Os arquivos na Cadeia de Produção do Conhecimento – Formação Profissional | Revista do Arquivo | 2021 (D)

Bilros 2 Produção do Conhecimento

Como acontece a produção do conhecimento humano? Eis aí um dos enigmas que perpassa quase toda a história. A cada resposta esboçada, novos questionamentos se impõem. Afinal, a sociedade humana, sob todos os aspectos, está em permanente mutação, especialmente no cultural. Portanto, esse será sempre tema oportuno, sobre o qual haverá muito o que se refletir e se escrever.

Esperemos que esta nossa edição nº 12 se apresente como mais um grão no debate sobre os saberes humanos.

INTRODUÇÃO AO DOSSIÊ

“…se a Arquivologia é muito antiga como prática, é recente como saber”. Esta afirmação é do texto introdutório de Mariana Lousada, que nos oferece uma apresentação sumular do desenvolvimento dos conceitos e conhecimentos da arquivologia. Trata-se de um bom aperitivo para esta edição que nos propõe reflexão sobre a produção do conhecimento na arquivologia.

A professora doutora Marcia Pazin Vitoriano foi a nossa entrevistada para tratar do tema do dossiê. Feliz escolha da nossa editoria, Pazin tem o perfil perfeito como atuante docente do curso de arquivologia, com larga experiência em organização de arquivos e produção intelectual sobre o tema do dossiê. Não bastasse tudo isso, a nossa entrevistada é colaboradora de longas datas do Arquivo Público do Estado de São Paulo e colaboradora e membro do Conselho Editorial da Revista do Arquivo. De forma objetiva e substancial, essa querida professora aborda temas candentes e polêmicos sobre o assunto.

ARTIGOS DO DOSSIÊ TEMÁTICO

Quatro são os artigos que apresentam bem distintas abordagens sobre o tema do dossiê temático, e se somam a outros dois que tratam de temas que não dialogam diretamente com o dossiê proposto, mas abrilhantam esta edição, colaborando com excelentes reflexões que expandem o nosso conhecimento sobre os arquivos e suas fontes de informação.

Atentem os leitores desta edição para a dimensão das questões levantadas pelo artigo assinado por Beatriz Carvalho Betancourt, Eliezer Pires da Silva e Priscila Ribeiro Gomes: “a formação em arquivologia contempla as atribuições profissionais? O que a regulamentação profissional e o mundo do trabalho demandam da formação? Como a análise entre currículo, legislação e concursos públicos contribui para a harmonização entre formação, profissão e trabalho no campo arquivístico brasileiro?”. Na busca de respostas a questões desse quilate os autores do artigo intitulado Recomendações para harmonização entre formação, profissão e trabalho no campo arquivístico brasileiro atingem o âmago do proposto pela chamada de artigos, apresentando excelente reflexão teórica fundamentada em “pesquisa documental e bibliográfica em arquivologia, educação, sociologia e história”.

A classificação é atividade essencial e central dos arquivos e, portanto, um dos conceitos articuladores da área da arquivologia, cujos “desdobramentos teóricos e metodológicos foram responsáveis por alçar a Arquivologia ao posto de disciplina científica”, conforme justificam as autoras do artigo intitulado A Função Classificação na Formação do Arquivista: Uma Análise Histórica dos Modelos de Ensino dos Cursos de Arquivologia do Sudeste do Brasil, assinado por Juliana de Mesquita Pazos e Clarissa Moreira dos Santos Schmidt. Fruto de investigação empírica, Pazos & Schimidt tecem ótima reflexão teórica sobre tema crucial da área, com a originalidade de pensá-lo sob ótica do ensino no nível superior, buscando “identificar os modelos de ensino dos conteúdos fundamentais relativos à função classificação”.

A Revista do Arquivo tem o prazer de anunciar a publicação de artigo que tem originalidade como ponto forte e oferecer ao público a primeira reflexão descritiva sobre aspectos da elaboração daquele que é o “primeiro curso técnico em arquivos do Brasil”, fruto de “uma parceria entre Arquivo Público do Estado de São Paulo e Centro Paula Souza”, conforme consta no título do artigo de autoria de Antonio Gouveia de Sousa, Fernanda Mello Demai, Noemi Andreza da Penha, Aline Santos Barbosa e Flávio Ricci Arantes. Eis aí um bom motivo para se multiplicar a reflexão sobre esse importante tema, que também aparece na citada entrevista de Márcia Pazin.

Outra abordagem inusitada é publicada por Ismaelly Batista dos Santos Silva, que nos oferece a oportunidade de reflexão sobre um assunto ausente como objeto de pesquisa, que aparece explicitado no título Consultoria arquivística: da contextualização ao planejamento do consultor. Ismaelly Silva ousa afirmar que seu objetivo é “estruturar ideias passíveis de serem convertidas em conhecimento explícito”, almejando, assim, “compor referência literária para aprendizagem de potenciais consultores na área de Arquivologia”. Confiram e avaliem os leitores.

AUTORES CONVIDADOS

Desta vez, publicamos três artigos na subseção autores convidados, com temas bem distintos, mas idênticos em qualidade e relevância.

A edição nº 12 da Revista do Arquivo tem a honra de publicar o artigo cujo título já divulga o trabalho de mais de uma década sobre O processo de atualização do Plano de Classificação e da Tabela de Temporalidade de Documentos da Universidade de São Paulo (USP): desafios e soluções heterodoxas, subscrito por Ana Silvia Pires, Johanna Wilhelmina Smit, Lílian Miranda Bezerra e Marli Marques de Souza de Vargas.

Utilizando-se de narrativa descritiva de um caso, o artigo disserta sobre um processo de trabalho específico e não expõe grandes reflexões teóricas. No entanto, trata-se de um texto original, de extrema relevância, capaz de gerar pulsantes debates no meio arquivístico e, acima de tudo, que demonstra o processo de aprendizagem, de acúmulo e de produção do conhecimento exemplares a partir do “chão” de arquivos, tendo como objeto instrumentos de gestão, que são uma das pedras de toque da arquivologia: o plano de classificação e tabela de temporalidade de documentos.

Pesquisadora do teatro brasileiro, pela segunda vez publicamos artigo de Elizabeth R. Azevedo1, agora sob o título A inserção do patrimônio artístico na estrutura universitária: o caso do centro de documentação teatral (USP). O artigo trata da criação e da trajetória do Centro de Documentação Teatral na ECA/USP, reflete sobre as escolhas teórico-metodológicas para sua constituição, sua relevância para a comunidade artística, sua importância para a preservação do patrimônio histórico e cultural, bem como sua inserção na estrutura da universidade.

Não são raros os exemplos de cooperação entre instâncias universitárias e instituições executivas do poder público com finalidade de compartilhamento de benefícios mútuos para usufruto do manancial informativo cultural dos arquivos. Mirem-se no Acordo de Cooperação firmado entre a Universidade de São Paulo, por meio da área de Filologia e Língua Portuguesa, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região e a Justiça Federal de Primeiro Grau de São Paulo e do Mato Grosso do Sul. O artigo sob o título Da arquivística à produção linguística: estudo interdisciplinar de um Summario de Culpa de 1892 é um exercício multidisciplinar de exploração conjunta de uma instigante peça de processo judicial do final do século XIX, assinado por Phablo Roberto M. Fachin, Vanessa M. do Monte, Sílvio de Almeida Toledo Neto, Ana Carolina E. P. do Amaral, Ana Laura M. Cinto, Carla A. di Lorenzo Midões de Mello, Heloisa Ribeiro Bastos e Luisa Biella Caetano. Mais uma boa oportunidade para rememorarmos as profícuas interfaces entre a linguística, história e arquivos, conforme já publicamos nas edições nº 1 e nº 4 deste periódico. Vale conferir.

RESENHA

A Revisa do Arquivo realizou esforço suplementar em decorrência do falecimento de Vicenta Cortés Alonso em 4 de janeiro passado e propôs a elaboração de resenha que abordasse a obra, parte da obra ou a vida intelectual dessa arquivista que nos lega produção vasta e fecunda. Tivemos a felicidade de receber a contribuição de Rafaela Basso, Diretora de Gestão e Preservação de Documentos e Informação no Arquivo Central da Unicamp, que engrandece esta edição com sua resenha intitulada Vicenta Cortés Alonso, uma vida dedicada à luta pelos arquivos. Com ela, fica aqui registrada a nossa singela homenagem.

INTÉRPRETES DE ACERVO

Essa seção traz relatos fascinantes sobre pesquisas em arquivos, com ótimos depoimentos de pesquisadoras com suas distintas experiências, apresentando objetos de estudos muito interessantes e dicas para quem se propõe a buscar informações nos labirínticos arquivos. Façam companhia às brilhantes historiadoras Marisa Midori, Marília Cánovas e Yaracê Morena.

PRATA DA CASA

Monitoria e fiscalização: funções inusitadas em instituição arquivística. É o título da matéria do Prata. O que faz um Núcleo com essas aparentes competências expressas na sua nomenclatura? Como assim, “monitoria”? Como assim “fiscalização”? Como atua esse setor? Ele pratica, de fato, o que propõe sua nomenclatura. O que se fiscaliza? Têm os arquivos públicos essa competência?

Leia a entrevista com o diretor da área, Benedito Vanelli, e tire suas dúvidas.

VITRINE

Nesta edição, um belo depoimento de uma pesquisadora que revela com paixão as suas experiências e descobertas nos arquivos sobre A indústria oleira da Vila de Piratininga. Ao final do texto de Edileine Carvalho Vieira fica aquela sensação de “quero mais”.

O segundo texto é de Isaura Bonavita que nos toca com sua refinada crônica memorialística sob o título Lembranças miúdas.

Conteúdo de qualidade.

Atentem. Comentem. Critiquem!


Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano VII, N. 12, abr. de 2021. Acessar publicação original [DR]

Perda de informação e de bens em arquivos e instituições responsáveis por guarda do patrimônio / Revista do Arquivo / 2020

Sinistro, palavra comum no jargão arquivístico e também no vocabulário de seguradoras e órgãos de prevenção a desastres, em quaisquer dos sentidos indicados por sua sinonímia transmite ideia de negatividade.

Segundo o dicionário [1], no adjetivo, sinistro é tudo o que é de “mau agouro, que pressagia desgraças”, ou ainda que “infunde temor, ameaçador, assustador, temível”, ou “o que provoca o mal, perigoso, pernicioso… o que é trágico, calamitoso”. No caso específico do significado substantivo da palavra, sinistro é “qualquer acontecimento que acarreta dano, perda ou morte; acidente, desastre, soçobro”, ou “grande prejuízo material, dano …. sobre o qual se faz seguro”, e finalmente, “risco”.

