente discurso que aspira decifrar o enigma do mundo a partir do sofrimento universal, examinando o sentido trágico da existência e a filosofia debruçada sobre a dor. De fato também este livro surge como o primeiro texto sobre os autores pessimistas em conjunto, antes os que pretendiam estudar o pessimismo filosófico teriam que vasculhar as obras dos referidos autores e neste livro podemos visualizar um conjunto de textos que dão uma boa introdução ao tema, além de apresentar uma bibliografia ampla sobre o assunto em língua alemã, inglesa e espanhola.

Mas, porque o mundo sofre e o quê é sofrer? Como conceituar a dor, esta suprema positividade num mundo que tenta inutilmente negá-la? São questões que se apresentam no livro.

Como se pode notar, o leitor terá pela frente exposição clara de uma problemática fulcral da filosofia de todas as épocas. Contudo, não deverá olvidar-se de que, a clareza, neste caso, não implicará em mero utilitarismo prático, uma vez que o assunto pode ser um tanto paradoxal, estratosférico, impalpável e indigesto para muitos.

Talvez, sobre isto, dispararia Nietzsche: filosofia é para espíritos ruminantes. No melhor sentido deste ruminar, somos incitados aqui a nos informar melhor sobre o assunto e a refletir sobre o sentido do sofrer que salta do texto e que pode nos atingir de cheio, que sai do meramente literal, formal e acadêmico e pode nos inquietar.

Felicidade, salvação, liberdade, deixar de sofrer! Mas como, sem recorrer a vivências estritamente ritualísticas, religiosas e espiritualistas? O modo pessimista de filosofar pode parecer cruento, duro, insípido, desértico e os filósofos evocados nesta obra podem, igualmente, parecerem monstros aterradores da maldade, escritores sem prazer e sem coração. Isto, numa primeira abordagem, caso se trate de leitor ainda pouco acostumado ao estilo desafiador dos vários pensadores chamados ao debate aqui, alguns ainda “marginais” ou pouco famosos. Contudo, o mais importante jamais deixará de estar em evidência ao longo do texto, isto é, a matéria central, a “massa crítica”: uma ciência de primeiros princípios, neste caso, ciência do sofrimento universal, ciência que independe de cálculos e de aparelhos para auferir graus, repetições do mesmo fenômeno e/ou coisas afins.

Não será exagero constatar que o livro supera a proposta inicial de fazer um apanhado histórico-filosófico representante das inúmeras significâncias do pessimismo, pois o texto se conecta a outras áreas de especulação que consideram a dolorosa condição humana na existência, a saber: psicologia, antropologia teológico-filosófica e de aspectos sociológicos daquela condição.

Em um pano de fundo tão péssimo, o desespero surge ameaçador e como que inevitável. Com ele assomam o sentimento de angústia e a iminência do niilismo. A moral tradicional é afrontada e os fundamentos éticos de uma visão de mundo ótimo e iluminado pela razão são ridicularizados em várias vozes, em diversos estilos de escrever filosofia trágica, pensamentos que denunciam a decadência do homem em seu mundo ilusório de opiniões e perspectivas turvadas pelo engodo de Maia.

Por fim, a morte desponta como o grande prêmio ao fim de uma existência sob o sol, mas, paradoxalmente sombria. Como se o filosofar in toto, fosse incapaz de superar sua natureza de nada saber e nada ser além de preparação para o fim dessa vida de andanças do pó sobre o pó, nessa infinitude sempre amparada pela finitude de todo e de cada homem doente.

Resenhar uma obra que já foi muito bem introduzida de forma sumária por seu autor pode soar como um correr atrás do vento. Por isto, estas palavras pretendem tão somente destacar alguns nuances mais atrativos, pinçar alguns aspectos do rico material constituinte da Metafísica do Sofrimento do Mundo de modo a, sem ser repetitivo e sem antecipar grosseiramente as inúmeras passagens surpreendentes e reveladoras, dar o tom específico e uma prova do teor filosófico atual e relevante que o pessimismo metafísico vem propondo crescentemente ao pensamento e ao mundo contemporâneos, isto é, uma proposta de como enfrentar a vida de forma desperta e amadurecida, rejeitando “filosofias” infantilizadas e fórmulas ilusórias de viver e de morrer imerso na eterna consciência de rebanho. Quem encara intermitentemente o pior estado de coisas, com naturalidade saberá como ninguém fruir, ainda que fugazmente, qualquer melhoria fortuita. Portanto, filosofia pessimista, pessimismo bíblico, pessimismo metafísico, pessimismo prático, pessimismo absoluto e melancolia, são exemplos de categorias filosóficas que devem ser examinadas com cautela ao logo do texto do professor Deyve Redyson, de modo a não incorrer o leitor em pré-conceituações sempre desfavoráveis à salutar e prudente reflexão filosófica que este livro propõe.

Marcelo Santos – Mestre em Filosofia – UFPB.

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[DR]