Raízes do conservadorismo brasileiro: a abolição na imprensa e no imaginário social | Juremir Machado da Silva

Em linguagem ágil, narrativa vertiginosa, Juremir Machado da Silva, em 38 capítulos, leva o leitor às páginas de jornais que interpretavam os significados dados por autores de notícias acerca do dia da abolição definitiva da escravidão no Brasil, e também eventos variados que ajudariam a compreender o 13 de maio de 1888. Contudo, os capítulos, cuja organização não compreendi o sentido, falam de tudo um pouco em termos de notícias da defesa ou ataque ao regime escravista. Como o livro não tem uma hipótese a ser trabalhada, uma questão a ser respondida, então, o leitor se depara com um circuito aberto de idas e vindas a jornais do século XIX: notícias sobre escravidão e situações ocorridas em anos posteriores, como o golpe militar-empresarial de 1964, e a ditadura então instalada, constituem boa parte do estilo narrativo da obra. Comentários para lá de genéricos e senso comum completam o quadro, como o da abertura do capítulo dezesseis: Leia Mais

Diferença e descobrimento: o que é o imaginário? – SILVA (RM)

SILVA, Juremir Machado da. Diferença e descobrimento: o que é o imaginário? A hipótese do excedente de significação. [Sn]: 2017.  Resenha de: MACHADO, Anderson dos Santos. As camadas na floresta do simbólico: uma leitura do livro “Diferença e descobrimento: o que é o imaginário? A hipótese do excedente de significação”. Revista Memorare, Tubarão, v.4, n. 2 esp. dossiê I, maio/ago. 2017, p.192-200.

Se em As Tecnologias do Imaginário, Silva (2012) debate a construção do imaginário como um fenômeno tecnológico e nos apresenta ferramentas para o trabalho metodológico, com abordagens da sociologia compreensiva para a produção de sentidos na sociedade contemporânea, no livro Diferença e Descobrimento: o que é o imaginário? A hipótese do Excedente de Significação (Silva, 2017), nos fala sobre a natureza dessa dimensão do real e como a própria realidade se configura como imaginário. Trata daquilo que sobra, do que transborda do real cristalizado em significado e objetividade. O autor aborda que é dessa diferença, dessa saliência que sobrepõe ao esperado que o imaginário opera, seja pelo sonho, pela ideia, pelos ideais, pelas representações. Silva nos convida neste novo livro a reconhecer as diferentes possibilidades de sentidos e usos do conceito de imaginário e como elas oferecem leituras interessantes sobre o (s) mundo (s), sempre nos provocando com afirmações certeiras, mas que mexem com nossas convicções e nos instigam a descortinar esse campo. No resgate de uma de suas crônicas, Silva relembra a indagação de um aluno no corredor da faculdade: “- Professor, afinal, o que é o imaginário? ”. A resposta foi: “- Uma floresta encantada” (Silva, 2017).

O estudante, que esperava uma carona, saiu correndo, atônito, sem ouvir o complemento da instigante resposta. Essa obra (Silva, 2017) vem nos contemplar com a visão do pesquisador sobre o tema e nos provoca a adentrar nesse bosque rico de sentidos, signos, significantes e significados, denso pela variedade de estruturas simbólicas, em imagens, palavras e símbolos, que constituem a fauna e a flora desse terreno a ser explorado. Silva nos alerta com sua resposta que este é um cenário denso, múltiplo e que não conseguimos enxergar por inteiro num primeiro olhar (ou vislumbramos do alto a copa das árvores sem observar a riqueza de suas entranhas, ou nos detemos na beleza de uma de suas clareiras sem a garantia de mensurarmos a imensidão dessa floresta). O imaginário é o que escapa, é o excedente.

Silva nos sugere que o imaginário deve ser analisado como uma pátina, técnica de pintura que sobrepõe diferentes camadas de tintas e materiais usados, criando um efeito que traz para a superfície o que está encoberto sem, contudo, revelá-lo por completo. O diferencial desse recurso está em criar uma composição única, singular, na qual é necessário recorrer a técnicas de arqueologia para resgatar as diferentes fases, suas histórias que emergem para a borda.
Ao longo do texto, vai descortinando o imaginário com afirmações firmes que vão rasgando a densidade de cada camada de tinta que vai sendo revelada. Mas pela natureza do imaginário, o contraste em cada uma dessas camadas vai compondo diferentes texturas que não se fecham numa única versão. Ao contrário, mostram uma tendência a inspirar novas possibilidades de olhar. Silva nos diz que o sentido, então, só se dá no imaginário, que rompe com o dique do bom senso daquilo que já aceito.

