A imaginação educada – FRYE (RM)

FRYE, Herman Northrop. A imaginação educada.  Tradução de Adriel Teixeira, Bruno Geraidini e Cristiano Gomes. [Sn]: 2017. Resenha de: SILVA, André Luiz Silveira da; KARLO-GOMES, Geam.  Revista Memorare, Tubarão, v. 7, n. 1, jan./jun. 2020, p. 239-242.

Educar ou não a imaginação? Essa é uma das principais questões suscitadas por Herman Northrop Frye, crítico literário canadense de Quebéc, em A imaginação educada, obra que recebeu sua primeira tradução em português em 2017 por Adriel Teixeira, Bruno Geraidini e Cristiano Gomes.

Em seis capítulos, resultantes da transcrição de seis palestras originárias de um programa de rádio canadense na década de 1960, A imaginação educada se torna fortuna crítica para pensar o papel da literatura e da imaginação. Em seu escopo, desenvolve-se o olhar para a importância, papel, função e lugar da literatura e da imaginação na sociedade e na formação do ser humano crítico. E aponta ainda caminhos para uma educação da imaginação e formação crítica do leitor em tempos de popularização da educação.

Por meio de referências, metáforas e paráfrases, o autor busca construir sua tese: o mito e as imagens literárias dão forma, desde sua gênese, a todas as estruturas construídas por meio de palavras.

Para isso, Frye recorre sempre às grandes obras de consagrados poetas e romancistas e enfatiza a relevância do domínio da língua materna para a efetiva interação e troca de saberes. Tal pensamento se aproxima da tópica da pedagogia do imaginário, onde a imaginação mitológica é concebida como cosmos e a natureza se homo symbolicus estar no mundo num registro de demiurgia e de canto […] onde se perfila, se manifesta, se ultrapassa e se lê a nossa i Por meio dessa perspectiva, Frye desenvolve um método crítico de análise de obras literárias que se assemelha a uma investigação comparada destas produções; a ponto de revelar narrativas inspiradas na Bíblia e em obras clássicas ocidentais. Para ele, essas narrativas remontam o imaginário muito sua, tão absurda e impossível quanto a magia primitiva que ela p.69). Por isso, esse crítico se engaja em defesa do estudo da literatura, do ato de ler, falar e escrever, bem como, da educação da imaginação como forma de autoproteção do indivíduo e resistência às ltura de massa; educação que servirá para manutenção do homem na sociedade livre e que pode se tornar base para (re) formular as críticas frente às relações sociais e reações emocionais.

Nos primeiros capítulos, o autor nos apresenta a função social da literatura, defendendo que ela serve para mediar o mundo não humano e a nossa necessidade de humanizá-lo: dar nome às coisas, intelecto e emoção, na relação entre o mundo em que vivemos e o mundo que desejamos viver. Ela surge então como meio de expressão para os sentimentos que não conseguimos demonstrar somente dá uma experiência que nos estende verticalmente até as grandes alturas e as grandes profundezas do que a mente humana é capaz de conceber; até aquilo que corresponde aos conceitos religiosos de Céu Em capítulo posterior, o autor ainda distingue ciência e arte, explicando que a primeira surge do mundo, na maneira como ela se manifesta, enquanto a segunda se constitui de um mundo que queremos ter e explicar. A ciência cria uma construção mental por meio de um esquema que nos possibilita interpretar a experiência vivida. Já a arte, parte do mundo que construímos e não do mundo que vemos, seguindo da imaginação à experiência comum, buscando se construir tão verossímil quanto possível. Nesse ponto, o autor trata da relação sujeito-objeto-conhecimento e o papel da imaginação nessa construção, fundamental para relação e assimilação dos objetos socioculturais, palavras, sentimentos, esquemas e valores a eles atribuídos.

Em trechos de outra palestra, Frye comenta que há três linguagens que se interseccionam: a linguagem da conversa corriqueira, a linguagem do senso prático e a linguagem da imaginação. Ele ressalta que, por mais primitiva que seja a cultura, há nela uma linguagem, uma literatura. Para defender isso, o autor referenda constantemente o papel da imaginação como parte da tessitura essencial do ser humano. Para esse crítico, a imaginação não conseguiria operar em um mundo totalmente prático, pois haveria a necessidade de elaboração das imagens e sentimentos. Nesse sentido, uma maneira de expressá-los é a literatura tecida com a imaginação. Daí a necessidade e o parte, somos também parte do que conhecemos. O desejo de voar produziu o avião, mas não entramos afirmação conduz a seguinte reflexão: por meio da literatura, nós podemos apreender e criar, capacidades intrínsecas às nossas narrativas conscientes e inconscientes.

