Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro | Camillia Cowling

A edição brasileira do livro “Concebendo a Liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro” da historiadora inglesa Camillia Cowling, professora de história da América Latina da Universidade de Warwick, foi lançada em 2018 pela editora da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. O livro é uma tradução do original intitulado Conceiving Freedom: Women of Color, Gender, and the Abolition of Slavery in Havana and Rio de Janeiro, lançado em 2013 pela University of North Carolina Press e, desde 2010, partes da obra já vinham sendo divulgadas em publicações internacionais pela autora.

Cowling trouxe para o centro desta narrativa as histórias de vida (ou pelo menos parte das histórias) de duas mulheres libertas: Ramona Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes. Elas transcorrem por toda a obra, desde a introdução, quando a autora nos transporta para os respectivos dias em que estas mulheres, a primeira em Havana, a segunda no Rio de Janeiro, entraram com pedido de custódia de seus filhos nas instâncias judiciais máximas de cada uma destas cidades: Ramona no Gobierno General em Havana em busca de libertar seus quatro filhos María Fabiana, Agustina, Luis e María de las Nieves, e Josepha no tribunal local de primeira instância e depois no Tribunal de Relação no Rio de Janeiro, um tribunal de apelação, em busca de liberta sua filha Maria. Ramona teve que enfrentar “um dia escaldante do verão caribenho de 1883” e Josepha, diferentemente da cubana, “provavelmente sentiu arrepios de frio […] enquanto caminhava pelas ruas da cidade [do Rio de Janeiro]”, em agosto de 1884, quando é inverno na cidade. (COWLING, 2018, p. 23) Leia Mais

Roubos e Salteadores na Bahia no tempo da abolição (Recôncavo, década de 1880) | Eliseu Silva

Filosofia e Historia da Biologia 20 Roubos e Salteadores

O processo de abolição é uma das áreas de estudo com maior vitalidade nas últimas décadas, notadamente, por investir no diálogo com a historiografia internacional, por incorporar novos procedimentos de análise e por tratar das experiências de escravizados e ex-escravizados.

É a partir desse cenário que o historiador Eliseu Silva circunscreve sua pesquisa. O livro é resultado da dissertação defendida na UFBA em 2016 e, posteriormente publicada pela EDUFBA em 2019. A investigação tratou dos roubos, furtos e de gente identificada como fora da lei, temática bastante visitada nas Ciências Sociais. Com um trabalho da área de História, o autor procurou analisar as complexas dinâmicas sociais em torno dos furtos e dos roubos em um recorte espacial e temporal delimitado. A pesquisa está concentrada no termo de Cachoeira, no Recôncavo baiano, na década de 1880.

Eliseu Silva produziu um trabalho de qualidade pautado nas regras do campo da história acadêmica, acessando farta bibliografia para diferentes frentes de sua investigação, com destaque para o diálogo refinado travado com intelectuais latino- americanos sobre o banditismo. Essa historiografia contribuiu para Silva não reduzir os homens em conflito com a lei em agentes que invalidavam injustiças sociais. As leituras teóricas e conceituais se fizeram presentes, com predominância dos historiadores sociais que dão o tom do debate realizado ao longo da obra que procurou reconstituir redes sociais ao rés do chão. A historiografia baiana, rica e diversa, mobilizada pelo autor, permitiu refletir sobre os diferentes aspectos que marcaram a desigualdade e a exclusão experimentada por gente empobrecida, em parte, oriunda do universo do cativeiro.

O historiador cruzou uma diversidade de fontes como jornais, processos criminais, correspondências policiais, relatórios dos presidentes de província e atas do legislativo. Ao analisar esse variado conjunto documental, apresenta-se ao leitor ações e vínculos estabelecidos por gente considerada criminosa nos influxos do processo de dominação e desmonte das relações escravistas.

Maria Helena Machado (1987) lembra que roubos e furtos podiam ser interpretados como “suplementação da economia independente” e como subversão. O autor, seguindo essa interpretação, indicou ser a maior parte dos delitos arrolados enquadrados no crime contra a propriedade, envolvendo animais, dinheiro e objetos de pequeno valor oriundos de fazendas e casas de comércio. Os objetos surrupiados carregavam simbologias de prestígio e poder próprios do universo branco e senhorial. As ações dos ditos ladrões podem ser lidas, por vezes, como imbuídas do interesse de recompensar danos infligidos e desavenças pessoais. Sendo assim, os delitos não necessariamente ocorriam para conter a fome ou a carência material. De um lado, a pesquisa buscou não dicotomizar as identidades de criminoso e de trabalhador, por outro lado, o autor não quis romantizar as experiências desses indivíduos tomando-as como expressão absoluta da luta contra a opressão e as injustiças sociais. Muitos adentravam no mundo do crime premidos pelas péssimas condições de vida. Já outros, apesar da preferência pelos endinheirados, também roubavam gente pobre e, por isso, não podem ser considerados bandidos sociais segundo a concepção de Hobsbawm (2010). Dessa feita, Silva procurou apresentar as experiências desses homens sob uma perspectiva mais equilibrada, sem superestimar suas ações e, para isso, faz uso do conceito de roubo social. Segundo Eliseu Silva, roubo social consiste na possibilidade dos menos favorecidos economicamente adquirirem recursos materiais distantes de sua realidade. O autor, a partir das análises empíricas, observou como o banditismo à época estava associado ao processo de desmonte das relações escravistas. A repressão aos supostos furtos e roubos tinha também a intenção de criminalizar as iniciativas e os projetos de futuro que ganhavam espaço com as lutas pelo fim do cativeiro.

O livro está dividido em três capítulos bem estruturados que dialogam com diferentes fontes documentais, procedimentos metodológicos e com especialistas nas temáticas abordadas. No primeiro capítulo é caracterizado o Recôncavo baiano na década de 1880, assim como as questões que permearam esse período. Discutiu-se acerca da abolição do cativeiro, da regulamentação do trabalho livre e da implementação de normativas que auxiliaram na coerção e na interferência do cotidiano da população recém-liberta.

No segundo capítulo são narradas as desventuras sucedidas em meio a roubos e furtos ocorridos no termo de Cachoeira. Segundo o autor, algumas dessas ações podem ser interpretadas como respostas a práticas consideradas injustas. Entre os escravizados, parece ter sido difundido o entendimento do direito ao usufruto de bens e recursos pertencentes ao senhor ou ex-senhor, pois as riquezas obtidas eram resultado do suor do seu trabalho, como uma espécie de um acerto de contas. Esse é um ponto importante da análise, tendo em vista que, na década de 1880, estava em derrocada a ideia de que o direito de propriedade incluía a posse de uma pessoa por outra, resultando em conflitos acerca da propriedade do que era produzido nas fazendas. A legitimidade da posse de terras, segundo Mariana Dias Paes (2018), por exemplo, também estava em disputa nesse período e era marcada pelo contexto da escravidão. Os debates em torno do tema da emancipação gradual fizeram com que o registro de terras tivesse a matrícula de escravos como referência. Segundo a autora, a partir de 1880 a legitimação da posse de escravos ou de terras estava centrada nas provas de domínio e, para isso, foram criadas tanto categorias jurídicas como documentos que garantissem sucesso nos litígios judiciais envolvendo tais propriedades. Avançava nas últimas décadas do século XIX o reconhecimento da propriedade de coisas, ao mesmo tempo em que amainava a legitimidade do domínio de pessoas.

Ainda no segundo capítulo, conhecemos quem eram os indiciados nos crimes de arrombamento, furto de animais e roubo, como também se estabelece uma aproximação aos seus hábitos, motivações, redes de sociabilidades e as redes de comércio ilícito. A partir dos dados arrolados, ficamos sabendo que parte significativa dos envolvidos com a ladroagem era formada por indivíduos não-brancos, tendo entre eles cativos. A maior parte dos indiciados era gente livre, os quais gozavam de certa liberdade de locomoção, facilitando as incursões criminosas. Nota-se a presença marcante de homens jovens, solteiros e trabalhadores braçais do universo urbano e rural. Alguns desses indivíduos foram localizados pelo nome, etnia e ofício, como o israelita José Morgan, a crioula Thomazia Maria e o fogueteiro Procópio Barbosa.

Entre os objetos subtraídos destacam-se joias, dinheiro, tecidos, roupas, fumo e animais que eram levados para vender ou para consumir. Os espaços que ofereciam esses produtos em profusão eram as fazendas, lojas de secos e molhados, fábricas de tecido ou fumo, casas de joias, todos esses estabelecimentos pertencentes às elites econômicas e políticas do entorno de Cachoeira. O roubo das posses da elite proprietária era visto como uma afronta à honra e à autoridade dos mais abastados e, por isso, tais delitos eram duramente perseguidos. Já a recepção dos objetos, em grande parte, deu-se entre pequenos comerciantes e mulheres. Segundo o autor, os primeiros se convertiam em receptadores por objetivarem ganhos pelos preços mais baixos dos produtos comercializados e, as últimas, no imaginário da época seriam acusadas com maior facilidade, pois os ladrões não sofreriam represálias.

No terceiro capítulo, somos melhor apresentados aos protagonistas da investigação. Nesse ponto é destacada a trajetória do grupo de salteadores de Basílio Ganhador, suas ações e quais os mecanismos e sujeitos compunham o bando. As mulheres, por exemplo, eram personagens importantes na rede de ajuda e favores, pois apesar de não serem integrantes efetivas da malta, atuavam na troca de notas mais altas de dinheiro no comércio e vendendo produtos roubados. As façanhas do grupo circularam na imprensa e nas correspondências de autoridades policiais, juízes e presidentes de província. O autor relata ainda que, na “companhia” de Basílio Ganhador, eram aceitos cativos fugidos, o que aumentava a repulsa ao bando por parte da classe proprietária.

Os codinomes dos personagens chamam a atenção e mereceriam uma análise mais acurada. Em várias passagens são apresentadas o envolvimento em delitos de indivíduos com as alcunhas de “Pé de rodo”, “Boca de boi”, “José das Preás”, “Joaquim Belas cousas” e “Marinheiro”. A reflexão sobre os codinomes poderia reforçar a discussão realizada quanto às ocupações e habilidades dos sujeitos que recorriam à ladroagem, ora como forma de subsistência, ora como modo de vida. Tal consideração poderia corroborar o argumento inicial de não dicotomizar as experiências desses sujeitos entre os universos do trabalho e do crime.

O livro de Eliseu Silva é uma leitura importante para os pesquisadores com trabalhos voltados à história social da escravidão e do processo de abolição. A discussão realizada na obra tem o potencial de atrair também o público não acadêmico que tenha interesse na história dos grupos minorizados, nas estratégias para impor sua subalternização e nos chamados foras da lei do século XIX.

Referências

DIAS PAES, Mariana Armound. Escravos e terras entre posses e títulos: A construção social do direito de propriedade de propriedade no Brasil (1835-1889). Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. [ Links ]

HOBSBAWM, Eric. Bandidos. São Paulo: Paz e Terra, 2010. [ Links ]MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas, 1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987. [ Links ]

Maria Emilia Vasconcelos dos Santos – Universidade Federal Rural de Pernambuco, Departamento de História, Rua Dom Manuel de Medeiros, s/n, 52171-900, Recife, PE, Brasil. [email protected].


SILVA, Eliseu. Roubos e Salteadores na Bahia no tempo da abolição (Recôncavo, década de 1880). Salvador: Editora da UFBA, 2019. 216p. Resenha de: SANTOS, Maria Emilia Vasconcelos dos. De Posse da “cousa alheia”: Salteadores e comparsas no Recôncavo baiano na década da abolição. Varia Historia. Belo Horizonte, v.37 n.73, Jan./Apr. 2021. Acessar publicação original [IF].

Beyond Freedom: Disrupting the History of Emancipation – BLIGHT; DOWNS (TH-JM)

BLIGHT, David W.; DOWNS, Jim. eds. Beyond Freedom: Disrupting the History of Emancipation. Athens, GA: The University of Georgia Press, 2017. 190p. Resenha de: GIFFORD, Ron. Teaching History – A Journal of Methods, v.45, n.2, p.57-60, 2020.

Students of Emancipation need no better reason to pick up Beyond Freedom than it emerged from a 2011 conference held at the Gilder-Lehrman Center for the Study of Slavery, Resistance, and Abolition, of which David Blight is now the director, and has chapters by a veritable who’s who in Emancipation Studies. It is also a thoughtful reminder that historians are continually grappling with what freedom was in the nineteenth century, who defined it, and whether it was enough to make a difference in African Americans’ lives.

The title might seem misleading to many readers, as the book is entirely about emancipation; however, the subtitle clarifies that historians are trying to disrupt the “freedom paradigm,” which focused on freedom in zero sum fashion, by emphasizing the painful process of emancipation, and in the process abandoning the traditional periodization and adopting different lenses to analyze the citizen’s relationship to the state. In sum, the authors remind us, emancipation was messy, it was never preordained to end in perfect freedom, and Black voices, freed and enslaved, still offer the best avenue to revise our understanding of emancipation, its promises, and its limits.

