Livros e leituras / Mnemosine Revista / 2015

Livros, leitura e múltiplas interpretações

“A maior parte do tempo de um escritor é passado na leitura, para depois escrever; uma pessoa revira metade de uma biblioteca para fazer um só livro.” Samuel Johnson

As palavras do escritor e pensador inglês Samuel Johnson (17091784) permite-nos conjecturar sobre a complexidade existente para se elaborar um texto: de início, a escolha de um assunto e sua consequente pesquisa; depois, a seleção de textos que possibilitem o estudo do conteúdo a ser pesquisado, que pode ser realizada em bibliotecas. A seguir, vem à leitura dos textos selecionados e, por último, a redação.

Hoje, no primeiro semestre de 2015, passados aproximadamente duzentos de cinquenta anos das palavras escritas por Samuel Johnson, e graças aos avanços tecnológicos, o acesso aos textos tornou-se facilitado, muito em decorrência da informática. Para muitos, com o advento e a proliferação da internet, a mudança de suporte, a tela e o teclado – que pode ser do computador, de telefones móveis ou dispositivos portáteis – substituindo o papel e a tinta, aumentou a eficácia no armazenamento, na manipulação e na maneira de comunicação e acesso aos textos anteriormente restritos apenas aos ambientes físicos de bibliotecas localizadas nos grandes centros (que podem estar perto ou longe do leitor) ou nos rincões mais afastados do planeta.

Na internet, as bibliotecas virtuais e os grandes repositórios de textos e livros permitem ao pesquisar o acesso a uma infindável quantidade de informações que, anteriormente, não se tinha. A cada ano, a quantidade de publicações e o aparecimento de periódicos científicos online aumentam substancialmente, ao ponto de não sabermos, ao certo, por exemplo, o número de revistas científicas existentes. As estimativas variam muito: a página do SciELO permite o acesso a mais de mil periódicos científicos em textos completos. O Portal de Periódicos CAPES dá acesso a mais de 35 mil revistas científicas.

Apesar de todas as facilidades no acesso aos textos e a dinâmica interativa da leitura e da escrita propiciada pelo computador, muitas pessoas ainda são reféns do folhear o papel físico e do sentir o cheiro de um bom livro “velho”. Outros aderiram ao texto digital, por propiciar leitura interativa e coletiva, em virtude das várias janelas hipertextuais multissequenciais que se podem abrir a todo o instante, fazendo com que a unidade de leitura se encaminhe rumo a novas e inesperadas conexões entre textos.

Ao lado dessas duas maneiras de acesso aos textos – impressos ou digitais – existem os leitores e pesquisadores que imprimem os textos online para lê-los no papel. Seja qual for a sua predileção, os textos do dossiê que vocês – leitores da revista Mnemosine – terão acesso, a seguir, foram escritos por leitores-intérpretes que compareceram a bibliotecas no desafio de escrever, após revirar os seus acervos na busca de respostas a suas inquietações e indagações de pesquisa.

Os onze artigos que constituem o presente dossiê analisam, a sua maneira, diversificadas práticas culturais e políticas transmitidas por agentes que intervieram nos episódios e processos históricos que participaram, possibilitando-nos conhecer, após as investigações de seus autores, as representações de mundo, os conceitos, as linguagens, as conjunturas históricas e as suas mais diversas formas culturais e políticas, registradas em uma determinada historicidade.

Guiando-se pela lógica de que a produção textual está imersa em circunstâncias, incidentes e intencionalidades do autor, operadas, por exemplo, para ensinar e desenvolver um espírito de universalidade, o dossiê se abre com o artigo de Rubens Leonardo Panegassi (Universidade Federal de Viçosa, UFV), que contextualiza a produção do humanista português João de Barros e o seu posicionamento político frente ao contexto histórico existente no reinado de dom João III.

Ainda com ambientação em Portugal, Adriana Angelita da Conceição (Pós-Doutoranda em História pela Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP) apresenta-nos a obra “O governador de praças”, de Antonio de Ville Tolozano, que serviu às discussões políticas travadas pelo vice-rei marquês do Lavradio durante seu governo no Brasil.

