Diferença e descobrimento: o que é o imaginário? – SILVA (RM)

SILVA, Juremir Machado da. Diferença e descobrimento: o que é o imaginário? A hipótese do excedente de significação. [Sn]: 2017.  Resenha de: MACHADO, Anderson dos Santos. As camadas na floresta do simbólico: uma leitura do livro “Diferença e descobrimento: o que é o imaginário? A hipótese do excedente de significação”. Revista Memorare, Tubarão, v.4, n. 2 esp. dossiê I, maio/ago. 2017, p.192-200.

Se em As Tecnologias do Imaginário, Silva (2012) debate a construção do imaginário como um fenômeno tecnológico e nos apresenta ferramentas para o trabalho metodológico, com abordagens da sociologia compreensiva para a produção de sentidos na sociedade contemporânea, no livro Diferença e Descobrimento: o que é o imaginário? A hipótese do Excedente de Significação (Silva, 2017), nos fala sobre a natureza dessa dimensão do real e como a própria realidade se configura como imaginário. Trata daquilo que sobra, do que transborda do real cristalizado em significado e objetividade. O autor aborda que é dessa diferença, dessa saliência que sobrepõe ao esperado que o imaginário opera, seja pelo sonho, pela ideia, pelos ideais, pelas representações. Silva nos convida neste novo livro a reconhecer as diferentes possibilidades de sentidos e usos do conceito de imaginário e como elas oferecem leituras interessantes sobre o (s) mundo (s), sempre nos provocando com afirmações certeiras, mas que mexem com nossas convicções e nos instigam a descortinar esse campo. No resgate de uma de suas crônicas, Silva relembra a indagação de um aluno no corredor da faculdade: “- Professor, afinal, o que é o imaginário? ”. A resposta foi: “- Uma floresta encantada” (Silva, 2017).

O estudante, que esperava uma carona, saiu correndo, atônito, sem ouvir o complemento da instigante resposta. Essa obra (Silva, 2017) vem nos contemplar com a visão do pesquisador sobre o tema e nos provoca a adentrar nesse bosque rico de sentidos, signos, significantes e significados, denso pela variedade de estruturas simbólicas, em imagens, palavras e símbolos, que constituem a fauna e a flora desse terreno a ser explorado. Silva nos alerta com sua resposta que este é um cenário denso, múltiplo e que não conseguimos enxergar por inteiro num primeiro olhar (ou vislumbramos do alto a copa das árvores sem observar a riqueza de suas entranhas, ou nos detemos na beleza de uma de suas clareiras sem a garantia de mensurarmos a imensidão dessa floresta). O imaginário é o que escapa, é o excedente.

Silva nos sugere que o imaginário deve ser analisado como uma pátina, técnica de pintura que sobrepõe diferentes camadas de tintas e materiais usados, criando um efeito que traz para a superfície o que está encoberto sem, contudo, revelá-lo por completo. O diferencial desse recurso está em criar uma composição única, singular, na qual é necessário recorrer a técnicas de arqueologia para resgatar as diferentes fases, suas histórias que emergem para a borda.
Ao longo do texto, vai descortinando o imaginário com afirmações firmes que vão rasgando a densidade de cada camada de tinta que vai sendo revelada. Mas pela natureza do imaginário, o contraste em cada uma dessas camadas vai compondo diferentes texturas que não se fecham numa única versão. Ao contrário, mostram uma tendência a inspirar novas possibilidades de olhar. Silva nos diz que o sentido, então, só se dá no imaginário, que rompe com o dique do bom senso daquilo que já aceito.

O excedente é o que aparece na noite obscura da floresta simbólica da resposta dada ao aluno, onde a névoa dispersa a visão objetiva, mas abre flanco para a imaginação, para a fantasia, numa aventura inesperada na criação de mundos, lendas, mitos e verdades que se constroem nas narrativas. Abre espaço para construções que se apresentam como incontestáveis na visão do narrador. Cabe diferenciar imaginação de imaginário:

Há imaginação no imaginário. Nem sempre há imaginário na imaginação. A imaginação não tem compromisso com o real. O imaginário depende de um real – o ocorrido – a ser transfigurado. Todo imaginário é real. Todo real é imaginário. Salvo aquele que perdeu o significado. (Silva, 2017, p. 75).

Nos fala dos paradoxos desse imaginário, que por sua capacidade de definição do indefinível, vai criando rastros de imaginação que se disseminam na teia do cotidiano, criando tramas, redes, bifurcações que vão rompendo com as convicções e pretensiosas firmezas da objetividade do rigor científico. Mostra que mesmo a convicção dos positivistas está imbricada num imaginário que dialoga com a subjetividade, com a esperança do resultado, com as narrativas de suas produções, que muitas vezes superam a realidade nua de suas práticas. “A racionalidade mostra-se irracional pela sua incapacidade de aceitar e compreender os simbolismos que pontuam a existência e dão-lhe significado e grandeza” (Silva, 2017, p. 36).

Seria esse imaginário apenas relacionado com a fantasia, com o mito, com os monstros e criaturas absurdas que povoam a noite desse lugar insólito? Não. Silva nos fala que, assim como a ciência, o jornalismo também se apresenta na busca de catalogar assepticamente, à luz do dia, o real, crendo que, mesmo se deparando com rastros, não reconhece os seres que habitam as entranhas desse cenário. Mas esquecem os jornalistas que, para fazer essa afirmação, é necessário circular nessa mata. E com isso, Silva traz a angústia de apostar no real como distinto do imaginário. E percorrendo inúmeros pensadores, vem colocando as diferentes possibilidades de pensar a realidade e o que imaginamos ser essa realidade. Antes de tudo, afirma:

Só há imaginário na medida em que existe um real. O imaginário funciona com um acréscimo do real, não podendo prescindir dele. O que é o real? O existente sem significação atribuída pelo imaginário. […] O imaginário é o sentido que redimensiona o fato sem que se possa anulá-lo por iluminação. (Silva, 2017, p. 25).