The collection is organized in three parts, though one could argue there should only be two: those pieces written in a traditional academic format and those written as ruminations on how historians have failed to adequately interrogate the sources, at best, or have ignored or misused the terror and suffering Black people faced in the nineteenth century. Parts one and two, “From Slavery to Freedom” and “The Politics of Freedom,” take the more traditional approach and emphasize a process of emancipation that was not restricted to the period following the Civil War and was anything but progressive. According to Richard Newman, Black emancipation and responses to it during Reconstruction took place in the wake of earlier emancipations, in and beyond the United States. As a result, Black and White Americans alike were familiar with the “grammar” of emancipation and understood this was not a story with a preordained conclusion. As a result, we need to apply different lenses that challenge the when, where, and how emancipation happened. More importantly, we need to recognize Black people—enslaved and free, male or female, adult or child—as “fully realized political people” (27). If we do so, a more complex and less celebratory portrait of emancipation emerges. Part three, “Meditations on the Meaning of Freedom,” deviates from the traditional format, possibly to avoid the lack of “human touch” that may characterize for laymen the problems with academia, but is a welcome glimpse into historians reflecting upon their craft and taking seriously Susan O’Donovan’s claim, “if [B]lack lives matter today, then so should the whole of the [B]lack past”(29). As a result, readers will find greater attention paid to the circumstances and actions of African Americans, specifically women and children, and the political nature of their torture, suffering, and grief.

In general, Beyond Freedom, will be a valuable tool for faculty and graduate students interested in a refresher concerning the state of the conversation concerning emancipation. The books the contributors have produced in the last decade constitute an essential reading list for scholars of the period. At the undergraduate level, this volume would be a good edition to a seminar, in which students fashion independent theses within the context of a larger conversation, employ primary sources in some fashion, and question the epistemological problems associated with a vague concept like freedom. Jim Downs’s focus on “the Ontology of the Freedmen’s Bureau Records” is an apt reminder that sometimes the “records [and historians] assign a particular narrative logic to a process that lacks order and efficiency,” and, as a result, “What freedom meant to freed people has only been partially told” (175). Even in that context, however, the volume will require a skilled teacher, already familiar with the existing historiography, to make sense of it for students. If there is any criticism, it might be the omission of any focus on emancipation beyond the United States, except in the preface by Foner.

As historians come to grips with the suffering, abuse, and terror Blacks faced, emancipation, as Thavolia Glymph notes, has the potential to “break your heart” (132), but this collection may also give students the hope that by abandoning the traditional periodization or models we so often rely upon and pa

Ron Gifford – Illinois State University.

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Concebendo a liberdade / Camillia Cowling

O livro de Camillia Cowling publicado nos Estados Unidos, em 2013, e recentemente traduzido para o português já se constitui uma leitura obrigatória para historiadoras, historiadores e demais pessoas interessadas em conhecer aspectos da luta de pessoas escravizadas na Diáspora. Em Concebendo a liberdade a autora apresentou uma pesquisa comparativa entre Havana (Cuba) e Rio de Janeiro (Brasil) na qual “mulheres de cor” apareciam na linha de frente da luta por liberdade legal para elas próprias e suas crianças nas décadas de 1870 e 1880.

Ao prefaciar a obra Sidney Chalhoub foi muito feliz ao lembrar a acolhida que o livro de Rebeca Scott a Emancipação Escrava em Cuba teve no Brasil, ainda na década de 1980, evidenciando o interesse do público brasileiro em saber mais sobre este processo em Cuba, colônia Espanhola que assim como o Brasil e Porto Rico foi um dos últimos redutos da escravidão nas Américas.

Mais de três décadas desde a tradução do livro de Scott, a pesquisa de Cowling chegou ao Brasil em um momento que embora já possamos contar com vários estudos de referência para o conhecimento a respeito da escravidão e da liberdade muitos lacunas ainda estão por serem preenchidas, a exemplo, das especificidades da experiência das mulheres – escravizadas, libertas e “livres cor”.

Felizmente, o alerta das feministas negras, especialmente a partir da década de 1980 de que as mulheres negras tinham um jeito específico de estar no mundo ganhou novo impulso nos últimos anos, notadamente, devido ao processo que resultou na Primeira Marcha Nacional de Mulheres Negras, ocorrida no Brasil, em 2015, cujos desdobramentos já podem ser percebidos na sociedade brasileira e tem inspirado pesquisadoras e pesquisadores no desafio de reconstituir esse passado.

Inserida no campo da história social e utilizando uma escala de tempo pequena para descortinar a agência feminina negra, Cowling esteve atenta também para questões mais amplas do período investigado como às conexões atlânticas entre Cuba e Brasil no contexto da “segunda escravidão”. Isso permite que a leitora e o leitor possam notar que embora tivessem optado por um processo de abolição gradual da escravidão ambos vivenciaram processos paralelos e distintos um do outro.

A obra foi dividida em três partes e subdividido em 8 capítulos. Neste texto destaco alguns aspectos, dentre vários outros, que chamaram minha atenção de maneira especial. Primeiramente, saliento que Cowling conseguiu remontar o itinerário de duas libertas tornado visíveis as marcas deixadas por elas tanto em Havana como no Rio de Janeiro, de modo que personagens tradicionalmente invisibilizadas pela documentação e, até mesmo, pela historiografia tiveram seu ponto de vista descortinado nas páginas de seu livro.

Os fragmentos da experiência de Romana Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes remontados pela autora é a demonstração de um esforço investigativo de fôlego e bem sucedido. As questões levantadas e o exercício de imaginação histórica da pesquisadora tornaram possíveis que a partir do ponto de vista dessas mulheres possamos saber como pensavam várias outras de seu tempo e compreender os sentidos de suas escolhas, bem como daquelas feitas por seus familiares, escrivães, curadores e integrantes do movimento abolicionista.

A liberta Romana que comprara a própria liberdade um ano antes de migrar para Havana, em 1883, encaminhou uma petição dirigida ao governo-geral de Cuba reivindicando a liberdade de suas 4 crianças, María Fabiana, Agustina, Luis e María de las Nieves que estavam em poder de seu ex-senhor, Manuel Oliva. Quase um ano depois, foi a vez da liberta Josepha dar início a uma ação de liberdade na cidade do Rio de Janeiro com o objetivo de retirar sua filha, Maria, ingênua, com apenas 10 anos, do domínio de seus ex-senhores José Gonçalves de Pinho e sua esposa, Maria Amélia da Silva Pinho.

Assim como outras tantas pessoas, Romana e Josepha eram migrantes que a despeito das dificuldades das cidades, usaram a seu favor as possibilidades que as mesmas ofereciam na busca pela liberdade, além disso, como ressaltou a autora as chances de uma pessoa escravizada conseguir a liberdade morando nas áreas urbanas eram maiores do que aquelas que moravam nas áreas rurais.

De acordo com Cowling as duas libertas se apegaram as brechas da lei e fizeram omesmo tipo de alegação para contestar a legitimidade do domínio senhorial. EnquantoRomana declarou que sua filha era vítima de negligência e abuso sexual, Josepha alegou que suas crianças não estavam recebendo educação. Foi com base nessas denúncias que os senhores foram acusados de maus tratos, o que implicava na perda do domínio sobre as mencionadas crianças, conforme a legislação de Cuba e do Brasil respectivamente determinava.

No livro de Cowling, a leitora e o leitor interessado no tema pode verificar que as perguntas feitas a documentos como petições, ações judiciais, correspondências, jornais, obras literárias, imagens e legislação explicitam que as mulheres escravizadas, libertas e “livres de cor” sempre estiveram no centro da luta por liberdade legal. Isso porque as noções de gênero foram determinantes para o modo como elas vivenciaram a escravidão e consequentemente influenciaram em suas escolhas na luta pela conquista da manumissão. Além disso, especialmente nas décadas de 1870 e 1880, elas que sempre estiveram na linha de frente das disputas judiciais foram colocadas ainda mais no centro do processo da abolição gradual da escravidão.

As Romanas e as Josephas foram muitas nas duas cidades portuárias investigadas pela autora e com o objetivo de conseguir a própria liberdade e de suas crianças, elas se apegaram a argumentos legais tomando como base a legislação, como a Lei Moret de 1870 e a Lei do Patronato de 1880, em Cuba; e a Lei do Ventre Livre de 1871, no Brasil, mas também se apegaram a argumentos extralegais baseados em valores culturais como o“sagrado” direito a maternidade, apelando para piedade e a caridade das autoridadespara os quais levaram suas demandas de liberdade para serem julgadas.

Para Cowling, sobretudo, a retórica da maternidade era tão forte que era utilizada tanto por mulheres ao reivindicarem a liberdade de suas filhas e filhos como nos casos em que eram os filhos que buscavam libertar suas mães, e mesmo, nos casos em que os pais apareceram junto com as mães tentando libertar suas crianças, a opção era por colocar a maternidade no centro.

Não poderia deixar de trazer para este texto aquele que a meu ver é um dos pontos mais fortes da obra. Trata-se da opção da autora de enfrentar o tema da violência sexual contra “mulheres de cor”, aspecto da vida de muitas dessas personagens, ainda pouco explorado pela historiografia brasileira, seja devido ao sub-registro dessa violência na documentação disponível que era escrita em sua maioria por homens da elite e autoridades muitos dos quais também proprietários de cativas, seja devido à própria tradição de priorizar outros aspectos da experiência das pessoas.

Para a autora a tradição de violar o corpo de “mulheres de cor” era naturalizada entre os senhores e os homens da lei tanto que os primeiros não viam qualquer impedimento à prática de estuprá-las. Por isso mesmo, a falta de proteção extrapolava a condição de cativas e nem mesmo a liberdade legal era garantia de proteção ou reparação contra aqueles que as forçassem a ter relações sexuais com eles ou com outros (muitas escravizadas eram forçadas a prostituição por suas proprietárias e proprietários).

No entanto, se por um lado, ao se depararem com denúncias de violência sexual as autoridades geralmente posicionavam-se a favor dos agressores, inclusive responsabilizando as próprias “mulheres de cor”, prática que tinha a ver com a imagem que esses homens de maneira geral faziam desse grupo social considerado por eles como lascívias e corruptoras das famílias da elite. Por outro, ao procurar à justiça para denunciar a violência sexual elas explicitavam sua própria compreensão sobre si mesmas. Ao fazer isso Romana e várias outras estavam dizendo que acreditavam ter conquistado para si e para suas filhas o direito de poder dizer não para um homem com quem não quisessem fazer sexo.

Cheguei ao epílogo da obra convencida por Cowling de que embora Romana e Josepha tenham vivido em lugares diferentes e nem se quer se conhecessem, caso tivessem tido a oportunidade de se encontrar naqueles anos cruciais de suas vidas, elas teriam muito que conversar. Inevitavelmente suspeito ainda que várias mulheres negras do século XXI que tiverem acesso as minúcias do itinerário das personagens trazidas no trabalho terão a sensação de que também poderiam participar da conversa.

Por fim, acredito que as questões levantadas ao longo da obra sob vários aspectos servirão de inspiração para historiadoras e historiadores empenhados na reconstituição tanto quanto possível da vida de mulheres escravizadas, libertas e “livres de cor”, bem como de seus familiares e das pessoas com as quais elas se aliaram na construção de outros tantos processos coletivos de luta por liberdade legal.

Karine Teixeira Damasceno – Pós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura (PUC-Rio), Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).


COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Tradução: Patrícia Ramos Geremias e Clemente Penna. Campinas: UNICAMP, 2018. 440p.. Resenha de: DAMASCENO Karine Teixeira. “Mulheres de cor” no centro da luta por liberdade legal em Havana e no Rio de Janeiro. Canoa do Tempo, Manaus, v.11, n.2, p.294-297, out./dez., 2019. Acessar publicação original.

Flores, votos e balas – ALONSO (RH-SP) Tornando-se livre – MACHADO e CASTILHO (RH-USP)

ALONSO, Ângela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868 – 1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 529p. Resenha de: MACHADO, Maria Helena P. T.; CASTILHO, Celso Thomas(org.). Tornando-se livre. Agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015. 480p. Resenha de: SALLES, Ricardo. A abolição revisitada: entre continuidades e rupturas. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo  2017.

O objetivo dessa resenha é apresentar, nos limites desse formato, uma apreciação crítica de duas obras recentes que recolocaram, em termos gerais, a abolição da escravidão no Brasil como tema de peso da história e da historiografia brasileiras.