No todo, as percepções de Frye, diretas ou nas entrelinhas, são perspicazes. Como crítico literário, ressalta que o escritor imita muito a literatura a qual teve contato. Por isso, na criação poética, na imagística, o escritor absorve um aglomerado de mitos, o folclore e narrativas bíblicas, por meio de uma nova indumentária; podendo se manifestar em meio a diversos gêneros: tragédia, comédia, sátira, romance, entre muitos outros gêneros.

No que se refere ao tópico educacional constituinte do título da obra, o autor questiona o imortalizadas por escritores, comenta Frye. No decorrer dessas incursões, ele conceitua imaginário, ficção, mito e discorda da visão distorcida que se propaga quanto ao conceito de irrealidade (como sinônimo de mentira), provido do senso comum. Segundo Frye, o escritor usa uma imagem ou objeto do mundo ao seu redor e o transforma em símbolo, assumindo influência no contexto social. É nesse panorama em que a formação de uma mente imaginativa bem treinada se torna essencial para não – estabelecidas a serviços sociais de manutenção de um status quo.

No aparato para uma educação da imaginação, Frye defende que o incentivo à leitura da bíblia e as mitologias clássicas gregas deve ocorrer ainda na infância. Esse conjunto abarca praticamente todo o universo mítico e constructos sociais que ultrapassaram gerações e que são recontados sempre de novas maneiras. Nisso, o autor prossegue sugerindo uma estruturação de leituras e alerta que nada pode ser imperativo ou impositivo, apenas direcionado, respeitando os gostos e intenções de crianças e jovens.

Sobre a humana. E ressalta a habilidade que deve ter o professor com a formação literária ampla para conduzir todo esse direcionamento. Essa dimensão também nos aproxima ainda mais de uma pedagogia do imaginário. Nesse sentido, como afirma Teixeira, é por meio da metáfora que o ser humano adentra – p. 224).

Nos últimos capítulos surgem diversos questionamentos sobre a sociedade e a cultura. Para isso, Frye alerta o leitor com relação às traduções e a provável perda dos reais sentidos e significados das palavras. Ele acredita que a leitura na língua original e o estudo de outros idiomas são extremamente benéficos aos escritores, consumidores e críticos, pois, por meio deles, entramos em contato com outras estruturas gramaticais, construções e associações imagéticas das culturas escolhidas. O que também pode conduzir para uma nova forma de construção e reconstrução do conhecimento, que deverá extrapolar a visão fragmentada disciplinar do conhecimento.

No conjunto, A imaginação Educada não responde a todas as questões que se propõe, mas busca despertar o leitor para muitas indagações sobre a imaginação por meio da literatura. Ainda que concebida décadas atrás e voltada ao público de língua franco-anglófona, a obra ultrapassa tempo e espaço e se faz atual suscitando questionamentos sobre nossa condição de seres sociais, responsáveis por construir o conhecimento a ser perpetuado. Propositalmente, Frye nos alerta para a crítica do mundo, a fim de que nos posicionemos com liberdade de pensamentos; e que essa formação contribua para a er humano.

Referências

DUBORGEL, Bruno. Imaginário e Pedagogia. Brasil: Instituto Piaget, 1995.

FRYE, Northrop. A imaginação educada. Trad. Adriel Teixeira, Bruno Geraidini e Cristiano Gomes. Campinas, SP: Vide Edtorial, 2017.

TEIXEIRA, Maria Cecília Sanchez. Pedagogia do imaginário e função imaginante: redefinindo o sentido da educação. Olhar de professor, Ponta Grossa, v. 9, n.2, p. 215-227, 2006. Disponível:http://www.revistas2.uepg.br/index.php/olhardeprofessor/article/view/1461. Acesso em 19. maio. 2019.

Notas

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Brasil (CAPES) Código de Financiamento 001.

André Luiz Silveira da Silva – Graduado em Geografia. Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, Brasil. Graduação em andamento em Pedagogia. Universidade de Pernambuco, UPE, Brasil. E-mail: [email protected].

Geam Karlo-Gomes – Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade (UEPB). Professor do Programa de Pós- Graduação em Formação de Professores e Práticas Interdisciplinares (PPGFPPI), da Universidade de Pernambuco. Líder do ITESI – Grupo de Pesquisa Itinerários Interdisciplinares em Estudos Sobre o Imaginário. E-mail: [email protected].

