Poéticas feministas na história, arte e literatura / História – Questões & Debates / 2019

Esse dossiê reúne pesquisas e reflexões historiográficas contemporâneas que elaboram a perspectiva poética e criativa de mulheres nas artes, na literatura e na história. As elaborações das subjetividades numa dimensão de gênero, o dinamismo dos processos históricos e as críticas culturais feministas são alguns dos principais enfoques dessas pesquisas que abordam a produção cultural feminina. Os campos literário, artístico e ativista são, assim, estudados em suas articulações culturais, políticas e históricas, tendo como eixo de análise a transformação cultural incitada pelos feminismos contemporâneos, em suas intersecções com as questões étnico-raciais, de classe e geracionais. Poéticas feministas, dessa forma, podem ser encontradas em diferentes práticas discursivas, relações intersubjetivas, militâncias políticas e mais claramente nas produções artísticas e literárias. Esse dossiê, portanto, pretende refletir sobre suas especificidades, sentidos, impulsos éticos e subjetivos.

Tais reflexões advindas da elaboração epistemológica feminista no campo historiográfico e na crítica literária merecem destaque e reflexão, posto que apenas muito recentemente elas têm avultado maior espaço.[1] Os trabalhos aqui reunidos demonstram o esforço inventivo e investigativo de grande fôlego por pesquisadoras do Brasil como Norma Telles, Margareth Rago e Mônica Campo acompanhadas das argentinas Tania Diz e María Laura Rosa. Merece destaque, também, o espaço dado no dossiê para a publicação de um artigo da escritora Julia Lopes de Almeida que repousava esquecido nos arquivos nacionais. Escritora de grande fama em seu tempo, Julia Lopes de Almeida mostrava entre finais do século XIX e início do XX a necessidade premente de dissolvermos a noção de gênio artístico e de compreendermos o rico universo imaginário e político oferecido pelas mulheres. Os esforços da pesquisadora Gabriela Trevisan, junto ao da historiadora Margareth Rago para trazer esse texto a público, nos mostram, assim, como o pensamento sobre a poética feminista é assunto de longa data, com ressonante atualidade. Julia Lopes de Almeida proclamava que “tudo se pode escravizar no mundo, menos o pensamento”.

A imaginação das mulheres ganhou espaço de reflexão crítica por meio da História Cultural, ao lado dos debates de gênero e pósestruturalistas, que advogam a necessidade de investigarmos as contracondutas para utilizarmos o conceito foucaultiano, existentes em formas de vida ligadas às artes, à literatura e aos ativismos. O conceito de contracondutas permite evidenciar a arte como espaço de construção de discursos radicalmente novos e de práticas de liberdade sempre atentas às estratégias de poder-saber em nossa sociedade. [2] Norma Telles, por exemplo, aborda como a imaginação feminina sobre o reino animal, presente nas escritoras inglesas como Leonora Carrington, carrega o potencial crítico das metamorfoses, dos trânsitos interregnos e devires animais: “Bachelard lembra que é possível ultrapassar formas humanas para tomar posse de outros psiquismos, e que é preciso perceber o animal em suas funções, não em suas formas. ‘A vida animalizada é a marca de uma riqueza e de uma mobilidade dos impulsos subjetivos’ E ainda, ‘é o excesso do querer viver que deforma os seres e que determina suas metamorfoses’ (Bachelard:1995:12).” Margareth Rago, ao analisar a produção artística da italiana Carol Rama, inaugura a compreensão de como a imaginação feminista carrega sofisticadas elaborações sobre os discursos de verdade que incidem sobre os corpos femininos. Subversão do corpo, da sexualidade e do desejo são percorridos por Rago: “Aliás, a serpente é uma figura recorrente na obra de Rama, evocando continuamente a figura da primeira mulher diante da tentação do diabo e na iminência da queda. O pecado ronda as mulheres, nessas paisagens quentes, avermelhadas, chocantes dos quadros da pintora italiana.” Sua postura crítica é luminosa: “Aliás, é Rama quem afirma que ‘pecar é uma das coisas mais importantes da vida, (…) pecar é uma das coisas mais bonitas do mundo’ (RAMA apud VERGINE, 2015: 50), e assim ela se coloca no lugar do pecado para produzir rupturas e desfazer a queda.”

Mônica Campo aborda a produção fílmica das argentinas Lucrecia Martel e Albertina Carri, apreendendo suas linguagens, temáticas e perspectivas, sob a ênfase da subjetividade que: “busca compreender como o ponto de vista das narrativas incide sobre a escrita da história e expressa o tempo presente. O uso inventivo da linguagem e possibilidades do audiovisual marcam a produção destas diretoras e constroem suas especificidades enquanto artistas. Em suas obras, se destacam os temas dos conflitos, tanto aqueles referentes à violência existente no interior da família como também relativos ao trato em sociedade, instigando-nos a pensar sobre a singularidade destas como expressões contemporâneas em nossa história.” Tania Diz, abordando a década de 1970 na Argentina, problematiza revistas conectadas ao ativismo homossexual e feminista e seu espaço na arena política: “En las dos revistas se leen las huellas de la historia que tienen en sus espaldas, el feminismo y la disidencia sexual, a la vez que intervienen con una demanda subversiva en años de represión: aparecer. Tanto la afirmación inclusiva de “somos” como la versión más objetivada de “persona” apuntan a sostener el derecho a ser reconocidos como sujetos políticos y desde allí ambos hacen tambalear la certeza del heterosexismo”. María Laura Rosa apresenta os vínculos políticos e afetivos que permitiram às artistas argentinas Alicia D’Amico e Ilse Fusková elaborarem por meio do corpo, em seus trabalhos fotográficos e em sua militância feminista, críticas culturais contundentes na década de 1980: “(…) cómo la libertad sobre el propio deseo y el cuerpo femeninos podían crear otras imágenes de mujeres, diferentes a las que por entonces circulaban masivamente a través de los medios de comunicación. Los géneros del retrato y el desnudo fueron centrales para ello.”