A abolição da escravidão foi um fato central da história brasileira. Comparável à Independência, à Proclamação da República e à Revolução de 1930. Na verdade, nenhum destes três últimos eventos teve semelhante impacto transformador da vida social. A Abolição destruiu uma instituição e uma prática centenárias que moldaram a história, a sociedade, a política e a cultura brasileiras. A escravidão moldou a colônia por praticamente três séculos, mas também esteve na base da construção do Estado e da nação por 80 anos – se tomarmos como marco dessa construção a vinda da família real em 1808 – e, mesmo depois de mais de um século de sua extinção, ainda lança seus efeitos sobre os dias de hoje. Na época de sua abolição, a escravidão ainda estava no centro dos interesses da classe dominante do Império e, apesar do relato estabelecido em contrário, há muito desmentido pela historiografia, não era vista como um obstáculo central pelos novos grupos de proprietários rurais que emergiam no oeste paulista. Com tudo isso, é evidente que o processo histórico de derrubada – a Abolição – também deva merecer uma grande atenção por parte de historiadores. O que foi a Abolição? Quando começou? Foi um movimento conscientemente deflagrado? Por quem? Quando? Com quais objetivos mais específicos, além do genérico fim da escravidão? Quais seus êxitos e fracassos? Quais foram suas principais fases? Quem foram seus principais sujeitos históricos? Qual seu legado?

Muitas dessas perguntas foram formuladas nas décadas que se seguiram à Abolição e à Proclamação da República. Com a consolidação da República oligárquica e sua crise dos anos 1920, essas perguntas sobre a abolição diluíram-se em questionamentos mais abrangentes sobre a formação do Brasil e, eventualmente, sobre o lugar da escravidão em geral nessa formação. No final dos anos 1960 e início da década seguinte, contudo, as perguntas sobre a abolição voltaram a ser formuladas por historiadores, em especial por dois brasilianistas. São de 1972 as duas grandes histórias da abolição brasileira: The destruction of Brazilian slavery, de Robert Conrad, publicada em português em 1975, com o título de Os últimos anos da escravatura no Brasil, e The abolition of slavery in Brazil, de Robert Toplin, infelizmente, nunca traduzido. Em 1988, por ocasião do centenário da Abolição, Emilia Viotti da Costa que, em 1966, havia publicado Da senzala à colônia, trabalho mais abrangente sobre a escravidão e sua crise no século XIX, publicou A Abolição, pequeno livro de síntese e divulgação.

Tais obras, entretanto, não frutificaram. É certo que, desde os anos de 1980, com a multiplicação dos programas de pós-graduação, particularmente em História, uma quantidade imensa de dissertações de mestrado e teses de doutorado foi produzida sobre o assunto, muitas delas ganhando, posteriormente, a forma de livros. A maioria esmagadora dessas investigações foi e continua sendo de caráter monográfico, sobre aspectos particulares da escravidão ou mesmo sobre o evento de sua abolição, nesta ou naquela região, sob este ou aquele ponto de vista. Tais abordagens são muito importantes e ajudam a levantar novas questões, esclarecer temas e aspectos negligenciados. O lugar e o papel das lutas de escravos e libertos no processo de abolição foram a dimensão mais ressaltada em contraposição a uma historiografia mais estrutural da escravidão e da abolição, mais característica da década de 1960.

As duas obras aqui resenhadas buscam escapar dessa fragmentação historiográfica e só por isso já seriam muito bem-vindas. O livro de Ângela Alonso – Flores, votos e balas – é explicitamente uma síntese histórica e uma interpretação de conjunto. Por isso servirá como eixo desta resenha. Tornando-se livres é uma coletânea organizada por Maria Helena P. T. Machado e Celso Thomas Castilho que, em parte, baseia-se e tem como ponto de partida a mesma fragmentação temática acima apontada. Entretanto, em seu título e em alguns capítulos específicos busca também uma interpretação abrangente, ainda que não uma síntese, dos acontecimentos que marcaram a abolição da escravidão no Brasil. Por isso, serão estes os capítulos e a tese expressada pelo título da obra que serão avaliados com vagar nessa resenha.1

Tornando-se livre, de uma maneira geral, ressalta o papel do escravo – e também do liberto – como elemento ativo na sociedade escravista e, eventualmente, na moldagem de um clima de deslegitimação da escravidão, que se pode perceber principalmente a partir da segunda metade da década de 1860. É verdade que essa deslegitimação foi proveniente de eventos mais amplos, que não foram deflagrados pela participação ativa dos cativos e que não merecem uma atenção maior por parte dos autores da obra. Em primeiro lugar, foi efeito do desfecho da Guerra da Secessão (1861-1865) e da consequente percepção, por parte do imperador e de alguns de seus estadistas, de que o Brasil estava agora isolado no cenário internacional como nação escravista. Em segundo lugar, cabe ressaltar que a libertação de escravos para seu recrutamento para a guerra com o Paraguai tornou evidente a fragilidade das bases sociais do Império, em época de crescente mobilização nacionalista. Mesmo assim, o pleno significado desses eventos é incompleto caso não se leve em conta o lugar e o papel dos escravos, libertos e suas lutas naquela sociedade, e é principalmente disso que os 21 capítulos da obra tratam. O livro é dividido em quatro partes. A primeira – “Disputando liberdades” – aborda as lutas de “homens e mulheres escravos, libertos e libertandos em busca da aquisição da liberdade”, problematizando “os horizontes dessa almejada liberdade no contexto da escravidão e de seu afrouxamento na segunda metade do século XIX, sobretudo a partir de 1870” (p. 13). A segunda parte – “Disputando liberdades: histórias de mulheres com seus filhos” – retoma o tema “do acesso à liberdade e à autonomia,” enfocando o papel das escravas e libertandas como mulheres e mães (p. 14). Os capítulos da terceira parte – “Mobilização: dimensões e prática” – abordam a questão dos movimentos emancipacionistas e abolicionistas da segunda metade do século XIX e do pós-abolição, com o objetivo “de aproximar a movimentação em torno da abolição aos movimentos sociais deste período e dos seguintes, propondo elos e continuidades” (idem). A última parte – “Abolição em dimensão transnacional” – reúne textos que refletem sobre a “questão ainda pouco explorada por nossa historiografia, que é a dimensão internacional e atlântica do processo da abolição da escravatura no Brasil” (p. 15).

Já no que diz respeito a Flores, votos e balas, seu ponto forte é o destaque dado ao papel dos ativistas abolicionistas na formação, estruturação, desenvolvimento e direção do abolicionismo em quatro conjunturas que a autora distingue no movimento pela abolição: a conjuntura pré-Lei do Ventre Livre, a partir de meados da década de 1860; a ascensão do partido Liberal em 1878; o gabinete Dantas, de junho 1884 a maio do ano seguinte; e o gabinete Cotegipe, de 1885 a 1888. Essas diferentes conjunturas, por sua vez, corresponderiam a três fases do abolicionismo brasileiro expressas no título do livro, que operou inicialmente no espaço público: momento das flores, na esfera político-institucional; momento dos votos; e, na clandestinidade, momento das balas (p. 19).

Tanto Flores, votos e balas quanto a maior parte dos capítulos de Tornando-se livres acentuam as continuidades entre o que seriam lutas, movimentos e iniciativas abolicionistas ou contra a escravidão antes de 1879, especialmente a partir da metade da década de 1860, e depois dessa data. Este ano (1879) é tomado por muitos, entre eles o autor dessa resenha, como marco inicial do movimento abolicionista, em contraposição ao que se convencionou chamar de emancipacionismo. Foi nele que o deputado liberal Jerônimo Sodré proferiu seu discurso no Parlamento demandando a abolição, pura e simplesmente, da escravidão. A demanda ecoava, é certo, outras vozes na imprensa e na sociedade civil que se manifestavam pelo mesmo objetivo. Contudo, as iniciativas e lutas anteriores que de alguma forma golpearam a escravidão, como a proibição efetiva do tráfico internacional de escravos, a lei de 28 de setembro de 1871, que declarou livre o ventre da mulher escrava, a ação de associações civis que promoviam a alforria de cativos, as ações judiciais impetradas pela libertação de escravos – as ações de liberdade – e as próprias lutas e revoltas de escravos, tanto individuais quanto coletivas, não haviam, até então, colocado explicitamente no horizonte político imediato a questão da abolição. Esta era vislumbrada em futuro não predizível e seria conseguida de uma forma ou de outra, pelo acúmulo de efeitos dessas leis, das ações de alforria e liberdade, das lutas e revoltas escravas. O discurso de Sodré desdobrou-se imediatamente em apoios e, em um crescendo, ganhou mais nitidez – abolição imediata e sem indenizações – transformando-se em um movimento político e social que resultaria vitorioso nove anos mais tarde.

Entretanto, nenhuma das duas obras coloca grande ênfase nessa novidade. Essa é a tese explícita de Flores, votos e balas e é também a tese esgrimida em mais de um dos capítulos de Tornando-se livres. Para ambos os livros, haveria uma continuidade entre antes e depois de 1879. Ângela Alonso assinala que essa continuidade existiria entre o que ela designa como abolicionismo de elite, característico das décadas de 1860 e 1870, e abolicionismo como movimento social, marca da década de 1880. A corroboração da tese vem pelo acompanhamento de algumas lideranças abolicionistas com atuação expressiva nos dois momentos, entre eles e principalmente, André Rebouças, mas também, como veremos abaixo, Abílio César Borges, educador e ativista abolicionista de segunda grandeza, se é que assim se pode considerá-lo.

Em Tornando-se livres, como colocado na apresentação do volume assinada pelos organizadores, a continuidade seria dada pelas experiências de busca de liberdade. Essas experiências, muitas vezes precárias e provisórias, principalmente na segunda metade do século XIX, “fizeram parte de um grande esforço social que redundou no processo de abolição” e que ainda se estendeu ao período da pós-abolição (p. 11-12). Para os autores, mesmo que as lutas de escravos, libertos e libertandos e os movimentos sociais da abolição não tenham andado sempre juntos, “a movimentação da abolição deve ser compreendida em sua ligação profunda com a realidade das senzalas e dos esforços dos escravos e dos pobres em geral de se livrarem do cativeiro e suas mazelas” (p. 14-15). No primeiro capítulo, intitulado “Da abolição ao pós-emancipação: ensaiando alguns caminhos para outros percursos”, assinado por Flávio Gomes e Maria Helena P. T. Machado e que funciona como uma espécie de direção geral da obra, essa perspectiva fica ainda mais explicitada. O capítulo visa destacar as possibilidades de se estabelecer as conexões analíticas entre expectativas e percepções de liberdade e autonomia por parte de escravos, roceiros, quilombolas e forros, antes e depois da abolição. Os anseios de escravos e libertos “em busca de autonomia e liberdade” integrariam um amplo movimento social que circundou a abolição no Brasil. Assim, os autores querem apontar as possíveis conexões analíticas “entre movimentos abolicionistas e atuação de escravos, libertandos e libertos, como partes integrantes de um amplo movimento social e político de superação da escravidão” (p. 20). Reconhecendo que a palavra “abolicionismo” adquiriu uso mais extensivo na década de 1880, em detrimento de “emancipacionismo”, mais comum até aquele momento, os estudos sobre a abolição teriam supervalorizado esse momento, assim como os espaços urbanos, os debates parlamentares e a imprensa. Os estudos sobre escravidão, abolição e pós-emancipação sofreriam, até hoje, de uma segmentação, resultando em narrativas lineares desses fenômenos. No caso específico da abolição, essas narrativas reduziriam em demasia os recortes e os atores, “aprisionando suas análises no espaço urbano e na última década da escravidão” (p. 19-20).

Tal perspectiva tem o mérito de salientar a importância do contexto das lutas e atuações sociais de escravos, libertos e livres para a compreensão mais geral do momento abolicionista. Mas a afirmação permanece em um plano genérico. Lutas e atuações de escravos, libertos e livres sempre existiram na sociedade escravista brasileira, tanto ao longo da história colonial quanto no decorrer da história imperial. Em que momento e como essas lutas e atuações influíram ou incidiram na formação de um movimento abolicionista? Toda a busca por liberdade, em uma sociedade escravista como a brasileira que comportava a alforria e a inserção social, econômica, cultural, jurídica e política do liberto, integrava “um amplo movimento social e político de superação da escravidão”? A permanência e a força históricas da escravidão brasileira atestam que não. Em que momento, por quais razões e como a liberdade deixou de ser uma condição individual de não ser mais escravo, e de eventualmente poder mesmo usufruir do direito de ser proprietário de escravos, para se tornar uma condição social, jurídica e política frontalmente contraposta à existência de qualquer escravidão? Inversamente, é preciso esclarecer como as lutas políticas abolicionistas ressignificaram, condensando, repercutindo, amplificando, as lutas de escravos, livres e libertos. Essa é uma questão de fundo que não pode ser enfrentada somente pela multiplicação e enumeração de “casos” de embates particulares entre senhores e o Estado, de um lado, e escravos, libertos e livres, de outro. Da mesma forma, se o movimento abolicionista não pode ser completamente seccionado das propostas anteriores, genericamente designadas como emancipacionismo, de abolição em um futuro incerto, de forma gradual e preservando os direitos de propriedade, não pode, tampouco, ser confundido com elas. O preço é uma diluição da singularidade da luta abolicionista, ao mesmo tempo em que não fica claro em que, e se é que, “as expectativas e percepções de liberdade e autonomia” da população escrava, liberta e livre seria diferente, no período da abolição, das expectativas de liberdade e autonomia que tinham antes.

