Fronteiras na História / Varia História / 1992

É fato inconteste que a pesquisa histórica contemporânea tem se efetuado num quadro de renovação da problemática histórica.

A expansão ilimitada da história para fora dos seus domínios tradicionais, não só tem revelado a amplitude das suas interrelações com as outras ciências humanas como revelado um fecundo diálogo conceitual.

No passo dessa “renovação” abriu-se um estimulante espaço de controvérsia pois, afinal, a fisionomia da produção histórica caleidoscopicamente se alterou. Dada a pluralidade dos enfoques, dos referenciais teóricos, e dos constantes e novos contatos de inter- face com outras áreas do conhecimento, Impõe-se a necessidade de um exercício critico-reflexivo voltado para as Interrogações dos historiadores.

Nesse processo, ainda em aberto, de discussão e mudança dos procedimentos históricos, a História está posta em questão através de Indagações que dizem respeito ao campo de trabalho dos historiadores, aos fundamentos epistemológicos da disciplina histórica, à singularidade do oficio do historiador e às novas possibilidades analíticas e heurísticas que se descortinam.

Este número especial da Revista do Departamento de História, é constituído por artigos apresentados no seminário “Fronteiras na História”, por nós organizado enquanto um espaço, multidisciplinar e plural, aberto para o debate sobre as perspectivas atuais do labor historiográfico.

Não estão incluídos neste número os textos das conferências de Maria Rita Kehl, História e Psicanálise e os de Renato Janine Ribeiro e Laura de Mello e Souza, acerca, respectivamente, de História e Política e História e Mentalidades.

No caso de Maria Rita Kehl isto se deveu ao fato do seu texto já estar previamente comprometido com outra publicação. Quanto aos de Renato Janine e Laura M e Souza, Infelizmente, não foi possível viabilizar sua edição por razões alheias à vontade dos coordenadores.

Alguns autores preferiram manter os seus textos na forma como foram apresentados nas conferências.

Muito embora o seminário tenha se realizado em maio de 1991, só agora nos foi possível fazer chegar o presente número às mãos dos nossos leitores, entre outros motivos, pela paralisação das atividades universitárias por mais uma longa greve ocorrida ao longo daquele ano.

A discussão sobre as fronteiras na história tem no texto de Alcir Lenharo, História e Radiofonia, que aqui se publica, uma grande contribuição. Primeiramente, porque ao discutir o próprio significado do titulo do Seminário na Introdução, o autor percorre um etinerárlo importante para a compreensão do conteúdo da produção h1stonográfica atual e de suas tendências no Brasil. Num segundo momento, Lenharo se dedica à reflexão sobre a cultura de massas no Brasil dos anos 50, o que vem sendo objeto de suas pesquisas nos últimos anos.

Ao se perguntar sobre o estatuto historiográfico de um tema como a radiofonia, cuja especificidade se destaca na programação do Seminário, segundo observação do próprio autor, o expositor demonstra exemplarmente a pertinência da preocupação do historiador de hoje com temas até ontem desprezados pela cultura tradicional. Dizemos até ontem porque o texto do Prof. Alcir Lanhara não deixará dúvidas sobre a propriedade da cultura de massa como matéria prima da história.

A história nas histórias de Machado de Assis foi o tema trabalhado por Sydney Chaloub na sua conferência História e Literatura. “Infiltrando-se” no texto de Machado, já que o autor nos reaviva a memória de Helena em sua exposição, Chaloub demonstra com grande eficiência a possibilidade de se trabalhar o texto literário como documento histórico.

A grande novidade da abordagem do autor reside, a nosso ver, na perspectiva com que ele lida com a literatura: não como um produto acabado de seu tempo, mas como algo que admite, ou mesmo requer, leituras ou interpretações renovadas.

O que estimula a análise de Chaloub é sobretudo o que ele apreende das entrelinhas do texto machadiano. Dai sua constatação de que Machado tem como foco de seu romance “a lógica de dominação que era hegemônica e organizava as relações sociais no Antigo Regime”, mesmo que sua “esperteza” faça parecer que no palco da Corte a escravidão tenha papel secundário.