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Diferença e descobrimento: o que é o imaginário? – SILVA (RM)

SILVA, Juremir Machado da. Diferença e descobrimento: o que é o imaginário? A hipótese do excedente de significação. [Sn]: 2017.  Resenha de: MACHADO, Anderson dos Santos. As camadas na floresta do simbólico: uma leitura do livro “Diferença e descobrimento: o que é o imaginário? A hipótese do excedente de significação”. Revista Memorare, Tubarão, v.4, n. 2 esp. dossiê I, maio/ago. 2017, p.192-200.

Se em As Tecnologias do Imaginário, Silva (2012) debate a construção do imaginário como um fenômeno tecnológico e nos apresenta ferramentas para o trabalho metodológico, com abordagens da sociologia compreensiva para a produção de sentidos na sociedade contemporânea, no livro Diferença e Descobrimento: o que é o imaginário? A hipótese do Excedente de Significação (Silva, 2017), nos fala sobre a natureza dessa dimensão do real e como a própria realidade se configura como imaginário. Trata daquilo que sobra, do que transborda do real cristalizado em significado e objetividade. O autor aborda que é dessa diferença, dessa saliência que sobrepõe ao esperado que o imaginário opera, seja pelo sonho, pela ideia, pelos ideais, pelas representações. Silva nos convida neste novo livro a reconhecer as diferentes possibilidades de sentidos e usos do conceito de imaginário e como elas oferecem leituras interessantes sobre o (s) mundo (s), sempre nos provocando com afirmações certeiras, mas que mexem com nossas convicções e nos instigam a descortinar esse campo. No resgate de uma de suas crônicas, Silva relembra a indagação de um aluno no corredor da faculdade: “- Professor, afinal, o que é o imaginário? ”. A resposta foi: “- Uma floresta encantada” (Silva, 2017).

O estudante, que esperava uma carona, saiu correndo, atônito, sem ouvir o complemento da instigante resposta. Essa obra (Silva, 2017) vem nos contemplar com a visão do pesquisador sobre o tema e nos provoca a adentrar nesse bosque rico de sentidos, signos, significantes e significados, denso pela variedade de estruturas simbólicas, em imagens, palavras e símbolos, que constituem a fauna e a flora desse terreno a ser explorado. Silva nos alerta com sua resposta que este é um cenário denso, múltiplo e que não conseguimos enxergar por inteiro num primeiro olhar (ou vislumbramos do alto a copa das árvores sem observar a riqueza de suas entranhas, ou nos detemos na beleza de uma de suas clareiras sem a garantia de mensurarmos a imensidão dessa floresta). O imaginário é o que escapa, é o excedente.

Silva nos sugere que o imaginário deve ser analisado como uma pátina, técnica de pintura que sobrepõe diferentes camadas de tintas e materiais usados, criando um efeito que traz para a superfície o que está encoberto sem, contudo, revelá-lo por completo. O diferencial desse recurso está em criar uma composição única, singular, na qual é necessário recorrer a técnicas de arqueologia para resgatar as diferentes fases, suas histórias que emergem para a borda.
Ao longo do texto, vai descortinando o imaginário com afirmações firmes que vão rasgando a densidade de cada camada de tinta que vai sendo revelada. Mas pela natureza do imaginário, o contraste em cada uma dessas camadas vai compondo diferentes texturas que não se fecham numa única versão. Ao contrário, mostram uma tendência a inspirar novas possibilidades de olhar. Silva nos diz que o sentido, então, só se dá no imaginário, que rompe com o dique do bom senso daquilo que já aceito.

O excedente é o que aparece na noite obscura da floresta simbólica da resposta dada ao aluno, onde a névoa dispersa a visão objetiva, mas abre flanco para a imaginação, para a fantasia, numa aventura inesperada na criação de mundos, lendas, mitos e verdades que se constroem nas narrativas. Abre espaço para construções que se apresentam como incontestáveis na visão do narrador. Cabe diferenciar imaginação de imaginário:

Há imaginação no imaginário. Nem sempre há imaginário na imaginação. A imaginação não tem compromisso com o real. O imaginário depende de um real – o ocorrido – a ser transfigurado. Todo imaginário é real. Todo real é imaginário. Salvo aquele que perdeu o significado. (Silva, 2017, p. 75).

