Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil – MENDONÇA (VH)

MENDONÇA, Joseli Maria Nunes de. Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Unicamp, 1999. Resenha de: RICCI, Magda. Varia História, Belo Horizonte, v.16, n.23, p. 241-245, jul., 2000.

Quem já não ouviu falar da Lei dos Sexagenários? Lei conhecida. Malfadada lei. Promulgada em 28 de setembro de 1885, seu texto e contexto social foram, durante muito tempo, crivados por interpretações que menosprezavam os seus significados mais marcantes. Para alguns parecia inútil estudá-la. Argumentava-se que o teor da lei de 1885 parecia colocá-la na contramão do processo abolicionista. Libertar idosos aos 60 anos de idade, impondo-lhes ainda mais um período de 5 anos sob a tutela senhorial, em um regime de liberdade condicional, parecia fora de lugar e tempo. Desta forma, a lei de 1885 significava uma ultrapassada fórmula de emancipação lenta e gradual, que só fazia sentido dentro de uma desesperada tentativa escravocrata e senhorial de continuar a sustentar um regime social que tinha, em princípio, os dias contados dentro da lógica capitalista que se estabelecia. Assim, a lei de 1885 pôde ser menosprezada durante muito tempo.

Ao longo das décadas de 1960 e 1970, estudar os últimos tempos da escravidão no Brasil foi se tornando sinônimo de análises sobre a ação direta dos negros por liberdade, ou sobre os problemas que impediram estas ações. Deste modo, por um lado, restava pesquisar os levantes, quilombos e fugas escravas. Do outro lado da questão estava uma perspectiva política e historiográfica que percebia a escravidão como uma luta dos escravos para se desvencilhar do espectro do sistema ou modo de produção escravista. Estes estudos muitas vezes levaram o historiador da escravidão no Brasil para longe da legislação, porque esta última remetia ao campo de análise do supra-estrutural, sendo um terreno ideologicamente construído. Dentro deste contexto, o estudo das leis remetia a um outro debate historiográfico.

A maioria das pesquisas sobre as leis ou sobre a esfera política, em um sentido mais restrito, acabava enfatizando as vicissitudes da vida política Imperial, com a descrição das turras partidárias entre liberais, conservadores e republicanos na criação do mundo oligárquico e clientelista, desnudado, em sua plenitude, somente depois de 1889. Ou ainda desembocava em estudos que revelavam a ascensão ao poder do grupo dos cafeicultores paulistas, em especial os do chamado oeste paulista que, moradores em zonas fronteiriças, eram imigrantistas e abolicionistas, tornando-se, desta forma, descortinadores de uma nova mentalidade social: a saber, aquela que fazia a apologia ao trabalho livre e à civilização dentro dos padrões europeus. Desta forma, ficava exposto um fosso entre os estudos sobre escravidão, e aqueles reveladores da formação da classe trabalhadora no Brasil, como bem mostrou um estudo de Silvia Hunold Lara1.

Por tudo o que foi descrito, a lei de 1885 parecia fadada ao esquecimento. Inútil politicamente e incorreta para entender o processo de abolição, ela, no máximo, seria relevante para uma história da elite política e econômica, que desembocou na crise do Império escravocrata e na proclamação da primeira república imigrantista e civilizadora. No entanto, como afirma o historiador francês Jacques Le Goff, a roda da fortuna sempre gira e, em uma de suas voltas, o que era turvo ilumina-se de uma maneira especial.

O livro de Joseli Mendonça dota a lei e seu contexto de uma nova vida, iluminando, com outros significados, um passado que parecia esquecido nas velhas páginas dos jornais e do parlamento Imperial. Qual a mudança de perspectiva proposta por este estudo? Primeiramente, um trabalho de pesquisa sério e pormenorizado, que — saindo da letra da lei e dos íngremes debates parlamentares — atinge seus desdobramentos no seio da sociedade, passando pelos jornalistas e chegando às senzalas em inúmeros processos minuciosamente analisados. Por outro lado, Joseli Mendonça revê as relações sociais da escravidão nas últimas décadas do século XIX através de uma belíssima narrativa. Em seu livro, os documentos casam-se com a bibliografia, criando um texto rico em movimentos de ir e vir no tempo e no espaço, que nos faz sair das mais jocosas falas dos deputados, até as mais tristes histórias de vidas e de lutas de escravos e abolicionistas em torno do que deveria ser a abolição ou a liberdade individual e social.