O excedente é o que aparece na noite obscura da floresta simbólica da resposta dada ao aluno, onde a névoa dispersa a visão objetiva, mas abre flanco para a imaginação, para a fantasia, numa aventura inesperada na criação de mundos, lendas, mitos e verdades que se constroem nas narrativas. Abre espaço para construções que se apresentam como incontestáveis na visão do narrador. Cabe diferenciar imaginação de imaginário:

Há imaginação no imaginário. Nem sempre há imaginário na imaginação. A imaginação não tem compromisso com o real. O imaginário depende de um real – o ocorrido – a ser transfigurado. Todo imaginário é real. Todo real é imaginário. Salvo aquele que perdeu o significado. (Silva, 2017, p. 75).

Nos fala dos paradoxos desse imaginário, que por sua capacidade de definição do indefinível, vai criando rastros de imaginação que se disseminam na teia do cotidiano, criando tramas, redes, bifurcações que vão rompendo com as convicções e pretensiosas firmezas da objetividade do rigor científico. Mostra que mesmo a convicção dos positivistas está imbricada num imaginário que dialoga com a subjetividade, com a esperança do resultado, com as narrativas de suas produções, que muitas vezes superam a realidade nua de suas práticas. “A racionalidade mostra-se irracional pela sua incapacidade de aceitar e compreender os simbolismos que pontuam a existência e dão-lhe significado e grandeza” (Silva, 2017, p. 36).

Seria esse imaginário apenas relacionado com a fantasia, com o mito, com os monstros e criaturas absurdas que povoam a noite desse lugar insólito? Não. Silva nos fala que, assim como a ciência, o jornalismo também se apresenta na busca de catalogar assepticamente, à luz do dia, o real, crendo que, mesmo se deparando com rastros, não reconhece os seres que habitam as entranhas desse cenário. Mas esquecem os jornalistas que, para fazer essa afirmação, é necessário circular nessa mata. E com isso, Silva traz a angústia de apostar no real como distinto do imaginário. E percorrendo inúmeros pensadores, vem colocando as diferentes possibilidades de pensar a realidade e o que imaginamos ser essa realidade. Antes de tudo, afirma:

Só há imaginário na medida em que existe um real. O imaginário funciona com um acréscimo do real, não podendo prescindir dele. O que é o real? O existente sem significação atribuída pelo imaginário. […] O imaginário é o sentido que redimensiona o fato sem que se possa anulá-lo por iluminação. (Silva, 2017, p. 25).

E o que pode ser então esse imaginário? Silva chama outros desbravadores desse campo, bandeirantes que tentam demarcar esse território sinuoso. Vão avançando sobre as inúmeras camadas de sentido que alimentam ecossistemas próprios que reconfiguram o cotidiano para a produção de imaginação: uma aura, uma atmosfera.

Em contraponto, o real é equiparado à depressão, onde o deprimido preocupa-se apenas com os fatos, os resultados, com o que é palpável, ainda que pela razão. O ser do imaginário, ao contrário, divaga, se põe a postos para a batalha, cria histórias de guerra e enredos que vislumbram uma epopeia. No devaneio, brilha o encantamento com o mundo: a capacidade humana de dar luz por meio da atribuição de sentidos.

O imaginário tem a infância (e sua eterna recorrência) com um solo fértil onde esse imaginário ganha colorido, é copulativo, inseminador, orgiástico, barroco e hedonista. A criança valoriza a riqueza e a variedade. Ficar velho é render-se ao real, que conforma, que informa, é replicador, copiador, formatador. O adulto busca na arte e no devaneio, como na poética de Bachelard (1996), para recuperar a super-realidade da infância que lhe é negada. E quando o real se torna saturado, esgotado, sacrificado, não há mais imaginário: cai em depressão, a “doença do imaginário”, que se instala quando este “já não comunica, não produz calor, quando a comunicação, reduzida a uma troca de informações, perde sua função de cola social” (Silva, 2017, p. 78).

E diante do duelo que não parece ter fim, o autor denuncia que há um crime: “O imaginário, de certa maneira, sempre mata o real. Mata-o por transfiguração” (Silva, 2017, p. 22). Constatado o óbito, ainda que simbólico, cabe nos atentar sobre a diferença do imaginário para com a subjetividade. O imaginário opera como subjetividade aplicada, consumada. Decorrência que abala os pilares importantes para a ética no jornalismo: neutralidade, objetividade, imparcialidade e isenção – são essas possíveis de serem atingidas sem a dimensão da subjetividade? Um exercício racional dessas premissas não estaria sendo um imaginário das práticas da comunicação?