Flores, votos e balas dá grande ênfase à movimentação abolicionista. Em uma nota à apresentação do livro, Ângela Alonso explicita o que ele traz de novidade em relação a uma longa série de obras anteriores sobre a abolição da escravidão no Brasil: uma visão de conjunto da mobilização abolicionista, considerando a dinâmica intra e extraparlamentar, a partir de sua periodização própria, salientando quatro conjunturas. Em termos metodológicos, seu levantamento sistemático das associações abolicionistas e eventos de mobilização a partir de notícias de imprensa também é original. Finalmente, haveria ainda o papel destacado por ela conferido à organização política do “contramovimento”, em oposição aos abolicionistas, que teria um papel importante “para a intelecção das estratégias abolicionista” (p. 373-4). No decorrer do livro, as lutas escravas só aparecem na conjuntura de acirramento do movimento abolicionista, no penúltimo capítulo, quando a autora, seguindo definição de sua principal referência teórica, o sociólogo norte-americano Charles Tilly, vê o ano de 1887 como uma situação revolucionária. Se é verdade que, neste ano, a situação desandou de vez, com a desorganização da produção e o caos social instaurado pelas fugas e rebeliões escravas, muitas delas incentivadas ou acobertadas pelos abolicionistas, é fato também que agitações entre escravos, variando dos casos de rebeldia individual, fugas, assassinatos de proprietários e seus feitores e capatazes a fugas e movimentações coletivas, intensificavam-se desde pelo menos 1882.

Aqui, a crítica a ser feita é quase inversa àquela em relação a Tornando-se livres. O papel de escravos e libertos na luta contra a escravidão surge quase como um subproduto do movimento abolicionista. Essas lutas não têm passado, tradições e condicionamentos socioeconômicos e culturais particulares, tanto aqueles inseridos em sua longa duração, remontando ao período colonial, quanto aqueles mais específicos, característicos de sua reconfiguração e expansão no período imperial. Ângela Alonso detém-se sobre a escravidão do XIX, mas o faz em busca dos fundamentos de uma retórica de defesa da escravidão que remontaria, por sua vez, a linhagens de defesa da instituição identificadas por David Brion Davis no pensamento ocidental. Aqui a escravidão não teria as mesmas características de racialização presentes na sociedade estadunidense. Em uma “sociedade aristocrática, a estratificação estamental garantia a ordem sem exigir argumentos raciais explícitos, embora nem por isso ausentes” (p. 57-8), e “era a base de um estilo de vida, compartilhado por todo o estamento senhorial, cujos eflúvios se espalhavam pela sociedade em círculos concêntricos, como pedra na água” (p. 53). Essa situação, por sua vez, propiciava uma argumentação de defesa da escravidão caracterizada pela autora como “escravismo de circunstância”, uma defesa enrustida, não racializada e justificada pelas condições específicas da economia nacional (p. 56 e ss.).

Essa linha de defesa da escravidão teve como campeão Paulino José Soares de Sousa, filho homônimo do visconde do Uruguai. Não há espaço aqui para debater essa ideia de escravismo de circunstância, fundamentado em uma sociedade aristocrática e estamental. É fato que a defesa da escravidão no Brasil seguiu uma linha de argumentação principal que a considerava um mal necessário, uma necessidade histórica, prescindindo ou minimizando sua defesa moral ou abrigada em razões raciais, tidas então como científicas. Já o argumento de que essa linha de defesa correspondia a uma sociedade estamental e aristocrática parece mais problemático. A aristocracia brasileira era meritocrática e não hereditária, não correspondendo, assim, a uma sociedade estamental. Por outro lado, uma linha de defesa mais pragmática que programática da escravidão era mais adequada ao caráter elástico da escravidão brasileira, como notou Joaquim Nabuco em O abolicionismo. A escravidão aqui estava presente em todos os cantos do território nacional, tanto no campo quanto nas cidades. Era um privilégio que podia se estender, e muitas vezes se estendia, a pequenos proprietários rurais e a setores médios e remediados nas cidades. Era um privilégio de brancos, mas podia abarcar – e às vezes abarcava – mestiços e negros, dos quais muitos tinham acabado de adquirir sua própria liberdade.

Flores, votos e balas compartilha a tese da continuidade entre o abolicionismo em sua fase do que se convencionou chamar de emancipacionismo e sua fase propriamente abolicionista, ainda que não calcada, como em Tornando-se livres, nas lutas de escravos e libertos. Ela assinala, é certo, a incidência dessas lutas, mas somente a partir de 1883 e sob o estímulo direto do movimento abolicionista, que então ingressava em sua fase de “balas”. Para Ângela Alonso, essa continuidade viria pela indistinção entre as propostas emancipacionistas e aquelas abolicionistas, corroborada pelo protagonismo de determinadas lideranças em ambos os momentos. Para tanto, ela acompanha as figuras de André Rebouças, um dos “papas” da luta pela abolição, e o menos conhecido educador Abílio César Borges. A tese é problemática. É verdade que Rebouças já batalhava pela abolição, mais como um objetivo vago, a ser alcançado por reformas, antes mesmo do movimento abolicionista ganhar seu contorno de luta pela abolição imediata, o que ocorreu a partir de 1879. Entretanto, essa continuidade do personagem não autoriza a interpretação da continuidade do movimento. A partir de 1879, Rebouças lançou-se resolutamente na luta pela abolição imediata e sem indenizações, distinguindo – assim como outros abolicionistas – essa nova luta das bandeiras emancipacionistas de abolição gradual que haviam culminado na lei de 1871. No final da década de 1870, estava claro que o emancipacionismo era insuficiente, com o fim da escravidão previsto para um futuro distante e indeterminado, além de deixar intacto o poder da “landocracia”, termo que ele utilizava para designar o poder dos grandes senhores de escravos e de terras que deveria ser quebrado. Rebouças era o mesmo, mas suas opiniões e práticas haviam mudado radicalmente.

No caso de Abílio Borges, enxergar neste personagem continuidades em uma pretensa cruzada abolicionista é ainda mais complicado. É verdade que ele considerava que a escravidão deveria ser extinta a bem do futuro da nação, e também que foi um dos fundadores, em 1869, da Sociedade Libertadora Sete de Setembro na Bahia. Entretanto, no capítulo do livro Tornando-se livres, de Ricardo Tadeu Caires Silva, que trata da mesma Sociedade Libertadora Sete de Setembro, ficamos conhecendo como pensava o dr. Abílio Borges. Em carta de 1870 a um correligionário, ele considerava que a substituição do trabalho escravo pela via da colonização só seria feita muito lentamente, por meio de uma lei do ventre livre. Os que tivessem nascido escravos que se sujeitassem à lei do seu destino, “porque a libertação em massa, além de não ser um bem para os próprios escravos, seria para o Brasil um mal imenso e de consequências funestíssimas” (citação à p. 304). Nada mais distante do ideário abolicionista que começa a ser construído em 1879, pregando a abolição imediata, sem indenizações, acompanhada pela destruição da “obra da escravidão”, com a distribuição de terras para os antigos escravos e seus descendentes e a tributação do latifúndio. Do ponto de vista das “formas de luta”, se é que assim se pode chamar as ações de compras de alforrias por sociedades emancipadoras, a mudança também foi radical. A atuação dessas sociedades e de novas que surgiram continuou, mas estas passaram a conviver com outras manifestações, ações e entidades, essas sim de luta, que demandavam a abolição imediata, e que acobertavam – quando não promoviam – fugas de escravos.

Essa radicalidade e essa novidade do movimento abolicionista são percebidas e valorizadas por Cláudia Santos em seu capítulo de Tornando-se livre, intitulado “Na rua, nos jornais e na tribuna: a Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro antes e depois da abolição”. A partir da década de 1880, teria surgido um novo ativismo político conflitante com as estruturas dominantes do Império. A Confederação Abolicionista, fundada em 1883, teve um protagonismo destacado na conformação deste novo ativismo. De modo mais amplo, o movimento abolicionista foi um marco desse processo “não apenas porque foi determinante para a extinção da escravatura, mas porque organizou um novo tipo de atuação política, estruturada em torno da participação dos setores populares, da imprensa, das associações e dos meetings” (p. 338).

A importância das associações no abolicionismo é dos pontos centrais da argumentação de Ângela Alonso. Para a autora, haveria uma constante e crescente fundação de sociedades emancipadoras entre 1850 e 1888. Essa constatação é feita pelo levantamento na imprensa, no que é um dos pontos fortes de seu livro. De modo distinto de Cláudia Santos, esse fenômeno seria uma outra indicação da continuidade da mobilização pela abolição ao longo desse extenso período. É certo que a multiplicação de associações beneficentes e corporativas, e não apenas das destinadas a promover emancipação de cativos, foi uma característica geral da segunda metade do nosso século XIX. Entretanto, pelos próprios dados levantados, o que se nota é que, até 1869, a fundação dessas entidades foi esporádica. Fundaram-se duas em 1850 e outra em 1852. Apenas em 1857 uma nova associação foi fundada, assim como em 1859, 1860, 1864 e 1867. Somente em 1869 esse patamar deu um salto, com a fundação de sete associações emancipadoras, seguidas por 11 no ano seguinte. O número voltou a cair na sequência: cinco em 1871, três em 1872, uma por ano em 1873, 1874, 1877 e 1878. Em 1879, o número subiu com a fundação de três entidades, dando um salto nos quatro anos seguintes: 10 em 1880, 23 em 1881, 19 em 1882, e 103 em 1883! Não sabemos quais as diferenças de propósito entre essas diversas associações e se alguma mudança significativa pode ser percebida a esse respeito a partir de um dado momento. O que, no entanto, transparece desses dados é uma clara mudança de patamar na mobilização que corresponde a determinados momentos da conjuntura política. Assim, as associações surgiram no ambiente de discussão da abolição definitiva do tráfico internacional de escravos em 1850. Patinaram na média de menos que uma associação por ano até 1868. Em 1869, quando se dava a discussão sobre a emancipação do ventre da mulher escrava no contexto da guerra do Paraguai e da pós-abolição nos Estados Unidos, houve um salto de patamar na quantidade de associações fundadas. Esse número, entretanto, minguou nos anos seguintes, até 1879, quando voltou a subir. Esse minguar parece corroborar a tese já defendida por alguns abolicionistas e corroborada por historiadores de hoje de que a Lei do Ventre Livre apaziguou o que poderia ter sido um incipiente movimento abolicionista no Brasil. A fundação de 10 associações em 1880 indica, claramente, a propagação do movimento abolicionista, e não mais apenas pela emancipação por ações individuais, de caráter privado ou associativo, dentro dos parâmetros definidos pela lei de 28 de setembro de 1871. Em 1883, como se leu acima, o movimento abolicionista simplesmente explodiu, com a fundação de mais de uma centena associações.

Tornando-se livres e Flores, voto e balas são, em certa medida, obras complementares; a primeira enfatizando as lutas populares de libertos e escravos, a segunda, o movimento abolicionista como movimento social de caráter político. Essa é, no entanto, uma complementaridade por justaposição. Importante, sem dúvida, mas que ainda não compõe uma narrativa que mostre como, a partir de quando principalmente e em que medida as resistências e lutas escravas, o movimento social abolicionista e o movimento político se interpenetraram. A partir de perspectivas que, em larga medida, isolam essas dimensões, os dois livros propõem-se a realizar uma interpretação da Abolição. De forma mais explícita e integrada no caso de Flores, votos e balas, obra autoral, e como norte interpretativo mais geral, que guiou a organização do trabalho e a escolha dos autores em Tornando-se livres. Nesse sentido, são um grande passo na direção de ampliar as discussões sobre o significado da Abolição. As críticas aqui expostas não apontam falhas nas obras consideradas; são críticas de interpretação. Dessa forma, vêm no sentido de enriquecer o debate que Flores, votos e balas e Tornando-se livres, em boa hora, reabrem.

1Essa escolha não implica em qualquer juízo de valor sobre a qualidade dos capítulos omitidos, apenas a avaliação, evidentemente sempre sujeita a contestações, de que esses capítulos são menos sujeitos à comparação aqui proposta entre as duas obras.

Ricardo Salles – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. E-mail: [email protected].

Conceiving Freedom: Women of Color, Gender, and the Abolition of Slavery in Havana and Rio de Janeiro – COWLING (RBH)

COWLING, Camillia. Conceiving Freedom: Women of Color, Gender, and the Abolition of Slavery in Havana and Rio de Janeiro. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2013. 344p. Resenha de: SANTOS, Ynaê Lopes dos. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.36, no.72, MAI./AGO. 2016.

Ramona Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes poderiam ter sido heroínas dos folhetins e romances que enchiam de angústia e compaixão a alma dos leitores do final do século XIX. Negras, cativas ou ex-escravas, essas mulheres foram em busca do aparato legal disponível em Havana e no Rio de Janeiro, respectivamente, e fizeram de sua condição e do afeto materno as principais armas na longa luta pela liberdade de seus filhos na década de 1880. Todavia, a saga dessas mulheres não era fruto da vertente novelesca do século XIX e tampouco foi fartamente estampada nos jornais da época. Para conhecer e nos contar essas histórias, Camillia Cowling fez uma intensa pesquisa em arquivos do Brasil, de Cuba, Espanha e Grã-Bretanha, tecendo com o cuidado que o tema demanda a trajetória de mulheres negras – libertas e escravas – que entre o fim da década de 1860 e a abolição da escravidão em Cuba (1886) e no Brasil (1888) utilizaram o aparato legal disponível nas duas maiores cidades escravistas das Américas para lutar pela liberdade de seus filhos e filhas.