São quatro capítulos que nascem e vão crescendo em complexidade no decorrer da narrativa. O primeiro caminha de uma lei abolicionista para outra, ou seja, do passado de 1871 até o ano 1885. Nele, paulatinamente, constrói-se um percurso que une a tramitação e cláusulas das leis com suas interpretações e usos por parte de abolicionistas e escravos. Em um segundo momento, a autora penetra em seu tema central: os libertos e a Lei dos sexagenários. Indo de 1871 até 1885, Joseli Mendonça vai somando documentos, reunindo indícios os mais diversos para expor a questão central do período, ou seja, como conduzir com segurança o processo de passagem do mundo escravo para o livre. Ali a autora explicita o quanto esta questão evidencia um momento em que todos, univocamente, pareciam ser favoráveis à abolição da escravidão. No entanto, havia discordâncias as mais diversas sobre o processo que levaria à liberdade escrava. Questões como o controle do trabalhador liberto e a indenização da propriedade escrava estavam no centro do debate, que, entre outras conseqüências, derrubou o ministério Dantas e fez subir o Saraiva.

Contudo, Joseli Mendonça vai além das falas parlamentares como reflexo de um debate sobre a transição entre duas formas de trabalho no século XIX. Ao tocar no polêmico ponto do controle social do liberto ou na questão da propriedade escrava, a autora envereda sua análise para os significados e práticas sociais em torno destes aspectos. Neste sentido, senhores e escravos, desde 1871, mas, sobretudo, depois de 1885, começam a perceber o acirramento de um debate sobre os limites da legitimidade do poder ou do domínio senhorial, o que, em última instância, inaugura uma discussão sobre os sentidos da liberdade e a construção da cidadania no Brasil.

Afinal, o que era a liberdade ou o fim da escravidão? Se hoje podemos perceber o processo desencadeado entre 1871 e 1888 como a transformação de escravos em trabalhadores, ou a passagem de um modo de produção em que pessoas eram vendidas e compradas, para outro, em que se comprava e vendia apenas a força de trabalho, entretanto, para muitos homens e mulheres dos anos finais do século XIX, a liberdade certamente assumia outros pressupostos e significados. Utilizando-se de leis como as de 1885, fugindo, procurando abrigo entre os abolicionistas, muitos escravos buscavam uma liberdade mais ampla, que a de trocar seus senhores por patrões. É dentro desta perspectiva que a autora elabora os dois últimos capítulos e sua conclusão. É assim também que percebe o sentido de estudar leis como a de 1885, que não pode ser entendida apenas em seu teor supostamente positivo, mas, deve ser vista dentro dos pressupostos de sua ambigüidade e de seus múltiplos usos, tal qual enfatizava o historiador Edward Thompson para a lei negra na Inglaterra do século XVIII.

Um outro aspecto importante: o livro de Joseli Mendonça explicita a escravidão e a liberdade como problemas sociais e não como discursos ou representações das elites. As falas dos parlamentares, as dos jornalistas paulistas estão permeadas de suas experiências. Neste sentido, Joseli vê o texto dos deputados, dos jornalistas, bem como a letra da lei e o teor presente em seus vários projetos como frutos de relações sociais concretas em um contexto que vai sendo alterado cotidianamente pelos conflitos entre classes sociais distintas e resignificadas ao longo da luta.