Elen Biguelini colabora com reflexões sobre as escritoras portuguesas e o debate sobre suas visões da masculinidade no artigo “‘Fiar n’um amigo? é homem. / Tem d’essencia a falsidade’. A masculinidade na obra de Francília (Francisca Paula Possolo da Costa) e Sóror Dolores (Maria da Felicidade de Couto Browne)”; Beatriz Polidori Zechlinski e Stéfani Oliveira Verona, no artigo “Do coelho esperto à ratinha corajosa: representações de gênero nas histórias infantis de Beatrix Potter” exploram como as histórias infantis guardam visões históricas complexas, abordando as dimensões do sonho e da fantasia em Potter, e Viviane Bagiotto Botton, com o artigo “A mulher e o eterno feminino em Rosario Castellanos”, abre espaço para a análise de obras dessa importante escritora mexicana do século XX, em que são denunciados o machismo e as narrativas de violência presentes na América Latina, mas em que também se reivindicam espaços de constituição de si fora das normas sociais estabelecidas:

Meditação no umbral: Não, não é a solução / jogar-se debaixo de um trem como a Ana de Tolstoy / nem preparar o arsênico de Madame de Bovary / nem aguardar nos campos de Ávila a visita do anjo com dardo / antes de atar-se o manto na cabeça / e começar a agir. Nem concluir as leis geométricas, contando / as vigas da cela do castigo / como fez Soror Juana. Não é a solução / escrever, enquanto chegam as visitas, / na sala de estar da família Austen / nem encerrar-se no sótão / de alguma residência na Nova Inglaterra / e sonhar, com a Bíblia dos Dickinson, / debaixo de uma almofada solteira. / Debe haver outro modo que não se chame Safo / nem Mesalina nem María Egipciaca / nem Magdalena nem Cemencia Isaura. / Outro modo ser humano e livre. Outro modo de ser (Castellanos, 1972)

Pensadoras feministas têm demonstrado que as poéticas das mulheres no passado e no presente constituem potentes críticas culturais, instigando a desconstrução de discursos binários e hierárquicos, inventando, sobretudo, narrativas e espaços relacionais para a atualidade. Sua pertinência, assim, repousa tanto nas ricas perspectivas teóricas apresentadas nesse dossiê, quanto no esforço de análise das produções, poéticas e práticas das mulheres no intuito de fazer ver sua potência dinâmica e inventividade de vida.

Integra também o volume uma seção aberta que conta com ricas e estimulantes reflexões, com os artigos de Rodrigo Müller Marques e Jane Márcia Mazzarino, “O audiovisual como produtor de histórias”; Fabiana de Oliveira e Maria Aparecida Avelino, “As abordagens acerca da história ibérica medieval em livros didáticos”; Rodrigo Otávio dos Santos, com o artigo “Medo, paranoia, macarthismo e o século XXI: usando o episódio 22 de Além da Imaginação em sala de aula” e o artigo de Rodrigo Cabrera e Renate Marian van Dijk-Coombes, “Desde el Cielo al Inframundo. Reflexiones sobre las representaciones corporales de Inanna y Dumuzi a partir de la evidencia iconográfica y textual”.

Assim, com grande alegria convidamos os leitores e leitoras a percorrerem as páginas desse Dossiê, abrindo espaço aos domínios transversais da criação, do sonho e do devaneio, fundamentais para nossa existência ética e política, sobretudo na atualidade brasileira, em que vemos ameaçadas conquistas feministas históricas, onde vozes de incitação à violência bradam com força cada vez maior. No entanto, as ironias sutis, as zonas de desterritorialização da arte, os espaços de lucidez e reinvenção de si, oferecidos pelas poéticas feministas, permitem-nos saber que nossas tradições femininas não serão facilmente apagadas e que a história das mulheres artistas é um campo primordial desse modo de sublevação.

Notas

1. Além dos trabalhos aqui apresentados, gostaria de destacar as fundamentais produções de Heloisa Buarque de Hollanda, Ana Paula Cavalcanti Simioni, Roberta Barros e Roberta Stubs, que considero fundamentais para tal debate circunstanciado. Cf. TVARDOVSKAS, L. Dramatização dos corpos: arte contemporânea e crítica feminista no Brasil e na Argentina. São Paulo: Intermeios, 2015.

2. FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Luana Saturnino Tvardovskas – Departamento de História da Unicamp


TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. Introdução. História – Questões & Debates. Curitiba, v.67, n.1, jan. / jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

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