A fim de dar corpo a uma história que muitas vezes é apresentada como estatística, a autora examinou uma série de documentos legais produzidos a partir da década de 1860 para compreender os caminhos traçados por algumas mulheres em busca da liberdade. Em pleno diálogo com as importantes bibliografias sobre gênero e escravidão produzidas nos últimos anos, Camillia Cowling nos brinda com um livro sobre mulheres negras, maternidade, escravidão e liberdade, demonstrando como as histórias de Ramona, Josepha e outras tantas libertas e escravas, longe de serem anedotas do sistema escravista, podem ser tomadas como portas de entrada para a compreensão mais fina da dinâmica da escravidão no Novo Mundo nas duas últimas localidades em que essa instituição perdurou.

A complexidade do tema abordado e o ineditismo das articulações entre história da escravidão nas Américas, abolicionismo, dinâmica urbana, agência de mulheres negras, maternidade e processos jurídicos se expressam na forma como a autora organizou sua obra.

Na primeira parte de seu livro, Camillia Cowling trabalhou com a relação entre escravidão e espaço urbano naquelas que foram as maiores cidades escravistas das Américas, Havana e Rio de Janeiro. Analisando as dinâmicas de funcionamento da escravidão urbana, a autora sublinhou que as cidades não devem ser tomadas como mero pano de fundo dos estudos sobre escravismo nas Américas, e assim construiu uma narrativa que corrobora boa parte do que a historiografia aponta: a força que a escravidão exerceu sobre o funcionamento dessas urbes. Tal força poderia agir tanto nas especificidades geradas em torno das atividades executadas pelos escravos urbanos – sobretudo no que tange à maior autonomia dos escravos de ganho -, como nos sentidos e usos que essas cidades passaram a ter para a população escrava e liberta, a qual muitas vezes fez do emaranhado espaço citadino esconderijos e refúgios de liberdade. O engajamento jurídico das mulheres escravas e libertas frente às políticas graduais de abolição de cada uma dessas cidades é, pois, apresentado como mais uma característica da complexa dinâmica que permeou a escravidão urbana no Rio de Janeiro e em Havana.

A escolha pelas duas cidades não foi aleatória, muito menos pautada apenas por índices demográficos. Ainda que a autora tenha anunciado trabalhar com base na metodologia da micro-história, a abordagem comparativa que estrutura sua análise se pauta no diálogo com perspectivas mais sistêmicas da escravidão das Américas, principalmente com as balizas que norteiam a tese da segunda escravidão (Tomich, 2011). Como vem sendo defendido por uma crescente vertente historiográfica, a paridade entre Havana e Rio de Janeiro – pressuposto fundamental da análise de Camillia Cowling – seria resultado de uma série de escolhas semelhantes feitas pelas elites de Cuba e do Brasil em prol da manutenção da escravidão desde o último quartel do século XVIII até meados do século XIX, mesmo em face do crescente movimento abolicionista. Tal política pró-escravista (que também foi levada a cabo pelos Estados Unidos) teria permitido que a escravidão moderna se adequasse à expansão capitalista, criando assim um chão comum na dinâmica da escravidão nessas duas localidades, inclusive no que concerne às possibilidades legais que os escravos acionaram para lutar pela liberdade – possibilidades essas que se ampliaram após a abolição da escravidão nos Estados Unidos. Não por acaso, as capitais de Cuba e do Brasil transformaram-se em espaços privilegiados para que mulheres negras, apropriando-se do próprio conceito de maternidade e ressignificando-o, utilizassem as leis abolicionistas reformistas, nomeadamente a Lei Moret de Cuba (1870) e a Lei do Ventre Livre do Brasil (1871), para resgatar seus filhos do cativeiro.

Os caminhos percorridos pelas mulheres escravas e libertas e as muitas maneiras por meio das quais elas conceberam a liberdade (de seus filhos e delas próprias) passam a ser examinados pormenorizadamente a partir da segunda parte do livro. A pretensa universalidade do direito sagrado da maternidade foi uma das ferramentas utilizadas nos discursos abolicionistas do Brasil e de Cuba, os quais apelavam para um sentimento de igualdade entre as mães, independentemente de sua cor ou condição jurídica. Como destaca a autora, a evocação do sentimento de emoção transformou-se numa estratégia importante do movimento abolicionista que, a um só tempo, pregava a sacralidade da maternidade e ajudava a forjar um novo código de conduta da elite masculina, que começava a enxergar a mulher escrava de outra forma.

Camillia Cowling demonstra que a sacralidade universal da maternidade foi apreendida de diferentes formas nas sociedades escravistas. Se por um lado, a partir da década de 1870, tal assertiva ganhou força quando a liberdade do ventre ganhou status de lei, por outro lado a pretensa igualdade que a maternidade parecia garantir para as mulheres muitas vezes parecia restringir-se ao campo jurídico, mais especificamente, à luta gradual pela liberdade. Revelando uma vez mais a complexidade dos temas abordados, Camillia Cowling destaca que esses mesmos abolicionistas muitas vezes descriam na feminilidade das mulheres negras (brutalizadas pela escravidão), colocando-se contrários às relações inter-raciais, embora defendessem a manutenção das famílias negras.

Todavia, nesse contexto, o ponto alto do livro reside justamente no exame das estratégias empregadas pelas mulheres negras para lutar, juridicamente, pela liberdade não só de seu ventre, mas de seus filhos. A compreensão que essas mulheres tinham das leis graduais de abolição; o entendimento também compartilhado por elas de que as cidades do Rio de Janeiro e de Havana não eram apenas espaços privilegiados para suas lutas, mas também uma parte importante para a definição do que a liberdade poderia significar; e as redes de solidariedade tecidas por essas mulheres, que muitas vezes extrapolavam os limites urbanos, são algumas das questões trabalhadas pela autora.

Os desdobramentos dessas questões são muitos, a maioria dos quais analisada por Camillia Cowling na última parte de seu livro. As concepções que as mulheres negras desenvolveram sobre liberdade e feminilidade com base na maternidade merecem especial atenção, pois elas permitem, em última instância, redimensionar os conceitos de escravidão e, sobretudo, de liberdade nos anos finais de vigência da instituição escravista das Américas e nos primeiros anos do Pós-abolição. Se é verdade que, assim como aconteceu como Josepha Gonçalves e Ramona Oliva, a luta jurídica pela liberdade de seus filhos não teve o desfecho desejado e eles continuaram na condição de cativeiro, os caminhos e lutas trilhados por elas não só criaram outras formas de resistência à escravidão – que por vezes, tiveram outros desfechos -, como ajudaram a pautar práticas de liberdade e de atuação política que ganhariam novos contornos na luta pela cidadania plena alguns anos depois.

O tratamento dado pela autora sobre a luta de mulheres/mães pela liberdade de seus filhos e a forma por meio da qual ela enquadra tais questões naquilo que se convém chamar de “contexto mais amplo” faz que Conceiving Freedom possa ser tomado como uma importante contribuição nos estudos da escravidão urbana, não só por sua perspectiva comparada, mas também por trabalhar num território de fronteira da historiografia clássica, demonstrando que os limites entre o mundo escravista e o mundo da cidadania não podem ser balizados apenas pela declaração formal da abolição da escravidão. A luta começou antes dessas datas oficiais e continuou nos anos seguintes, sobre isso não restam dúvidas. Todavia, o protagonismo desse movimento não se restringiu às ações dos homens que lutaram pela abolição. Ao invés de fechar uma temática, o trabalho de Cowling indica novos caminhos num campo que poderá trazer contribuições promissoras para os estudos da escravidão e da liberdade nas Américas.

Por fim, vale ressaltar que num momento político como o atual, em que tanto se fala, se discute e se experimenta o empoderamento de mulheres negras, o livro de Camillia Cowling é igualmente bem-vindo. Não só por iluminar trajetórias que foram silenciadas ou tratadas como simples anedotas (demonstrando que a luta não é de hoje), mas igualmente por permitir repensar os moldes e os modelos por meio dos quais as histórias e as memórias da escravidão e da luta pela liberdade são construídas.

Referências

TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011. [ Links ]

Ynaê Lopes dos Santos – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Adjunta de História da Escola Superior de Ciências Sociais CPDOC-FGV. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].

Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de Abolição – MACHADO; CASTILHO (DSSC)

MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo; CASTILHO, Celso Thomas (Orgs). Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de Abolição. São Paulo: EDUSP, 2015, 480 pp. Resenha de: DOMINGUES, Petrônio. Diacronie Studi di Storia Contemporanea, v. 28 n. 4, 2016.

Come si realizzò il processo che portò alla fine della schiavitù in Brasile? Soprattutto a partire dal protagonismo degli schiavi e dei liberti, oppure, genericamente, per merito dei brasiliani? Quali furono i meccanismi per la conquista della liberta e quali i limiti di tali conquiste nel contesto della schiavitù e in quello successivo? In altri termini, come si svolse il processo emancipazionista nella principale nazione dell’America Latina? E, in quest’ambito, come si sviluppò il periodo successivo all’abolizione della schiavitù, in uno scenario caratterizzato dalle lotte per i diritti e la cittadinanza? Domande a cui non è facile dare risposta, ma è attorno a queste e ad altre questioni legate al mondo della schiavitù e della libertà che si articola Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de Abolição, un libro curato dagli storici Maria Helena P. T. Machado, dell’Universidade de São Paulo (USP), e Celso Thomas Castilho, della Vanderbilt University.

Il libro è stato concepito a seguito di un convegno – realizzato nel 2010 – in partenariato tra la USP e la Vanderbilt University, sul tema della storia atlantica. Da questa collaborazione nacquero due seminari, che riunirono importanti ricercatori delle due istituzioni. Da questo dialogo sorse anche il simposio tematico Da abolição à emancipação: raça, gênero e identidade, coordinato da Maria Helena Machado e Celso Castilho e realizzato in occasione del XXVI Simpósio Nacional della Associação Nacional dos Pesquisadores Universitários de História (ANPUH), tenutosi nell’Universidade de São Paulo nel 2011. Dalle discussioni che ebbero luogo nel simposio nacque la prima bozza del libro. Con l’intento di arricchire la discussione, al complesso iniziale dei testi vennero aggiunti i lavori di altri ricercatori, invitati per l’occasione a prendervi parte.

Il libro consiste perciò in un’opera collettanea che riunisce ventuno capitoli scritti da diversi storici, provenienti da università brasiliane e straniere (dell’Europa e degli Stati Uniti). Come è comune in questo tipo di miscellanea, gli autori affrontano diverse questioni, fanno ricorso a diversi tipi di fonti per documentare l’esperienza storica, complessa e sfaccettata, vissuta dai discendenti degli africani, nel processo attraverso cui dalla schiavitù divennero uomini liberi. Dal punto di vista della struttura testuale, il libro è diviso in quattro parti. Nella prima, intitolata «Disputando Liberdades», composta dai saggi di Maria Helena P. T. Machado e Flávio Gomes (Da Abolição ao pós-emancipação: ensaiando alguns caminhos para outros percursos), di Maíra Chinelatto Alves (Crimes de escravos e caminhos da autonomia. Campinas, 1876), di Marília Bueno de Araújo Ariza (Comparando brigas e liberdade: contratos de locação de serviços e ações de liberdade na província de São Paulo nas últimas décadas da escravidão, 1874-1884), di Thiago Leitão de Araújo (Nem escravos, nem libertos: os contratos de prestações de serviços nos últimos anos da escravidão na província de São Pedro) e di Edson Holanda Lima Barboza (Ela diz ser cearense: escravos e retirantes contra as correntes do tráfico interprovincial entre fronteiras do Norte, 1877-1880), il volume affronta le lotte degli schiavi e dei liberti in cerca di autonomia e libertà. I saggi problematizzano i significati di questa tanto agognata libertà nel contesto della schiavitù, specialmente nel periodo del suo sgretolamento, nella seconda metà del XIX secolo. Esplorando un nuovo (o rivisitando un’antico) canovaccio di ricerca sul processo di emancipazione, i testi evidenziano il protagonismo degli schiavi e dei liberti che, benché ancora in cattività, lottavano per la realizzazione di una via che li conducesse verso la libertà.