E a ideologia, prescritiva e que busca a reprodução do estado das coisas para Althusser (1992), onde toda representação ideológica seria imaginária do mundo real, resultaria numa deformação imaginária da representação ideológica do mundo real. Não seria, então, a ideologia uma forma de encobrimento do real, que condiciona o olhar? O imaginário revela, a ideologia esconde para impedir o descobrimento. A repetição, a cultura e a reprodução são cúmplices de um real abalroado, é aquilo que desertifica e mata o imaginário, agora vítima de outro crime, esse de forma lenta.

Estas “mortes”, porém, não se consumam por completo, pois esse imaginário, sempre paradoxal, põe limites ao real, sem eliminá-lo. Então, o imaginário é falso, fictício, ilusório? Não. Silva diz que é uma mitologia concretizada, que depende do real. “Só há imaginário na medida em que o real é possível e passível de distorção” (Silva, 2017, p. 38). Quem mergulha no imaginário faz um contrato com essa narrativa, passa a aceitá-la como plausível e possível, mesmo na sua impossibilidade e irracionalidade. Ela precisa fazer sentido, ser lógica.

Ninguém, no entanto, escolhe um imaginário. “Há um encontro, uma construção, uma descoberta, uma luz” (Silva, 2017, p. 42). Ainda que essa verdade discursiva seja, como disse Nietzsche (2008), uma ilusão que esqueceu de ser o que é, metáfora que perdeu sua força sensível pelo uso excessivo, uma convenção consolidada: uma mentira coletiva que a todos se torna obrigatória.

Na busca de entender essa contraposição entre realidade e imaginário, Silva vai trocando as lentes do binóculo para contemplar a paisagem. E se depara com o hiper-real (Baudrillard, 1991), a realidade transfigurada pelo sentido, e que é reconhecida por Lacan (1974/1975) como sendo o nascimento do ego, instância psíquica constitutiva e estruturante da subjetividade. Gilbert Durand (1999; 2001) e Michel Maffesoli (2008) veem o imaginário como acontecimento cheio de símbolos, imagens e afetos que canalizam a subjetividade para lagos sensíveis.

É o imaginário também visto como surreal, quando se exprime na fantasia, na loucura criativa das artes, que exaltam o belo e o maravilhoso para Breton (1985), no devir de Deleuze (1974), que buscam valorizar no vivido a crença de um real que remodela a precariedade da “vida real”, obstruída pela educação dos sentidos e pela opacidade utilitária.

Estaria ainda o imaginário no super-real, dimensão fantástica do real, uma lente poderosa de aumento, que transfigura, desfoca e deforma o cotidiano, gerando “caricaturas” com traços exagerados sobre o real, que leva a “uma vivência emocionalmente profunda que, como num passe de mágica, faz um pacto com a credibilidade” (Silva, 2017, p. 61). Esse super-real não seria contemplado apenas pelos artistas, mas compartilhado no cotidiano em nossos hobbies, jogos, aventuras e todas as espécies de devaneios que colocam na berlinda a conversão do imaginário em mercadoria pelas tecnologias de produção simbólica da sociedade urbanizada pós-industrial.

Silva nos fala até de um direito ao imaginário, como uma necessidade social, de constituir heróis e estrelas que tornam o real suportável. E também uma necessidade biológica do ser humano de buscar o devaneio, como aquilo que dá sentido à vida.

[…] o real é a prosa, o imaginário é a poesia do cotidiano. O real expressa o céu cinzento, enquanto o imaginário transforma as nuvens em utopia. […] que se acrescenta inconscientemente ao acontecido, mas que se torna, depois de fixado, a única consciência possível do existente (Silva, 2017, p. 58).

Na discussão sobre o documentário, o jornalismo e a história, nos traz a ficção como forma de representar o real e dos limites para o imaginário. Trata da natureza da ficção, que por ser inventada: existe, mas é irreal, sendo um real irreal. Uma dramatização num documentário ou reportagem pode recriar uma realidade, mas não é capaz de dramatizar algo que não existiu. A ficção depende – então – da realidade, do ocorrido, do fato.

A ficção não tem limites. Nem mesmo o da verossimilhança. O verossímil pode ser fictício. O imaginário é sempre verdadeiro. […] está ligado a um real que, embora sempre alterado pela subjetivação do olhar que reconstitui o ocorrido, recusa o procedimento da invenção absoluta. (Silva, 2017, p. 69).