E o que pode ser então esse imaginário? Silva chama outros desbravadores desse campo, bandeirantes que tentam demarcar esse território sinuoso. Vão avançando sobre as inúmeras camadas de sentido que alimentam ecossistemas próprios que reconfiguram o cotidiano para a produção de imaginação: uma aura, uma atmosfera.

Em contraponto, o real é equiparado à depressão, onde o deprimido preocupa-se apenas com os fatos, os resultados, com o que é palpável, ainda que pela razão. O ser do imaginário, ao contrário, divaga, se põe a postos para a batalha, cria histórias de guerra e enredos que vislumbram uma epopeia. No devaneio, brilha o encantamento com o mundo: a capacidade humana de dar luz por meio da atribuição de sentidos.

O imaginário tem a infância (e sua eterna recorrência) com um solo fértil onde esse imaginário ganha colorido, é copulativo, inseminador, orgiástico, barroco e hedonista. A criança valoriza a riqueza e a variedade. Ficar velho é render-se ao real, que conforma, que informa, é replicador, copiador, formatador. O adulto busca na arte e no devaneio, como na poética de Bachelard (1996), para recuperar a super-realidade da infância que lhe é negada. E quando o real se torna saturado, esgotado, sacrificado, não há mais imaginário: cai em depressão, a “doença do imaginário”, que se instala quando este “já não comunica, não produz calor, quando a comunicação, reduzida a uma troca de informações, perde sua função de cola social” (Silva, 2017, p. 78).

E diante do duelo que não parece ter fim, o autor denuncia que há um crime: “O imaginário, de certa maneira, sempre mata o real. Mata-o por transfiguração” (Silva, 2017, p. 22). Constatado o óbito, ainda que simbólico, cabe nos atentar sobre a diferença do imaginário para com a subjetividade. O imaginário opera como subjetividade aplicada, consumada. Decorrência que abala os pilares importantes para a ética no jornalismo: neutralidade, objetividade, imparcialidade e isenção – são essas possíveis de serem atingidas sem a dimensão da subjetividade? Um exercício racional dessas premissas não estaria sendo um imaginário das práticas da comunicação?

E a ideologia, prescritiva e que busca a reprodução do estado das coisas para Althusser (1992), onde toda representação ideológica seria imaginária do mundo real, resultaria numa deformação imaginária da representação ideológica do mundo real. Não seria, então, a ideologia uma forma de encobrimento do real, que condiciona o olhar? O imaginário revela, a ideologia esconde para impedir o descobrimento. A repetição, a cultura e a reprodução são cúmplices de um real abalroado, é aquilo que desertifica e mata o imaginário, agora vítima de outro crime, esse de forma lenta.

Estas “mortes”, porém, não se consumam por completo, pois esse imaginário, sempre paradoxal, põe limites ao real, sem eliminá-lo. Então, o imaginário é falso, fictício, ilusório? Não. Silva diz que é uma mitologia concretizada, que depende do real. “Só há imaginário na medida em que o real é possível e passível de distorção” (Silva, 2017, p. 38). Quem mergulha no imaginário faz um contrato com essa narrativa, passa a aceitá-la como plausível e possível, mesmo na sua impossibilidade e irracionalidade. Ela precisa fazer sentido, ser lógica.

Ninguém, no entanto, escolhe um imaginário. “Há um encontro, uma construção, uma descoberta, uma luz” (Silva, 2017, p. 42). Ainda que essa verdade discursiva seja, como disse Nietzsche (2008), uma ilusão que esqueceu de ser o que é, metáfora que perdeu sua força sensível pelo uso excessivo, uma convenção consolidada: uma mentira coletiva que a todos se torna obrigatória.

Na busca de entender essa contraposição entre realidade e imaginário, Silva vai trocando as lentes do binóculo para contemplar a paisagem. E se depara com o hiper-real (Baudrillard, 1991), a realidade transfigurada pelo sentido, e que é reconhecida por Lacan (1974/1975) como sendo o nascimento do ego, instância psíquica constitutiva e estruturante da subjetividade. Gilbert Durand (1999; 2001) e Michel Maffesoli (2008) veem o imaginário como acontecimento cheio de símbolos, imagens e afetos que canalizam a subjetividade para lagos sensíveis.

É o imaginário também visto como surreal, quando se exprime na fantasia, na loucura criativa das artes, que exaltam o belo e o maravilhoso para Breton (1985), no devir de Deleuze (1974), que buscam valorizar no vivido a crença de um real que remodela a precariedade da “vida real”, obstruída pela educação dos sentidos e pela opacidade utilitária.

Estaria ainda o imaginário no super-real, dimensão fantástica do real, uma lente poderosa de aumento, que transfigura, desfoca e deforma o cotidiano, gerando “caricaturas” com traços exagerados sobre o real, que leva a “uma vivência emocionalmente profunda que, como num passe de mágica, faz um pacto com a credibilidade” (Silva, 2017, p. 61). Esse super-real não seria contemplado apenas pelos artistas, mas compartilhado no cotidiano em nossos hobbies, jogos, aventuras e todas as espécies de devaneios que colocam na berlinda a conversão do imaginário em mercadoria pelas tecnologias de produção simbólica da sociedade urbanizada pós-industrial.

Silva nos fala até de um direito ao imaginário, como uma necessidade social, de constituir heróis e estrelas que tornam o real suportável. E também uma necessidade biológica do ser humano de buscar o devaneio, como aquilo que dá sentido à vida.

[…] o real é a prosa, o imaginário é a poesia do cotidiano. O real expressa o céu cinzento, enquanto o imaginário transforma as nuvens em utopia. […] que se acrescenta inconscientemente ao acontecido, mas que se torna, depois de fixado, a única consciência possível do existente (Silva, 2017, p. 58).

Na discussão sobre o documentário, o jornalismo e a história, nos traz a ficção como forma de representar o real e dos limites para o imaginário. Trata da natureza da ficção, que por ser inventada: existe, mas é irreal, sendo um real irreal. Uma dramatização num documentário ou reportagem pode recriar uma realidade, mas não é capaz de dramatizar algo que não existiu. A ficção depende – então – da realidade, do ocorrido, do fato.