La seconda parte del libro, «Disputando liberdades: histórias de mulheres com seus filhos», costituita dai saggi di Enidelce Bertin (Uma ‘preta de caráter feroz’ e a resistência ao projeto de emancipação), di Camillia Cowling (‘Como escrava e como mãe’: mulheres e abolição em Havana e no Rio de Janeiro), di Lorena Féres da Silva Telles (Libertas entre contratos e aluguéis: trabalho doméstico em São Paulo às vésperas da Abolição) e di Ione Celeste J. de Sousa (‘Porque um menor não deve ficar exposto à ociosidade, origem de todos os vícios’: tutelas e soldadas e o trabalho de ingênuos na Bahia, 1870 a 1900), affronta il tema dell’agire storico dei liberti nella costruzione o nel consolidamento della conquista dell’autonomia e della libertà, a partire soprattutto dal ruolo giocato dalle schiave e dalle liberte come donne e madri. Questi saggi contribuiscono all’ampliamento degli studi incentrati sulle relazioni di genere nella schiavitù, aspetto ancora poco esplorato dagli specialisti di questo campo tematico.

Nella terza parte del libro, chiamata «Mobilização: dimensões e prática» e composta dai saggi di Ligia Fonseca Ferreira (De escravo a cidadão: Luiz Gama, voz negra no abolicionismo), di Renata Ribeiro Francisco (Pacto de tolerância e cidadania na cidade de São Paulo, 1850-1871), di José Maia Bezerra Neto (Se bom cativo, liberto melhor ainda: escravos, senhores e visões emancipadoras, 1850-1888), di Celso Thomas Castilho (‘Propõem-se a qualquer consignação, menos de escravos’: o problema da emancipação em Recife, c. 1870), di Ricardo Tadeu Caires Silva (A Sociedade Libertadora Sete Setembro e o encaminhamento da questão servil na província da Bahia, 1869-1878), di Renata Figueiredo Moraes (A Abolição no Brasil além do parlamento: as festas de maio de 1888), di Cláudia Regina Andrade dos Santos (Na rua, nos jornais e na tribuna: a Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro, antes e depois da Abolição), di Clícea Maria Augusto de Miranda (Memórias e histórias da Guarda Negra: verso e reverso de uma combativa organização de libertos) e di Wlamyra Ribeiro de Albuquerque (O que pode haver em comum entre navalhistas, capangas e secretas? Rui Barbosa e outros sujeitos no tabuleiro da política do pós-abolição, 1889-1919), gli autori indirizzano il loro sguardo sulla questione dell’organizzazione dei differenti movimenti emancipazionisti e abolizionisti sorti nella seconda metà del XIX secolo e nel periodo successivo all’abolizione della schiavitù. L’obiettivo di questi saggi nella raccolta collettanea è quello di offrire al lettore un quadro ampio della mobilitazione sociale intorno alla lotta abolizionista, lotta che unì schiavi, liberti e uomini liberi; arruolò settori popolari, intermedi e delle élites, oltre ad avere articolato una rete di legami che coinvolgevano la città e la campagna – e le zone urbane e quelle rurali. Non sempre il movimento degli schiavi stabiliva punti comuni – quanto ai metodi di lotta, alle strategie di azione collettiva e al vocabolario politico – con altri movimenti sociali abolizionisti, tuttavia non si può negare che la mobilitazione in favore della “libertà” deve essere considerata nel suo «legame profondo con la realtà dei senzalas1 e degli sforzi degli schiavi e, più genericamente, dei poveri, per liberarsi dalla prigionia e dalle sue piaghe».

Nella quarta e ultima parte del libro, «Abolição em dimensão transnacional», costituita dai saggi di Maria Clara Sales Carneiro Sampaio (Negros sonhos: os projetos de colonização de afro-americanos no Brasil e na América Central durante a Guerra da Secessão), di Luciana Cruz Brito (Abolicionistas afro-americanos e suas interpretações sobre escravidão, liberdade e relações raciais no Brasil no século XIX) e di Ana Lucia Araujo (Memória Pública comparada da emancipação e da abolição da escravidão: Abraham Lincoln e Princesa Isabel), sono riuniti testi che schiudono una riflessione su una tematica ancora poco esplorata nella storiografia brasiliana che è la dimensione internazionale e atlantica del processo di abolizione della schiavitù in Brasile. Proponendosi di affrontare un contesto di circolazione delle idee, di narrazioni, interlocuzioni e “giochi di specchi interpretativi tra regioni”, i saggi contribuiscono ad una comprensione dell’abolizione della schiavitù come ad una questione propria di un emisfero, di vasta portata e di lungo periodo, che proiettava le domande, i sogni e le aspettative di diversi attori e segmenti sociali in Brasile e nelle Americhe.

Tra le molte novità prodotte negli ultimi tempi dalla storiografia brasiliana, una delle più importanti è stata l’emergere di un approccio rinnovato quanto alle esperienze della libertà e dei suoi limiti nel contesto della schiavitù e del periodo successivo all’abolizione; libertà molte volte provvisoria, costantemente minacciata e, soprattutto, limitata, il che imponeva ai liberti i problemi dell’autonomia e del vivere contando su loro stessi, passi necessari che dovevano essere intrapresi in seguito all’acquisizione giuridica e formale della libertà. Tornando-se livre riflette, pertanto, i progressi negli studi, tanto della storia sociale della schiavitù quanto della storia politica e sociale della sua abolizione. Il libro costituisce, anche un modello dell’integrazione in questo campo di studi di una storia del periodo successivo all’abolizione che, benché ancora sia soggetto a una definizione concettuale più solida, viene considerato come un «campo di studi derivato dalla schiavitù, senza che ci si limiti a questa». Il periodo post-abolizionista, in questa prospettiva, è inteso come il periodo che prende avvio con la soluzione abolizionista conservatrice e termina solamente nel momento in cui il debito sociale accumulato nel corso di questi anni venne finalmente superato.

Come la maggior parte delle opere collettanee, il risultato non è uniforme per quel che riguarda le riflessioni degli autori, la forma espositiva e lo stile rivela in alcuni casi riflessioni originali, in altre occasioni riassunti (o note) di ricerche presentate per i corsi di laurea o critiche storiografiche, benché i testi siano sempre interessanti. Si nota la reiterazione di idee e di analisi da parte degli autori, che restituisce l’impressione di un “vai e vieni”; questo emerge soprattutto nel complesso dei testi, ma a volte anche all’interno di uno stesso testo. Ciò non compromette in alcun modo la qualità della raccolta, che condensa alcune delle principali tendenze di studio riguardo alla schiavitù e al periodo successivo alla sua abolizione, un campo tematico emergente e promettente della storiografia brasiliana. Il divenire liberi – un’evidente allusione al processo di rendersi liberi dei protagonisti di questa storia – è stata una condizione influenzata dall’esperienza della schiavitù, anche se l’impatto sociale, politico, culturale e propriamente storico di questa impresa superò grandemente l’esperienza della cattività nella misura in cui proiettò uomini e donne sottomessi alla schiavitù di fronte a nuovi dilemmi, situazioni difficili e sfide date dalla vita nell’ambigua “libertà” della società brasiliana, marcata dal complesso retaggio delle lotte per i diritti e la cittadinanza.

Nota

1 Il termine senzala indicava sia la popolazione di schiavi neri, sia le loro abitazioni. Sul tema del senzala si rimanda al capolavoro Casa-Grande & Senzala di Gilberto Freyre, tradotto in italiano come Case e catapecchie. La decadenza del patriarcato rurale brasiliano e lo sviluppo della famiglia urbana, Torino, Einaudi, 1972 [N.d.T.].

Petrônio Domingues si è addottorato in Storia presso l’USP (Universidade de São Paulo). Dal 2006 è professore dell’Universidade Federal de Sergipe e membro permanente del corpo docente del corso di Laurea specialistica in Storia (PROHIS) della stessa istituzione. Visiting Scholar della Rutgers – The State University of New Jersey (Stati Uniti), presso il Department of African Studies (2012-2013), è autore del libro, insieme a Flávio dos Santos Gomes, Da nitidez e invisibilidade: legados do pós-emancipação no Brasil, Belo Horizonte, Fino Traço Editora, 2013 e curatore – sempre assieme a Flávio Gomes – della raccolta Políticas da raça: experiências e legados da abolição e da pós-emancipação, São Paulo, Selo Negro Edições, 2014.

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Políticas da raça: experiências e legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil | Petrônio Domingues e Flávio dos Santos Gomes

Organizado por Flávio Gomes e Petrônio Domingues e publicada em 2014, esta coletânea conta com um amplo estudo sobre o processo de abolição do cativeiro e seus desdobramentos nos anos posteriores à emancipação em diferentes regiões do país. Reunindo ao todo, dezessete capítulos, a coletânea apresenta diferentes perspectivas analíticas – metodologias e fontes – através do olhar de dezenove pesquisadores nacionais e estrangeiros. Nela, o leitor é convidado a refletir sobre um período da história brasileira em que muitas questões ainda permanecem sem resposta, representando uma grande contribuição para ampliação dos debates em torno da experiência afro-brasileira para além do mundo escravista. De norte a sul, nas áreas urbanas e rurais, os pesquisadores analisam o protagonismo negro em diferentes momentos, tais como: a promulgação da lei do ventre livre; a ação dos quilombolas; o movimento abolicionista e operário; republicanos de cor; trajetórias; miscigenação; linchamentos raciais; campesinato negro; biografia; experiência africana no sul do país; capoeiras; música e políticas da raça. Leia Mais

Économie politique du racisme au Brésil – CHADEREVIAN (EH)

CHADEREVIAN, Pedro. Économie politique du racisme au Brésil: de l’aboliton de l’esclavage à l’adoption des politiques d’action affirmative. Saarbrücken: Éditions Universitaires Européennes, 2011. Resenha de: LANA, Rita de Cássia. Economia da discriminação. Estudos Históricos, v.26 n.52 Rio de Janeiro July/Dec. 2013.

As políticas públicas dirigidas à diminuição da desigualdade social pela via da educação superior, seja sob a forma de quotas ou de outros mecanismos correlatos que surgem nas discussões atuais da sociedade brasileira, já de algum tempo vêm ocupando as reflexões de acadêmicos, políticos, membros de movimentos sociais e outros atores que enunciam discursos sobre o tema. O preconceito racial, a segregação, a distribuição desigual da riqueza penalizando os mais carentes têm raízes históricas que explicam o percurso de exploração que caracteriza até hoje a vida cotidiana da maior parte da população brasileira.

Já em 2002 a revista Estudos Históricos publicava o artigo “Para que serve a história econômica? Notas sobre a história da exclusão social no Brasil”, do Prof. Dr. João Fragoso, no qual se encontrava a seguinte afirmação: “São poucos os trabalhos, ainda, que procuram estudar temas como o chamado pequeno comércio e seus agentes; a mobilidade social dos pardos e forros; os mecanismos de exclusão social, e as elites e suas estratégias de acumulação (políticas de casamento, negócios etc.). Um dos traços da atual pesquisa é que a sociedade brasileira dita escravista teve uma história […], fato que contribui decisivamente para o entendimento da historicidade dos mecanismos de exclusão social”. Ora, eis algo que avulta na obra do Prof. Dr. Pedro C. Chadarevian, publicada dez anos depois: precisamente o cuidado em esmiuçar tanto quantitativa quanto qualitativamente as dimensões raciais da exclusão econômica, bem como algumas de suas faces sociais e ideológicas. Sob essa perspectiva, portanto, Chadarevian corresponde às inquietações que Fragoso havia formulado sobre o destino da pesquisa em história econômica, visto que seu livro tanto oferece ao leitor abundância de dados, gráficos e tabelas ao expor o resultado de suas pesquisas sobre a exclusão racial no Brasil, quanto expõe claramente seu horizonte teórico e seu comprometimento político com o seu tempo.

Fruto de tese de doutoramento defendida em 2006, a obra se debruça sobre a economia e suas relações com a questão racial em perspectiva histórica e em seus desdobramentos no presente da sociedade brasileira. Assim, a partir de um viés de análise estatística e de estudos recentes sobre as razões da desigualdade social, o autor constata que mecanismos de discriminação presentes no mercado de trabalho atuam no sentido de reforçar uma “etnicização” da mão de obra no Brasil. A economia, portanto, se configura como um dos eixos centrais da produção e reprodução – até mesmo em nível ideológico e cultural/discursivo – das desigualdades raciais no país; raça e classe se articulam, pois, para a manutenção da mão de obra segregada, à disposição das necessidades dos ciclos de acumulação.

Partindo da hipótese que remete ao discurso econômico das elites como instrumento de relevância ao longo da história na reprodução de um quadro de hierarquização racial da mão de obra no Brasil, o autor nos apresenta a trajetória da desigualdade desde o marco da abolição no final do século XIX até o cenário mais recente de estratégias excludentes que perduram no país; um exemplo atual está no contexto do pensamento econômico neoclássico predominante, no qual se encontra o discurso de que para o mercado ideal apenas poderiam subsistir diferenças de caráter meritocrático, o que justificaria um certo enfoque nas políticas públicas endereçadas ao setor da educação.