Entretanto, o sinistro aqui é tratado como uma dimensão da preservação. Dito de outro modo, sob o astuto viés da dialética, o sinistro é a preservação em sua negatividade.

Nesta décima primeira edição da Revista do Arquivo, esse ‘mau agouro’, ou ‘acontecimento’ que incide na realidade dos arquivos, é o foco central de nossas preocupações.

Não é para gostar, é para ficar atento!

Introdução ao Dossiê

Desta vez, um pequeno e substancial mosaico de olhares sobre o tema. Cinco assinaturas em quatro textos a refletirem sobre o tema da preservação nas suas variadas dimensões.

Marcelo Chaves e Marcio Amêndola abrem o espectro da Revista com contundente grito de alerta sobre a cotidianidade e a invisibilidade dos sinistros nos arquivos brasileiros. Faltam números e estatísticas, mas sobram condições e motivações para o “mau agouro que pressagia desgraças” nos arquivos brasileiros. Buscam-se números nos silenciosos relatórios administrativos e também na barulhenta e nem sempre consequente imprensa. Leiam e reflitam com A perda de patrimônio cultural como negatividade da preservação.

Uma das maiores autoridades em conservação e preservação de patrimônio cultural e “alto funcionário” do ICCROM [2], Luiz Pedersoli nos deu a honra de sua entrevista que destila muito conhecimento, equilíbrio e assertividade: O gerenciamento de riscos é um processo contínuo e tem que constar entre as prioridades institucionais.

Tratando da Perda de informações e de bens em arquivos e segurança da informação e o viés digital, Vanderlei dos Santos reitera estudo realizado pelo Ministério da Justiça canadense, que conclui serem quatro os grupos que ameaçam a segurança da informação nos arquivos digitais: a) de natureza tecnológica; b) falha da instituição na adoção de medidas de segurança adequadas; c) ação de usuários autorizados; e d) ação de usuários não autorizados. Confiram!

“Então, é fundamental a visão da preservação digital sempre levando em consideração o que eu chamo do tripé do documento digital, que é o hardware, o software e o suporte, ou seja, onde a informação está registrada”. Com esse trecho da ótima entrevista que conclui o brilhante bloco introdutório, convidamos o leitor a ‘escutar’ com atenção as orientações de Humberto Innarelli em texto intitulado Sinistros em ambientes digitais de arquivos.

Artigos

Recomendações para acervos de arquivo após perdas causadas por incêndio é o título de artigo em que “apresenta-se parte dos resultados da pesquisa que teve como objetivo servir de orientação para o desenvolvimento de um plano de recuperação do acervo pós-desastre. Tudo isso baseado no caso da Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional (SEMEAR), sinistrado em setembro de 2018”. Os seus autores são Jorge Dias da Silva e Eliezer Pires da Silva.

Denise Aparecida Soares de Moura, no seu Montando as peças de um quebra-cabeças: dispersão de informações e bens em arquivos, trata de um dos fenômenos mais comuns e dos menos difundidos no rol de sinistros que causa perda de informações e fere pilares da ciência arquivística, como os princípios da proveniência e da organicidade dos documentos de arquivo: trata-se do pouco conhecido fenômeno da dissociação.

“Cada vez mais, obras de arte, artefatos arqueopaleontológicos, antiguidades, fauna/flora e obras bibliográficas são subtraídas, furtadas ou roubadas de seus lugares de salvaguarda para que sejam empregadas no mercado internacional…”. Este tema abordado por Rodrigo Christofoletti e Nathan Agostinho é de suma importância e remete-nos à reflexão sobre os sistemas de segurança das instituições de guarda de bens culturais. Leiam Tráfico ilícito de bens culturais: uma reflexão sobre a incidência do furto de patrimônio bibliográfico raro no Brasil.

Pablo Antonio Salvador Vasquez e Maria Luiza Emi Nagai são autores que nos apresentam a Contribuição da tecnologia de ionização gama na recuperação de acervos do patrimônio cultural, a partir de revisão bibliográfica e de exposição de práticas realizadas pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). Um alento em meio às sombras.

Isis Baldini escreve ensaio em que arrola dados comparativos de diferentes fontes, de vários sinistros ocorridos no mundo, e no Brasil, em particular, chamando a atenção para o aumento significativo desses eventos nas instituições de patrimônio cultural. Suas análises são também baseadas em ocorrências experimentadas em sua vida profissional, com as quais ela se deparou “com inúmeras situações de emergências, sendo que algumas vieram a público, pela sua própria magnanimidade do evento, e outras não”.

Ainda dentro do tema do dossiê, esta edição nº 11 oferece aos seus leitores a oportunidade de acesso inédito em nossa língua pátria, ao excelente artigo do canadense Jean Tétreault, gentilmente cedido e autorizado pelo periódico Jornal da Associação Canadense para a Conservação e Restauro (J.CAC). Trata-se de verdadeira obra de referência sobre o assunto.

A subseção Autor(a) convidado(a) traz excelente texto coletivo que nos oferece a oportunidade de conhecermos Waldisa Rússio, sob a perspectiva apontada pelos complexos trabalhos de organização do arquivo pessoal dessa importantíssima museóloga brasileira. A assinatura é coletiva e multidisciplinar: Viviane Panelli Sarraf, Paula Talib Assad, Karoliny Aparecida de Lima Borges, Sophia Oliveira Novaes, Guilherme Lassabia Godoy, Carlos Augusto de Oliveira e Lia Cazumi Yokoyama Emi. O título do artigo é Museus, Arquivos Pessoais e Memórias Coletivas – uma análise baseada na experiência de sistematização do Fundo Waldisa Rússio no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Tanto conteúdo de primeira qualidade é para encher de alegria e de orgulho a instituição e os editores da Revista do Arquivo.

Intérpretes do Acervo

Karoline Santana Moreira, assistente social e pedagoga, Katherine Cosby, historiadora e Joyce A. Martirani, comunicadora social. Pesquisadoras, cujos interesses abrangem distintas áreas do conhecimento e a busca por dados e contextos que agregam veracidade às suas respectivas linhas de pesquisa, tendo em comum a singularidade da presença no (do) Arquivo do Estado de São Paulo.

Prata da Casa

Desta vez, não é um setor em destaque, mas uma atividade coadjuvante e silenciosa para resguardar o trabalho dos diversos setores e fazeres técnicos de uma instituição arquivística. Convidamos o leitor a conhecer um pouco das estratégias utilizadas por profissionais responsáveis pela coordenação dos trabalhos de gerenciamento de riscos no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Vitrine

Os dramas para quem quer pesquisar arquivos da televisão brasileira; a riqueza dos documentos cartoriais para a escrita da História; a falta de visão patrimonial para manutenção de arquivos escolares e crônica de memórias de uma garagem. Esses são grandes assuntos tratados no formato ligeiro desta seção, assinados, respectivamente, por Eduardo Amando de Barros Filho, Mara Danusa Bezerra, Priscila Kaufmann Corrêa e Isaura Bonavita.

Arquivo em Imagens

O inverso (perverso) da preservação. O título já nos incita a um mergulho em imagens do “lado B” da preservação. Para quem tem sensibilidade e apreço pelo patrimônio cultural, são imagens chocantes, como uma arte em estado degenerado.

Memórias na Pandemia

Oferecemos duas distintas expressões do impacto da “pandemia” em nós. Camila Brandi, que condensou suas sensações relacionadas ao cotidiano do(s) arquivo(s), no exato dia 19 de junho; e Isaura Bonavita, em sua crônica lírica desaguada na poesia de Cora Coralina.

Atentem. Comentem. Critiquem!

Notas

1. Ver: http://michaelis.uol.com.br/busca?id=kLNdM

2. Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro de Bens Culturais (a sigla ICCROM é a original do Inglês)

Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano VII, N. 11, out., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Difusão em arquivos. Para que serve? / Revista do Arquivo / 2020

Difusão no e do arquivo: comunicação, mediação e ações educativas e culturais

O dossiê temático desta edição da Revista do Arquivo aborda temáticas pouco contempladas pela Arquivologia, especialmente no Brasil: “Comunicação”, “Ação cultural”, “Disseminação” “Marketing” e “Mediação cultural”: enfim, “para que serve a difusão nos arquivos?”

Em termos teóricos, Jean-Yves Rousseau e Carol Couture alertam para a importância de historiar as funções arquivísticas e a própria disciplina, pois “a disciplina arquivística desenvolveu-se em função das necessidades de cada época” (1998, p. 48). Nesse percurso, quatro áreas foram objeto de trabalho mais aprofundados pelos arquivistas: tratamento, conservação, criação e difusão. Aos poucos, essas atribuições se refinaram em: produção, aquisição, avaliação, classificação, descrição, preservação e difusão (1998, p. 265). Nesse rol, a difusão, reconhecida como basilar no trabalho dos profissionais e instituições, tem sido menos discutida e implementada no cotidiano dos arquivos, relegada a uma função secundária ou subsidiária, embora seja considerada centenária por autores como Alberch i Fugueras et al.(2001) e Bellotto (2000; 2006), além da dupla canadense citada acima.

Quando se pensa em difundir a instituição e suas atividades, as formas de acesso, o acervo e seus instrumentos de pesquisa, isso é feito, muitas vezes, sem a contribuição de um sujeito essencial ao debate: o usuário do arquivo ou os potenciais usuários. Assim, à falta de pesquisas sobre as práticas de difusão soma- -se a falta de pesquisas sobre os usos e usuários de arquivo. Ao contrário, os colegas da museologia têm na comunicação calcada nos estudos de público um dos pilares do trabalho nas instituições, o que se reflete na produção acadêmica da área.

Na arquivologia e nos arquivos, quando se trata do tema “Difusão”, é comum centrar, muitas vezes, em um debate que se aproxima das normas descritivas ou dos instrumentos de pesquisa, especialmente após os esforços do Conselho Internacional de Arquivos para a construção de padrões internacionais de descrição que permitam que os instrumentos de pesquisa facilitem os estudos comparativos e que conjuntos documentais de diversas partes do mundo “conversem” entre si sobre funções e atividades semelhantes. Outra vertente para o debate concentra-se nas mudanças que as novas tecnologias da informação trouxeram para as instituições e, mesmo, na forma como o pesquisador busca o acesso ao documento arquivístico com o advento da Internet, por exemplo. Embora, o dicionário Multilingual Archival Terminology defina difusão como “função do serviço de arquivo que visa promover o conhecimento do respectivo acervo documental” (CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS, online).