Mesmo o realismo fantástico, em autores como Balzac (1954), Kafka (1986) e García-Marques (1974), suas narrativas conservam um fio com a realidade, que faz o excedente de realidade mostrar-se, potencializando muito de seus efeitos de reflexão sobre o real.

Das seis fases da bacia semântica de Durand (1999), que remetem à figura das águas para vislumbrar a formação simbólica do imaginário (escoamentos, divisão das águas, confluências, o nome do rio, organização dos rios, esgotamento dos deltas), Silva (2017), propõe nove etapas do imaginário como recobrimento do banal (vazamento, infiltração, acumulação, evocação, transbordamento, deformação, transfiguração, metáfora, derretimento/evaporação), na qual sugere momentos importantes de análise da produção do imaginário.

Da mesma forma, também questiona se o imaginário pode ser um agenciamento das ideias, a partir das pautas impostas pelo agenda-setting (Mc Combs e Shaw in Hohlfeldt, 1997) (acumulação, consonância, centralidade, tematização, saliência, focalização) e questiona o agendamento de bens simbólicos:
O desejo do consumidor costuma coincidir estranhamente com o desejo do produtor e fornecedor de objetos a consumir. Só se deseja o que se deve ser desejado. A agenda do consumo não produz negação. Um imaginário? (Silva, 2017, p. 95).

O imaginário se comportaria como um agendamento involuntário que se consumou temporariamente. Um transbordamento que se agendou para ser alcançado no momento de onipresença midiática e social.

Silva faz ainda considerações sobre o imaginário e a história e a produção de narrativas, lendas e das fragilidades do pensamento jornalístico (que, por vezes, se contenta com o comentário e não com a investigação) e científico (que se detém a uma verdade objetiva superior, respaldada pelos pares). Nessa reflexão sobre essas duas formas de registro da realidade, que possuem conjuntos de regras codificadas que remetem à produção dos dados.

O imaginário opera no campo do discurso, do saber, do poder. O imaginário é reservatório de experiências e motor de ações significativas, que geram uma “pro-vocação”, modo específico de descobrimento das vocações, um vínculo, um pertencimento, um compartilhar. A vocação do homem é o imaginário, afirma Silva (2017), “arranca o ser da banalidade e, pelo bem ou pelo mal, pelo sublime ou pelo hediondo, dissemina significados que não podem ser apagados com toda prosa do cotidiano” (p. 108).

Também está o imaginário no recobrimento e no depósito de material significativo do terreno fértil, está onde há saturação, acúmulo, no que se sobrepõe e no que gera saliência. O imaginário está na surpresa diante do que está a ser descoberto na passagem da aldeia para a cidade natal e desta para a metrópole. É o deslumbramento da novidade, que gradativamente vai se perdendo pelo costume, até se deparar com a fantasia de encontrar um lugar maior que o quintal que estávamos acostumados a trilhar.

Silva segue questionando o imaginário a partir da produção de sentidos, no jogo da linguagem, como sugere Wittgenstein (1987) e na produção da interpretação dos acontecimentos para Deleuze (1974) que sugere cercar o imaginário pelo excesso, uma erupção da lava simbólica dos acontecimentos. Silva também contrapõe a interpretação (dialógico entre duas partes) da compreensão (reconhecimento do outro que surpreende, atrai e fascina) e da explicação (descrição do outro). Fala do descobrimento como forma de trazer à tona sentidos encobertos, por meio de inúmeros pares intercambiáveis como memória no esquecimento, sentido na ausência, luz e obscuridade, obsessão e encantamento, diferença e repetição, entre tantos outros.

De toda forma, nos faz perceber que, depois de tiranias realistas, também há o temor quanto aos imaginários tirânicos, à imposição de imaginários que suplantam o real e nos (i) mobilizam coletivamente. O imaginário também pode se impor como autoritário, ditatorial, fascista, constrangedor. Silva nos revela que ninguém é autor do seu imaginário na escrita autobiográfica: o imaginário se impõe ao imaginante como um texto extraído de suas vivências, onde não há autonomia deste imaginante. “Ninguém pode rejeitar o imaginário, nem se negar ao imaginário. O imaginário é uma submissão” (Silva, 2017, p. 167-168).

Navegar no imaginário é sempre uma aventura, nos garante o autor. Faz-se necessário adentrar ao bosque encantado e explorar o que transborda desse simbólico. O imaginário como instância do real, se faz presente. Negá-lo não deixa de constituir também um imaginário.
A obra que aqui analisamos traz reflexões que não se esgotam. Certamente não era essa a intenção do autor, por mais criteriosa e densa que tenha sido sua pesquisa. Mas ao desdobrar suas reflexões, ele respeita a natureza do objeto em análise. O imaginário é…

Na resposta cabem outras possibilidades que excedem os significados apontados em seu texto. O que não se pode negar é a contribuição relevante do autor para problematizar o imaginário com essa roupagem instigante de um excedente, pela diferença e pelo descobrimento, nas inúmeras camadas de sentidos que podemos ir raspando do real que nos é possível escavar.