A obra se divide em duas partes. A primeira se volta para o retrospecto histórico das ligações entre ideias econômicas e a questão da raça, passando pelas teorias científicas que sustentavam o racismo no século XX e expondo os temas da raça, classe e revolução no contexto do pensamento marxista até 1964; encerrando esta parte e já sinalizando o que seguirá, empreende-se uma crítica à teoria neoclássica da discriminação. A segunda parte destina-se a oferecer ao leitor um panorama do pensamento econômico brasileiro atual, reforçando a crítica do modelo neoclássico pela exposição das suas fragilidades e incoerências, desmontando a argumentação de que o mero desenvolvimento do livre mercado seria suficiente para extinguir a desigualdade ao longo do tempo.

Ao expor dados estatísticos e estudos demográficos referentes à pirâmide social brasileira, ao quadro da segmentação entre trabalhadores brancos e negros no mercado, discutindo diversas abordagens das categorias de classe social e raça articuladas no processo de manutenção da desigualdade, Chadarevian proporciona ao leitor a possibilidade de vislumbrar as sutilezas da realidade racial no país tanto em seus aspectos concretos como nas traduções dessa hierarquização racial em termos de discussão sobre os pressupostos ideológicos e teóricos embutidos em índices e coeficientes, ou de descrição de mecanismos de exclusão adotados no mercado de trabalho que impactam negros e mestiços, algo que fornece a dimensão do que se poderia denominar “barbárie racial” no mercado de trabalho.

Ao final desse tour de force analítico, encontra-se a proposição de um método de cálculo de um índice para aferir a desigualdade racial nas relações produtivas segundo a racialização da exploração da mão de obra: trata-se do IHR (índice de hierarquização racial). O IHR apresenta-se, pois, como o corolário de toda a discussão teórica e do percurso histórico expostos sobre a desigualdade social em conexão com o problema racial, na medida em que intenta conferir mensurabilidade às particularidades observadas e fornecer um viés de avaliação para políticas de ações afirmativas que se desprenda da lógica de acumulação do capital e das insuficiências das teorias econômicas ortodoxas.

Na conclusão da obra, Chadarevian aponta ainda as tarefas e desafios que se apresentam para o aperfeiçoamento das análises interessadas em conduzir ao entendimento mais amplo da economia política do racismo, reconhecendo a necessidade de aprofundar teoricamente os fundamentos que emergem da realidade econômico-social observada.

Ficam os votos de que não se alongue a espera pela versão em português desta obra excepcional para as questões raciais contemporâneas que afloram no Brasil e no mundo.

Rita de Cássia Lana – Doutoranda em História Social na USP e professora de História da Universidade Federal de São Carlos, campus de Sorocaba, São Paulo, Brasil ([email protected]).

O Jogo da Dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil – ALBUQUERQUE (Tempo)

ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O Jogo da Dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, 319 p. Resenha de: GOMES, Tiago de Melo. Dissimulação e outros jogos. Tempo v.15 no.29 Niterói jul./dez. 2010.

“‘Saber o seu lugar’ é uma dessas expressões capazes de traduzir regras de sociabilidades hierarquizadas que, sendo referendadas ou contestadas, atualizam-se cotidianamente. É construindo e conhecendo tais ‘lugares’ que as pessoas estabelecem relações, reconhecem formas de pertencimento e estruturam disputas próprias ao jogo social. Mas quais seriam os sentidos imprimidos a essa expressão no contexto das mudanças políticas e sociais das últimas décadas do século XIX? Em que medida a desarticulação da escravidão fundamentava as leituras que os contemporâneos faziam dos diferentes lugares naquela sociedade?” (p. 33).

Essa é a maneira pela qual Wlamyra R. de Albuquerque define a problemática de seu livro em sua introdução. O tema central de O Jogo da Dissimulação é uma interrogação a respeito da reorganização das hierarquias sociais com o fim da escravidão, um dos pilares centrais de todo um sistema de dominação que dava sentido àquela sociedade. Sendo esse alicerce removido, como os senhores poderiam manter suas políticas de domínio? E como os dominados poderiam buscar uma nova inserção em um mundo sem a presença da escravidão? Sobre tais questões, Albuquerque constrói seu O Jogo da Dissimulação.

O livro possui, dessa maneira, uma ancoragem muito sólida na história social, algo que é mantido com coerência pelos quatro capítulos do livro. Os quais, por sinal, a despeito de interligados, podem ser lidos em separado sem maiores prejuízos para o leitor. Mas o livro não carece de unidade: a problemática enunciada na citação acima é perseguida da primeira à última página, de modo que o que se tem não é uma coleção de artigos, mas um livro com início, meio e fim.

Segundo a autora, o primeiro capítulo seria centrado “nas dissensões flagrantes nos meetings e ações dos abolicionistas, diante das atitudes da população de cor” (p. 39). No entanto, não é uma definição particularmente feliz. Os abolicionistas só entram em cena com o capítulo bem adiantado, na terceira (e última) parte. Através deles, a autora nos mostra que para Salvador valia algo que outros autores já haviam demonstrado para Rio de Janeiro e São Paulo: abolicionismo não é incompatível com racismo. E naquele contexto não era raro as duas coisas andarem juntas, pois muito do abolicionismo de elite era fundado exatamente no desejo de se livrar dos negros para substituí-los por imigrantes brancos.1 Albuquerque nos mostra isso com competência, o que, embora não seja propriamente original, nunca deixa de ser relevante, principalmente com a exaltação que muitos ainda se ocupam de fazer a figuras como Joaquim Nabuco2.

Mas o que efetivamente vale a leitura do capítulo são suas primeiras duas partes. A partir da chegada de dezesseis africanos em 1877, com intenção de se estabelecer em Salvador como comerciantes, a autora nos conduz por uma história incrível. Embora livres e portadores de passaportes ingleses, o grupo é proibido de se estabelecer e mandado de volta para a África. Um episódio que gerou um pequeno choque diplomático com os ingleses e envolveu o chefe de polícia da cidade, o governador da província, chegando à alta instância do Conselho de Estado. Mais admirável é que Albuquerque nos mostra não ter se tratado de fenômeno isolado. Pode ser mais bem definido como parte de um esforço consciente do Estado brasileiro de impedir a entrada de imigrantes de cor sem que houvesse a necessidade de recorrer a uma legislação específica. Ao mostrar outros casos com a mesma problemática e o mesmo final, Albuquerque deixa claro que o Estado brasileiro lutou em várias frentes pelo embranquecimento da nação. Não apenas se esforçou para trazer imigrantes que clareassem o Brasil, mas deliberadamente impediu africanos e afrodescendentes de outras nacionalidades de entrar no país.

O que é uma importante contribuição para inserir de forma mais consistente o papel do Estado brasileiro na promoção da desigualdade racial. A ausência de legislação discriminatória tem feito com que historiadores não deem ao Estado um papel de destaque nesse processo.3 Estudos sobre ações semelhantes em outros contextos, aliados ao trabalho de Albuquerque, fornecem elementos impossíveis de serem ignorados, que apontam claramente nessa direção.4

O segundo capítulo, centrado no contexto imediatamente anterior e posterior ao 13 de maio, é um dos pontos altos do livro. Albuquerque nos conduz por um intenso jogo de reconstrução de sentidos causado pela remoção de um dos pilares sobre o qual se construía a sociedade brasileira até então. Sem a escravidão, os senhores percebiam a derrocada de toda uma política de domínio longamente estabelecida, e o medo do caos social se disseminava (para não mencionar as consequências econômicas, em especial para uma província já decadente). Do lado dos subalternos, a excitação ante a possibilidade da reconstrução de todo um contexto social em termos que lhes fossem mais favoráveis.

Em meio às festividades e desafios políticos que os dominados promoviam, ou a tentativas desesperadas e eventualmente patéticas de manter a antiga ordem social por parte dos dominantes, Albuquerque nos introduz a repensar algo há muito consagrado sobre aquele período. Há uma tendência a pensar na década de 1880 como uma desagregação definitiva da escravidão, e no 13 de maio como apenas o último ato de uma situação praticamente já consolidada. Mergulhando em bairros negros de Salvador, em engenhos do recôncavo e em vilas afastadas no interior, Albuquerque nos lembra com muita intensidade o quanto a escravidão ainda era naquele momento a peça-chave de todo um sistema de dominação que era intensamente presente no cotidiano daquela sociedade.

Já o terceiro capítulo tem um brilho menor. Contém uma ideia muito interessante, e que em certos momentos consegue fascinar o leitor: a de que a racialização da visão de mundo do universo dominante de fins do século XIX não se deve apenas à influência do ideário racista europeu, mas também deve ser vista como uma tentativa de reorganização das hierarquias a partir do declínio da escravidão. Uma ideia das mais interessantes, mas que às vezes é soterrada no capítulo por discussões menos originais. Pintar republicanos como essencialmente brancos bem educados de classe média e alta, em contraposição a uma paixão popular (e sobretudo negra) pela monarquia, por exemplo, é algo que hoje já se transformou em lugar-comum. Muitas páginas são dedicadas a essa questão, sem trazer ganhos palpáveis a uma discussão que, se perseguida de forma mais sistemática por todo o capítulo, poderia ter resultado em uma discussão do mais alto interesse.

Já o quarto e último capítulo muda o rumo da discussão, se embrenhando em uma discussão aberta há muitos anos por Beatriz Góis Dantas,5 mas que poucos tentaram prosseguir. Trata-se da imagem da Bahia como capital afro-brasileira, ideia em grande parte referendada em uma determinada africanidade (a jeje-nagô), que nessa visão seria mais “pura” ou até mesmo “superior” às outras áfricas que aportaram em território nacional.

Se Albuquerque segue o trabalho de Dantas ao se ocupar da visão de atores como Nina Rodrigues, Manoel Querino, Édson Carneiro e Artur Ramos (fundadores e difusores daquela imagem), inova ao acrescentar um dado novo: os próprios africanos e afro-brasileiros que viveram aqueles anos. No capítulo, podemos ver os portadores daquela cultura afro-brasileira que foi alvo de tantos escritos representando a si próprios e a própria África. Aprendemos que não era apenas na faculdade de medicina de Salvador ou nas publicações de literatos que o tema estava na ordem do dia. Blocos carnavalescos, terreiros, batuques, bancas de jogo do bicho, qualquer espaço parecia bom naquele momento para pensar a relação entre África e Bahia.

E o mínimo que se pode dizer a partir da leitura do capítulo é que naquele contexto havia uma multiplicidade de representações disponíveis sobre o continente africano, que não aparecia apenas como espaço da barbárie. Havia outros elementos a ele associados, tais como resistências ao imperialismo europeu. Disso resulta que era evidente o conflito de significados associados àquele continente, com evidentes implicações político-raciais. Áfricas diferentes também significavam diferentes percepções sobre o lugar de seus descendentes em território brasileiro.

O último capítulo de O Jogo da Dissimulação é um convite para que o tema da construção de uma determinada leitura da capital baiana seja mais problematizado por historiadores. O capítulo não é propriamente conclusivo, trazendo mais perguntas do que respostas. De toda forma, desperta a curiosidade do leitor para o tema sobre o qual se debruça, o que é sem dúvidas um mérito dos mais relevantes.

Um pequeno reparo que deve ainda ser feito em uma leitura global do livro se refere ao título. Que poderia ser ótimo, se fosse adequado ao seu conteúdo. Mas a verdade é que não temos em mãos um livro sobre dissimulação. O termo só aparece no primeiro capítulo, para descrever as tentativas do Estado brasileiro de barrar a entrada de africanos e afrodescendentes no país, sem recorrer a uma racialização explícita. No mais, o que temos são confrontos, projetos, choques de visão de mundo, mas nunca dissimulação.

O Jogo da Dissimulação, ao fim, mostra-se um livro instigante, que deixa no leitor uma vontade de saber mais sobre o assunto. É de esperar que sua publicação contribua para que as questões discutidas possam avançar. São temas muito importantes e nem sempre tratados como deveriam pela historiografia brasileira.

Gostaria de encerrar com uma questão de caráter mais geral que o livro levanta: o papel da escravidão na trajetória posterior dos afro-brasileiros. Albuquerque nos lembra de algo muito importante: o destino dos afro-brasileiros após 1888 poderia ter sido muito diferente. A escravidão não pode ser vista, portanto, como uma origem que explica toda uma trajetória posterior de desigualdades raciais. Vemos claramente no livro como o encaminhamento da “questão servil”, desde o momento em que a abolição afigurou-se como inevitável, foi conduzido de forma a produzir desigualdades em um mundo sem escravidão. Vemos os grupos dominantes buscando na racialização uma maneira de reorganizar as hierarquias de forma a manter a existência de senhores, mesmo em um mundo sem escravos. Em um momento em que essa questão está na ordem do dia, Albuquerque nos lembra com muita propriedade o quanto essas diferenças e hierarquias se reconstroem permanentemente. Somos todos atores desta história.