Desde os anos 1990, Bellotto já apontava estratégias cabíveis para que instituições arquivísticas estabelecessem práticas de difusão: trazer as pessoas aos Arquivos ou irem ao encontro delas (BELLOTTO, 2006, p. 228), ao discutir a função social dos arquivos.[1] Dessa forma, independente dos novos canais possíveis com a web 2.0, a ida até o potencial usuário tem que ser pensada a partir do reconhecimento do público a ser atingido, seja por meio das novas ou das tradicionais ferramentas de comunicação, como as postagens nas redes sociais ou uma publicação de um periódico, como a que abriga este dossiê.

Aldabalde e Rodrigues (2015, p. 259) definem difusão como o

[…] processo cujo objeto é a informação que segue uma dinâmica emissiva em relação ao público para o qual se dirige, numa estratégia de transmissão cujo objetivo último é a acessibilidade via produtos e serviços […]”.[2]

A partir das suas experiências de trabalho no Arquivo Público do Estado de São Paulo, Barbosa e Silva (2012) definem difusão no Arquivo com a função que se relaciona a “mostrar o potencial do acervo; transformar o documento bruto em pesquisa; incitar a investigação; sugerir interpretações das fontes; produzir leituras da história; dar a conhecer o universo documental com a linguagem que o público final entende” (BARBOSA; SILVA, 2012, p. 46).

Para além de dar a conhecer a instituição e o seu acervo, outra acepção corrente enfatiza a importância do caráter “cultural” das ações de difusão. Isso, de certo modo, restringe a função de se pensar no valor do trabalho de difusão como garantidor de direitos e da cidadania, ação do arquivo como órgão público que promove a gestão de documentos e o acesso qualificado aos documentos arquivísticos.

Outro viés do trabalho de difusão atrela-se às ações educativas como um elemento essencial à dinamização das relações do arquivo com seus públicos, o que implica ações mediadas pelo arquivista ou outros profissionais da instituição ligados à área da Educação, como professores de história e ou pedagogos. As ações educativas podem ser parte das atividades tradicionalmente compreendidas como educação patrimonial das instituições arquivísticas. Entretanto, é necessário compreendê-las como um conjunto de múltiplas atividades a serem planejadas como um programa, o que envolve não apenas a história contada por meio dos documentos, como também ações formais e não formais que permitam aos participantes transcender o discurso do documento, entender o “dever de memória” (HEYMANN, 2006) das instituições arquivísticas públicas e criar conexões com outros contextos estudados, como sugerem os trabalhos de Koyama (2015).

Nessa perspectiva, Heloísa Bellotto (2000, p. 152) destaca que as atividades educativas e as ações de difusão oportunizam pensar

[…] seja no sentido da consolidação da noção de cidadania aos estudantes de primeiro e de segundo graus, seja no de um maior entendimento, junto às autoridades e à população, do real papel que devem ter os arquivos públicos, ademais de serem os custodiadores e organizadores da documentação produzida / acumulada como prova, testemunho ou informação em questões que envolvam direitos e deveres nas relações entre governo e os cidadãos.

Para Normand Charbonneau (1999, p. 374-375), a difusão se relaciona ao ato de tornarem conhecidos os documentos arquivísticos aos cidadãos e às demais instituições. A difusão é compreendida como uma função que deve ser desempenhada tanto na gestão de documentos (arquivos correntes e intermediários), quanto nas atividades do arquivo permanente. Ao tratar da gestão documental, enfatiza-se a difusão das ferramentas como planos de classificação e tabelas de temporalidade ou de promoção de cursos que orientem os produtores de documentos sobre a arquivologia, por exemplo. Desse modo, a difusão fortalece e contribui para as funções classificação, avaliação e preservação, por meio da extroversão das suas práticas e referencial teórico.

Como ações de difusão, Charbonneau (1999, p. 391-400) destaca: exposições, publicações impressas, instrumentos de pesquisa, visitas guiadas e conteúdos difundidos na Internet. Ao tratar da Internet, em livro dos anos 1990, o autor enfatiza as possibilidades de uso dos sites para disponibilizar informações sobre os documentos, instrumentos de pesquisa e condições de acesso em detrimento do acesso ao próprio documento, algo que só se tornaria viável para grande parte das instituições e mesmo para os usuários a partir do final da primeira década do século XXI. Outra preocupação do autor com relação ao uso dos sites diz respeito à capacidade dos novos canais de promover o acesso e de torná-lo qualificado.

Após esse breve percurso sobre a difusão, o leitor é convidado a percorrer textos que encaram a função de modo processual, dinâmico e afetivo. Os arquivistas e os profissionais de arquivo, ao difundirem o trabalho que realizam nas instituições arquivísticas, cada vez mais convidam para a realização de pesquisa de diversos perfis de usuários e para a compreensão de outros contextos históricos, marcados por mudanças políticas e administrativas, mas, essencialmente, construídas por sujeitos que deixaram suas marcas de existência nos conjuntos documentais que chegam aos arquivos permanentes. Ao construir políticas de difusão, estes atores deixam de apenas comemorar ou rememorar fatos e homenagear líderes, para contribuírem para a construção das memórias coletivas por meio das narrativas que nascem do cotidiano das instituições públicas ou privadas de quem custodiam acervos.

Notas

1. Obra originalmente publicada em 1991 e citada neste trabalho pela 4ª edição.

2. ALDABALDE, Taiguara Villela; RODRIGUES, Georgete Medleg. Mediação cultural no Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. TransInformação, Campinas, v. 27, n. 3, p. 255-264, set. / dez. 2015. Disponível em: http: / / www.scielo.br / pdf / tinf / v27n3 / 0103-3786-tinf-27-03-00255.pdf . Acesso em: 19 mar. 2019.Citado por MELO, 2019, p. 19.

As discussões presentes no texto são tributárias do trabalho com a autora durante a orientação de sua dissertação de mestrado.

Referências

ALBERCH i FUGERAS, Ramón; BOIX, Lurdes; NAVARRO, Natália; VELA, Susanna. Archivos y cultura: manual de dinamización. Gijón: Ediciones Trea, 2001.

BARBOSA, Andresa Cristina Oliver; SILVA, Haike Roselane K. Difusão em arquivos: definição, políticas e implementação de projetos no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Acervo, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 45-66, jan. / jun. 2012.

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Patrimônio documental e ação educativa nos arquivos. Ciências e Letras, Revista da Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras, Porto Alegre, n. 27, p. 151-166, jan. / jun. 2000.

____________. Arquivos permanentes: tratamento documental. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 320 p.

CHARBONNEAU, Normand. La diffusion. In : COUTURE, Carol (Colab.). Les fonctions de l’ archivistique contemporaine. Québec: Presses de I’ Université du Québec, 1999. p. 373-428.

CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS. Multilingual Archival Terminology. Disponível em: http: / / www.ciscra.org / mat / mat / term / 6797 . Acesso em: 10 de jan. 2020.

HEYMANN, Luciana. O “devoir de mémoire” na França contemporânea: entre a memória, história, legislação e direitos. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação Histórica Contemporânea do Brasil; Fundação Getúlio Vargas, 2006. 27 p. Disponível em: https: / / bibliotecadigital.fgv.br / dspace / bitstream / handle / 10438 / 6732 / 1685 .pdf. Acesso em: 10jan. 2020.

KOYAMA, Adriana Carvalho. Arquivos online: ação educativa no universo virtual. São Paulo: Associação de Arquivistas de São Paulo, 2015. 360 p.

MELO, Suellen A. Difusão de documentos fotográficos: análise de experiências de três instituições arquivísticas brasileiras no Facebook. 171 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.

ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol. Fundamentos da disciplina arquivística. Lisboa: Dom Quixote, 1998.

Ivana D. Parrela – Professora Associada do Curso de Arquivologia da Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); doutora e mestre em História, pela UFMG; especialista em Organização de Arquivos, pela USP; e graduada em História, pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).


PARRELA, Ivana D. Introdução. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano V, n.10, junho, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Proteção de dados pessoais e acesso à informação / Revista do Arquivo / 2019

LGPD, instituições públicas e profissionais de arquivo: uma reflexão necessária

No dia 14 de agosto de 2018, é sancionada a Lei no 13.709 que regulamenta a proteção de dados pessoais no território nacional. Um primeiro ponto que deve ser destacado é que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) traz como principal avanço não apenas a delimitação de direitos e de obrigações daqueles que efetuam tratamento de dados pessoais, como também, e principalmente, o empoderamento do indivíduo em relação aos dados capazes de identificá-lo ou discriminá-lo no que pertine a fornecedores de bens e serviços, independente da natureza jurídica do controlador dos dados. Com isso, ele deixa de ser cliente ou um mero registro em um banco de dados controlador e passa a ser reconhecido como titular dos dados e detentor de direitos sobre os mesmos.

Da mesma forma que a Lei no 12.527, de 11 de novembro de 2011, estabelece importantes diretrizes para assegurar o direito de acesso à informação aos documentos públicos, direito já previsto no art. 5º da Constituição Federal de 1988, inciso XXXIII, a LGPD regulamenta outro direito fundamental, o de inviolabilidade da intimidade e da vida privada, previsto no inciso X do mesmo artigo constitucional. Além disso, estende o direito de acesso às informações a seu respeito existentes nos arquivos e bancos de dados de fornecedores de bens ou serviços, independente de sua natureza pública ou privada.

Porém, diversamente da LAI, que ensejou uma diversidade de debates nos arquivos em torno de sua aplicabilidade, a LGPD não vem recebendo a mesma atenção da comunidade arquivística ou mesmo das instituições públicas. De fato, o que se observa, decorridos mais de doze meses de sua edição, é que o tema está restrito aos escritórios de advocacia, a institutos de certificação e aos fornecedores de ferramentas tecnológicas. Estes vêm encontrando um nicho de mercado descortinado com a ameaça de multas que podem atingir a astronômica quantia de R$ 50 milhões, valor provavelmente inimaginável para o ambiente dos arquivos, mas que serve como mecanismo propulsor para outros seguimentos.

O que se identifica em comum entre os nichos e agentes fomentadores de discussão da LAI e da LGPD é que ambos parecem ignorar que tanto o acesso à informação quanto a proteção da privacidade individual dependem de um processo minucioso e detalhado de identificação, classificação e avaliação, funções arquivísticas que estabelecem normas e padrões para produção, controle de acesso, de circulação, de acumulação e de uso de documentos – e isso inclui, por óbvio, dados e informações neles contidos – independente de seu suporte.