Se há muitos e merecidos elogios ao livro, também existem críticas as quais, no limite, devem servir para continuar o movimento da roda da fortuna, dando sentido a novas investidas e outros estudos. Não se passa impunemente por uma análise tão densamente construída em torno da idéia de interpretação das leis e das classes sociais a partir dos estudos de Thompson. Depois de Formação da Classe Operária Inglesa e de Senhores e Caçadores, Thompson dedicou-se ao que denominou de “costumes em comum”. Assim, dentro do fazer-se de uma classe social, a questão cultural tornou-se fundamental. Neste ponto, apesar de várias notas explicativas e algumas incursões sobre a cultura escrava e a senhorial, o estudo de Joseli não procurou entender esta questão como central para a compreensão do mundo do liberto e de suas estratégias para pleitear e compreender os significados das leis na obtenção de sua liberdade. É muito mais dos embates sociais entre os escravos (classe) e o mundo senhorial, em especial em torno do espaço da justiça, que a autora retira suas explicações. Por seu turno, as páginas dos jornais paulistas, bem como os romances, a descrição dos viajantes e suas iconografias e tantos outros documentos, começam a servir de fontes para estudos que, ampliando o campo de luta escrava, o compreenda mais imbricado com os laços e disputas culturais que o conformavam.

Ainda neste sentido, também os diversos tipos de associações entre os escravos poderiam ser mais explorados. Eram em irmandades religiosas, nas festas e devoções aos santos e santas, nas rezas e práticas de cura e de feitiço que se teciam laços importantes para se entender as estratégias de luta escrava e sua contrapartida senhorial. Também carece de aprofundamento o estudo das inter-relações familiares, bem como as de compadrio, com aquelas oriundas da cultura negra, que foi se constituindo localmente. Talvez este entrelaçamento seja tão central quanto a bipolaridade senhor-escravo para a compreensão do universo de relações sociais constitutivos da sociedade paulista entre 1871-1888. Finalmente, eram nas igrejas que se faziam as eleições, que se reuniam os devotos e fiéis em louvor a um santo ou santa, que se discutia a pauta do dia das irmandades religiosas, que se benziam as rezadeiras e curandeiros.

Como fica claro, o livro de Joseli Maria Nunes Mendonça não esgota os caminhos da abolição em São Paulo e nem mesmo em Campinas. No entanto, depois dele fica difícil duvidar da abrangência e da gama de diferentes significados que se estabeleceram em torno do debate e promulgação da Lei dos Sexagenários. O que critico neste livro não é seu eixo central de análise, mas tão somente aponto que é possível ir mais longe através dele. Para terminar, volto ao princípio desta resenha, lembrando que quando um livro possibilita tecer uma enorme rede de significados, unindo — de forma rica e diversa — o presente com o passado, ele merece mais do que ser lido por trabalho e obrigação dos pesquisadores que estudam escravidão. Ao estabelecer o percurso da abolição e suas polêmicas como centro de análise, o estudo de Joseli nos faz lembrar o quanto a experiência de vida de homens e mulheres de 1885 podem ainda hoje ser importantes. Fazendo perceber que a justiça e a lei não são letras mortas e criadas de forma a serem sempre aplicadas positivamente, os escravos e escravas que Joseli estuda nos fornecem indícios de outros caminhos para os nossos dias.

Nota

1 Sílvia Hunold Lara. “Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil”. Projeto História: revista do programa de estudos de pós-graduação do Departamento de História da PUC/SP. no 16 (1998):25-38.

Magda Ricci – Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Pará.

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Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850 – CARVALHO (RBH)

CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850. Recife, Editora Universitária da UFPE, 1998, 353 p. Resenha de: RICCI, Magda. Revista Brasileira de História, São Paulo: v.20 n.39, 2000.

De repente um gemido. Certamente era de dor, certamente era fruto de uma execrada instituição que infelizmente governava o Brasil de 1831. Gritos escravos permeados pelo som do açoite. Eles constituíam a prova de que o castigo e a submissão grassavam o mundo Imperial, explicitando uma certa continuidade da exploração colonial. Restava aos negros crioulos e, especialmente aos africanos, a saída pela rebeldia pré-política. Restava-lhes o suicídio e a fuga para quilombos. Estas interpretações foram, durante muito tempo, temas prediletos dos pesquisadores da escravidão no Brasil. O outro lado desta história estava por ser pesquisado: a liberdade e seus muitos significados.

Aqueles gemidos acima referidos foram ouvidos no Recife de 1831 por Charles Darwin. Eles serviram de epígrafe ao livro de Marcus Carvalho, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850. Distanciando-se das interpretações mais corriqueiras, o ousado estudo de Carvalho, interpreta-os de uma outra forma, demonstrando uma clara afinidade com aquilo que de mais interessante vem sendo produzido pela atual historiografia sobre escravidão no Brasil.