A ficção não tem limites. Nem mesmo o da verossimilhança. O verossímil pode ser fictício. O imaginário é sempre verdadeiro. […] está ligado a um real que, embora sempre alterado pela subjetivação do olhar que reconstitui o ocorrido, recusa o procedimento da invenção absoluta. (Silva, 2017, p. 69).

Mesmo o realismo fantástico, em autores como Balzac (1954), Kafka (1986) e García-Marques (1974), suas narrativas conservam um fio com a realidade, que faz o excedente de realidade mostrar-se, potencializando muito de seus efeitos de reflexão sobre o real.

Das seis fases da bacia semântica de Durand (1999), que remetem à figura das águas para vislumbrar a formação simbólica do imaginário (escoamentos, divisão das águas, confluências, o nome do rio, organização dos rios, esgotamento dos deltas), Silva (2017), propõe nove etapas do imaginário como recobrimento do banal (vazamento, infiltração, acumulação, evocação, transbordamento, deformação, transfiguração, metáfora, derretimento/evaporação), na qual sugere momentos importantes de análise da produção do imaginário.

Da mesma forma, também questiona se o imaginário pode ser um agenciamento das ideias, a partir das pautas impostas pelo agenda-setting (Mc Combs e Shaw in Hohlfeldt, 1997) (acumulação, consonância, centralidade, tematização, saliência, focalização) e questiona o agendamento de bens simbólicos:
O desejo do consumidor costuma coincidir estranhamente com o desejo do produtor e fornecedor de objetos a consumir. Só se deseja o que se deve ser desejado. A agenda do consumo não produz negação. Um imaginário? (Silva, 2017, p. 95).

O imaginário se comportaria como um agendamento involuntário que se consumou temporariamente. Um transbordamento que se agendou para ser alcançado no momento de onipresença midiática e social.

Silva faz ainda considerações sobre o imaginário e a história e a produção de narrativas, lendas e das fragilidades do pensamento jornalístico (que, por vezes, se contenta com o comentário e não com a investigação) e científico (que se detém a uma verdade objetiva superior, respaldada pelos pares). Nessa reflexão sobre essas duas formas de registro da realidade, que possuem conjuntos de regras codificadas que remetem à produção dos dados.

O imaginário opera no campo do discurso, do saber, do poder. O imaginário é reservatório de experiências e motor de ações significativas, que geram uma “pro-vocação”, modo específico de descobrimento das vocações, um vínculo, um pertencimento, um compartilhar. A vocação do homem é o imaginário, afirma Silva (2017), “arranca o ser da banalidade e, pelo bem ou pelo mal, pelo sublime ou pelo hediondo, dissemina significados que não podem ser apagados com toda prosa do cotidiano” (p. 108).

Também está o imaginário no recobrimento e no depósito de material significativo do terreno fértil, está onde há saturação, acúmulo, no que se sobrepõe e no que gera saliência. O imaginário está na surpresa diante do que está a ser descoberto na passagem da aldeia para a cidade natal e desta para a metrópole. É o deslumbramento da novidade, que gradativamente vai se perdendo pelo costume, até se deparar com a fantasia de encontrar um lugar maior que o quintal que estávamos acostumados a trilhar.

Silva segue questionando o imaginário a partir da produção de sentidos, no jogo da linguagem, como sugere Wittgenstein (1987) e na produção da interpretação dos acontecimentos para Deleuze (1974) que sugere cercar o imaginário pelo excesso, uma erupção da lava simbólica dos acontecimentos. Silva também contrapõe a interpretação (dialógico entre duas partes) da compreensão (reconhecimento do outro que surpreende, atrai e fascina) e da explicação (descrição do outro). Fala do descobrimento como forma de trazer à tona sentidos encobertos, por meio de inúmeros pares intercambiáveis como memória no esquecimento, sentido na ausência, luz e obscuridade, obsessão e encantamento, diferença e repetição, entre tantos outros.

De toda forma, nos faz perceber que, depois de tiranias realistas, também há o temor quanto aos imaginários tirânicos, à imposição de imaginários que suplantam o real e nos (i) mobilizam coletivamente. O imaginário também pode se impor como autoritário, ditatorial, fascista, constrangedor. Silva nos revela que ninguém é autor do seu imaginário na escrita autobiográfica: o imaginário se impõe ao imaginante como um texto extraído de suas vivências, onde não há autonomia deste imaginante. “Ninguém pode rejeitar o imaginário, nem se negar ao imaginário. O imaginário é uma submissão” (Silva, 2017, p. 167-168).

Navegar no imaginário é sempre uma aventura, nos garante o autor. Faz-se necessário adentrar ao bosque encantado e explorar o que transborda desse simbólico. O imaginário como instância do real, se faz presente. Negá-lo não deixa de constituir também um imaginário.
A obra que aqui analisamos traz reflexões que não se esgotam. Certamente não era essa a intenção do autor, por mais criteriosa e densa que tenha sido sua pesquisa. Mas ao desdobrar suas reflexões, ele respeita a natureza do objeto em análise. O imaginário é…

Na resposta cabem outras possibilidades que excedem os significados apontados em seu texto. O que não se pode negar é a contribuição relevante do autor para problematizar o imaginário com essa roupagem instigante de um excedente, pela diferença e pelo descobrimento, nas inúmeras camadas de sentidos que podemos ir raspando do real que nos é possível escavar.

Referências

AUTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

BALZAC, H. A comédia humana. Org. Paulo Ronai. Porto Alegre: Editora Globo: 1954.

BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulação. Lisboa. Relógio d’Água, 1991.

BRETON, A. Manifestos do surrealismo. São Paulo: Brasiliense, 1985.

DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1974.
Revista Memorare, Tubarão, SC, v. 4, n. 2 esp. dossiê I, p.192-200 maio/ago. 2017. ISSN: 2358-0593.
200

DURAND, G. O Imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: DIFEL, 1999.

DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

GARCIA-MÁRQUEZ, G. Olhos de Cão azul. Rio de Janeiro: Record, 1974.

HOHLFELDT, A. Os estudos sobre a hipótese do agendamento. In: Revista Famecos. Porto Alegre: Edipucrs, nº 7, novembro de 1997, p. 41-52.