É importante enfatizar que a LGPD estabelece diversos princípios a serem observados, dentre os quais se destacam: finalidade, adequação, necessidade, livre acesso, qualidade, transparência, responsabilização e prestação de contas. Tais princípios asseguram, de um lado, o direito do titular dos dados à consulta, à exatidão e à obtenção de informações acerca dos agentes, das hipóteses de compartilhamento, e das formas de tratamento, que envolve coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração. Restringem também, de outro lado, fornecedores de bens ou de serviços ao tratamento mínimo dos dados necessários à sua finalidade, responsabilizando-os e obrigando-os a adotar medidas eficazes de observância e cumprimento das normas de proteção de dados pessoais.

Ao se refletir acerca do direito do titular dos dados à transparência e à consulta facilitada e gratuita quanto à forma e duração e quanto à integralidade de seus dados, vem à mente o direito já assegurado ao indivíduo de “[…] receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular ou de interesse coletivo ou geral, contidas em documentos de arquivos” (BRASIL, 1991, p. 1). Isso permite concluir que a transparência prevista na LAI, mas que já estava inserida na Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991, deve também ser observada pelos fornecedores de bens ou serviços, que estão agora obrigados a prestar contas ao titular dos dados quanto à totalidade do que detêm a seu respeito e a atendê-lo quando lhe for solicitada a sua exclusão ou portabilidade.

Outra associação rápida que se pode fazer entre a LGPD e a Lei de Arquivos é que a finalidade de tratamento, com respeito a propósitos legítimos e específicos para isto, guarda estreita relação com o conceito de arquivos que são os

[…] documentos produzidos e recebidos por órgãos públicos, instituições de caráter público e entidades privadas, em decorrência do exercício de atividades específicas, bem como por pessoa física, qualquer que seja o suporte da informação ou a natureza dos documentos (BRASIL, 1991, p. 1, grifo nosso).

Essa vinculação é importante para se ter em mente que os dados que são produzidos ou recebidos em decorrência do exercício de atividades específicas do fornecedor de bens ou prestador de serviços dispensam o consentimento mencionado no art. 7º, I, da LGPD, para que se possa efetuar seu tratamento, pelo simples fato de que esses dados comprovam uma atividade própria de um organismo. E essa justificativa autoriza, inclusive, que se possa invocar o legítimo interesse do controlador para manter dados para apoio ou promoção de suas atividades ou até mesmo para o exercício regular de direitos em relação ao titular dos dados.

A conexão de preceitos estabelecidos nas Leis de Arquivo, LAI e LGPD busca destacar dois pontos centrais relevantes em relação ao tema privacidade e proteção de dados:

  1. que as instituições públicas deveriam fomentar mais discussões, uma vez que a LGPD dilata a abrangência da LAI e estabelece critérios que podem interferir nas atividades de gestão de documentos da administração pública, como é o caso do pedido do titular de exclusão e o de acesso a informações quanto a todos os tratamentos efetuados com seus dados;
  2. que os profissionais de arquivo precisam estar mais engajados em relação ao tema, já que, (1) como ressaltado por Jardim (2019, p. 12), “[…] o arquivista é inevitavelmente um gestor de um determinado tipo de recurso vital às organizações: as informações registradas nos documentos que derivam das suas ações”. Além disso, (2) é com base em seus conhecimentos específicos, como o estudo da gênese documental, da diplomática contemporânea e da tipologia documental, que se pode delimitar com precisão a legítima necessidade e adequação do tratamento de dados pelo controlador.

Os dois pontos enfatizados acima se tornam ainda mais relevantes quando se compreende que a diplomática é capaz de auxiliar na identificação da estrutura formal do documento, estabelecendo os dados necessários à construção de um registro de um determinado fato. Além disso, a tipologia documental leva em conta os procedimentos realizados dentro de um conjunto documental que disponha ou que cumpra uma mesma função para verificação de sua autenticidade. Com efeito,

Desde sua gênese, o documento, considerando-se aqui sobretudo o documento público e, mais, o diplomático, é reconhecível por sua proveniência, categoria, espécie e tipo. A gênese documental está no ‘algo a determinar, a provar, a cumprir’, dentro de determinado setor de determinado órgão público ou organização privada. (BELLOTTO, 2006, p. 57).

Partindo-se dessa premissa, resta cristalina a importância de o profissional de arquivo se inserir na discussão acerca das ações necessárias para garantir a privacidade e proteção de dados pessoais. É ele quem possui os conhecimentos necessários para identificar os elementos intrínsecos de um documento diplomático e que se constitui de dados estruturados de forma significante e pré-estabelecida, para que sirva como prova de ação de um determinado fato. Além disso, é ele também quem possui embasamento teórico e prático capazes de promover a identificação, classificação e avaliação de documentos que irão afetar no tratamento de dados e informações neles contidos. Sem minimizar a relevância dos advogados, que atuam como intérpretes da Lei e na elaboração de normativas para seus órgãos ou seus clientes, e também dos profissionais da área de TI, que descortinam um diversificado repertório de ferramentas adequadas a diferentes ambientes digitais, o certo é que a base obtida pelo profissional de arquivo e o conhecimento contido nas instituições arquivísticas são essenciais para o diagnóstico de um ambiente organizacional sob o aspecto informacional e para proposição de medidas capazes de, simultaneamente, fornecerem proteção aos dados pessoais e também assegurarem o legítimo tratamento de dados pessoais pelo controlador ou operador de dados.

Daí a importância de uma publicação como a presente, que propicia oportunidades para discussões ao redor de um tema tão atual e desafiador. Estão de parabéns a Revista do Arquivo e o Arquivo Público do Estado de São Paulo pela iniciativa!

Referências

BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Como fazer análise diplomática e análise tipológica de documento de arquivo. São Paulo: Arquivo do Estado, Imprensa Oficial, 2002. 120 p.

BRASIL. Lei n. 8159 de 9 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências. Diário Oficial da União. 29, n.6, p.455, jan. 1991, Seção I.

JARDIM, José Maria. Governança arquivística: um território a ser explorado. Revista do Arquivo, ano 4, v. 7, out. 2018.

Lenora de Beaurepaire da Silva Schwaitzer – Doutora em História, Políticas e Bens Culturais, arquivista, bibliotecária, bacharel em Direito e professora Assistente da Universidade Federal Fluminense.


SCHWAITZER, Lenora de Beaurepaire da Silva. Introdução. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano V, n.9, outubro, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Arquivos de Instituições médicas e de saúde / Revista do Arquivo / 2019

Medicina, saúde pública e arquivo entre os espaços de memória e de história

Recentemente, temas relativos à memória se tornaram objeto de reflexão historiográfica, em particular a partir dos anos 1970, quando os historiadores da Nova História começaram a trabalhar com essa temática, aproximando-se de estudos já avançados no campo da filosofia, da sociologia, da antropologia e, principalmente, da psicanálise. É essa história que se empenha em sua cientificidade, ganhando a memória um lugar de importância decisiva. A partir de um problema em torno da contemporaneidade, uma iniciativa retrospectiva e a renúncia a uma temporalidade linear em favor de tempos múltiplos, a relação de enraizamento do individual no social e no coletivo ganha a atenção desses analistas, fermentando pesquisas em torno de lugares da memória coletiva. Para Jacques Le Goff (1996, p. 473), esse seriam:

[…] lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas, os museus; lugares monumentais como os cemitérios e as arquiteturas; lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionais como os manuais e as autobiografias, mas não podendo esquecer os verdadeiros lugares da história, aqueles onde se deve procurar, não a sua elaboração, não a produção, mas os criadores e os denominadores da memória coletiva: Estados, meios sociais e políticos, comunidades de experiências históricas ou gerações, levando a constituir os seus arquivos em função dos usos diferentes que fazem da memória.

Se a identificação da memória está entre os próprios alicerces da história, muitas vezes se confundindo com o documento, com o monumento ou com a oralidade, é essencial ao ofício do historiador a relação estabelecida com memórias, sejam elas de que natureza forem, exigindo, ao mesmo tempo, cuidados que devem incluir uma clara conceituação entre história e memória, evitando considerar as memórias como um discurso mais verdadeiro, mais próximo do que teria sido o que se poderia chamar de uma “verdadeira história”. O historiador também se deve preocupar em definir em torno das memórias uma clara exposição de métodos, tanto no que tange à coleta dessas memórias como em seu emprego posterior no interior de um discurso historiográfico. Esses cuidados buscam dirimir tensões que existem entre os conceitos de memória e de história, que, longe de serem sinônimos, têm entre si um jogo sobretudo de oposição.

Sempre carregada de grupos vivos, a memória estaria aberta à dialética das lembranças e dos esquecimentos, inconsciente de suas sucessivas deformações, vulnerável a todos os usos e manipulações, enquanto a história seria a reconstrução sempre problemática e incompleta daquilo que não mais existe:

A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente, enquanto a história é uma representação do passado, porque é uma operação intelectual e laicizante, demandando análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta e a torna sempre prosaica (NORA, 1993, p. 9).

Nesse sentido, a memória trata dos outros, mas para falar do indivíduo, numa relação consigo mesma e, por isso, construtora de identidade, presa a grupos, à visão de grupo ou grupos que é expressão, envolvendo em seu discurso uma maior ou menor distância em torno da polaridade memória individual-coletiva, envolvendo tríplice atribuição: “a si, aos próximos, aos outros, afinal, não existe um plano intermediário de referência no qual se operam concretamente as trocas entre a memória viva das pessoas individuais e a memória pública das comunidades às quais pertencemos?” (RICOEUR, 2007, p. 141-142).

É nesse campo problemático envolvendo memória, identidade e construção de discursos que a história se elabora na externalidade com o acontecido. É uma interpretação a posteriori do fato, trabalhando com as experiências de inúmeros grupos e indivíduos, querendo conhecê-los e, consequentemente, interpretá-los, numa relação com a alteridade, numa relação com a identidade que é a de localizá-la para descobri-la em suas diferenças.

Quando as questões médicas e de saúde pública ganharam compreensão historiográfica, era esse um de seus maiores dilemas: como construir um discurso histórico em torno de uma memória já tão alicerçada em alguns cânones considerados pétreos e como capturar um novo discurso considerando as preocupações que a própria história colocava em seu campo de trabalho, diferenciando o que é a memória e o que é a história, apontando novas possibilidades interpretativas e temáticas?

A proposta de um dossiê

Entre os anos 1960-70, quando a Medicina Social abriu o debate acadêmico e social sobre os processos saúde-doença e as formas de organização das práticas sanitárias em sua visão interdisciplinar, identificou na História e em sua dimensão crítica um campo de saber fundamental. Apresentando a primeira coletânea brasileira sobre aspectos teóricos e históricos da Medicina Social, Cecília Donnangelo (1983, p. 10) recomenda a seus estudiosos e defensores uma atenção particular à dimensão histórica de sua constituição e de seus dilemas, “apreendido[s] e reconstruído[s] também através da análise histórica”.