Referências

AUTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

BALZAC, H. A comédia humana. Org. Paulo Ronai. Porto Alegre: Editora Globo: 1954.

BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulação. Lisboa. Relógio d’Água, 1991.

BRETON, A. Manifestos do surrealismo. São Paulo: Brasiliense, 1985.

DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1974.
Revista Memorare, Tubarão, SC, v. 4, n. 2 esp. dossiê I, p.192-200 maio/ago. 2017. ISSN: 2358-0593.
200

DURAND, G. O Imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: DIFEL, 1999.

DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

GARCIA-MÁRQUEZ, G. Olhos de Cão azul. Rio de Janeiro: Record, 1974.

HOHLFELDT, A. Os estudos sobre a hipótese do agendamento. In: Revista Famecos. Porto Alegre: Edipucrs, nº 7, novembro de 1997, p. 41-52.

KAFKA, F. A metamorfose. São Paulo: Brasiliense, 1986

LACAN, J. RSI. Le séminarie. 1974/1975.

MAFFESOLI, M. O conhecimento comum. Porto Alegre: Sulina, 2008.

NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira. São Paulo: Hedra, 2008.

SILVA, J. M. Diferença e descobrimento: O que é o imaginário? A hipótese do excedente de significação. Porto Alegre: Sulina, 2017.

SILVA, J.M. Tecnologias do Imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2012.

WITTGENSTEIN, L. Tratado Lógico-filosófico e investigações filosóficas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.

Anderson dos Santos Machado –  Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Porto Alegre, RS, Brasil. Doutorando em Comunicação pela PUCRS. E-mail: [email protected]

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Golpe midiático-civil-militar | Juremir Machado da Silva

RC Destaque post 2 11 Golpe midiático-civil-militar

O ano de 2014 foi marcado por uma efeméride: os cinquenta anos do golpe que depôs o presidente João Goulart. O simbolismo da data foi responsável por uma série de eventos e publicações que debateram e refletiram a história recente do Brasil. Paralelamente aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, criada para apurar crimes contra os Direitos Humanos no Brasil, em um lapso temporal que perpassava a Ditadura Militar, muitos outros foram produzidos para refletir o período. Entre as obras que vieram à lume está “1964: Golpe midiático-civil-militar”, de Juremir Machado da Silva, que, em menos de um ano, está na sua quinta edição.

Formado em jornalismo e história pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e com mestrado e doutorado em sociologia da cultura pela Universidade René Descartes, em Paris, Juremir Machado da Silva tem uma produção de caráter interdisciplinar e alguns trabalhos caracteristicamente na área da História, como “Jango, vida e morte no exílio”, publicado em 2013. Em sua mais recente pesquisa o autor se propõe analisar o papel da mídia, mais particularmente o papel da imprensa, no contexto do 31 de março de 1964. Trata-se de uma obra que, ao analisar a atuação da mídia no golpe militar, abre uma seara de oportunidades para que novos estudos possam se debruçar sobre o tema. Leia Mais

Vozes da legalidade. Política e imaginário na Era do Rádio – SILVA (AN)

SILVA, Juremir Machado da. Vozes da legalidade. Política e imaginário na Era do Rádio. Porto Alegre: Sulina, 2011. 223p. Resenha de: ELMIR, Cláudio Pereira. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 33, p. 273-279, jul. 2011.

Em agosto de 2011, completaram-se 50 anos desde a renúncia de Jânio Quadros da presidência da República. Este ato fundador, se assim podemos designá-lo, foi responsável, em parte, por estarmos comemorando, na sequência, os 50 anos da campanha liderada pelo governador Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul, pela garantia da investidura constitucional do vice-presidente João Goulart no cargo deixado vago por Quadros. A campanha, ou movimento, da legalidade é definitivamente um levante gaúcho; o último, talvez (para aqui parafrasear o subtítulo do livro de Joaquim Felizardo, publicado pela Editora da UFRGS, em 1988). Este entendimento pode levar a crer — não como corolário necessário – que o patriotismo dos sulrio- grandenses, notadamente o de suas lideranças políticas, forjou o sentido do cumprimento da lei naquela circunstância, chamando a atenção da nação brasileira para, agora sim, uma necessidade inescapável.