A fundação da Biblioteca Pública de Lisboa, em 1796, ocorrida durante a regência de dom João, serviu de mote para Juliana Gesuelli Meirelles (Pontifícia Universidade Católica de Campinas, PUCCAMPINAS) apresentar o bibliotecário régio Antonio Ribeiro dos Santos e discutir a circulação de livros particulares naquele período.

A seguir, Francisco Topa (Universidade do Porto, em Portugal) comenta a obra literária de João Mendes da Silva e descortina as suas indicações de leitura no contexto do Rio de Janeiro de finais do século XVII.

Encaminhando-nos rumo à América hispânica, chegamos a Clementina Battcock (Universidad Autónoma Nacional de México, UNAM) e Sergio Botta (Sapienza Università di Roma, Itália) que lançam luz sobre a guerra entre incas e chancas representada na obra “Historia del nuevo mundo” (1653), do cronista Bernabé Cobo.

Já Patricia Escandón (pesquisadora do Centro de Investigaciones sobre América Latina y el Caribe, CIALC, da Universidad Nacional Autónoma de México, UNAM) apresentanos a obra “Historia general del Perú”, do frei Martín de Múria.

Utilizando-se dos fotolivros “Au Mexique” e “Brésil”, de Pierre Verger, Carlos Alberto Sampaio Barbosa (Universidade Estadual Paulista, UNESP, câmpus de Assis) discute a importância dos fotolivros na construção de uma cultura visual latino-americana e como Verger ajudou a elaborar uma identidade visual naqueles dois países na primeira metade do século XX.

Por intermédio das análises de Neuzimar Campos e Silva (Frade da Ordem Franciscana) e Neimar Machado de Sousa (Universidade Federal da Grande Dourados, UFGD) chegamos ao filósofo argentino Enrique Dussel, considerado um dos mais destacados expoentes da Filosofia da Libertação e do pensamento latino-americano.

O romance “Um rio imita o Reno” serve de inspiração para Rodrigo Luis dos Santos (Mestrando em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS) comentar a construção realizada por Clodomir Vianna Moog sobre o imigrante e descendente não vinculado de forma opcional à sociedade brasileira nas décadas de 1930 e 1940.

Roger Domenech Colacios (Universidade Estadual de Londrina, UEL, e Pós- Doutorando em História na Universidade Estadual Paulista, UNESP, câmpus de Assis) analisa as alterações realizadas pelo filósofo das ciências Bruno Latour em sua obra “Vida de laboratório: a construção dos fatos científicos”, escrita em coautoria com o sociólogo britânico Steve Woolgar, referente às edições francesa e brasileira, publicadas em 1988 e 1997, respectivamente, permitindo-nos pensar se as alterações realizadas em um texto impresso são apenas transformações dentro de uma obra ou se são transformações de um autor.

Assim, como autores e leitores que somos, cabe-nos praticar múltiplas interpretações dos impressos e textos eletrônicos que nos aparecem a cada dia.

Boa leitura!

André Figueiredo Rodrigues – Professor do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras, da Universidade Estadual Paulista (UNESP), câmpus de Assis.


RODRIGUES, André Figueiredo. Apresentação. Mnemosine Revista. Campina Grande, v.6, n.1, jan. / mar., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Africanidades / Mnemosine Revista / 2014

A escravidão e seus vestígios

Passados mais de 126 anos desde o final oficial da escravidão no Brasil, com a assinatura da Lei Áurea, pela princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, ainda sentimos, nos dias de hoje, os reflexos de termos sido o último país das Américas a abrir mão do trabalho forçado, em que algumas pessoas da sociedade detinham o direito de propriedade sobre outras pessoas.

A abolição da escravidão, por se celebrar na pompa oficial com um feriado nacional, mascara um passado que se quer esconder: o permeado por histórias de tragédias, preconceitos, injustiças e violência nas relações econômico-sociais, em que centenas de milhares de negros passaram, da noite para o dia, de um regime de dor, exploração e humilhação, para um regime pré-democrático, em que a igualdade de direitos e oportunidades deveria prevalecer.