A liberdade é um tema difícil, tanto quanto maravilhoso. Para estudá-la, de imediato, surgem alguns entraves. Primeiramente, o problema do foco central de análise. Até recentemente, estudos sobre liberdade no século XIX só faziam sentido dentro do mundo da escravidão e da relação bipolar entre senhores e escravos. Por este raciocínio, estudar a escravidão significava analisar um eterno conflito dentro de um sistema ou modo de produção a ser definido minuciosamente. No entanto, hoje esta abordagem pode, no mínimo, gerar “polêmica”1. No lugar das certezas do escravismo (ou escravismos) surgiram múltiplas abordagens da escravidão e da liberdade.

Desde a época ao redor do centenário da abolição, em 1988, nossos livros sobre os tempos do cativeiro têm trazido a público alguns inusitados escravos. Eles vêm saindo do universo quase auto-suficiente do trabalho nas fazendas de cana e café. Vêm entrando em outros espaços, criando complexas e fascinantes situações a seus senhores e a nós, historiadores e leitores do século XX. Ganharam as ruas das cidades2, invadindo as cabeças e fazendo ressurgir, sobre outros olhares, a prática dos abolicionistas e/ou imigrantistas da segunda metade do século XIX3. Deixando seus donos pasmos, foram à justiça, atrás de justiça e uma dada noção de cidadania. Por outro lado, fizeram eclodir rebeliões dentro e fora das senzalas. Aqui, porém, seus quilombos revigoraram-se sob outra perspectiva, que não a do isolamento. Quase sempre, estes fugitivos mantinham relações comerciais e culturais com o mundo senhorial4.

Certamente os nossos escravos mudaram muito nos livros de história dos últimos dez anos. No entanto, mesmo assim, continuaram escravos. Por mais que alguns estudiosos denunciem a benevolência e o paternalismo historiográfico dos pesquisadores dos anos oitenta para com a escravidão dos séculos XVIII e XIX no Brasil, creio que, na maioria absoluta dos trabalhos, a dimensão do sofrimento e da dor escrava nunca foi esquecida5. Se a liberdade era uma bandeira poderosa, a escravidão era seu contraponto. O mundo do escravo transitava entre o sonho da liberdade e o cotidiano da luta dentro da escravidão. É neste ponto que o livro de Marcus Carvalho pode ser exemplarmente ressaltado.

Seguindo o rico percurso traçado por trabalhos pioneiros como os de João José Reis, Leila Algranti ou Sidney Chalhoub6 e, ao mesmo tempo, centrado em uma documentação das mais valiosas, o autor dá um passo adiante, revelando indícios de interessantes rumos historiográficos que se anunciam. Carvalho busca a liberdade dentro de um contexto de rupturas e rotinas da escravidão, ou como inapropriadamente insiste em chamar, do escravismo. Para o autor, a liberdade escrava situava-se, muitas vezes, longe do universo do trabalho nas fazendas. Por outro lado, o autor realçou enormente a dimensão do esforço cotidiano de luta, da árdua rotina constitutiva da vida de homens e mulheres expostos e surrados em praça pública e traficados quase como um material inerte.

É preciso lembrar que nos anos oitenta e início dos noventa a historiografia da escravidão no Brasil, ou parte significativa dela, buscava um escravo com ações autonômicas7. Era a partir deste campo de análise que, quase todos, recriavam uma vivência escrava rumo à liberdade que assumia ares de explícita, porém complexa, luta de classes. Os quilombolas analisados por Flávio Gomes, por exemplo, deixaram de ser fugitivos de um sistema escravista para tornarem-se combatentes de um outro tipo de liberdade. Surgiram dali homens com histórias de vida próprias e memórias de lutas coletivas. Como bem notou Silvia Lara, a influência thompsoniana neste tipo de estudo tornou-se evidente. Ela unia a história da escravidão àquela referente aos estudos sobre as relações e processo de trabalho livre no Brasil8. Para esta historiografia, os escravos e quilombolas eram indivíduos com personalidade e problemas pessoais, mas também faziam-se classe em diferentes contextos, especialmente quando imbuídos de um espírito de luta herdado e partilhado por experiências vindas de um presente ou de um passado em comum.