KAFKA, F. A metamorfose. São Paulo: Brasiliense, 1986

LACAN, J. RSI. Le séminarie. 1974/1975.

MAFFESOLI, M. O conhecimento comum. Porto Alegre: Sulina, 2008.

NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira. São Paulo: Hedra, 2008.

SILVA, J. M. Diferença e descobrimento: O que é o imaginário? A hipótese do excedente de significação. Porto Alegre: Sulina, 2017.

SILVA, J.M. Tecnologias do Imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2012.

WITTGENSTEIN, L. Tratado Lógico-filosófico e investigações filosóficas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.

Anderson dos Santos Machado –  Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Porto Alegre, RS, Brasil. Doutorando em Comunicação pela PUCRS. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]

 

Objectivity & diversity: another logic of scientific research – HARDING (SS)

HARDING, Sandra. Objectivity & diversity: another logic of scientific research. Chicago/London: The University of Chicago Press, 2015. Resenha de: AYMORÉ, Débora. Objetividade forte como alternativa à ciência livre de valores. Scientiæ Studia, São Paulo, v.15, n. 1, p. 175-86, 2017.

A obra Objectivity & diversity: another logic of scientific research (2015), de Sandra Harding, aponta para um modo alternativo de fazer ciência, baseando-se na premissa de que os compromissos sociopolíticos favoráveis à diversidade e os compromissos epistêmico-científicos com a objetividade não precisam ser necessariamente conflitantes. Colocados em uma gradação, os capítulos culminam no último, que resume os seis principais argumentos acerca da objetividade desenvolvidos pela autora, tornando-se um ponto de partida possível para o contato com o conteúdo da obra. Os argumentos desenvolvidos na sequência dos capítulos são:

Capítulo 1. Argumento de que as consequências das pesquisas do ocidente desbordam seus limites territoriais: as consequências distribuem-se globalmente, como no caso das políticas de modernização realizadas a partir do final da Segunda Guerra Mundial e início da Guerra Fria.

Capítulo 2. Argumento da homogeneidade valorativa dos pesquisadores como desvantajosa para a pesquisa: pesquisadores com características homogêneas tendem a apresentar menor capacidade de reconhecimento dos valores e dos interesses que estruturam suas próprias pressuposições, políticas e práticas.

Capítulo 3. Argumento da objetividade forte: a crítica de pressupostos sexistas e androcêntricos resultou na proposta de pesquisa exercida a partir de baixo e, consequentemente, da objetividade forte, pois nela a diversidade das situações sociais é levada em consideração.

Capítulo 4. Argumento de confiabilidade do conhecimento tradicional: derivado dos estudos pós-coloniais da ciência e da tecnologia, parte do reconhecimento da influência recíproca entre a ciência e a sociedade em que ela está situada e na qual ela é produzida.

Capítulo 5. Argumento da escolha política e historicamente situada da perspectiva da ciência livre de valores: as políticas de desenvolvimento e a pesquisa científica nos moldes ocidentais impuseram-se de modo quase exclusivo, sugerindo a ideia de unidade. No entanto, tal imposição é concebida por posturas críticas como corroborando a formação do caráter triunfal e excepcional da ciência do ocidente. Embora a ideia da unidade da ciência esteja relacionada aos primórdos do Círculo de Viena, houve um esvaziamento do significado político de tal proposta.

Capítulo 6. Argumento do secularismo ocidental: o secularismo moderno ocidental, cristão e protestante em alguns aspectos, impacta na produção de conhecimento. Ademais, o conhecimento tradicional avança, mesmo que imerso em crenças religiosas.

Além disso, o argumento de que a ciência e as sociedades são coproduzidas e constituem-se mutuamente é trabalhado especialmente no capítulo 7 e também nos capítulos 1, 2, 3 e 6. Derivado dos estudos sociais da ciência e da tecnologia e desenvolvido a partir dos movimentos feministas e de contestação da discriminação racial e de classe; este é o argumento principal da autora, já que prepara a defesa mais direta da objetividade forte e da proposta de uma ciência com consequências intelectuais e políticas em consonância com a diversidade (cf. p. 18-22, 24, 27, 53, 71, 148).

1 A QUESTÃO DA OBJETIVIDADE

Harding afirma que a objetividade trata do papel dos valores e dos interesses envolvidos na atividade científica, que pode variar desde o não reconhecimento desse papel até o seu pleno reconhecimento, que é a proposta que defende (cf. p. 35-6). O tema da objetividade torna-se relevante desde Galileu Galilei (1564-1642), perpassando o movimento iluminista (séc. XVIII) e, em nossos dias, estaria especialmente associado à produção científica. Atualmente, no entanto, apresenta-se como dominante a perspectiva da ciência livre de valores e, desse modo, nega-se a influência dos valores e dos interesses na atividade científica.

A partir do final da Segunda Guerra Mundial os países vencedores multiplicaram as políticas de desenvolvimento em relação aos países menos desenvolvidos (ou do sul global) (cf. p. 1-2). O propósito era o de expandir a ciência e a tecnologia, para impedir o avanço da ideologia comunista. Acreditava-se que, supridas as necessidades humanas, não haveria lugar para o desenvolvimento do ímpeto revolucionário.

As ciências sociais demostraram a manutenção e mesmo o agravamento da situação dos grupos vulneráveis em termos econômicos, políticos e sociais, ao explicitarem o baixo benefício social obtido por essas políticas. Elas revelaram-se especialmente nocivas às mulheres e às crianças do sul global, ou dos países em desenvolvimento, que passaram por processo de gradativa pauperização concomitantemente aos investimentos em desenvolvimento econômico, cujos benefícios foram, por sua vez, absorvidos em grande parte por elites locais. Além disso, a crise financeira dos anos 1980 mudou as exigências do Banco Mundial, que impôs a suspensão dos investimentos em serviços sociais, forçando os países devedores a pagarem os empréstimos.