1 O trabalho seminal sobre o assunto é Célia Maria Marinho de Azevedo, Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites – século XIX, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
2 Novamente é preciso lembrar o trabalho de Célia Azevedo, em textos como “Quem Precisa de São Nabuco?”, Estudos Afro-Asiáticos, vol. 23, nº 1, Rio de Janeiro, 2001, p. 85-97.
3 Uma exceção importante é o trabalho de Anthony Marx, em obras como “A Construção da Raça e o Estado-Nação”, Estudos Afro-Asiáticos, nº 29, Rio de Janeiro, 1996, p. 9-36 e Making Race and Nation: a comparison of the United States, South Africa and Brazil, Cambridge-New York, Cambridge University Press, 1998.
4 Episódios semelhantes foram documentados na década de 1920, ver Teresa Meade e Gregory Alonso Pirio, “In Search of the Afro-American ‘Eldorado’: attempts by North American blacks to enter Brazil in the 1920s“, Luso-Brazilian Review, vol. 25, nº 1, Madison, 1988, p. 85-110; Tiago de Melo Gomes, “Problemas no Paraíso: a democracia racial brasileira frente à imigração afro-americana (1921)”, Estudos Afro-Asiáticos, vol. 22, nº 2, Rio de Janeiro, 2003, p. 307-331; Jair de Souza Ramos, “Dos Males Que Vêm Com o Sangue: as representações raciais e a categoria do imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de 1920”, in: Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos (orgs.), Raça, Ciência e Sociedade, Rio de Janeiro, Fiocruz-CCBB, 1996, p. 59-82.
5 Beatriz Góis Dantas, Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da África no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1988.

Tiago de Melo Gomes – Professor Adjunto da Universidade Federal Rural de Pernambuco. E-mail: [email protected].

As camélias do Leblon e a abolição da escravatura. Uma investigação de história cultural – SILVA (RIHGB)

SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura. Uma investigação de história cultural. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Resenha de: PIRES, Fernando Tasso Fragoso. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.165, p.209-213, n.425, out./dez., 2004.

Fernando Tasso Fragoso Pires – Sócio titular do IHGB.

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A Slaves Place, a Master’s World: Fashioning Dependency in Rural Brazil | Nancy Priscilla Naro

NARO, Nancy Priscilla. A Slaves Place, a Master’s World: Fashioning Dependency in Rural Brazil. London: Continuum, 2000. Resenha de: HOFFNAGEL, Marc Jay. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.20, n.1, p.301-304, jan./dez. 2002.

Acesso apenas pelo link original [DR]

Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil – MENDONÇA (VH)

MENDONÇA, Joseli Maria Nunes de. Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Unicamp, 1999. Resenha de: RICCI, Magda. Varia História, Belo Horizonte, v.16, n.23, p. 241-245, jul., 2000.

Quem já não ouviu falar da Lei dos Sexagenários? Lei conhecida. Malfadada lei. Promulgada em 28 de setembro de 1885, seu texto e contexto social foram, durante muito tempo, crivados por interpretações que menosprezavam os seus significados mais marcantes. Para alguns parecia inútil estudá-la. Argumentava-se que o teor da lei de 1885 parecia colocá-la na contramão do processo abolicionista. Libertar idosos aos 60 anos de idade, impondo-lhes ainda mais um período de 5 anos sob a tutela senhorial, em um regime de liberdade condicional, parecia fora de lugar e tempo. Desta forma, a lei de 1885 significava uma ultrapassada fórmula de emancipação lenta e gradual, que só fazia sentido dentro de uma desesperada tentativa escravocrata e senhorial de continuar a sustentar um regime social que tinha, em princípio, os dias contados dentro da lógica capitalista que se estabelecia. Assim, a lei de 1885 pôde ser menosprezada durante muito tempo.

Ao longo das décadas de 1960 e 1970, estudar os últimos tempos da escravidão no Brasil foi se tornando sinônimo de análises sobre a ação direta dos negros por liberdade, ou sobre os problemas que impediram estas ações. Deste modo, por um lado, restava pesquisar os levantes, quilombos e fugas escravas. Do outro lado da questão estava uma perspectiva política e historiográfica que percebia a escravidão como uma luta dos escravos para se desvencilhar do espectro do sistema ou modo de produção escravista. Estes estudos muitas vezes levaram o historiador da escravidão no Brasil para longe da legislação, porque esta última remetia ao campo de análise do supra-estrutural, sendo um terreno ideologicamente construído. Dentro deste contexto, o estudo das leis remetia a um outro debate historiográfico.

A maioria das pesquisas sobre as leis ou sobre a esfera política, em um sentido mais restrito, acabava enfatizando as vicissitudes da vida política Imperial, com a descrição das turras partidárias entre liberais, conservadores e republicanos na criação do mundo oligárquico e clientelista, desnudado, em sua plenitude, somente depois de 1889. Ou ainda desembocava em estudos que revelavam a ascensão ao poder do grupo dos cafeicultores paulistas, em especial os do chamado oeste paulista que, moradores em zonas fronteiriças, eram imigrantistas e abolicionistas, tornando-se, desta forma, descortinadores de uma nova mentalidade social: a saber, aquela que fazia a apologia ao trabalho livre e à civilização dentro dos padrões europeus. Desta forma, ficava exposto um fosso entre os estudos sobre escravidão, e aqueles reveladores da formação da classe trabalhadora no Brasil, como bem mostrou um estudo de Silvia Hunold Lara1.

Por tudo o que foi descrito, a lei de 1885 parecia fadada ao esquecimento. Inútil politicamente e incorreta para entender o processo de abolição, ela, no máximo, seria relevante para uma história da elite política e econômica, que desembocou na crise do Império escravocrata e na proclamação da primeira república imigrantista e civilizadora. No entanto, como afirma o historiador francês Jacques Le Goff, a roda da fortuna sempre gira e, em uma de suas voltas, o que era turvo ilumina-se de uma maneira especial.

O livro de Joseli Mendonça dota a lei e seu contexto de uma nova vida, iluminando, com outros significados, um passado que parecia esquecido nas velhas páginas dos jornais e do parlamento Imperial. Qual a mudança de perspectiva proposta por este estudo? Primeiramente, um trabalho de pesquisa sério e pormenorizado, que — saindo da letra da lei e dos íngremes debates parlamentares — atinge seus desdobramentos no seio da sociedade, passando pelos jornalistas e chegando às senzalas em inúmeros processos minuciosamente analisados. Por outro lado, Joseli Mendonça revê as relações sociais da escravidão nas últimas décadas do século XIX através de uma belíssima narrativa. Em seu livro, os documentos casam-se com a bibliografia, criando um texto rico em movimentos de ir e vir no tempo e no espaço, que nos faz sair das mais jocosas falas dos deputados, até as mais tristes histórias de vidas e de lutas de escravos e abolicionistas em torno do que deveria ser a abolição ou a liberdade individual e social.

São quatro capítulos que nascem e vão crescendo em complexidade no decorrer da narrativa. O primeiro caminha de uma lei abolicionista para outra, ou seja, do passado de 1871 até o ano 1885. Nele, paulatinamente, constrói-se um percurso que une a tramitação e cláusulas das leis com suas interpretações e usos por parte de abolicionistas e escravos. Em um segundo momento, a autora penetra em seu tema central: os libertos e a Lei dos sexagenários. Indo de 1871 até 1885, Joseli Mendonça vai somando documentos, reunindo indícios os mais diversos para expor a questão central do período, ou seja, como conduzir com segurança o processo de passagem do mundo escravo para o livre. Ali a autora explicita o quanto esta questão evidencia um momento em que todos, univocamente, pareciam ser favoráveis à abolição da escravidão. No entanto, havia discordâncias as mais diversas sobre o processo que levaria à liberdade escrava. Questões como o controle do trabalhador liberto e a indenização da propriedade escrava estavam no centro do debate, que, entre outras conseqüências, derrubou o ministério Dantas e fez subir o Saraiva.

Contudo, Joseli Mendonça vai além das falas parlamentares como reflexo de um debate sobre a transição entre duas formas de trabalho no século XIX. Ao tocar no polêmico ponto do controle social do liberto ou na questão da propriedade escrava, a autora envereda sua análise para os significados e práticas sociais em torno destes aspectos. Neste sentido, senhores e escravos, desde 1871, mas, sobretudo, depois de 1885, começam a perceber o acirramento de um debate sobre os limites da legitimidade do poder ou do domínio senhorial, o que, em última instância, inaugura uma discussão sobre os sentidos da liberdade e a construção da cidadania no Brasil.

Afinal, o que era a liberdade ou o fim da escravidão? Se hoje podemos perceber o processo desencadeado entre 1871 e 1888 como a transformação de escravos em trabalhadores, ou a passagem de um modo de produção em que pessoas eram vendidas e compradas, para outro, em que se comprava e vendia apenas a força de trabalho, entretanto, para muitos homens e mulheres dos anos finais do século XIX, a liberdade certamente assumia outros pressupostos e significados. Utilizando-se de leis como as de 1885, fugindo, procurando abrigo entre os abolicionistas, muitos escravos buscavam uma liberdade mais ampla, que a de trocar seus senhores por patrões. É dentro desta perspectiva que a autora elabora os dois últimos capítulos e sua conclusão. É assim também que percebe o sentido de estudar leis como a de 1885, que não pode ser entendida apenas em seu teor supostamente positivo, mas, deve ser vista dentro dos pressupostos de sua ambigüidade e de seus múltiplos usos, tal qual enfatizava o historiador Edward Thompson para a lei negra na Inglaterra do século XVIII.

Um outro aspecto importante: o livro de Joseli Mendonça explicita a escravidão e a liberdade como problemas sociais e não como discursos ou representações das elites. As falas dos parlamentares, as dos jornalistas paulistas estão permeadas de suas experiências. Neste sentido, Joseli vê o texto dos deputados, dos jornalistas, bem como a letra da lei e o teor presente em seus vários projetos como frutos de relações sociais concretas em um contexto que vai sendo alterado cotidianamente pelos conflitos entre classes sociais distintas e resignificadas ao longo da luta.

Se há muitos e merecidos elogios ao livro, também existem críticas as quais, no limite, devem servir para continuar o movimento da roda da fortuna, dando sentido a novas investidas e outros estudos. Não se passa impunemente por uma análise tão densamente construída em torno da idéia de interpretação das leis e das classes sociais a partir dos estudos de Thompson. Depois de Formação da Classe Operária Inglesa e de Senhores e Caçadores, Thompson dedicou-se ao que denominou de “costumes em comum”. Assim, dentro do fazer-se de uma classe social, a questão cultural tornou-se fundamental. Neste ponto, apesar de várias notas explicativas e algumas incursões sobre a cultura escrava e a senhorial, o estudo de Joseli não procurou entender esta questão como central para a compreensão do mundo do liberto e de suas estratégias para pleitear e compreender os significados das leis na obtenção de sua liberdade. É muito mais dos embates sociais entre os escravos (classe) e o mundo senhorial, em especial em torno do espaço da justiça, que a autora retira suas explicações. Por seu turno, as páginas dos jornais paulistas, bem como os romances, a descrição dos viajantes e suas iconografias e tantos outros documentos, começam a servir de fontes para estudos que, ampliando o campo de luta escrava, o compreenda mais imbricado com os laços e disputas culturais que o conformavam.

Ainda neste sentido, também os diversos tipos de associações entre os escravos poderiam ser mais explorados. Eram em irmandades religiosas, nas festas e devoções aos santos e santas, nas rezas e práticas de cura e de feitiço que se teciam laços importantes para se entender as estratégias de luta escrava e sua contrapartida senhorial. Também carece de aprofundamento o estudo das inter-relações familiares, bem como as de compadrio, com aquelas oriundas da cultura negra, que foi se constituindo localmente. Talvez este entrelaçamento seja tão central quanto a bipolaridade senhor-escravo para a compreensão do universo de relações sociais constitutivos da sociedade paulista entre 1871-1888. Finalmente, eram nas igrejas que se faziam as eleições, que se reuniam os devotos e fiéis em louvor a um santo ou santa, que se discutia a pauta do dia das irmandades religiosas, que se benziam as rezadeiras e curandeiros.

Como fica claro, o livro de Joseli Maria Nunes Mendonça não esgota os caminhos da abolição em São Paulo e nem mesmo em Campinas. No entanto, depois dele fica difícil duvidar da abrangência e da gama de diferentes significados que se estabeleceram em torno do debate e promulgação da Lei dos Sexagenários. O que critico neste livro não é seu eixo central de análise, mas tão somente aponto que é possível ir mais longe através dele. Para terminar, volto ao princípio desta resenha, lembrando que quando um livro possibilita tecer uma enorme rede de significados, unindo — de forma rica e diversa — o presente com o passado, ele merece mais do que ser lido por trabalho e obrigação dos pesquisadores que estudam escravidão. Ao estabelecer o percurso da abolição e suas polêmicas como centro de análise, o estudo de Joseli nos faz lembrar o quanto a experiência de vida de homens e mulheres de 1885 podem ainda hoje ser importantes. Fazendo perceber que a justiça e a lei não são letras mortas e criadas de forma a serem sempre aplicadas positivamente, os escravos e escravas que Joseli estuda nos fornecem indícios de outros caminhos para os nossos dias.

Nota

1 Sílvia Hunold Lara. “Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil”. Projeto História: revista do programa de estudos de pós-graduação do Departamento de História da PUC/SP. no 16 (1998):25-38.

Magda Ricci – Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Pará.

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