Por seu turno, o estudo de Carvalho, seguindo uma atual tendência, percebe a ação escrava dentro de relações que são sociais, étnicas e culturais. Sem abandonar a “economia moral” thompsoniana, as lutas pela liberdade ganharam outros ares, ampliando-se dentro de um universo em que muitos escravos desejavam ser ou tornar-se livres, vivendo sobre si e tendo quem os servissem. Ser livre era, em suma, ter propriedades, fossem elas um terreno ou um escravo. A liberdade estava contida, portanto, seja nas rebeliões e fugas escravas, seja na solidariedade de classe e/ou étnico-religiosa, que extrapolava, em muito, as fronteiras da relação senhor-escravo. Estava na cabeça de escravos, tanto quanto na dos homens livres ricos e pobres. Situava-se na cidade do Recife, mas também em seus muitos engenhos e roças. Nas casas dos ricos proprietários e em suas senzalas, bem como na casa do Conselho de Governo Provincial e nas inúmeras disputas partidárias em prol da emancipação brasileira durante as décadas de 1820 até 1850.

Em suma, o que de mais interessante apresenta o estudo de Carvalho é uma simbiose muito apropriada entre o universo da política imperial para os anos de 1822-1850 e o valioso contexto de lutas escravas e não escravas pela liberdade nos arredores de Recife. Juntando estudos que tradicionalmente caminhavam em paralelo, Carvalho percebeu a importância de associar temáticas dentro e fora dos debates historiográficos da escravidão. Se Pernambuco era a terra das Revoluções de 1817, de 1824 ou de outras como a Praieira, este local também tinha uma complexa tradição de revoltas escravas. Por outro lado, era o espaço da rotina escravista, da dor e do sofrimento de africanos e crioulos.

Entender este locus é uma tarefa árdua, que, quando bem empreendida, surte um resultado profícuo. Talvez Carvalho pudesse ir um pouco adiante, relacionando mais densamente alguns tempos históricos que se entrecruzavam no Recife da primeira metade do século XIX. É importante notar, por exemplo, que o calendário religioso, assim como o parlamentar e o da colheita e plantação da cana-de-açúcar estavam imbricados em um mundo repleto de credos e razões absolutas, que se contrapunha às novas liberdades constitucionais recém alcançadas. Certamente no Recife de frei Caneca e de outros tantos clérigos havia uma junção muito generosa entre a Igreja e o Estado, surgindo daí outras formas de se compreender os significados múltiplos da liberdade escrava e não escrava dentro deste universo.

Ressalva à parte, o livro de Carvalho deve ser lido pelo que se propõe efetuar. São três partes que o compõe: uma primeira dedicada à explicação espacial e social da cidade do Recife, de seus moradores e de suas tradições de luta. Uma segunda que estuda o tráfico e sua lógica de comércio e alianças sociais e políticas dentro do Recife. E uma terceira que se centra nos caminhos da liberdade (política e social) nos melindrosos cenários rebeldes da primeira metade do século XIX. Como ressalta Carvalho, para bem se entender os “vários passos que podiam, ou não, ser dados em direção à ‘liberdade'”, é preciso buscar outras “possibilidades humanas na história da escravidão”. É preciso estudar “outras tantas situações intermediárias” dentro do restritivo campo tradicionalmente traçado por senhores e escravos.

Robert Slenes, em recente estudo, chamou a atenção para estudos que valorizassem as relações entre senhores e subalternos, contrariando a tradicional dicotomia entre senhores e escravos. Sidney Chalhoub, por sua vez, desvencilha-se dos escravos, debruçando-se sobre a análise de um Rio de Janeiro pluri-étnico e culturalmente febril. João José Reis percebe em um movimento, como a cemiterada de Salvador, algo mais do que homens e mulheres ultrapassados e escravocratas, lutando contra a modernidade. Em A morte é um festa, desvenda um precioso viver no século XIX, que caminha muito próximo da diversidade cultural que ele possuia9.