Especificamente o debate relativo à mulher, ao gênero e ao desenvolvimento iniciou-se com a publicação do livro Woman’s role in economic development, de Ester Boserup (1970). Ela atribui o empobrecimento das mulheres ao fato de elas não terem recebido a mesma educação técnica dos homens. Segundo Harding, com exceção do trabalho de Amartya Sen (1990), ainda existe pouca influência das críticas levantadas por Boserup no contexto das investigações sobre desenvolvimento (cf. p. 56).

Contemporaneamente, em virtude da baixa distribuição dos benefícios sociais, os movimentos de justiça social defendem a transformação da produção de conhecimento, pois isso permitiria a visualização das injustiças provocadas pelas políticas de desenvolvimento. Harding questiona, assim, se não seria mais benéfico socialmente, ao invés de negarmos a presença dos valores e dos interesses na produção de conhecimento (perspectiva da ciência livre de valores), escolhermos conscientemente os valores e os interesses que derivem das necessidades locais dos grupos em situação de vulnerabilidade.

A partir desse questionamento tornam-se claras as opções quanto à objetividade científica: por um lado, a objetividade fraca, aquela já praticada predominantemente pela ciência, contribuindo para a invisibilidade de populações histórica e socialmente oprimidas, devido ao não reconhecimento dos valores e interesses envolvidos; por outro lado, a proposta de Harding de objetividade forte requer dar visibilidade aos grupos oprimidos, tomando-os como participantes da pesquisa e não apenas como objetos de investigação ou como consumidores dos seus resultados. Doravante, então, o benefício social ganharia o seu real significado, dada a atenção às necessidades apontadas por tais sujeitos, especialmente naquelas pesquisas que impactam diretamente em suas vidas.

É justamente nesse ponto que a diversidade ganha importância central e corrobora o sentido da promoção da objetividade forte, devido à necessidade de inclusão dos grupos social, política e economicamente excluídos no processo de decisão. Assim, incluir a diversidade exige o reconhecimento de valores e de interesses além dos dominantes, promovendo uma “ciência participativa” (p. xi). Para o cientista, social ou natural, o reconhecimento de interesses e valores diversos aos seus requer não apenas uma sensibilização quanto à opressão a que são submetidas parcelas significativas do contingente populacional, mas também o reconhecimento dos sujeitos como efetivamente participantes da pesquisa. As populações vulneráveis teriam algo a dizer, por exemplo, sobre suas próprias necessidades e ainda sobre o modo de supri-las.

Desse modo, Harding concentra sua análise na objetividade da pesquisa em termos dos métodos e das metodologias empregadas, embora reconheça, assim como Alan Megill (1991), que existem outras três dimensões da objetividade, a saber: a que considera determinados grupos como presumivelmente mais objetivos (centrada recorrentemente no homem branco ocidental), a que se concentra nos resultados da pesquisa e, finalmente, a centrada nos ideais, padrões e práticas necessárias ao reconhecimento de determinadas comunidades como científicas.

Através da abordagem que privilegia os métodos e metodologias utilizadas na produção do conhecimento, Harding visa promover a objetividade forte que, segundo a autora, decorre dos movimentos de justiça social e, ao mesmo tempo, proclama a necessidade de desenvolvimento da “ciência a partir de baixo” (cf. p. 36, 119). Mesmo sensível aos valores e interesses de grupos vulneráveis, a objetividade forte não requer o descarte dos padrões de conhecimento confiável apresentados pela filosofia da ciência contemporânea, dado que eles permanecem como requisitos epistemológicos.

2 A OBJETIVIDADE FORTE

A partir das discussões desenvolvidas pelas feministas nas décadas de 1970 e 1980 emergiu uma nova forma de maximização da objetividade, exigindo critérios mais fortes que os anteriores, pois estes permitiram a instalação de pressupostos e práticas sexistas e androcêntricas nas pesquisas, por exemplo, da biologia e das ciências sociais.

A etnografia é exemplar desses esforços críticos, tendo, na década de 1970, procurado demonstrar a confiabilidade das pesquisas qualitativas, em um contexto que considerava a pesquisa quantitativa como promotora da ciência livre de valores e, portanto, da objetividade fraca.

Além disso, os pressupostos androcêntricos prejudicaram o desenvolvimento da objetividade forte. Na biologia, na pesquisa médica e na saúde, por exemplo, o corpo feminino foi concebido como distinto do masculino devido aos sistemas hormonal e reprodutivo, bem como pelo tamanho menor do cérebro e aparente limitação das funções cerebrais femininas. A menstruação, a gravidez, o parto e a menopausa foram tratados como problemas cuja solução é provida pelas indústrias médica e farmacêutica. Outro caso advém das ciências sociais, em que a atividade e os comportamentos femininos sequer foram tratados, ou foram mal representados, insinuando que apenas as relações de gênero importavam na representação da condição das mulheres.

Finalmente, na epistemologia, na filosofia da ciência, na sociologia do conhecimento e na teoria política, começaram a emergir as teorias do ponto de vista (standpoint theories). Precedidas pela análise do proletariado realizada pelo marxismo, as feministas procuraram demostrar que as sociedades baseadas em estruturas desiguais tendem a expressar o conhecimento e as crenças dos grupos dominantes.

Resumidamente, o que se considerava maximizar a objetividade nas investigações sociais e naturais eram, na verdade, estereótipos sexistas e androcêntricos, que, segundo as feministas, restringiam o processo de pesquisa. Assim, a teoria do ponto de vista propôs iniciar a pesquisa fora do quadro conceitual dominante, tal como no caso da vida cotidiana dos grupos oprimidos, entre os quais se situam as mulheres. O reconhecimento da multiplicidade de valores e de interesses envolvidos, bem como a abordagem localmente específica dos mesmos, reforça a objetividade forte, visibilizando grupos vulneráveis.

A objetividade forte derivada das teorias do ponto de vista promove o reconhecimento de que a ciência é praticada em um mundo real, descartando a abstração de uma ciência totalmente controlada pela razão. Desse modo, considera prejudicial à pesquisa a homogeneidade dos pesquisadores, que muitas vezes refletem práticas convencionais da ciência livre de valores. Harding explicita, assim, que as críticas feministas e a promoção da objetividade forte estão alinhadas aos pressupostos dos estudos sociais da ciência e da tecnologia (social studies of science and technology).