A “coragem quase provocativa” de Leonel Brizola fez um presidente (SILVA, 2011, p. 11).

O livro de Juremir Machado da Silva dá voz às tantas vozes que ressoam essa história desde o momento em que o evento se fez acontecimento, no já longínquo inverno do ano de 1961. O autor, “[…] historiador, doutor em sociologia, jornalista, tradutor, romancista, professor universitário, colunista do Correio do Povo e apresentador da Rádio Guaíba” (SILVA, 2011, segunda aba do livro), traz em sua narrativa a polifonia do acontecimento. Por vezes, contudo, as vozes sobrepõem-se, e ao leitor fica difícil bem discriminar a origem exata da vocalização. De resto, dificuldade que alcança, com frequência, aos historiadores mais experimentados. A estrutura da narrativa — em parte determinada pelo critério cronológico, em parte subjugada às ações de Leonel Brizola – desdobra-se conforme o sabor da evocação errática do autor, não seguindo, portanto, um roteiro expositivo anunciado ao leitor. Este navega sem norte, porém, sem grandes surpresas.

Escrito no calor das comemorações do cinquentenário – atendendo, quem sabe, a “[…] essa estranha obsessão dos homens por datas chamadas de redondas” (SILVA, 2011, p. 218) –, o livro cumpre o desígnio de se interpor, na babel da história, como mais uma voz a compor o emaranhado discursivo que acompanha as efemérides no trabalho de construção da memória.1 Os “feitos” e os “fatos” nele encontram guarida e se imiscuem caprichosamente na narrativa. Neste trabalho de trazer à tona a “muita história” que a cronologia estrita requer, não é difícil encontrar as petites histoires (por exemplo, p. 118, 150, 170 e 214) que não cabem em trabalhos convencionais produzidos por historiadores acadêmicos já faz algum tempo. Nas palavras do autor: “Jornalistas sempre adoram anedotas sobre fatos históricos e fatos históricos como anedotas” (SILVA, 2011, p. 119). Se estas pequenas histórias que se conta – e se as conta muito no livro – não puderem ser verificadas ou demonstradas suficientemente, isso não importa.

Afinal, “[…] as lendas são sempre mais rápidas do que a verdade e quase sempre mais interessantes” (SILVA, 2011, p. 169). O império da voz do povo, quem sabe, pode nos eximir de nossas responsabilidades profissionais com o tratamento ponderado das versões urdidas, eliminando, inclusive, a necessidade de citar discriminadamente, no corpo do texto, as 55 obras lidas e as 25 pessoas com as quais o autor teve a oportunidade de “[…] conversar sobre os episódios”, ao longo de “um ano de trabalho” (SILVA, 2011, p. 223).

A escolha pelo método heterodoxo de inquérito aos documentos (entrevistas, jornais, programas de rádio, textos de memória) e à bibliografia reverbera em uma narrativa de justaposição, na qual a diferenciação do lugar de origem das fontes e o escrutínio das mesmas pelo autor não são capazes de produzir um exercício interpretativo nos moldes daquele que é feito usualmente no âmbito da crítica historiográfica. Ao citar, por exemplo, as memórias produzidas pelo Marechal Machado Lopes no final dos anos 1970 (ver capítulo 21) (SILVA, 2011, p. 189-198), o autor chama a atenção para erros de grafia de um sobrenome cometidos pelo militar em seu livro (Morgen, no lugar de Moojen); (SILVA, 2011, p. 194), embora não os localize expressamente, e ao fato de que “O narrador altera ligeiramente os fatos”; “Inventa outros fatos”; “Colore o passado”; “[…] comete […] anacronismo”2 (SILVA, 2011, p. 197). Entretanto, a resenha do livro do marechal, condensado este no referido capítulo, não contrapõe diretamente aos equívocos da memória – se assim pudermos entender – os fatos (segundo estabelecidos pela historiografia) ou outras memórias, mais exatas quem sabe. Um segundo exemplo diz respeito a uma conversa havida entre o autor e o Coronel Emílio Neme. O fato de o octogenário membro da Brigada Militar não se lembrar, em certo ponto do diálogo, em que ano teria ocorrido a Legalidade (SILVA, 2011, p. 147), deveria, desde o ponto de vista de um historiador habituado ao trabalho com fontes orais, ter demandado o estabelecimento de relações complexas no ato da interpretação da fala. De outra sorte, o princípio da alusão reina sobre o princípio da demonstração (por exemplo, p. 51). E, com isso, ficamos, novamente, com a etérea conclusão circular dita e redita intermitentemente no decorrer da narrativa: “Conta-se que tudo sempre depende de quem conta” (SILVA, 2011, p. 173). Aliás, “conta-se” excessivamente no livro.