Neste mesmo sentido segue o estudo de Carvalho que aqui apresento e recomendo. Estuda o escravismo, ou melhor, a escravidão, sem que as relações de trabalho tornem-se hegemônicas e quase auto-evidentes na explicação histórica. Analisa a liberdade, sem ficar restrito à dicotomia senhores versus escravos. Por fim, estuda a cidade do Recife, sem fazer regionalismos, ou uma história local e desinteressante ao público em geral.

A cidade do Recife descrita por Carvalho é específica e única, com ruas, bairros e pessoas muito próprias. No entanto, ela pode ser a síntese de tantas outras cidades e pessoas. Longe da Corte, estava, entretanto, tão próxima ao centro em muitas ocasiões. Todavia, em vários instantes, os moradores do Recife e de Pernambuco pleiteavam tomar o lugar dos cariocas. A cada levante social, a cada escravo que disputava espaço para bem viver o seu dia a dia, a cada traficante que contabilizava lucros e perdas sociais e políticas, a cidade do Recife e seus moradores livres e escravos se uniam a tantos outros habitantes de locais como Belém, Salvador ou São Paulo. Todos olhavam para a Corte, vendo imagens e semelhanças, tanto quanto diferenças e conflitos. Em resumo, o livro de Carvalho especifica muito bem o que seria o Brasil de então. Sem o exagero ufanista e nacionalista, tratava-se de um Brasil por se fazer. Um país ainda escravocrata em muitos sentidos, mas também cheio de liberdades. Um Brasil de leis novas, mas repleto de rotinas tradicionais como as do trabalho e as do tráfico. Um local de longas tradições religiosas e culturais, mas de rupturas sociais e políticas tão bruscas, quanto temerárias e deslumbrantes.

Notas

1 Para alguns autores como Suely Robles Reis de Queiróz o atual debate historiográfico sobre a escravidão no Brasil seguiu um percurso, no mínimo, equivocado, e assim, ainda hoje, seria “uma questão que continua polêmica”. Ver: QUEIROZ, Suely Robles Reis de. “Escravidão negra em debate”. In FREITAS, Marcos Cezar de (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo, Cantexto/USF, 1998, p. 117. Para uma contraposição a esta autora, ver, especialmente: MACHADO, Maria Helena P. T. “História e historiografia da escravidão e da abolição em São Paulo”. In Antonio Celso Ferreira et. al. (orgs.). Encontros com a história: percursos históricos e historiográficos de São Paulo. São Paulo, UNESP, 1999, pp. 61-70.

2 Sobre escravidão urbana, ver, entre outros, os trabalhos de: ALGRANTI, Leila M. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro, 1808-1822. Petrópolis, Vozes, 1988.

3 Ver, especialmente: AZEVEDO, Célia M. M. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987; MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico. Os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro/São Paulo: UFRJ/EDUSP, 1994.

4 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sudoeste escravista – Brasil século XIX. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998; LAMOUNIER, Maria Lúcia. Da escravidão ao trabalho livre. A lei de locação de serviços de 1879. Campinas, Papirus, 1988; REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência escrava no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1989; GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas. Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995; REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1996.

5 A crítica e a denúncia vieram, principalmente de Jacob Gorender. Ver: GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo, Ática, 1990.

6 REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês (1835). São Paulo, Brasiliense, 1986; ALGRANTI, Leila M. op. cit.; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo, Cia das Letras, 1990.

7 Para uma boa análise deste debate historiográfico, ver: LARA, Silvia Hunold. “Conversas com a bibliografia”. In Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro – 1750-1808. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, pp. 97-113.

8 LARA, Silvia Hunold. “Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil”. Projeto história: revista do Departamento de pós-graduação da PUC-SP. São Paulo, EDUC, no 16, 1997, pp. 25-38.

9 SLENES, Robert. “Senhores e subalternos no Oeste Paulista”. In NOVAIS, Fernando & ALENCASTRO, Luiz Felipe de (orgs.). História da vida privada no Brasil. Império, a Corte e a modernidade nacional. São Paulo, vol. 02, Cia das Letras, 1997, pp. 233-290. CHALHOUB, Sidney. Cidade febril. Cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo, Cia das Letras, 1996 e REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo, Cia das Letras, 1991.

Magda Ricci – Universidade Federal do Pará.

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