Embora a objetividade esteja sujeita a diferentes abordagens (a metodológica, as que presumem certos grupos como mais objetivos, a concentrada nos resultados da pesquisa, e a centrada em ideais, padrões e práticas necessárias ao reconhecimento das comunidades científicas), ela é utilizada em certos contextos para caracterizar a capacidade ou a incapacidade de determinados indivíduos e grupos para realizá-la. O que, não por acaso, exclui mulheres, afro-americanos e o conhecimento tradicional não ocidental, por afirmá-los como condicionados pelo autointeresse e pela subjetividade (cf. p. 32).

Diversamente, o método apropriado de produção de conhecimento é aquele capaz de dar visibilidade aos valores sociais, aos interesses e aos pressupostos que os pesquisadores agregam à pesquisa. Porém, nas situações em que esses mesmos valores, interesses e pressupostos parecem ser compartilhados por praticamente todos os pesquisadores, como é o caso da supremacia masculina e do eurocentrismo, a tendência é a formação da objetividade fraca, por promoverem, aparentemente, o que a filosofia tradicional chamou de “visão a partir de lugar nenhum” (p. 34, 36).

3 A FUNÇÃO DA DIVERSIDADE NA NOVA LÓGICA DA PESQUISA

A nova lógica da pesquisa proposta por Harding requer, então, uma inversão de prioridades. Ao invés de as pesquisas reforçarem valores (ocidentais, brancos e masculinos) e interesses (políticos e econômicos relacionados ao desenvolvimento), priorizam-se nos métodos empregados os valores e interesses daqueles para os quais a pesquisa em ciência e tecnologia é dirigida. Segundo Harding, um modo de realização da objetividade forte é, justamente, a reintrodução da diversidade valorativa nas comunidades de pesquisa.

Porém, é preciso deixar claro que nem toda perspectiva diversa interessa. Não existe interesse, por exemplo, na perspectiva neonazista ou da supremacia branca. Promove-se, assim, de modo especial a perspectiva

(…) das pessoas pobres, de “minorias” étnicas e raciais, de pessoas de outras culturas, de mulheres, de minorias sexuais e de pessoas com deficiências (…), perspectivas de diversidade mais amplamente utilizadas a partir das quais as reivindicações de conhecimento dominantes em todas as disciplinas começaram a ser reavaliadas (p. 36).

 

Além da identificação dos pressupostos dominantes na pesquisa, é preciso fazê-la avançar no conhecimento do que as comunidades particulares desejam e do que muitas vezes necessitam. A partir dessa perspectiva, Harding apresenta uma nova lógica da investigação, apoiada na epistemologia e na metodologia do ponto de vista. Embora a expressão “lógica da investigação” esteja especialmente associada aos positivistas lógicos, a autora a utiliza em sentido comum, entendendo-a como procedimento razoável de aquisição de conhecimento, capaz de incluir, por exemplo, o conhecimento tradicional no rol das pesquisas científicas.

Torna-se elucidativo retomar a questão do empobrecimento das mulheres e de seus dependentes que, segundo Harding, ocorre também nos países do norte industrializado. A teoria do ponto de vista permite o reconhecimento da atribuição dos encargos domésticos às mulheres, levando em conta as políticas de modernização desenvolvidas depois da Segunda Guerra Mundial e mantidas por quase quatro décadas depois, o que cria obstáculos para que elas invistam seu tempo em trabalhos assalariados realizados fora do ambiente doméstico.

Outro exemplo advém da demografia, que durante décadas correlacionou a pobreza a altos índices de natalidade, atribuindo a culpa do aumento da população à ignorância e à irresponsabilidade reprodutiva feminina. Além disso, dado que o trabalhador modelo das teorias de desenvolvimento são homens adultos empregados na indústria –, portanto, fora do ambiente doméstico – e sem filhos, torna-se invisível o trabalho doméstico feminino, bem como seu trabalho de meio-período ou sazonal, realizado fora do ambiente familiar. É o que levou Alison Jaggar (2009) a afirmar que a vulnerabilidade do trabalho assalariado feminino produz o recrudescimento de sua vulnerabilidade doméstica (cf. p. 66).

Nesse sentido, a perspectiva do ponto de vista aplicada ao contexto do trabalho permite o reconhecimento dos pressupostos androcêntricos de desvalorização do trabalho doméstico, bem como a identificação do modelo de trabalhador-padrão (homem, empregado na indústria e sem filhos), que é claramente excludente das mulheres. Dessa forma, critica-se a forma tradicional de compreender a economia doméstica a partir da adoção de ponto de vista oposto, sendo preciso incorporar à abordagem os outros agentes sociais (mulher, esfera doméstica e filhos), ausentes na visão promovida pelo predomínio da perspectiva androcêntrica.

4 O CONHECIMENTO TRADICIONAL É CONfiÁVEL

Além das questões de gênero, outro embate da perspectiva do ponto de vista é com o eurocentrismo. Embora não reconhecido como ciência pelos cientistas e pela maioria dos filósofos, o conhecimento tradicional de povos nativos, tal como as observações que fazem do meio ambiente, são utilizados pela ciência ocidental ao menos desde 1492 até o presente.

O baixo reconhecimento reforça a visão excepcional e triunfalista da ciência moderna ocidental, ainda mais se consideramos sua afirmação de que o conhecimento tradicional é apenas mito, magia ou superstição. Contudo, antes do contato com os colonizadores, as sociedades primitivas já existiam e produziam conhecimento, mesmo que posteriormente tenham angariado benefícios científicos e a expertise técnica pelo contato com os colonizadores.

De modo a reconhecer o caráter epistemologicamente confiável do conhecimento tradicional, Harding trata do exemplo de navegação dos Micronésios, que é trabalhado por Ward Goodenough (1996), e do exemplo dos caçadores de gansos canadenses, analisado por Colin Scott (1996).

Quanto aos navegadores das ilhas Micronésias do Pacífico, é notório que conseguem não apenas navegar em canoas abertas, como também efetivamente retornar para casa, o que demonstra conhecimento de navegação relacionado à astronomia, à climatologia, à oceanografia e à cartografia.