Esse empreendimento intelectual se distanciou da História da Medicina que vinha sendo difundida desde o século XIX sob balizas positivistas do conhecimento, quase sempre escrita por médicos, que:

[…] ordenavam fatos à luz de esquemas evolutivos que combinavam os marcos cronológicos da história política e administrativa brasileira com a marcha ascendente dos conhecimentos rumo a uma história científica, eficaz, por obra, quase sempre, de vultos de importância nacional e local (BENCHIMOL, 2003, p. 108).

Entre os clássicos dessa produção no Brasil, estão História da Medicina no Brasil (1947), de Lycurgo de Castro Santos Filho, e História da Medicina no Brasil (1948-49), de Pedro Nava.

Assim, no âmbito da saúde e das práticas médicas, a medicina social procurava compreender mais amplamente a história da produção e difusão desses conhecimentos e dessas práticas não mais se restringindo à investigação fechada na ideia de um “irretocável” patrimônio científico e técnico, mas percebendo-os num contexto em que circulam e se articulam inúmeros fatores, inseparáveis das condições econômicas, sociais, políticas e culturais. Em particular, entre os historiadores, o impacto da tradição da Escola dos Annales entre os anos 1970-80 alargou todo um repertório de objetos, abordagens, ferramentas conceituais e fontes, originando temas, metodologias, problemas e alternativas requalificadas por metodologias específicas da ciência histórica e de sua lógica.

Nesses termos, o território da geração da Medicina Social, como George Rosen, Henry Sigerist e Entralgo, viveu incorporações e discussões importantes em torno da perspectiva historiográfica:

Questões pertinentes à raça e ao gênero, uma visão mais refinada de classes e categorias sociais, a atenção aos atores e particularismos locais passaram a informar os estudos sobre políticas, instituições e profissões de saúde. A história da medicina deixou de ser apenas a história dos médicos para se tornar também a dos doentes, e a história das doenças experimentou um verdadeiro boom historiográfico. O corpo, a infância, as sensibilidades, o meio-ambiente e outros objetos atenuaram as fronteiras entre a ciência da história e outras ciências humanas e naturais (BENCHIMOL, 2003, p. 109).

Eis a motivação maior para a construção deste dossiê, reunindo um conjunto de estudos nacionais e internacionais sobre temas médicos e de saúde pública, mas afinados com o lugar da documentação, de sua guarda, conservação e disponibilização para a pesquisa histórica. Isso porque há todo um esforço dos pesquisadores frente à dificuldade de acesso a arquivos que tratam de medicina e saúde pública advinda do próprio campo arquivístico, envolvendo o lugar da memória documental e sua relevância na explicação do passado e na formação de um pensamento presente:

[…] as instituições arquivísticas públicas brasileiras apresentam aspectos comuns no que se refere às suas características fundamentais. Trata-se de organizações voltadas quase exclusivamente para a guarda e acesso de documentos considerados, sem parâmetros científicos, como de valor histórico, ignorando a gestão de documentos correntes e intermediários na administração que os produziu (JARDIM, 1995, p. 7).

Num plano específico, por outro lado, devem-se notar particularidades advindas no campo médico e de saúde pública que tangem ao esforço dos centros arquivísticos para transformar documentos, quase sempre de natureza privada ou institucional, em documentos de valor histórico e público, tendo que acolhê-los, conservá-los e disponibilizá-los a pesquisadores em todo um percurso difícil, fazendo com que parte dessa documentação seja descartada antes de chegar aos arquivos:

Os arquivos privados classificados como de interesse público, apesar de continuarem a ser bens privados, integram o patrimônio cultural da nação. Essa contradição, aparentemente de difícil solução, tem que ser pensada a partir da ideia do interesse público que, por ser comum a toda sociedade, se sobrepõe aos interesses individuais. No caso da propriedade privada, o exercício desse direito possui limite igualmente previsto no texto constitucional brasileiro, qual seja, sua função social ou sua utilidade pública (COSTA, 1998, p. 197).

É nessa dinâmica, que vai da identificação de acervos e da possibilidade de acolhê-los até a escolha do que deve ou não ser preservado e de sua disponibilização para a pesquisa, que o Arquivo Público do Estado de São Paulo vem há anos se preocupando em resgatar parte dessa memória, traduzida por uma intensa experiência acumulada de projetos, atividades e apresentação de temas que variam entre ações educacionais, de pesquisa e divulgação, permitindo:

[…] a integração de diferentes conhecimentos, de diferentes áreas, de diferentes profissionais. Envolve pesquisa, comunicação, ação pedagógica e uso da tecnologia, o que justifica o envolvimento não apenas de historiadores e arquivistas (os profissionais típicos dos arquivos permanentes), mas jornalistas, publicitários, designers, professores, revisores (BARBOSA; SILVA, 2012, p. 8).

É essa ampla e abrangente dimensão arquivística que permite ampliar métodos e, sobretudo, divulgar suas fontes, trazendo como documentos históricos pistas e rastros possíveis que levem a compreensões capazes de repercutir neste dossiê as práticas dos médicos e de seus pacientes, bem como seus espaços institucionais de ensino, pesquisa e trabalho, mas, com a mesma força, as práticas e representações do homem comum, os espaços de associações profissionais, sociedades científicas e periódicos, sem perder de vista o universo popular, suas formas de organização e sua leitura do mundo que o cerca. Assim:

[…] além da legitimidade da memória no fazer histórico, o que se quer perceber são os contrastes de sua facção pela experiência vivida, sempre conduzida pela preocupação da história de apresentar um determinado tempo passado, com seus homens e suas mulheres, revelando por isso o tempo presente, também com seus homens e suas mulheres, mas estes carregados de projeções de um futuro incerto (MOTA, 2018, p. 81).

Referências

BARBOSA, Andresa Cristina Oliver; SILVA, Haike Roselane Kleber da. Difusão em arquivos: definição, políticas e implementação de projetos no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Acervo, Rio de Janeiro, v. 25, n.1, p. 45-66, 2012.

BENCHIMOL, Jaime L. História da medicina e da saúde pública: problemas e perspectivas. In: ANDRADE, Ana Maria Ribeiro de (Org.). Ciência em perspectiva: estudos, ensaios e debates. Rio de Janeiro: MAST / SBHC, p. 97-106, 2003.

COSTA, Célia Leite. Intimidade versus interesse público: a problemática dos arquivos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 189-199, 1998.

DONNÂNGELO, Maria Cecilia Ferro. Apresentação. In: NUNES, Everardo Duarte. Medicina Social: aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global, p. 10-12, 1983.

JARDIM, José Maria. A invenção da memória nos arquivos públicos. Ciência da Informação, Brasília, v. 25, n. 2, p. 1-13, 1995.

LE GOFF, Jacques. História e memória. 4a ed. Campinas: Ed. Unicamp, 1996.

MOTA, André. Tempos cruzados: raízes históricas da saúde coletiva no Estado de São Paulo 1920-1980. Tese (Livre-docência em História da Medicina) – Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

NORA, Pierre. Entre memória e história: o problema dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, 1993.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.

André Mota – Historiador, Professor Livre-docente do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina- USP e Coordenador do Museu Histórico-FMUSP.


MOTA, André. Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano IV, n.8, abril, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Governança dos Arquivos: desafios para a Gestão e para a Memória / Revista do Arquivo / 2018

Governança Arquivística: um território a ser explorado

A teoria e a prática arquivísticas ganharam novas dinâmicas nas últimas três décadas. Esse processo, diverso na sua intensidade e complexidade, é mais evidente em algumas realidades sociais do que em outras. Porém, perpassa várias “tradições arquivísticas” com impactos na gestão de instituições e serviços arquivísticos, na produção científica em Arquivologia e na formação e perfil do arquivista.

Esses redesenhos na Arquivologia ocorrem sob forte influência das tecnologias da informação, da emergência de novos modelos organizacionais, dos princípios do governo aberto e das crescentes demandas sociais pelo direito à informação, à memória e à privacidade.

Diversas interpretações apontam para uma ideia de Arquivologia como ciência ou disciplina científica calcada em princípios e técnicas voltados à produção, avaliação, aquisição, classificação, descrição, preservação e difusão dos arquivos. Cada uma dessas funções abordadas por Couture e Rousseau (1998) requer várias ações por parte do arquivista. Subjacente a todas elas, podemos reconhecer um ato incontornável à sua viabilidade: a gestão.

A gestão é um processo inerente ao fazer arquivístico. A gestão arquivística pode ser visualizada como o conjunto de aspectos teórico-operacionais mobilizados pelo arquivista e outros profissionais que atuam em um serviço ou uma instituição arquivística com vistas à eficiência e eficácia dessas organizações. Pressupõe um diálogo frequente com uma Ciência que é fundamental para a Arquivologia: a Administração.

O planejamento, execução e avaliação das diversas funções arquivísticas requer, em variados graus, métodos e técnicas da Ciência da Administração. Apesar de a Administração perpassar aspectos macro e microarquivísticos, a Arquivologia parece atualmente dialogar menos com essa área do que com outras que também lhe são próximas. Talvez a dimensão gerencial tão visceralmente presente na prática arquivística tenha, por isso mesmo, se tornado um pouco “naturalizada” na cultura profissional de grande parte dos arquivistas.

A literatura de Arquivologia, dentro e fora do Brasil, apresenta várias lacunas quando o tema é a gestão arquivística. A área carece, de modo geral, de um conjunto de noções consistentes e sistematizadas que sustentem – amparadas em métodos e técnicas da Administração – as práticas da gestão arquivística.

Reside aí uma certa contradição já que o arquivista é inevitavelmente um gestor de um determinado tipo de recurso vital às organizações: as informações registradas nos documentos que derivam das suas ações. A gestão desses recursos arquivísticos transcende a uma concepção redutora de organização dos arquivos, seja qual for o seu momento no ciclo documental. Gerenciar serviços e instituições arquivísticos é também administrar pessoas, tecnologias da informação, infraestrutura física, legislação, orçamento, ademais de requerer um grande conhecimento do contexto contemporâneo das organizações e suas alterações ao longo do tempo.

Gerenciar implica gestos de poder. A gestão arquivística, o “governo dos arquivos”, insere-se no exercício da autoridade do serviço ou da instituição arquivística para o cumprimento da sua missão. A autoridade arquivística legal, se não legitimada por uma adequada gestão arquivística, tende a ser fragilizada.