A História, infelizmente, conta-nos outro enredo: aquele em que os negros e os seus descendentes foram alijados e / ou não adequadamente integrados às regras de uma sociedade baseada no trabalho assalariado.

Com base no Censo de 2010, é-nos permitido saber que a população negra soma hoje 50,1% dos cidadãos brasileiros e que existe – ou melhor, que ainda persiste – um abismo entre brancos e negros difícil de ser ultrapassado. Sem ficar nos números, que podem ser consultados no site do IBGE (www.ibge.gov.br), basta observar o acesso aos serviços básicos de saúde, saneamento e educação, e as informações econômicas relacionadas à renda e ao emprego, para percebermos que muito ainda temos que avançar rumo a tão propalada democracia racial.

Mesmo com as marcas visíveis deixadas pela escravidão e os fenômenos relacionados a ela na formação da sociedade brasileira, muitas pessoas e pesquisadores das Ciências Humanas fazem seus escritos como se no Brasil nunca tivesse existido escravidão. Dentro da necessidade de se ampliar ou de não se fazer esconder o passado que nos toca, é que este Dossiê – “A escravidão e seus vestígios” – foi organizado.

Em seus pouco mais de “500 anos de história”, o Brasil contou com o sistema escravista nada menos que 388 anos. Neste período, como nos ensinou Luiz Felipe de Alencastro, em O trato dos viventes, “a escravidão não dizia respeito apenas ao escravo e ao senhor, mas gangrenava a sociedade toda”, criando um padrão de relações sociais e de trato político que deixou marcas graves na sociedade brasileira.

Stuart Schwartz, em Segredos internos, mostrou-nos que em decorrência da escravidão, no período colonial, a organização social resultou em uma sociedade de múltiplas hierarquias de honra e considerações, de múltiplas categorias de trabalho, de complexa divisão de cor e de formas variadas de mobilidade e mudança.

Pensando-se na máxima transmitida por Luiz Felipe de Alencastro, de que o Brasil foi um país criado na concepção de que o trabalho é escravidão, iniciamos o Dossiê com o artigo de André Figueiredo Rodrigues (Universidade Estadual Paulista – UNESP, câmpus de Assis), que investiga os escravos como força de trabalho dominante, nas fazendas e lavras de alguns dos homens mais ricos do final do século XVIII, em Minas Gerais, os proprietários da comarca do Rio das Mortes envolvidos na Inconfidência Mineira (1788-1792). Dora Celton, Mónica Ghirardi e Federico Sartori, todos da Universidad Nacional de Córdoba, desvendam, por meio da perspectiva sócio- demográfica, o universo do trabalho escravo em uma área rural administrada conjuntamente por jesuítas e franciscanos, em Córdoba del Tucumán, na Argentina, durante a segunda metade do século XVIII.

Esses dois textos iniciais demonstram que a escravidão, em qualquer lugar ou tempo, visava a diversas finalidades, entre as quais as econômicas. E, todas exerceram, em graus diversos, importantes influências. Neste cenário, praticamente existente em quase toda a América, onde a escravidão tornou-se a forma predominante de organização do trabalho, o cativo, em sua luta diária, procurava criar condições para flexibilizar o sistema, com a criação de espaços de autonomia.

Espaços de autonomia foram buscados, por exemplo, nos festejos realizados pelas irmandades de escravos, que se utilizavam dessa oportunidade para reforçar laços de identidade e para construir um ideal de vida para além do cativeiro, como nos mostra o texto de Alisson Eugênio (Universidade Federal de Alfenas, UNIFAL). Reafirmando a existência desses espaços de autonomia e das ambiguidades, que podem ser observadas na segunda metade do século XIX, Marcelo Eduardo Leite (Universidade Federal do Cariri, UFCA, câmpus de Juazeiro do Norte) nos apresenta, por intermédio de fotografias, cenas da escravidão que ilustram um Brasil real e um Brasil que se pretendia esconder, através de discursos civilizatórios propagandeados pelo Segundo Império.