Já os caçadores de gansos Cree, procedentes da Bahia de James, Canadá, desenvolveram técnicas de caça não predatórias, mantendo o abastecimento com base em uma compreensão igualitária entre gansos e humanos, segundo a qual a caça só se entrega aos caçadores quando neles identifica o respeito de suas necessidades, por exemplo, ambientais.

Assim, o reconhecimento do modo como os caçadores Cree se relacionam com a caça e com o mundo como uma prática científica depende de se identificamos a ciência como universal ou culturalmente específica. Caso seja sufi ciente como critério de cientificidade a realização de atividade que extrai inferências dedutivas de premissas e que as verifica deliberada e sistematicamente na experiência, levando a ajustes dos modelos de mundo conforme as regularidades observadas, então, sim, eles realizariam ciência.

Mesmo o ponto de vista religioso, sobre o qual muitas vezes o conhecimento tradicional se assenta, não é considerado impeditivo para o avanço da ciência ocidental. Pois, ainda que buscando diferenciar as duas formas de produção de conhecimento, “(…) resulta que esses dois legados culturais, incluindo, por exemplo, os compromissos especificamente cristãos e mesmo protestantes do ocidente, são frequentemente produtores do avanço do conhecimento científico” (p. 89), o que pode ser exemplificado pela física, pela química e pela genética.

Em suma, o conhecimento tradicional representa o mundo natural, que é administrado pela cultura tradicional, de modo correspondente aos anseios e necessidades locais. Inclui elementos de antropomorfismo, religiosos e espirituais, sem que se tornem radicalmente distintos do conhecimento científico ocidental, conclusão essa reforçada pela ideia de que a ciência ocidental moderna desenvolve um secularismo resultante da hibridização do cristianismo e do protestantismo.

5 O SECULARISMO E A FALTA DE UNIDADE DA CIÊNCIA

A tese do secularismo está associada à proposta de unidade da ciência do Círculo de Viena, devido à busca de critério de demarcação entre ciência e não ciência. Reforçouse também um posicionamento desencantado da ciência ocidental moderna, admitindo o homem como responsável pela melhoria das suas condições de vida e a ciência como instrumento central nesse processo.

Desse modo, o secularismo levou à rejeição de sistemas de conhecimento não ocidentais. Mas críticas posteriores de intelectuais do sul global explicitaram que, na verdade, o secularismo do norte global deriva da influência cristã e protestante, que secularizou práticas cristãs ao tornar individuais os compromissos e as práticas religiosas, ao desfazer a relação entre os compromissos religiosos e as cerimônias coletivas, bem como ao transferir as experiências religiosas ao âmbito privado.

Além disso, o secularismo híbrido da ciência ocidental provoca duas consequências políticas indesejáveis: o racismo e a violência colonial. Por exemplo, Sullivan (2010) afirma que questões relevantes para a filosofia da religião não são signifi cativas para populações negras que associaram a religião ocidental à supremacia branca, o que acaba por criar um clima hostil para essas populações não brancas (cf. p. 135). Quanto à violência colonial, Jakobsen e Pellegrini (2008) afirmam que os que resistem ao secularismo dominante (híbrido cristão e protestante) são vistos como ameaça à moralidade cristã, o que transforma os não resistentes em agentes reforçadores da proposta civilizatória ocidental. Nesse sentido, a falta de unidade da ciência pode ser reconhecida, inclusive, como benéfica à objetividade forte, já que implica, em termos políticos, a inclusão de diferentes grupos sociais, tais como os judeus, os homossexuais, os ciganos e os socialistas, grupos estes diretamente perseguidos ou mesmo gradualmente silenciados na Segunda Guerra Mundial e na Guerra Fria (cf. p. 118).

Ecos da discussão sobre a falta de unidade da ciência estiveram presentes na “guerra das ciências” no final da década de 1990. Nela os posicionamentos das feministas e dos pós-modernos foram considerados como encorajamento ao irracionalismo e desrespeitosos em relação ao benefício público obtido a partir da pesquisa científica, o que poderia levar à diminuição dos investimentos.

Na filosofia, Paul Feyerabend (1975) apresenta a primeira crítica antiautoritária na filosofia da ciência, paralelamente às considerações de Thomas Kuhn (1970) que reconhecem as várias linguagens e representações de mundo disponibilizadas pelas mudanças de paradigma. Porém, Harding considera com especial atenção a obra de Georg Reisch (2005), por sua elucidação das conexões políticas do argumento da unidade da ciência.

A concepção da unidade da ciência prevalescente nos anos de 1950 não era a pretendida pelo Círculo de Viena. Formado originalmente por participantes alinhados ao socialismo e por judeus, sua discussão sobre a unidade da ciência apresentava implicações políticas claras, que foram posteriormente esvaziadas, contribuindo para o estabelecimento da tese da ciência livre de valores (cf. p. 114). Disso resulta a aproximação da discussão sobre a falta de unidade da ciência e das críticas pós-coloniais à ciência (cf. p. 115), já que tais críticas admitem a multiplicidade política inclusive nos contextos de produção de conhecimento.

Por esses e outros motivos o caráter excepcional e triunfalista da postura secular ocidental precisa ser repensado, tendo em vista a promoção de uma filosofia da ciência com consequências intelectuais e políticas melhores, tal como prefigurado pelos defensores da falta de unidade da ciência. Desse modo, a falta de unidade da ciência alinha-se também aos objetivos democráticos do multiculturalismo.

QUESTÃO FINAL

O leitor encontra na obra Objectivity and diversity a defesa e a visibilidade de situações de gênero ricamente exemplificadas por pesquisas científicas, como no caso da situação do trabalho feminino frente às políticas de modernização; e também a defesa racional da objetividade forte, distanciando-se, assim, de um ativismo feminista passional. A obra é crítica e propositiva, dirigindo-se para uma nova concepção de ciência, o que requer, evidentemente, tanto o escrutínio dos pares (filósofos, cientistas sociais, sociólogos etc.) quanto dos cientistas que busquem aplicar em suas pesquisas a epistemologia e a metodologia do ponto de vista.