Em termos de administração pública, serviço e instituição arquivísticos podem ser visualizadas mediante o que apresentam de comum assim como as suas singularidades.

“consideram-se instituições arquivísticas públicas aquelas organizações cuja atividade-fim é a gestão, recolhimento, preservação e acesso de documentos produzidos por uma dada esfera governamental … diferenciam-se dos serviços arquivísticos governamentais… que se referem às unidades administrativas incumbidas de funções arquivísticas nos diversos órgãos da administração pública, no âmbito dos quais se configuram como atividades-meio …” Jardim (2012, p.403),

A noção de Governança é historicamente recente. Data do início dos anos de 1990, impulsionada pelo Banco Mundial, sob a perspectiva de novas formas de exercício da capacidade dos governos para produzir, implementar e avaliar políticas públicas. Nas três últimas décadas ganhou mais contornos teóricos, sendo aplicada em diversos cenários organizacionais, tanto da administração pública quanto no setor privado. Como tal, é frequente encontramos termos como Governança Corporativa, Governança de Tecnologia da Informação, Governança informacional, Governança ambiental, Governança Fiscal e Tributária etc.

Conforme Gonçalves (2006, p.14), Governança “diz respeito aos meios e processos que são utilizados para produzir resultados eficazes” e tem um amplo espectro:

Pode englobar dimensões presentes na governabilidade, mas vai além. Veja-se, por exemplo, a definição de Melo (apud Santos, 1997, p. 341): “refere-se ao modus operandi das políticas governamentais – que inclui, dentre outras, questões ligadas ao formato político-institucional do processo decisório, à definição do mix apropriado de financiamento de políticas e ao alcance geral dos programas”. Como bem salienta Santos (1997, p. 341) “o conceito (de governança) não se restringe, contudo, aos aspectos gerenciais e administrativos do Estado, tampouco ao funcionamento eficaz do aparelho de Estado” (Gonçalves, 2006, p.3).

Além dos avanços no setor privado, a Governança ganha cada vez mais espaço em várias instâncias do setor público. Uma das instituições públicas com grande comprometimento com o tema é o Tribunal de Contas da União (TCU). Ao fundamentar o seu “Referencial Básico de Governança”, o TCU distingue e correlaciona duas categorias intrinsecamente relacionadas: Gestão e Governança.

Enquanto a gestão é inerente e integrada aos processos organizacionais, sendo responsável pelo planejamento, execução, controle, ação, enfim, pelo manejo dos recursos e poderes colocados à disposição de órgãos e entidades para a consecução de seus objetivos, a governança provê direcionamento, monitora, supervisiona e avalia a atuação da gestão, com vistas ao atendimento das necessidades e expectativas dos cidadãos e demais partes interessadas. (2014, p.32)

Apesar de ganhar mais densidade teórica e muitos relatos de “boas práticas” que sustentam sua pertinência teórica, Governança é uma categoria analítica e um conjunto de métodos a ser mais aprofundado em diversas áreas de conhecimento. Porém, essas limitações não impedem a busca por modelos de governança aplicáveis a instituições e serviços arquivísticos.

Da mesma forma que Gestão Arquivística, Governança Arquivística não é um tema contemplado frequentemente na literatura da área. No entanto, vem sendo objeto de interesse recente. Predominam as abordagens sobre a gestão de documentos como instrumento de apoio à governança. Não são, porém, muito evidentes os estudos sobre a governança como referência teórica e operacional para a gestão arquivística.

As possibilidades de construção de modelos de Governança Arquivística requerem pesquisas e maior conhecimento de “boas práticas” nos diversos lócus do fazer arquivístico.

No cenário macroarquivístico, especialmente das políticas públicas, a noção de Governança pode favorecer novos modos de concepção e implementação por parte das instituições arquivísticas e outros atores.

Os atuais cenários arquivísticos e organizacionais são muitos distintos, por exemplo, daqueles formulados nos anos de 1970. Naquele período, a UNESCO patrocinou o modelo de Sistemas Nacionais de Arquivos que foi experimentado em diversas realidades sem alcançar, de maneira geral, o sucesso pretendido. Não por acaso, após os anos de 1980, a ênfase se deslocou, inclusive nos textos da UNESCO, da ideia de sistemas nacionais de informação para a noção de políticas públicas de informação. Políticas arquivísticas e seus recursos de instrumentalização como os sistemas e redes merecem ser (re)discutidos à luz dos desafios arquivísticos atuais. A perspectivas sugeridas pela noção de Governança podem favorecer essas discussões e promover inovações nos balizamentos teóricos e desdobramentos operacionais de políticas e sistemas / redes arquivísticos.

A noção de Governança Arquivística, no contexto das instituições arquivísticas, envolve um conjunto de diálogos, processos e produtos relacionados a vários atores e agências no Estado e da sociedade. Inclui não apenas aqueles segmentos diretamente relacionados a dimensões especificamente arquivísticas, mas também os atores, cujas ações perpassam, direta ou indiretamente, as políticas e práticas dos serviços e instituições arquivísticos. É o caso, entre outros, de políticas e ações relacionadas a Governo Aberto, Dados Abertos, Proteção de Dados Pessoais, Programas de Digitalização das Administrações Públicas, Patrimônio Cultural, Ciência e Tecnologia, Acesso à Informação Governamental, Controle Social, Educação, Bibliotecas, Museus etc. A interação entre esses atores e suas interfaces com políticas arquivísticas não se plasmam exclusivamente no marco da burocracia hierárquica tradicional ou nos limites da autoridade arquivística legalmente conferida às instituições arquivísticas. Tampouco poderiam ter lugar sob a lógica dos lineares desenhos sistêmicos tão frequentes nas concepções de sistemas nacional e estaduais de arquivos.

A Governança Arquivística sugere a formulação de estratégias e o desenvolvimento de um um conjunto de acões em rede e de forma colaborativa. Ultrapassa, portanto, o tradicional “governo do arquivos”. Não substitui a Gestão Arquivística. Ao contrário, reforça o seu papel e sugere inovações que podem torná-la mais consistente. Um modelo de Governança Arquivística não se sustenta sem as “boas práticas” inerentes à Gestão Arquivística.

A construção de modelos de Governança Arquivística requer um maior conhecimento e debate sobre o tema por parte dos arquivistas em geral, além de análises aprofundadas de experiências nacionais e internacionais de gestão de serviços e instituições arquivísticas.

Gestão e Governança Arquivística merecem ser contempladas nas agendas de pesquisa e inovação em Arquivologia, devidamente enfatizadas na formação de graduação e pós-graduação de arquivistas e outros profissionais que atuam na área.

Referências

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Referencial básico de governança aplicável a órgãos e entidades da administração pública. Brasília: TCU, Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão, 2014.

GONÇALVES, Arlindo. O conceito de governança. Disponível em; . Acesso em: 12.08.2017

JARDIM, José Maria. Em torno de uma política nacional de arquivos: os arquivos estaduais brasileiros na ordem democrática (1988-2011). In: MARIZ, Anna Carla Almeida; JARDIM, José Maria; SILVA, Sérgio Conde de Albite (org.). Novas dimensões da pesquisa e do ensino da arquivologia no Brasil. Rio de Janeiro: Móbile; Associação dos Arquivistas do Estado do Rio de Janeiro, 2012.

ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol. Fundamentos da disciplina arquivística. Lisboa: Dom Quixote, 1998

José Maria Jardim – Doutor em Ciência da Informação. Professor Titular do Departamento de Arquivologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).


JARDIM, José Maria. Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano IV, n.7, outubro, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Tecnologia da Informação aplicada aos arquivos / Revista do Arquivo / 2018

Há, com frequência, uma dose de narcisismo da geração em como as novas mídias e as tecnologias de comunicação são avaliadas por contemporâneos; em outras palavras, há uma forte tendência de pensar que nossa geração é aquela que tem o tipo certo de tecnologias que fará tudo mudar[1].
Marko Ampuja

Os arquivos mais organizados, em geral, apropriam-se de técnicas e tecnologias para fins de exercício de suas funções. Os afazeres em arquivos estão vinculados às esferas da comunicação; da movimentação, acondicionamento e guarda de grandes volumes (em geral, documentos e caixas de documentos); e também de tudo o que diz respeito à localização, transporte e disponibilização de documento. Há, ainda, conhecimentos aplicados à preservação de diversos tipos de suportes documentais. Lembremos dos enormes mecanismos de geração de cópias por meio de equipamentos fotoelétricos, de fitas magnéticas, das técnicas para empreender desinfestações ou mesmos dos robôs usados para localizarem e disponibilizarem documentos em grandes depósitos “inteligentes”.

Entretanto, nenhum dos avanços tecnológicos impactou de forma tão decisiva na formação dos profissionais de arquivo quanto aqueles ligados à chamada tecnologia da informação. Na mal chamada “era da informação”, esperar-se-ia que os arquivos recebessem o reconhecimento de sua função estratégica. Afinal, o saber-fazer dos arquivistas não é senão o tratar as informações (e seus suportes) para que estas estejam preservadas e acessíveis a todos.

Mas, não é bem assim o que ocorre. Se, desde a década de 1980, a área dos arquivos parece florescer na prática e na teorização sobre os mesmos, é no âmago dessa chamada “era da informação” que se percebe aqui e ali o desprestígio ou mesmo possibilidades de retrocesso de políticas de arquivos no Brasil. É do alto de sua reconhecida competência técnica que Vanderlei dos Santos conclui em seu artigo, que as instituições vêm repetindo o comportamento dicotômico de afirmar que as informações são recursos estratégicos e, ao mesmo tempo, não investir em programas de gestão de documentos e informações, quer sejam ou não digitais.

De fato, assistir ao desempenho de um autômato ou um sistema automatizado operando costuma causar-nos espanto, sensação de estranhamento e de vulnerabilidade, ou de encantamento. Porém, isso está na base da fetichização da tecnologia no mundo atual. É necessário, no entanto, o esforço para enxergar que por detrás de todo o mecanismo há a imprescindível ação da inteligência e da mão humanas. De elaboradores e de operadores. É o que nos alerta o mesmo Vanderlei Santos: “o certo é que o fator humano é um dos principais responsáveis pelo sucesso ou pelo fracasso de qualquer mudança institucional em que precise ser considerado e, sobremaneira, na execução de políticas de gestão de documentos arquivísticos”

Tecnologia é a expressão permanente e acabada da relação do ser humano com o seu ambiente e se vincula à incessante busca pelo fim do sofrimento causado pelo esforço penoso do trabalho. Entretanto, a evidência é historicamente comprovada: a tecnologia aprisionada para atender aos interesses de uma minoria que a controla e a explora significará a aniquilação humana e não a sua libertação como muitos apregoam.