O Segundo Império, no avançar da segunda metade do século XIX, viu florescer ações de resistência e se consolidar autonomias. Revoltas pipocavam por todo o país e eram abafadas por ações governamentais. Ocorriam fugas em massa e a queima de fazendas, criando um clima de ansiedade, tanto no campo quanto nas cidades. A polícia não tinha condições para controlar esses movimentos, que não foram poucos e esparsos, e o clima de incerteza rodeava a população. Neste contexto, Lucia Helena Oliveira Silva (Universidade Estadual Paulista – UNESP, câmpus de Assis) nos leva a conhecer as diversas maneiras de luta pela liberdade proporcionadas por mulheres no período final da escravidão, na região de Campinas, no Estado de São Paulo. Em semelhança a este assunto, Régia Agostinho da Silva (Universidade Federal do Maranhão – UFMA) apresenta as “falas” sobre escravidão e abolição, no Maranhão, mediadas pelas poesias de Gonçalves Dias (1823-1864) e Trajano Galvão (1830- 1864).

Ariosvalber de Souza Oliveira (mestre pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG) vai ao Rio de Janeiro, na segunda metade do oitocentos, resgatar as ressonâncias escravistas traçadas e criticadas por Machado de Assis no conto “Pai contra a mãe”.

Em continuidade às críticas contra a política escravista imperial, o artigo de Milton Carlos Costa (Universidade Estadual Paulista – UNESP, câmpus de Assis) analisa o movimento pelo fim da escravidão na pena de Joaquim Nabuco (1849-1910), o maior líder abolicionista brasileiro.

No tocante a abolição, Iraci del Nero da Costa e Julio Manuel Pires, ambos da Universidade de São Paulo (USP) trazem à tona, em caráter comparativo, discussão sobre a supressão do capital-escravista mercantil e a eclosão de movimentos abolicionistas em diversas partes da América, notadamente Haiti, Canadá, Guianas, Antilhas, Bolívia, Argentina, Peru, Equador, Uruguai, México, Paraguai, Estados Unidos, Cuba e o Brasil.

Ainda no cenário internacional comparativo, regressamos as relações atlânticas envolvendo o Brasil, a Guiné Equatorial e Cuba, pela ótica de Pedro Acosta-Leyva (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB, câmpus dos Malês, na Bahia), no que diz respeito às negociações, intercâmbios e mediações que definiram a territorialidade brasileira e de Guiné Equatorial, e a dinamização da sociedade cubana em relação ao tráfico, ao desenvolvimento cultural-religioso e a indústria açucareira.

Na contemporaneidade, vestígios da escravidão serão lidos por Margarita Aurora Vargas Canales (Universidad Nacional Autónoma de México – UNAM) em crítica literária que realiza a cinco romances do martiniquenho Édouard Glissant (19282011), um dos mais importantes escritores do Caribe francês, permitindo-nos conhecer a experiência de uma pessoa que buscou nas raízes africanas os sentimentos de valorização da cultura nascida nas Antilhas.

Francisca Pereira Araújo (mestranda em História na Universidade Federal de Campina Grande – UFCG), a quem cabe o desfecho do Dossiê, mostra as formas de sobrevivência de afro-brasileiros na cidade de Campina Grande, entre 1945 e 1964, ao recuperar, por meio de relatos orais de idosos negros e não negros, as modificações observadas na cidade em relação ao mundo do trabalho, ou melhor, na recuperação de vestígios escravistas que marcam profundamente a economia, e por que não dizer a cultura e a política nacionais, desde o final da escravidão no Brasil. Nada mais atual que as palavras, em tom de presságio, escritas em sermão, na segunda metade do século XVII, pelo padre Antônio Vieira (1608-1697): “A liberdade é um estado de isenção que, uma vez perdido, nunca mais se recupera; quem foi cativo uma vez, sempre ficou cativo, porque ou o libertam do cativeiro ou não; se o não libertam, continua a ser cativo do tirano; se o libertam, passa a ser cativo do libertador.”

Boa leitura!

André Figueiredo Rodrigues – Professor do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras, da Universidade Estadual Paulo (UNESP), câmpus de Assis.


RODRIGUES, André Figueiredo. Apresentação. Mnemosine Revista. Campina Grande, v.5, n.1, jan. / jun., 2014. Acessar publicação original [DR]

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