Nos fala dos paradoxos desse imaginário, que por sua capacidade de definição do indefinível, vai criando rastros de imaginação que se disseminam na teia do cotidiano, criando tramas, redes, bifurcações que vão rompendo com as convicções e pretensiosas firmezas da objetividade do rigor científico. Mostra que mesmo a convicção dos positivistas está imbricada num imaginário que dialoga com a subjetividade, com a esperança do resultado, com as narrativas de suas produções, que muitas vezes superam a realidade nua de suas práticas. “A racionalidade mostra-se irracional pela sua incapacidade de aceitar e compreender os simbolismos que pontuam a existência e dão-lhe significado e grandeza” (Silva, 2017, p. 36).

Seria esse imaginário apenas relacionado com a fantasia, com o mito, com os monstros e criaturas absurdas que povoam a noite desse lugar insólito? Não. Silva nos fala que, assim como a ciência, o jornalismo também se apresenta na busca de catalogar assepticamente, à luz do dia, o real, crendo que, mesmo se deparando com rastros, não reconhece os seres que habitam as entranhas desse cenário. Mas esquecem os jornalistas que, para fazer essa afirmação, é necessário circular nessa mata. E com isso, Silva traz a angústia de apostar no real como distinto do imaginário. E percorrendo inúmeros pensadores, vem colocando as diferentes possibilidades de pensar a realidade e o que imaginamos ser essa realidade. Antes de tudo, afirma:

Só há imaginário na medida em que existe um real. O imaginário funciona com um acréscimo do real, não podendo prescindir dele. O que é o real? O existente sem significação atribuída pelo imaginário. […] O imaginário é o sentido que redimensiona o fato sem que se possa anulá-lo por iluminação. (Silva, 2017, p. 25).

E o que pode ser então esse imaginário? Silva chama outros desbravadores desse campo, bandeirantes que tentam demarcar esse território sinuoso. Vão avançando sobre as inúmeras camadas de sentido que alimentam ecossistemas próprios que reconfiguram o cotidiano para a produção de imaginação: uma aura, uma atmosfera.

Em contraponto, o real é equiparado à depressão, onde o deprimido preocupa-se apenas com os fatos, os resultados, com o que é palpável, ainda que pela razão. O ser do imaginário, ao contrário, divaga, se põe a postos para a batalha, cria histórias de guerra e enredos que vislumbram uma epopeia. No devaneio, brilha o encantamento com o mundo: a capacidade humana de dar luz por meio da atribuição de sentidos.

O imaginário tem a infância (e sua eterna recorrência) com um solo fértil onde esse imaginário ganha colorido, é copulativo, inseminador, orgiástico, barroco e hedonista. A criança valoriza a riqueza e a variedade. Ficar velho é render-se ao real, que conforma, que informa, é replicador, copiador, formatador. O adulto busca na arte e no devaneio, como na poética de Bachelard (1996), para recuperar a super-realidade da infância que lhe é negada. E quando o real se torna saturado, esgotado, sacrificado, não há mais imaginário: cai em depressão, a “doença do imaginário”, que se instala quando este “já não comunica, não produz calor, quando a comunicação, reduzida a uma troca de informações, perde sua função de cola social” (Silva, 2017, p. 78).

E diante do duelo que não parece ter fim, o autor denuncia que há um crime: “O imaginário, de certa maneira, sempre mata o real. Mata-o por transfiguração” (Silva, 2017, p. 22). Constatado o óbito, ainda que simbólico, cabe nos atentar sobre a diferença do imaginário para com a subjetividade. O imaginário opera como subjetividade aplicada, consumada. Decorrência que abala os pilares importantes para a ética no jornalismo: neutralidade, objetividade, imparcialidade e isenção – são essas possíveis de serem atingidas sem a dimensão da subjetividade? Um exercício racional dessas premissas não estaria sendo um imaginário das práticas da comunicação?

E a ideologia, prescritiva e que busca a reprodução do estado das coisas para Althusser (1992), onde toda representação ideológica seria imaginária do mundo real, resultaria numa deformação imaginária da representação ideológica do mundo real. Não seria, então, a ideologia uma forma de encobrimento do real, que condiciona o olhar? O imaginário revela, a ideologia esconde para impedir o descobrimento. A repetição, a cultura e a reprodução são cúmplices de um real abalroado, é aquilo que desertifica e mata o imaginário, agora vítima de outro crime, esse de forma lenta.