Entretanto, não há apenas uma única ocasião em que o autor sugere captar o sentimento íntimo dos agentes sociais. Quando menciona um dos discursos proferidos por Brizola dos porões do Palácio Piratini, Silva estabelece uma analogia entre o então inquilino daquela casa e o governador que liderou a Revolução de 1930: “Talvez sinta a presença espiritual de Vargas enquanto sobe o tom do seu discurso” (SILVA, 2011, p. 65). Da mesma forma, mais adiante, quando diz: “Brizola comporta-se como uma mistura de esfinge e oráculo. Às vezes, tem o olhar perdido. Outras [sic], ordena maquiavelicamente isto e aquilo […]” (SILVA, 2011, p. 89). As conjecturas acerca do que passa na cabeça do jovem governador nas diferentes circunstâncias daqueles dias de tensão entre a renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart continuam alimentando a imaginação do autor: “Em que pensa?” (SILVA, 2011, p. 132). Depois de algumas alternativas levantadas, assevera finalmente: “É mais provável que não pense em coisa alguma grandiosa, que siga sua intuição, sem metafísica nem grande arte, apenas com a determinação de um guerreiro, disposto a ser, se necessário, o último homem” (SILVA, 2011, p. 133). Aqui, como em outras – várias — passagens, insinuase o Brizola candidato a herói.

Não obstante algumas simulações de ironia no correr do texto acerca da biografia de Leonel Brizola, de maneira geral percebe-se que o tom da narrativa direciona-se no caminho de manter uma certa imagem difusa do líder político no Rio Grande do Sul, segundo a qual Brizola encarna alguns dos valores positivos do povo gaúcho. “Se fosse encostado na parede [pelo General Machado Lopes], cuspiria fogo pelas ventas. Afinal, [Brizola] era um gaúcho. E os gaúchos gostam de ver-se como indomáveis” (SILVA, 2011, p. 83). Caráter forjado na dificuldade da vida, órfão prematuro, Brizola responderia, nas ações de sua trajetória pessoal – e, especialmente, política – a um destino anunciado desde sempre. O governador do Rio Grande do Sul, na hora difícil da campanha pela posse de Jango, traria consigo, e fundiria em si mesmo, a imagem do pai que ele, a rigor, nunca conheceu. “Não seria impróprio imaginar que, encastelado no Palácio Piratini, em 28 de agosto de 1961, disposto a morrer pela Legalidade, Leonel de Moura Brizola […] pensava no seu pai, José Brizola, assassinado por resistir aos abusos do poder” (SILVA, 2011, p. 9-10). De fato não é fácil medir a distância que separa a retórica política das intenções mais íntimas de um homem. Mas é possível reconhecer nele, desde cedo, desde menino, “olhos cheios de determinação” (p. 16, 19 e 32). Nas palavras graves do autor:

[…] há homens que crescem na adversidade e fazem do risco a oportunidade de um salto para o futuro, homens como Leonel Brizola, saído dos confins do Rio Grande do Sul para escrever sua história em paralelo com a do Brasil, fundindo-se, por vezes, com ela, seguindo-a de perto, intuindo, quem sabe, que certas ações marcam para sempre uma vida e delas depende uma biografia (SILVA, 2011, p. 132).

O começo e o fim. O fim no começo. O destino predestinado.

A ilusão biográfica? No livro Vozes da legalidade, é possível reconhecer a opção por uma dicção francamente regional. Esta escolha se faz perceber tanto pela abordagem empreendida quanto pelas referências documentais e bibliográficas que a sustentam. No primeiro caso, a ênfase na figura de Leonel Brizola – sem ser uma biografia propriamente – ofusca o estabelecimento de relações em âmbito nacional que são fundamentais para compreender o processo histórico do qual se quer tratar. No segundo caso, o autor sustenta seus argumentos em bibliografia flagrantemente desatualizada e pouco especializada. Por outro lado, dedica-se um capítulo à Maria Teresa Goulart, esposa de Jango, atribuindo a ela uma importância questionável, ao dizer: “Maria Teresa não tem currículo. Tem biografia. Falta-lhe um biógrafo” (SILVA, 2011, p. 206).

O texto expressa o propósito de ser uma espécie de “conversa com o leitor”. É como se tivéssemos, pelo livro, mais uma voz a contar a história. As marcas de oralidade nele presentes são muitas.