Por outro lado, a visão equivocada fundada no determinismo tecnológico obscurece o papel estruturante daqueles que detêm o poder de decisão, inclusive sobre as escolhas de equipamentos a serem usados. Conforme afirma José Carlos Vaz, em vídeo disponível nesta edição, a tecnologia é também uma construção social.

Encerro este singelo editorial com as certeiras palavras de Alicia Barnard Amozorrutia:

Para lidar com o imensurável número de dados que se encontram nos servidores das instituições, cujas características, como unicidade, suporte de uma ação ou atividade, a inter-relação com outros documentos e o valor probatório que cumprem ou o qualificam como um documento de arquivo digital, requer profissionais da arquivística, e estes ainda não têm preparo para lidar com esse ambiente, pois é fato que apenas esses profissionais sabem tratar de contextos, conhecem planos de classificação e de temporalidade documental, fatores imprescindíveis para a produção, gestão e preservação de documentos de arquivos digitais. Essa falta leva a consequências desastrosas, tanto para a prestação de contas, quanto para a transparência ou preservação desses materiais a longo prazo.[2] [tradução livre minha].

Boa leitura!

Notas

1. Marko Ampuja, A Sociedade em rede, o Cosmopolitismo e o “Sublime Digital”: reflexões sobre como a História tem sido esquecida na Teoria Social Contemporânea. Disponível em: http: / / revistaseletronicas.fiamfaam.br / index.php / recicofi / article / view / 295 / 311

2. Trecho extraído da apresentação do livro Archivos electrónicos: textos y contexto II. 1ed. Puebla: Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, 2013, v. 1, p. 111-133. Serie Formación Archivística, organizado por Alicia Barnard Amozorrutia.

Marcelo Antônio Chaves


CHAVES, Marcelo Antônio. Editorial. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano III, n.6, abril, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Arquivos e Direitos Humanos / Revista do Arquivo / 2017

Finalizo com as palavras de Santo Agostinho: “A esperança tem duas filhas queridas: a indignação e a coragem. A indignação nos ensina a recusar as coisas como estão e a coragem, a mudá-las”. Continuamos a lutar!

Margarida Genevois

No próximo ano se comemorará os 70 anos da Declaração dos Direitos Humanos proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de dezembro de 1948, que advoga uma norma comum a ser alcançada “por todos os povos e nações”. Para nós, a comemoração deve ter sentido de reflexão e debate, pois as razões que a motivaram permanecem, agregadas pelas demandas postas pelas mudanças socioculturais nesses 70 anos.

O tema direitos humanos se pretende universal, mas as abordagens possíveis são tantas quantas as possibilidades de apropriação ideológica dele. Há quem não ultrapasse a generalidade pueril que enxerga essa bandeira como um discurso acima da política e das classes sociais. Há quem defenda a prática da tortura como válida em nome da “democracia e do progresso” e que o extermínio de “bandidos” não é assunto de direitos humanos. Há outros que concebem os direitos humanos como cidadela da propriedade privada e do conceito de indivíduo genérico, portanto, não histórico, a justificar práticas de terrorismo de Estado com suas artilharias de ogivas ou de mercadorias contra povos inteiros.

Encontrar-se-ão várias nuances em torno do conceito de direitos humanos nos artigos e textos desta Revista, mas, em todos eles nota-se a adoção do conceito na perspectiva da luta contra o terror da tortura, contra a violência nua do Estado ou em defesa dos seres humanos mais vulneráveis, submetidos às mais vis crueldades, porém, sem qualquer visibilidade social. Em suma, os direitos humanos como campo de luta contra a barbárie.

De qualquer forma, tratar desse tema é sempre oportuno e necessário, afinal, continuamos a conviver com guerras regionais e com o terror da guerra total, atômica, hidrogenada e convencional. Bombardeios por Estados “democráticos”, “desenvolvidos” e “civilizados” a povos que, de alguma forma se contrapõem à lógica estrita dos impérios do capital. No mundo capitalista globalizado, permanece a massacrante concentração de renda e de riqueza nas mãos de um punhado de afortunados, geradora de misérias, de deslocamentos humanos maciços, desestruturados e até letais

Governos pelo mundo afora alimentam esse caos humanitário contemporâneo com combustível inflamável das políticas que quebram direitos econômicos e sociais duramente conquistados; restringem verbas para as atividades humanas mais elementares, como alimentação, saúde e educação, sempre em prol da acumulação financeira insaciável.

As rebeliões sangrentas nos presídios brasileiros superlotados e a persistente violência policial, com práticas de tortura, geradoras de mais violência social, são apenas expressões visíveis de uma sociedade assentada na desigualdade e na violência estruturada e institucional.

De qualquer modo, a propositura dos direitos humanos, sob quaisquer perspectivas, continua sempre atual e dependente dos arquivos, desde que foi sugerida. Como afirma Paulo Sérgio Pinheiro, “não existe avanço linear em direitos humanos, há retrocessos e progressos, é quase um jogo de xadrez”.

Não obstante a polêmica em torno das práxis e do conceito de direitos humanos, são os arquivos e os arquivistas elementos indispensáveis para se trazer à tona evidências e provas de atrocidades empreendidas por organizações estatais e civis em quaisquer partes e circunstâncias.

E esta edição da Revista do Arquivo convoca o leitor para um olhar especial sobre a luta da Comissão Teotônio Vilela como exemplo de abnegação, coragem e prática de quem não espera respostas, mas as praticam diante dos gritos de dor que ecoam de corpos e mentes destroçados sem qualquer amparo. Depois do seminário e da exposição, a nossa Revista já anima a outra vida da CTV, conforme definiu José Gregori: “Com a guarda dos documentos no Arquivo, a Comissão Teotônio Vilela começa a ter uma outra vida. Teve a vida real e agora terá a vida contada, que eu sei que os pesquisadores têm muita curiosidade de saber como foram esses anos de ditadura e sabem que a Comissão Teotônio Vilela exerceu um papel importante”.

Boa leitura!

Marcelo Antônio Chaves


CHAVES, Marcelo Antônio. Editorial. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano III, n.5, outubro, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Arquivos privados de interesse público / Revista do Arquivo / 2017

Todo arquivo é fragmento: de fatos, atividades e vidas. Todo arquivo é substrato de seleções e circunstâncias imponderáveis. Os arquivos privados de personalidades públicas impõem desafios a quem pretende organizá-los. No princípio, o caos. Amontoado de registros distantes dos seus contextos de produção, documentos sem vínculos explícitos, destituídos de sentidos: cartas românticas, um despacho burocrático, processo judicial, livros técnicos e de arte, poemas, rascunhos de discursos, recortes de jornais, referência a uma Maria… uma mecha de cabelos! Não há um político, um advogado, um fazendeiro, um esposo, ou um poeta. Há uma pessoa e muitas profundezas de vidas. Aos profissionais de arquivo cabe a missão de “colar” esses fragmentos documentais para que, por fim, se vislumbre um “rosto” inteligível, não de um homem, mas de um tempo.

Este inspirado texto de abertura da exposição “Júlio Prestes, o último presidente da República Velha: o arquivo privado de um homem público”[1], expressa em poucas palavras alguns dos desafios enfrentados pelos profissionais de arquivo diante da tarefa de dar sentido aos fragmentos documentais dos arquivos privados nas instituições de custódia.

Ao escolher o tema ARQUIVOS PRIVADOS DE INTERESSE PÚBLICO para esta edição da Revista do Arquivo, os editores chamam a atenção para a necessidade de elaboração de políticas de preservação de acervos dessa natureza no Brasil e de definições legais mais claras que regulamentem com maior eficácia as questões situadas nos interstícios das esferas do público e do privado. De acordo com Lopes & Rodrigues, as definições legais no Brasil são “pouco satisfatórias”[2]. Citando Manuel Vásquez, Sônia Troitiño sugere que “a adoção de uma política arquivística não é uma prerrogativa exclusiva do Estado, sendo igualmente passível de ser formulada por entidades de qualquer natureza ou origem”[3].

Afinal, os arquivos privados são componentes importantes para as pesquisas científicas e para a cultura em geral. Ou, nos dizeres de Oliveira, Macêdo & Sobral[4], são “produtos socioculturais que constituem referenciais para a memória coletiva e para a pesquisa histórica”. Exemplos confirmadores dessa assertiva podem ser facilmente acessados em portais eletrônicos como o do Museu de Astronomia ou o da Casa Rui Barbosa, ambos no Rio de Janeiro.

Sabemos que se trata de luta difícil se atentarmos para a dramática situação em que se encontram até mesmo arquivos públicos de todo país. Mas, há motivos para renovarmos a esperança por tempos melhores, afinal, alguns dos artigos aqui publicados situam a década de 1970 como o período em que importantes iniciativas acontecem no Brasil em relação à preservação de arquivos privados. De lá para cá já não são poucas as experiências de sucesso que viraram referências para nós: podemos citar o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB / USP); o Centro de Documentação e Memória da UNESP (CEDEM / UNESP), a Fundação Casa de Ruy Barbosa, o Museu de Astronomia, a Fundação Fernando Henrique Cardoso e o próprio acervo do APESP, que cresceu nos últimos 20 anos, fato corroborado pelo artigo de Márcia Pazin[5]. Isso só para citarmos as instituições que nesta edição da Revista se fazem representar por meio de seus articulistas.

Além do mais, também nos alentam os impulsos às políticas de arquivos com os visíveis impactos positivos para esta causa a partir da implementação de dispositivos decorrentes da Lei 12.527 / 2011, que tem acionado instâncias do judiciário e de órgãos de controle, além de tribunais de conta.[6] Assim, esperamos que essa boa onda que estimula a criação e organização dos arquivos públicos, em várias esferas, também sensibilizem gestores públicos e privados para a importância dos arquivos privados de interesse público. Para o bem da ciência e da construção da nossa história.

Notas

1. Essa exposição esteve em cartaz no Arquivo Público do Estado de São Paulo, no período de 05 de abril a 17 de junho de 2016. Edição virtual dessa exposição pode ser acessada no site do APESP: http: / / www.arquivoestado.sp.gov.br / exposicao_julioprestes

2. Ver artigo Os arquivos privados na legislação brasileira: do anteprojeto da Lei de Arquivos às regulamentações nesta edição

3. Ver artigo De interesse público: política de aquisição de acervos como instrumento de preservação de documentos nesta edição

4. Ver artigo Arquivos pessoais e intimidade: da aquisição ao acesso nesta edição

5. Ver artigo Acervos Privados no Arquivo Público do Estado de São Paulo: uma visão sobre os fundos institucionais nesta edição

6. O Departamento de Gestão do Sistema de Arquivos do Estado de São Paulo (DGSAESP) acumula muitas experiências que confirmam essa expectativa. Consultar: http: / / www.arquivoestado.sp.gov.br / site / gestao

Marcelo Antônio Chaves


CHAVES, Marcelo Antônio. Editorial. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano II, n.4, março, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Gestão documental. Sistemas de arquivos: os desafios da implementação / Revista do Arquivo / 2016

FAZER GESTÃO É PRESERVAR!