Estas “mortes”, porém, não se consumam por completo, pois esse imaginário, sempre paradoxal, põe limites ao real, sem eliminá-lo. Então, o imaginário é falso, fictício, ilusório? Não. Silva diz que é uma mitologia concretizada, que depende do real. “Só há imaginário na medida em que o real é possível e passível de distorção” (Silva, 2017, p. 38). Quem mergulha no imaginário faz um contrato com essa narrativa, passa a aceitá-la como plausível e possível, mesmo na sua impossibilidade e irracionalidade. Ela precisa fazer sentido, ser lógica.

Ninguém, no entanto, escolhe um imaginário. “Há um encontro, uma construção, uma descoberta, uma luz” (Silva, 2017, p. 42). Ainda que essa verdade discursiva seja, como disse Nietzsche (2008), uma ilusão que esqueceu de ser o que é, metáfora que perdeu sua força sensível pelo uso excessivo, uma convenção consolidada: uma mentira coletiva que a todos se torna obrigatória.

Na busca de entender essa contraposição entre realidade e imaginário, Silva vai trocando as lentes do binóculo para contemplar a paisagem. E se depara com o hiper-real (Baudrillard, 1991), a realidade transfigurada pelo sentido, e que é reconhecida por Lacan (1974/1975) como sendo o nascimento do ego, instância psíquica constitutiva e estruturante da subjetividade. Gilbert Durand (1999; 2001) e Michel Maffesoli (2008) veem o imaginário como acontecimento cheio de símbolos, imagens e afetos que canalizam a subjetividade para lagos sensíveis.

É o imaginário também visto como surreal, quando se exprime na fantasia, na loucura criativa das artes, que exaltam o belo e o maravilhoso para Breton (1985), no devir de Deleuze (1974), que buscam valorizar no vivido a crença de um real que remodela a precariedade da “vida real”, obstruída pela educação dos sentidos e pela opacidade utilitária.

Estaria ainda o imaginário no super-real, dimensão fantástica do real, uma lente poderosa de aumento, que transfigura, desfoca e deforma o cotidiano, gerando “caricaturas” com traços exagerados sobre o real, que leva a “uma vivência emocionalmente profunda que, como num passe de mágica, faz um pacto com a credibilidade” (Silva, 2017, p. 61). Esse super-real não seria contemplado apenas pelos artistas, mas compartilhado no cotidiano em nossos hobbies, jogos, aventuras e todas as espécies de devaneios que colocam na berlinda a conversão do imaginário em mercadoria pelas tecnologias de produção simbólica da sociedade urbanizada pós-industrial.

Silva nos fala até de um direito ao imaginário, como uma necessidade social, de constituir heróis e estrelas que tornam o real suportável. E também uma necessidade biológica do ser humano de buscar o devaneio, como aquilo que dá sentido à vida.

[…] o real é a prosa, o imaginário é a poesia do cotidiano. O real expressa o céu cinzento, enquanto o imaginário transforma as nuvens em utopia. […] que se acrescenta inconscientemente ao acontecido, mas que se torna, depois de fixado, a única consciência possível do existente (Silva, 2017, p. 58).

Na discussão sobre o documentário, o jornalismo e a história, nos traz a ficção como forma de representar o real e dos limites para o imaginário. Trata da natureza da ficção, que por ser inventada: existe, mas é irreal, sendo um real irreal. Uma dramatização num documentário ou reportagem pode recriar uma realidade, mas não é capaz de dramatizar algo que não existiu. A ficção depende – então – da realidade, do ocorrido, do fato.

A ficção não tem limites. Nem mesmo o da verossimilhança. O verossímil pode ser fictício. O imaginário é sempre verdadeiro. […] está ligado a um real que, embora sempre alterado pela subjetivação do olhar que reconstitui o ocorrido, recusa o procedimento da invenção absoluta. (Silva, 2017, p. 69).

Mesmo o realismo fantástico, em autores como Balzac (1954), Kafka (1986) e García-Marques (1974), suas narrativas conservam um fio com a realidade, que faz o excedente de realidade mostrar-se, potencializando muito de seus efeitos de reflexão sobre o real.

Das seis fases da bacia semântica de Durand (1999), que remetem à figura das águas para vislumbrar a formação simbólica do imaginário (escoamentos, divisão das águas, confluências, o nome do rio, organização dos rios, esgotamento dos deltas), Silva (2017), propõe nove etapas do imaginário como recobrimento do banal (vazamento, infiltração, acumulação, evocação, transbordamento, deformação, transfiguração, metáfora, derretimento/evaporação), na qual sugere momentos importantes de análise da produção do imaginário.