Cabe ressaltar que Harding pressupõe que a ciência e as sociedades se coproduzem-se e constituem-se mutuamente, fazendo com que a produção do conhecimento torne-se cada vez menos baseada em uma estrutura hierarquizada, afastando-se de pretensões universalistas nos seus resultados. Para atingir esse resultado é preciso adotar a nova lógica da pesquisa: a perspectiva do ponto de vista, pois nela o investigador e o investigado são colocados em condição de igualdade, apontando para graus de participação na pesquisa, que se volta aos valores e interesses dos grupos vulneráveis e localmente considerados.

Desse modo, a proposta de Harding apresenta-se como alternativa às pesquisas centradas na universalidade abstrata, que é imposta aos contextos investigados, tornando invisíveis o gênero, a raça e outros fatores socialmente relevantes. Ela requer pesquisas alternativas que considerem particularidades concretas e, assim, atribui função para populações vulneráveis na produção do conhecimento, integrando suas necessidades como relevantes ao método de investigação e promovendo uma ciência participativa a partir de baixo.

No entanto, mesmo as pesquisas que aplicam a epistemologia e a metodologia do ponto de vista, visibilizando grupos vulneráveis, dirigem-se à realização de objetivos tão particulares quanto as pesquisas com pressupostos androcêntricos. Assim, estaríamos diante da situação em que tanto uma quanto outra pesquisa são relevantes? E, nesse sentido, seria possível substituir a objetividade fraca pela forte, ou a objetividade forte, para ser identificada como tal, precisa estar sob o pano de fundo de sua adversária?

Tais perguntas apontam para um aspecto pouco explorado pela obra, a saber, o da diversidade da pesquisa que não é atingida por uma pesquisa em particular, mas por várias pesquisas científicas, por vezes imersas em compromissos epistêmicos, políticos e valorativos conflitantes entre si. Talvez a ideia que melhor expresse a proposta de Harding quanto à inclusão da diversidade seja, então, a de estratégia de pesquisa, defendida por Hugh Lacey (cf. 1999, 2005, 2008, 2010) e os desenvolvimentos do modelo da interação entre a atividade científi ca e os valores explicitados por Lacey e Mariconda (2014).

Tal como Lacey, Harding peleja diretamente contra a perspectiva da ciência “livre de valores”, defendendo o reconhecimento da influência dos valores na atividade científica; contudo a autora não explicita, como Lacey o faz, que tipo de valores (cognitivos e não cognitivos) influenciam e devem influenciar a pesquisa e em qual etapa da investigação tal influência é legítima para a produção de conhecimento científico confiável.

Reforce-se ainda a ideia de que a estratégia de pesquisa – na expressão de Lacey – identificada por Harding é a da diversidade, adotada a partir das teorias do ponto de vista. Desse modo, ela privilegia em sua proposta valores concernentes a populações histórica e politicamente vulneráveis, tais como as mulheres, os negros, as populações tradicionas, bem como as pertencentes ao sul global. Estas expressam, cada uma a sua maneira, valores e necessidades próprios, que apresentam dificuldades para serem todos incluídos em uma única pesquisa.

Portanto, a homogeneidade dos pesquisadores não seria nociva apenas ao reconhecimento da tendenciosidade a que tais pesquisas estão sujeitas, mas igualmente para o alcance de um conhecimento mais abrangente produzido a partir de várias pesquisas científicas engajadas na mesma estratégia que, para Harding, é a de sensibilização do pesquisador em relação à diversidade valorativa e política das populações vulneráveis.

Referências

BOSERUP, E. Women’s role in economic development. London: Earthscan, 1970.

FEYERABEND, P. Against method. London: New Left Press, 1975.

GOODENOUGH, W. H. Navigation in the Western Carolines: a traditional science. In: Nader, L. (Ed.). Naked science: anthropological inquiry into boundaries, power, and knowledge. New York: Routledge, 1996. p. 29-42.

HARDING, S. Objectivity & diversity: another logic of scientific research. Chicago/London: The University of Chicago Press, 2015.

JAGGAR, A. Transnational cycles of gendered vulnerability: a prologue to a theory of global gender justice. Philosophical Topics, 37, 2, p. 33-52, 2009.

JAKOBSEN, J. R. & Pellegrini, A. (Ed.). Secularisms. Durham, NC: Duke University Press, 2008.

KUHN, T. S. The structure of scientific revolutions. 2 ed. Chicago: University of Chicago Press, 1970.

LACEY, H. Is science value free? Values and scientific understanding. London: Routledge, 1999.

_____. Values and objectivity in science. The current controversy about transgenic crops. Oxford: Lexington Books, 2005.

_____. Valores e atividade científica 1. 2. ed. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia/ Editora 34, 2008.

_____. Valores e atividade científica 2. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia/ Editora 34, 2010.

LACEY, H. & Mariconda, P. R. O modelo das interações entre as atividades científicas e os valores. Scientiae Studia, 12, 4, p. 643-68, 2014.

MEGILL, A. Rethinking objectivity. Annals of Scholarship, 8, 3, 1991. p. 301-28.

NADER, L. (Ed.). Naked science: anthropological inquiry into boundaries, power, and knowledge. New York: Routledge, 1996.

REISCH, G. A. How the cold war transformed science: to the icy slopes of logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

SCOTT, C. Science for the west, myth for the rest? In: Nader, L. (Ed.). Naked science: anthropological inquiry into boundaries, power, and knowledge. New York: Routledge, 1996. p. 69-86.

SEN, A. More than 100 million women are missing. New York Review of Books, 20, p. 61-66, 1990.

SULLIVAN, S. The secularity of philosophy: race, religion, and the silence of exclusion. In: Yancey, G. (Ed.). The center must not hold: white women philosophers on the whiteness of philosophy. Lanham: Lexington Books, 2010. p. 153-66.

YANCEY, G. (Ed.). The center must not hold: white women philosophers on the whiteness of philosophy. Lanham: Lexington Books, 2010.

Débora Aymoré – Núcleo de Estudos da Cultura Técnica e Científica, Departamento de Filosofia. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[DR]