Gestão e Preservação. Nos vocabulários que permeiam textos, ambientes de debates e conversas que reúnem profissionais vinculados aos Arquivos, quase sempre essas duas palavras aparecem agarradinhas a circular como se fossem duas irmãs gêmeas que devem caminhar sempre de mãos dadas pelas praças para demonstrar a indissociabilidade da família arquivística. União, aliás, que aparece consagrada em conceitos e leis.

Mas, quem convive próximo a essa família, sabe muito bem que essa aparente união muitas vezes esconde conflitos que só quem os vivencia pode falar com propriedade sobre as chagas causadas por disputas renhidas entre esses pares.

Claro, preservação é a palavra-chave explicativa que brota quase que naturalmente de realidades em que os arquivos se assemelham aos museus que guardam todo o charme erudito de tudo aquilo que sobreviveu do passado, sabe-se lá como e por quê. E é essa, ainda, a realidade em grande parte das praças pelo Brasil a fora. Já a irmã gestão aparenta um enxerto relativamente recente que deu ares de novo e moderno a um instituto que oscila entre o charmoso e o démodé.

Entretanto, a forma como as duas palavras são associadas para definir essencialidades dos arquivos é tão artificial que chega a torná-las incongruentes. Senão, vejamos como o nosso Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística define o termo Gestão de Documentos:

Conjunto de procedimentos e operações técnicas referentes à produção, tramitação, uso, avaliação e arquivamento de documentos em fase corrente e intermediária, visando a [sic] sua eliminação ou recolhimento. Também chamado administração de documentos.[1]

Ou seja, entende-se por gestão de documentos um conjunto de práticas que só valem para os arquivos corrente e intermediário. Supõe-se, portanto, que daí pra frente, se faz outra coisa! Essa abordagem é replicada em boa parte dos textos que definem a missão de instituições arquivísticas.

Porém, essa formulação com esse sentido dissociado dado ao par, como se um polo fosse continuidade do outro, aqui termina um e ali começa o outro, não resiste à mínima avaliação crítica. Então, o que explica essa renitência? Talvez, necessidade (injustificada) de se delimitar, com grossas marcas, territórios e afazeres.
No entanto, não obstante a inconsistência conceitual, a legislação e os organogramas político-administrativo dos arquivos (e até as pautas das nossas revistas) resistem de forma ainda quase absoluta, afinal, elas são artifícios funcionais que podem aplacar contendas políticas e várias de suas resultantes, entre elas até disputa de verbas.

Fazer gestão é preservar. Só se preserva se se fizer gestão. Gestão e preservação buscam o mesmo fim: proporcionar o acesso. Em arquivo, preservar é muito mais que higienizar e restaurar, é manter organização e contexto. O pensar filosófico nos fornece bons e eficientes raciocínios capazes de estabelecer relações entre pares. Nós dos arquivos não podemos nos eximir desse pensar.

Certo é que ainda estamos longe de raspar de vez esse verniz que a um concede ar de administração e a outro um suspiro de história. Nosso olhar está viciado. Não sem razões, pois essa esfera conceitual ainda possui base material. Porém, o nervo central do que se convenciona chamar de gestão documental, a avaliação, não é senão a mais eficiente e espetacular forma de preservação dos documentos.

De nossa parte, temos que fazer da comemoração de mais um ano do Sistema de Arquivos, neste outubro, uma motivação na luta pela manutenção de um arquivo uno e integrado, que atue sistemicamente, sem essa dissociação que o descaracteriza.

De fato, o arquivo possui uma dimensão que desperta fascínio erudito tão bem traduzido por Arlette Farge no seu Sabor do Arquivo.[2] Mas, convenhamos, o arquivo é muito mais! Confundi-lo com uma de suas dimensões (panteão de documentos “históricos”) pode ser charmoso, mas o apequena. O universo da gestão documental, hoje por sua íntima vinculação à administração, pode não possuir o charme destilado por autores como a própria Farge, mas é atividade complexa que requer grande esforço intelectual e que tem seus encantos.

Enquanto não tornamos essa falsa dicotomia em discussão estéril (porque desnecessária), é com muito prazer que apresentamos esta revista (ainda com vestígios do insuperado) com o tema Gestão Documental. Sistemas de Arquivo: os desafios da implementação.

BOA LEITURA (E NÃO ABRAM MÃO DA CRÍTICA)!

Notas

1. Acessível: http: / / www.arquivonacional.gov.br / images / pdf / Dicion_Term_Arquiv.pd

2. FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009. Para ler a resenha de José Maria Jardim, acessar Ponto de Acesso, Revista do Instituto de Ciência da Informação, da Universidade Federal da Bahia, volume 5, nº 1 (2011) http: / / www.portalseer.ufba.br / index.php / revistaici / issue / view / 554

Marcelo Antônio Chaves


CHAVES, Marcelo Antônio. Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano II, n.3, outubro, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Comissões da verdade e os arquivos dos porões à luz do acesso / Revista do Arquivo / 2016

É destas dores que trata este livro. É desta triste história que nos falam estas páginas marcadas de sangue e dor.

Paulo Evaristo Arns

Arquivos para quê?

O arquivista francês Bruno Delmas publicou instigante livro com esse título, onde ele cita fato ocorrido em 1976, quando a Secretária de Estado da Cultura da França reuniu seus diretores para apresentações rotineiras e indaga ao diretor geral do Arquivo da França: “Senhor diretor geral, arquivos servem para quê?”.

O livro de Delmas, aqui recomendado à leitura, é todo ele uma resposta contundente e convincente à questão levantada no título deste editorial. Não obstante, a inexistência e invisibilidade dos arquivos é fato ainda muito longe de ser superado, o que nos força a nunca parar de elaborar respostas, em todo tempo, em todo lugar.

Este número 2 da Revista do Arquivo vem aumentar o repertório de respostas à questão “arquivos para quê?”. E a resposta se inicia com outra questão: o que seria das comissões da verdade sem os arquivos? Sim, porque a disputa pela verdade, justiça e reparação no Brasil ganhou novo capítulo com a instalação da Comissão Nacional da Verdade em maio de 2012 e a publicação de vários relatórios conclusivos (mas provisórios) entre 2014 e 2015. Durante esse período, vários arquivos no Brasil foram (re)visitados por um novo perfil de pesquisadores, muitos dos quais nunca haviam experimentado a pesquisa numa instituição de custódia.

O arquivo do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS), que compõe o acervo do APESP, foi consultado como nunca. O movimento de pesquisa nele triplicou em decorrência da instalação das Comissões da Verdade. Essa demanda não ocorreu apenas no arquivo do DEOPS, mas também no de processos administrativos da esfera estadual, no de livros do Instituto Médico Legal e no de jornais.

Nos dois últimos anos, o Arquivo Público do Estado de São Paulo se notabilizou pela recepção e atendimento especial a operários, estudantes, professores e trabalhadores em geral que buscaram documentos, seja respondendo a demandas das comissões, seja para atender aos casos específicos de cidadãos que foram vítimas do Estado no período de ditadura militar.

Aliás, essa ditadura que está sempre a gerar debates controversos e que não podem ser considerados ultrapassados, pois se trata de um passado que teima em não passar. Lamentavelmente, a ditadura não é assunto encerrado.

Além do mais, arquivo não guarda apenas “documentos do passado”. O arquivo do DEOPS, por exemplo, guarda documentos que os arquivistas chamam de correntes, pois esses documentos ainda mantêm a sua função primária, que é a função de prova. Portanto, documentos do passado podem ser “históricos” e correntes, a um só tempo.

Por esse motivo, os editores da Revista do Arquivo optaram por dedicar a sua primeira publicação de 2016 ao tema dos arquivos na busca pela revelação da verdade. Não poderia ser diferente, afinal, este mesmo Arquivo teve seu papel reconhecido como protagonista, há 22 anos, quando recolheu e abriu o arquivo do DEOPS para toda sociedade, demonstrando gesto pioneiro, de coragem e compromisso com a nossa democracia.

A pequena equipe de Editoria do APESP realizou enorme esforço para produzir uma revista de qualidade, prezando pelo aprofundamento em torno dos sensíveis temas abordados. Agradecemos à inestimável colaboração dos profissionais do Arquivo, mas, principalmente àqueles que nos ajudaram a produzir esta revista com seus artigos e entrevistas.

Marcelo Antônio Chaves


CHAVES, Marcelo Antônio. Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano I, n.2, abril, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Morgado de Mateus / Revista do Arquivo / 2015

É com imensa satisfação que publicamos o número 1 da Revista do Arquivo, inaugurando nova fase do periódico institucional, por razões que estão explícitas no editorial da derradeira edição da Revista Histórica, nº 63.

Revista do Arquivo será instrumento de difusão do precioso e dinâmico acervo do APESP acumulado ao longo dos séculos de história custodial. Mais que isso, a Revista se propõe a difundir a política de gestão documental praticada de forma sistêmica e integrada, no âmbito do estado de São Paulo e também as atividades e conhecimentos produzidos pelos servidores da instituição.

As atividades de difusão do conjunto documental da Secretaria de Governo produzido no período colonial, ocorridas neste ano, que tiveram como mote a comemoração dos 250 anos do início do governo do Morgado de Mateus em São Paulo, se constituem no fio condutor temático desta edição, conjunto documental este que acabou de ser nominado para o título de ‘Patrimônio da Humanidade’, pelo programa Memória do Mundo da UNESCO.

O universo dos arquivos é fascinante e plural, fonte inesgotável para renovação e produção de conhecimentos nas mais variadas direções e inspirações intelectuais. Por isso, convidamos o leitor a percorrer as páginas desta obra (re)inaugural e estabelecer o diálogo com temas e autores que exploram as riquezas recônditas dos documentos que compõem o nosso acervo; e, além disso, desvelar alguns dos conhecimentos que envolvem os complexos trabalhos de bastidores de uma Instituição como o Arquivo.

Izaias José de Santana

 


SANTANA, Izaias Jose de. Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano I, n.1, outubro, 2015. Acessar publicação original [DR]

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