A visão crítica do autor sobre os trabalhos de Schwarz e Gledson, dois autores que se dedicam à análise da obra de Machado, evidencia, como se verá, a especificidade do olhar do historiador sobre o objeto literário.

Foot Hardman, com sensibilidade, nos aponta as possibilidades do uso da fotografia como fonte frágil, fragmentária e que mesmo revelando pouco e escondendo muito, ou quase tudo, é capaz de sugerir “gestos expressivos, vozes inteligíveis, paisagens e fisionomias revolvidas (…) experiências dignas de serem reescritas e transmitidas.”

Com as fotos do fotógrafo Dana Merril sobre a construção da estrada de ferro Madeira-Mamará, ele torna visível um momento da construção de uma certa história nacional, que não prescindiu das imagens fotográficas não só enquanto um registro, de autoridade, dos acontecimentos históricos da época, mas enquanto registro em si mesmo da sintonia brasileira com a modernidade.

Foot nos fala das afinidades entre a História e Imagem, a prosa narrativa, o objeto e a figura, das ilusões da fotografia e, ao mesmo tempo, da sua capacidade de se deslocar de seu lugar e de seu tempo e de restaurar espaço, temporalidades, guardando, restaurando e evocando memórias.

As fotos de Dana Merril ficaram, ele nos diz, como um fio narrativo capaz de quebrar o Silêncio em torno do drama da Madeira-Mamoré.

E é sobre “narrativa” e contra o silêncio dos historiadores acerca da sua relação com a história que Ricardo Benzaquem escreve seu artigo.

Enfrentando a discussão, sobre História-Narrativa, a partir do pressuposto do que esta não cancela “as formas mais tradicionais de se trabalhar a história”, Benzaquem situa-se nesse debate ressaltando que a preocupação trazida pela questão da narrativa deve reverter em enriquecimento da reflexão sobre os tipos de história praticada.

Nesse sentido, o caminho escolhido para a sua reflexão foi percorrido, com sagacidade e erudição, tomando como norte principal o desenvolvimento do método crítico pelos historiadores da Escola Histórica Alemã.

Ao longo do seu percurso se esclarece a relação Intrínseca entre história e narrativa e como o recurso a essa última consolidou a concepção moderna de História que, por sua vez, se firmou contra a literatura. É, portanto, para a fronteira entre a história e a literatura que o tema da narrativa, tal como abordado por Benzaquem, vai nos conduzir.

Entre caminhos e fronteiras, finalizando o volume, o texto de José Sérgio l e1te Lopes reconstrói o itinerário histórico da relação entre História e Antropologia. Dos desencontros entre ambas, onde se destacam a recusa da História tradicional e do evolucionismo pela moderna antropologia, aos encontros e convergências a partir dos anos 60, através da valorização da história cultural e sua ênfase renovada nos anos 80 nas tradições, nas mentalidades, no simbólico, na arqueologia da vida material e na cultura popular entre outras, um profícuo diálogo teórico-conceitual se sedimentou.

Na história dessa aproximação entre História e Antropologia, José Sérgio destaca, com pertinência, por um lado o papel do grupo dos Annales e dos historiadores da sua última geração e, por outro, os de Evans Pritchard e Geertz no campo da antropologia e os de Pierre Bordieu e Norbert Elias, no da sociologia.

Da sua experiência como “antropólogo de fronteira”, dedicado a estudos já considerados clássicos, sobre trabalho e vida de “grupos de operários”, José Sérgio nos mostra como numa tradição antropológica faz história social e, ao fazê-lo refaz, na prática, a trajetória dos encontros possíveis entre História e Antropologia.

Eliana Regina de Freitas Dutra

Thaís Veloso Cougo Pimentel


DUTRA, Eliana Regina de Freitas; PIMENTEL, Thaís Veloso Cougo. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.8, n.11, jul., 1992. Acessar publicação original [DR]

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