É quase uma memória. A decisão de contar a história é mais intensa, no meu juízo, que a articulação sistemática das razões que explicam a mesma. Consoante com esse esforço, os lugares-comuns proliferam (2011, p. 185) e a narrativa precipita-se em interjeições (2011, p. 212) e em longas frases, com dezenas de linhas sem ponto (por exemplo, o início do capítulo 20). Não se sabe ao certo se, nesse caso, faltou um cuidado maior no processo de editoração, ou se, na verdade, trata-se de “escolha estilística” do autor.

O primeiro e o último capítulo remetem-se mutuamente. Em ambos, a discussão sobre o nome assume a centralidade da narrativa; mais no capítulo inicial do que no derradeiro. Contudo, é na última folha do livro que a decifração se dá. Tanto a do nome que sua mãe quis para Brizola, “Itagiba”, quanto aos outros, os quais ele efetivamente carregou pela vida: Leonel de Moura Brizola. Diz o autor: “Conta-se que a palavra indígena Itagiba significa braço forte e duro como a mais dura das pedras. Conta-se que o nome Leonel vem do latim e quer dizer pequeno leão (SILVA, 2011, p. 218). Sobre o nome do meio, Moura, faz-se uma digressão mais longa, associando o mesmo a uma localidade de igual nome em Portugal vinculada aos mouros: “Conta-se que o portador desse sobrenome é dotado de muita energia, como dona Oniva [mãe de Brizola], e tem espírito aguerrido” (SILVA, 2011, p. 219). Por fim, resta a menção ao sobrenome que o tornou conhecido: “Conta-se que o nome Brizola, de origem italiana, significa grisalho e que quem o carrega já nasce maduro” (SILVA, 2011, p. 219). Na inscrição do nome, o caráter. No nome, o destino. Novamente, o princípio determinando o desfecho.

Para concluir, algumas palavras sobre o nome do livro: Vozes da legalidade. Política e imaginário na era do rádio. Embora o título e a ficha catalográfica elaborada pela editora possam fazer supor, o “rádio” não é um personagem (tampouco um objeto de investigação) importante da narrativa. O “imaginário” é um termo que não se sustenta como articulador da abordagem empreendida. Já a expressão “era do rádio”, não obstante o fundamental papel desempenhado por esse meio de comunicação ainda no início dos anos 1960 e, notadamente, no evento em questão, é um designativo que faz justiça, a bem da verdade, às décadas de 1940 e 1950.

Notas

1 Vale dizer que esta não é a primeira vez que o autor se dedica a escrever sobre temas relacionados a efemérides. No cinquentenário da morte de Getúlio Vargas, o autor publicou um livro (romance) sobre o político (SILVA, Juremir Machado da. Getúlio. Rio de Janeiro: Record, 2004) e, em 2010 – passados oitenta anos do levante que levou Vargas ao poder – Silva publicou, pela mesma editora carioca, um romance sobre a Revolução de 1930 (SILVA, Juremir Machado da. 1930. Águas da revolução. Rio de Janeiro: Record, 2010). Note-se que, nestes dois casos citados, diferentemente do livro em exame, não se verifica uma opção editorial pelo gênero histórico ou historiográfico.

2 A tentação do cometimento de anacronismo parece rondar a todos quando tempos inconciliáveis se encarregam, segundo nossa particular vontade, de se fazerem unos: “Naquele agosto gelado de 1961, em Porto Alegre, ninguém podia imaginar que quase 30 anos depois haveria um Jânio sem o mesmo português, mas com a mesma megalomania moralista, o ‘caçador de marajás’, Fernando Collor, que com apoio das mesmas e outras elites, tentaria varrer a sujeira nacional, jogando-a para baixo do tapete, até ser enxotado por não ter tido, como Jânio, a sabedoria de cair fora” (SILVA, 2011, p. 53). Nas páginas 96 e 97, encontra-se, novamente, um comentário anacrônico, identificado pela narrativa como “nota de rodapé”, ainda que as referidas “digressões” ocupem lugar no corpo do texto, e não na parte inferior da página, como seria de se esperar de um texto acadêmico.

Referências

FELIZARDO, Joaquim José. A legalidade. Último levante gaúcho. 3ª ed. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1991.

LOPES, José Machado. O III exército na crise da renúncia de Jânio Quadros. Rio de Janeiro: Alhambra, 1980.

SILVA, Juremir Machado da. Vozes da legalidade. Política e imaginário na Era do Rádio. Porto Alegre: Sulina, 2011. 223p.

Cláudio Pereira Elmir Professor do PPG-História da Unisinos. E-mail: [email protected].