Da mesma forma, também questiona se o imaginário pode ser um agenciamento das ideias, a partir das pautas impostas pelo agenda-setting (Mc Combs e Shaw in Hohlfeldt, 1997) (acumulação, consonância, centralidade, tematização, saliência, focalização) e questiona o agendamento de bens simbólicos:
O desejo do consumidor costuma coincidir estranhamente com o desejo do produtor e fornecedor de objetos a consumir. Só se deseja o que se deve ser desejado. A agenda do consumo não produz negação. Um imaginário? (Silva, 2017, p. 95).

O imaginário se comportaria como um agendamento involuntário que se consumou temporariamente. Um transbordamento que se agendou para ser alcançado no momento de onipresença midiática e social.

Silva faz ainda considerações sobre o imaginário e a história e a produção de narrativas, lendas e das fragilidades do pensamento jornalístico (que, por vezes, se contenta com o comentário e não com a investigação) e científico (que se detém a uma verdade objetiva superior, respaldada pelos pares). Nessa reflexão sobre essas duas formas de registro da realidade, que possuem conjuntos de regras codificadas que remetem à produção dos dados.

O imaginário opera no campo do discurso, do saber, do poder. O imaginário é reservatório de experiências e motor de ações significativas, que geram uma “pro-vocação”, modo específico de descobrimento das vocações, um vínculo, um pertencimento, um compartilhar. A vocação do homem é o imaginário, afirma Silva (2017), “arranca o ser da banalidade e, pelo bem ou pelo mal, pelo sublime ou pelo hediondo, dissemina significados que não podem ser apagados com toda prosa do cotidiano” (p. 108).

Também está o imaginário no recobrimento e no depósito de material significativo do terreno fértil, está onde há saturação, acúmulo, no que se sobrepõe e no que gera saliência. O imaginário está na surpresa diante do que está a ser descoberto na passagem da aldeia para a cidade natal e desta para a metrópole. É o deslumbramento da novidade, que gradativamente vai se perdendo pelo costume, até se deparar com a fantasia de encontrar um lugar maior que o quintal que estávamos acostumados a trilhar.

Silva segue questionando o imaginário a partir da produção de sentidos, no jogo da linguagem, como sugere Wittgenstein (1987) e na produção da interpretação dos acontecimentos para Deleuze (1974) que sugere cercar o imaginário pelo excesso, uma erupção da lava simbólica dos acontecimentos. Silva também contrapõe a interpretação (dialógico entre duas partes) da compreensão (reconhecimento do outro que surpreende, atrai e fascina) e da explicação (descrição do outro). Fala do descobrimento como forma de trazer à tona sentidos encobertos, por meio de inúmeros pares intercambiáveis como memória no esquecimento, sentido na ausência, luz e obscuridade, obsessão e encantamento, diferença e repetição, entre tantos outros.

De toda forma, nos faz perceber que, depois de tiranias realistas, também há o temor quanto aos imaginários tirânicos, à imposição de imaginários que suplantam o real e nos (i) mobilizam coletivamente. O imaginário também pode se impor como autoritário, ditatorial, fascista, constrangedor. Silva nos revela que ninguém é autor do seu imaginário na escrita autobiográfica: o imaginário se impõe ao imaginante como um texto extraído de suas vivências, onde não há autonomia deste imaginante. “Ninguém pode rejeitar o imaginário, nem se negar ao imaginário. O imaginário é uma submissão” (Silva, 2017, p. 167-168).

Navegar no imaginário é sempre uma aventura, nos garante o autor. Faz-se necessário adentrar ao bosque encantado e explorar o que transborda desse simbólico. O imaginário como instância do real, se faz presente. Negá-lo não deixa de constituir também um imaginário.
A obra que aqui analisamos traz reflexões que não se esgotam. Certamente não era essa a intenção do autor, por mais criteriosa e densa que tenha sido sua pesquisa. Mas ao desdobrar suas reflexões, ele respeita a natureza do objeto em análise. O imaginário é…

Na resposta cabem outras possibilidades que excedem os significados apontados em seu texto. O que não se pode negar é a contribuição relevante do autor para problematizar o imaginário com essa roupagem instigante de um excedente, pela diferença e pelo descobrimento, nas inúmeras camadas de sentidos que podemos ir raspando do real que nos é possível escavar.

Referências

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Anderson dos Santos Machado –  Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Porto Alegre, RS, Brasil. Doutorando em Comunicação pela PUCRS. E-mail: [email protected]

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